Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01024/14
Data do Acordão:10/29/2014
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:CASIMIRO GONÇALVES
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO FISCAL
RECURSO DE IMPUGNAÇÃO
DECISÃO POR DESPACHO
FALTA DE AUDIÇÃO DO ARGUIDO E DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Sumário:I – No recurso de aplicação de coima o juiz só pode decidir por despacho depois de notificados o arguido e o Ministério Público, anunciando essa sua intenção, conforme o disposto no nº 2 do art. 64º do RGCO.
II – Tendo sido omitida tal formalidade, a respectiva decisão enferma da nulidade insanável prevista na al. c) do art. 119º, bem como da nulidade prevista na al. d) do nº 2 do art. 120º, ambos do CPPenal, pelo que é, assim, inválida, nos termos do disposto no nº 1 do art. 122º também do mesmo compêndio, aplicável ex vi al. b) do art. 3º do RGIT e art. 41º do RGCO.
Nº Convencional:JSTA000P18127
Nº do Documento:SA22014102901024
Data de Entrada:09/23/2014
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA E OUTRO
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

RELATÓRIO
1.1. O Ministério Público recorre do despacho (decisão sumária) que, proferido no Tribunal Tributário de Lisboa declarou nula a decisão administrativa de aplicação de coima no montante de 45.000,00 Euros, operada no processo de contra-ordenação que ali correu termos, em sede de recurso, sob o nº 2175/13.0BELRS.
1.2. Termina as alegações formulando as Conclusões seguintes:
1 - O recurso interposto pela "A……………… ", foi em 22/11/2013 remetido pelo Ministério Público ao Meritíssimo Juiz, acto que, nos termos do n° 1 do art. 62° do RGCO equivale à acusação.
2 - Na petição de recurso a arguida indicou prova testemunhal.
3 - Não foi proferido despacho a admitir o recurso judicial da decisão de aplicação da coima tendo, de imediato, a Meritíssima Juíza decidido o recurso através de simples despacho.
4 - Não foi concedido prazo ao MP nem ao arguido para, querendo, se pronunciarem, opondo-se caso assim o entendessem, a uma decisão por mero despacho, em conformidade com o disposto no n° 2 do art. 64° do RGCO.
5 - De acordo do estipulado no n° 2 do art. 64° do Dec.Lei n° 433/82, de 27.10, a possibilidade de decidir o recurso de impugnação judicial, por simples despacho, está absolutamente dependente da não oposição da arguida e do Ministério Público a essa forma de decidir.
6 - A omissão dessa audição, constitui a nulidade insanável prevista na alínea c) do artigo 119° do Código de Processo Penal, aplicável "ex vi" art. 41° Dec.Lei n° 433/82, de 27/10 (RGCO).
7 - A decisão por simples despacho, implica, nos termos do art. 122°, n° 1 do CPPenal, a invalidado da decisão por simples despacho proferida nos autos.
8 - A douta sentença recorrida, viola o disposto no n° 2 do art. 64° do Dec.Lei n° 433/82, de 27/10, pelo que deverá, ser revogada e substituída por outra que observe o determinado no n° 2 do art. 64° do Dec.Lei n° 433/82, de 27/10.
9 - Caso assim não se entenda, afigura-se-nos que a douta decisão sob recurso errou na interpretação e aplicação do disposto na alínea d) do n° 1 do 63° RGIT e violou o disposto no artigo 79°, n° 1, al. b) do mesmo diploma legal citado.
10 - Em face do teor da Cota de fls. 44 - a decisão administrativa não vem assinada porque foi feita de forma automática, electronicamente - não existe o vício de falta de assinatura do autor da decisão mas, se dúvidas subsistissem, competia à Meritíssima Juíza notificar a entidade recorrida para vir aos autos documentar o que por ela é referido na Cota de fls. 44, não podendo, sem tal diligência, concluir pela inexistência de assinatura do autor da decisão administrativa que aplicou a coima.
11 - Constam da decisão administrativa que aplicou a coima - cfr. fls. 42 e 43 - os seguintes elementos fácticos:
1. Montante do Imposto exigível € 160.945,09;
2. Valor da prestação tributária entregue € 160.945,09;
3. Valor da prestação tributária em falta: 0,00;
4. Data de cumprimento da obrigação: 2012-12-11;
5. Período a que respeita a infracção: 2012/10;
6. Termo do prazo para pagamento da obrigação: 2012-12-10.
12 - Naquela decisão, nas normas infringidas refere-se, "artigo 27°, n° 1 e 41°, n° 1, al. a) do CIVA - Pagamento de imposto fora de prazo" e, nas normas punitivas indica-se "art. 114°, n° 2, n° 5 al. a) e 26°, n° 4 do RGIT - Falta de entrega presta. Tributária dentro do prazo".
13 - As referências atrás expostas constituem uma descrição sumária dos factos.
14 - Na decisão administrativa que aplicou a coima não se refere, em termos concretos, a condição económica da arguida, a gravidade do facto, a culpa do agente e ainda, a razão pela qual se optou pela fixação da coima no valor de € 45.000,00 e não por qualquer outro;
15 - Todavia, a coima foi fixada pelo mínimo legal e, assim sendo, como se escreve no douto Ac. do STA de 20-01-2010, 01037 ..." acompanhemos a posição jurisprudencial que defende que a alínea c) do n° 1 do artigo 79° do RGIT, ao exigir a indicação dos elementos que contribuíram para a fixação da coima, deve ser objecto de uma interpretação restritiva relativamente à sua expressão literal, privilegiando-se, nos apontados termos, o seu elemento racional, pelo que não existirá nulidade se a coima é aplicada no seu limite mínimo ou num valor muito próximo dele - cfr. o citado acórdão do STA e, ainda, os de 12-12-2006, no recurso n° 1045/06 e de 7-11-2007, no recurso n° 814/07.
16 - Afigura-se-nos, assim, salvo o devido respeito por opinião contrária, estar no caso "sub-judice" consubstanciada a descrição sumária dos factos imposta pela alínea b) do n° 1 do artigo 79° do RGIT e estarem preenchidos os requisitos legais da decisão que aplicou a coima, não se configurando qualquer nulidade insuprível.
17 - Pelo que ocorrendo erro na interpretação e aplicação do disposto no artigo 63°, n° 1, al. d) do RGIT deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que aprecie os fundamentos do recurso indicados na Petição apresentada pela arguida.

