Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0420/12
Data do Acordão:06/05/2012
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CA
Relator:RUI BOTELHO
Descritores:RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
INCONSTITUCIONALIDADE
DESPACHO DO RELATOR
Sumário:I – De acordo com o preceituado no art. 152º do CPTA, os requisitos de admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência são os seguintes: a) que exista contradição entre acórdão do TCA e outro acórdão anterior, do mesmo TCA ou do STA ou entre acórdãos do STA; b) que essa contradição recaia sobre a mesma questão fundamental de direito; c) que se tenha verificado o trânsito em julgado do acórdão impugnado e do acórdão fundamento; d) que não exista, no sentido da orientação perfilhada no acórdão impugnado, jurisprudência mais recentemente consolidada no STA. Por outro lado, mantêm-se os princípios que vinham da jurisprudência anterior (da LPTA) segundo os quais (i) para cada questão relativamente à qual se pretenda ocorrer oposição deve o recorrente eleger um e só um acórdão fundamento; (ii) só é figurável a oposição em relação a decisões expressas e não a julgamentos implícitos; (iii) é pressuposto da oposição de julgados que as soluções jurídicas perfilhadas em ambos os acórdãos - recorrido e fundamento - respeitem à mesma questão fundamental de direito, devendo igualmente pressupor a mesma situação fáctica; (iv) só releva a oposição entre decisões e não entre a decisão de um e os fundamentos ou argumentos de outro.
II – Das decisões do juiz relator sobre o mérito da causa, proferidas sob a invocação dos poderes conferidos do art. 27º, n.º 1, alínea i), do CPTA, cabe reclamação para a conferência, nos termos do n.º 2, não recurso.
III – A reclamação para a conferência prevista no n.º 2 é uma forma como outra qualquer de reagir contra decisões desfavoráveis que não limita – antes acrescenta – as formas de reacção, não padecendo de qualquer inconstitucionalidade.
Nº Convencional:JSTA00067653
Nº do Documento:SAP201206050420
Data de Entrada:04/26/2012
Recorrente:A...., LDA
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE ALMADA E OUTRO
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:UNIFORM JURISPRUDÊNCIA
Objecto:AC TCA SUL
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR ADM CONT
Legislação Nacional:CPTA02 ART152 ART142 ART27 N1 I N2
CPC96 ART700 N3 ART705
ETAF02 ART40 N3
CPC96 ART199 N1
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC248/10 DE 2010/05/20; AC STA PROC542/10 DE 2010/10/19; AC STA PROC46051 DE 2007/03/06
Referência a Doutrina:ANTÓNIO GERALDES RECURSOS EM PROCESSO CIVIL ED 2008 PAG243.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I Relatório

A…… LDA., com melhor identificação nos autos, veio interpor recurso para uniformização de jurisprudência, nos termos do art. 152º do CPTA, do acórdão do TCA Sul de 12.1.2012, que decidiu não conhecer do recurso jurisdicional interposto da decisão proferida, com a invocação do art. 27º, n.º 1, alínea i), do CPTA, pelo TAF de Almada, de 5.8.2011 – por ter entendido que o meio próprio de reacção era a reclamação para a conferência, nos termos do n.º 2, e não o recurso - que julgou improcedente a acção de contencioso pré-contratual que propôs contra o MUNICÍPIO DE ALMADA, e em que figura como Contra-interessada a B…… LDA.

Indicou como fundamento o acórdão proferido pelo TCA Sul no Processo 6360/10, de 14.7.2010, que constitui o Acórdão Fundamento.