1.3. Não foram apresentadas contra-alegações.

1.4. Sendo recorrente o MP, não se ordenou, consequentemente, que os autos lhe fossem com Vista, antes se tendo de imediato ordenado a Vista aos Exmos. Juízes Conselheiros Adjuntos.

FUNDAMENTOS
2. Na decisão recorrida julgaram-se provados os factos seguintes:
A. Com base em auto de notícia que consta a fls. 4, foi instaurado contra a Arguida/Recorrente um processo de contra-ordenação em consequência do qual, por despacho datado de 2013-08-12, lhe foi aplicada coima no montante de € 45 000,00 - fls. 42 e 43;
B. No despacho referido em A, na parte referente à descrição dos factos, lê-se:
«Descrição Sumária dos Factos
Ao(A) arguido(a) foi levantado Auto de Notícia pelos seguintes factos: 1. Montante do imposto exigível: 160 945,09; 2. Valor da prestação tributária entregue: 160 945,09; 3. Valor da prestação tributária em falta: 0,00; 4. Data do cumprimento da obrigação: 2012-12-11; 5. Período a que respeita a infracção: 2012/10; 6. Termo do prazo para cumprimento da obrigação: 2012-12-10; os quais se dão como provados. Número da liquidação: L.2013.13003863» - fls. 42;
C. Na parte destinada à assinatura do autor, consta apenas, no despacho referido em A, por cima de uma linha horizontal, Director da Direcção de Finanças de Lisboa - fls. 43.

3.1. Enunciando como questão a conhecer em primeiro lugar a de saber se a decisão administrativa que aplicou a coima à Recorrente está, ou não, ferida de nulidade insuprível nos termos do art. 63°, n° 1, al. d) do RGIT, a decisão recorrida veio a concluir pela afirmativa, ou seja, que se verifica nulidade insuprível daquela decisão administrativa, uma vez que:
- a descrição sumária de factos, nos termos em que consta da alínea B) do Probatório, não constitui qualquer descrição dos factos, conforme disposto na referida al. b) do nº 1 do art. 63º do RGCO, bem como no nº 1 do art. 79º do mesmo diploma;
- além de que dos factos provados também resulta que a decisão administrativa não contém a assinatura do autor, nem manual, nem digital, constando, apenas, na parte destinada a assinatura, a menção de que o despacho terá sido proferido pelo Director da Direcção de Finanças.

3.2. Do assim decidido discorda o recorrente MP, invocando, como se viu, que, tendo a arguida indicado prova testemunhal mas não tendo sido proferido despacho a admitir o recurso judicial da decisão de aplicação da coima, antes tendo, de imediato, a Meritíssima Juíza decidido o recurso através de simples despacho, então não foi concedido prazo ao MP nem ao arguido para, querendo, se pronunciarem, opondo-se caso assim o entendessem, a uma decisão por mero despacho, em conformidade com o disposto no n° 2 do art. 64° do DL nº 433/82, de 27/10 (RGCO), sendo que, por um lado, a omissão dessa audição constitui a nulidade insanável prevista na al. c) do art. 119° do CPPenal, aplicável "ex vi" art. 41° do referido RGCO e, por outro lado, a decisão por simples despacho, implica, nos termos do art. 122°, n° 1 do CPPenal, a invalidade da decisão por simples despacho proferida nos autos.
E subsidiariamente, para o caso de assim não se entender, o MP sustenta que a decisão recorrida também não pode manter-se, porquanto faz uma interpretação e aplicação erradas do disposto na al. d) do n° 1 do art. 63° e na al. b) do nº 1 do art. 79°, ambos do RGCO, dado que a decisão administrativa está assinada de forma automática (electronicamente) e também contém a descrição sumária dos factos ali estabelecida.
Vejamos se lhe assiste razão.

4. Quanto à primeira questão: nulidade insanável prevista na al. c) do art. 119° do CPPenal e consequente invalidade da decisão por despacho, nos termos do art. 122°, n° 1 do CPPenal.

4.1. Sob a epígrafe «Decisão por despacho judicial», dispõe-se nos nºs. 1 e 2 do art. 64º do RGCO:
«1 - O juiz decidirá do caso mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho.
2 - O juiz decide por despacho quando não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido ou o Ministério Público não se oponham.»
São, portanto, dois os requisitos - cumulativos - para que o juiz possa decidir por despacho: (i) que não considere necessária a audiência de julgamento e (ii) que o arguido e o Ministério Público não se oponham.
Trata-se, no fundo, da concretização, no processo de contra-ordenação, do princípio constitucional do direito de audiência e de defesa previsto no art. 32º, nºs. 1, 5 e 8 da CRP.
E como salientam os Cons. Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, (Regime Geral das Infracções Tributárias - Anotado, 4ª edição, 2010, Áreas editora, anotação 10 ao art. 81º, p. 547; bem como Contra-ordenações - Anotações ao Regime Geral, 6ª Edição, 2011, Áreas editora, anotação 2 ao art. 64º, p. 500.) «Basta a oposição de qualquer deles (arguido ou MP) para o juiz não poder decidir por despacho.
Esta oposição poderá ser manifestada pelo arguido no requerimento de interposição de recurso e pelo Ministério Público ao apresentar o processo ao juiz, devendo entender-se que constituem manifestação implícita de oposição o oferecimento de prova que deva ser produzida em audiência.
No entanto, não se exigindo que eles manifestem a oposição espontaneamente nesses momentos, o juiz, no caso de não considerar necessária a audiência, deverá notificar o arguido e o Ministério Público anunciando a sua intenção de decidir por despacho, para dar-lhes oportunidade de deduzirem oposição, fixando-lhe prazo para esse efeito. Na falta de manifestação de oposição, o juiz poderá decidir por despacho, não sendo necessária uma afirmação positiva de concordância, como se conclui dos termos do n° 2 do art. 64° do RGCO, em que se estabelece que «o juiz decide por despacho quando não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido ou o Ministério Público não se oponham».
Para além disso, antes de decidir por despacho, o juiz deve dar oportunidade ao representante da Fazenda Pública de trazer ao processo os elementos que repute convenientes para decisão (art. 70°, n.ºs 1 e 2, do RGCO).
No caso vertente, constata-se que nem a arguida nem o Ministério Público foram ouvidos para efeitos do disposto no supra transcrito nº 2 do art. 64º do RGCO, isto é, sobre a possibilidade de o recurso ser decidido por despacho, não obstante a arguida logo tenha arrolado prova testemunhal, na petição de recurso.
Verificando-se, portanto, a alegada violação do citado preceito legal, substanciada na omissão daquela audição e configurando-se, consequentemente, a nulidade insanável prevista na al. c) do art. 119° e a nulidade prevista na al. d) do nº 2 do art. 120º, ambos do CPPenal, aplicável "ex vi" art. 41° do RGCO e da al. b) do art. 3º do RGIT.
Aliás, como se acentua no acórdão desta Secção do STA, proferido em 29/6/2005, proc. nº 0363/05 (No mesmo sentido cfr. também o ac. de 30/11/2004, proc. nº 0707/04.), «mesmo a admitir que o Juiz não violou tal preceito com o fundamento de que não existe norma que o obrigue a ouvir aquelas entidades sobre se se opõem ou não à decisão por simples despacho, no caso em apreço, sempre aquela decisão violaria aquele preceito, uma vez que, com a indicação pela arguida nas suas alegações de duas testemunhas, tal conduta traduz a sua vontade de que as mesmas fossem ouvidas em audiência de julgamento, reveladora de uma oposição inequívoca da arguida a essa forma de apreciação da causa (neste sentido, vide Ac. da Relação de Lisboa de 4/3/92, in Colect. Jurisp., Ano XVII, Tomo II, pág. 164)

4.2. Ocorre, assim, a invalidade da decisão (despacho) recorrida, atento o disposto no nº 1 do art. 122º do mesmo CPPenal, procedendo, portanto, nesta medida, o recurso e ficando, consequentemente, prejudicada a apreciação da questão da nulidade insuprível por falta da descrição sumária dos factos.

DECISÃO
Nestes termos, acorda-se em conceder provimento ao recurso jurisdicional e, decretando a nulidade do acto recorrido, ordenar a baixa dos autos a fim de prosseguirem com a notificação da arguida e do Ministério Público, de harmonia e para efeitos do disposto no nº 2 do art. 64º do RGCO.
Sem custas.
Lisboa, 29 de Outubro de 2014. – Casimiro Gonçalves (relator) – Francisco RothesAragão Seia.