Terminou a sua alegação formulando as seguintes conclusões:
A) No presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência vem impugnado o Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul (2° Juízo, 1ª Secção), no âmbito do Proc. n.° 08262/11, datado de 12.01.2012, pelo qual se considerou não ser de conhecer do recurso jurisdicional interposto pela ora Recorrente contra a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada de 05.08.2011, no âmbito do Proc. n.° 214/11.8BEALM;
B) Foi posição expressa no Acórdão Impugnado que não obstante o Tribunal designar essa decisão como uma sentença, a mesma era insusceptível de recurso, já que proferida por juiz singular (relator) com invocação da alínea i) do n.° 1 do art. 27° CPTA, com o que era obrigatório o uso da reclamação para a conferência, sendo irrelevante a qualificação que o tribunal emissor da decisão dá à mesma, mais considerando que sob o termo “despacho” constante do n.° 2 do art. 27.° CPTA também se integram por interpretação extensiva as “sentenças”;
C) Com fundamento no art. 152°, n.° 1, alínea a), a Recorrente invoca a oposição de julgados do exposto nesse Acórdão Impugnado, com o previamente fixado sobre a mesma matéria pelo Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (1ª Secção, 2° Juízo) proferido no âmbito do Proc. n.° 6360/10, de 14.07.2010, que constitui o Acórdão Fundamento nesta matéria;
D) Neste aresto (Acórdão Fundamento) fixou-se que, ainda que a decisão final seja praticada por juiz singular, tratando-se de decisão qualificada e apelidada de “sentença” e com tal conteúdo, o meio jurisdicional de reacção é o recurso jurisdicional, como desenvolvido pela ora Recorrente, não relevando a aplicação do n.° 2 do art. 27.° CPTA aos actos praticados ao abrigo da alínea i) do n.° 1 do art. 27.° CPTA neste contexto;
E) A admissão do Recurso para Uniformização de Jurisprudência obedece à verificação de requisitos: existe uma contradição entre o sentido expresso pelo Tribunal Central Administrativo Sul no Acórdão fundamento e o sentido expresso no posterior Acórdão impugnado. Esta contradição emerge dos próprios termos da decisão em ambos os Acórdãos. Ambos os Acórdãos se acham estabilizados na ordem jurídica por trânsito em julgado. Sobre esta matéria em específico não existe jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo recente. Existe ainda identidade na questão fundamental a ser definida por uniformização de jurisprudência;
F) O Tribunal a quo estribou-se na alínea i) do n.° 1 do art. 27.° do CPTA para invocar a simplicidade da questão, a fim de a sentença ser proferida por juiz singular - aqui entendido como relator por força do art. 92.°, n.° 1 CPTA. A alínea i) do n.° 1 do art. 27.° do CPTA menciona que os poderes conferidos ao relator por seu intermédio são os de “proferir decisão quando entenda que a questão a decidir é simples (...)”;
G) No confronto da expressão “proferir decisão” constante da alínea i) do n.° 1 do art. 27.° CPTA, com a norma contida no n.° 2 do art. 27.° CPTA - norma que se entendeu no despacho em resposta obstar ao recurso jurisdicional - notamos o uso deliberado pelo legislador de diferentes expressões para designar actos de decisão jurisdicional (numa usa-se a expressão vaga “decisão” - alínea i) do n.° 1, na outra a acepção concreta de “despachos” - n.° 2). Tal não existia na legislação anterior. O n.° 2 do art. 27.° do CPTA obriga a submeter a conferência os “despachos do relator”.
H) Distintamente dos despachos, as sentenças proferidas por tribunais (actos que também quadram o conceito de “decisão”), tal como os acórdãos, são qualificados pelos tribunais e esperados pelas partes destinatárias como actos finais, conclusivos e que conhecem do mérito da causa, contra os quais apenas a apelação é meio adequado para sua reversão;
I) É uma aplicação inconstitucional do n.° 2 do art. 27.° CPTA e da alínea i) do n.° 1 do art. 27.° CPTA, aplicar os mesmos no sentido de considerar que apesar de um Tribunal apelidar certo acto seu de sentença e essa ser uma decisão de mérito que remete para um regime de recurso jurisdicional, entender um Tribunal superior que a qualificação dada não estava, afinal, correcta e que como tal, as reacções jurisdicionais dessas não se poderiam ter conformado com essa qualificação que os próprios tribunais haviam dado.
J) Esse entendimento atenta, designadamente, contra os princípios do Estado de Direito Democrático (art. 2.° CRP) e seus corolários ao nível dos princípios derivados de confiança e estabilidade e aceso ao direito e justiça (art. 20.° CRP), já que a confiança das partes processuais se vê posta em causa perante quaisquer decisões jurisdicionais, já que deixam de poder confiar na qualificação que os tribunais - órgãos de soberania com competência para administrar a justiça - fazem dos seus próprios actos;
K) Nada se refere no n.° 2 do art. 27.° CPTA quanto à obrigação de actos que seja sentenças serem submetidos a conferência pela via da reclamação, o que se terá de assumir ter significado e ser opção legislativa ponderada;
L) Não procede o argumento provindo de uma comparação com o processo civil nesta matéria, pois que a regra constante do CPTA é herdeira da regra já existente na LPTA, que não inspirada nas regras existentes no âmbito do processo civil, razão pela qual se criou o art. 27.° CPTA, à semelhança do que já existia na LPTA e não apenas se remeteu à disciplina do CPC por acção da remissão genérica que ambos os diplomas - CPTA e LPTA - tinham e têm nos seus arts. l.°s;
M) Ainda que se entenda que o nº 2 do art. 27.° CPTA permite uma interpretação extensiva, ao ponto de abarcar sob o termo “despachos”, as sentenças, ou seja, usar o termo “despachos”, num sentido idêntico ao de “decisões” na alínea i) do n.° 1 do art. 27.° CPTA, o sentido decisório constante do Acórdão Impugnado não pode ser mantido;
N) O fulcro do presente recurso reside na qualificação e notificação à Recorrente de uma decisão como “sentença” e qual o regime que as partes processuais sejam obrigadas a seguir nessa ocasião: um regime conforme a qualificação que o tribunal dá ao seu acto e que o leva em linha recta à necessidade de interposição do recurso; ou a um regime conforme um alegado (no Acórdão Impugnado) ónus de percepção que existe um erro de qualificação e apelo à reclamação para a conferência;
O) Na segunda hipótese e que foi a seguida pelo Acórdão Impugnado - estamos perante a imposição de um ónus processual às partes no processo de ultrapassarem as qualificações que os próprios tribunais façam dos seus actos, obrigando a que, mesmo sem que essa qualificação tenha sido posta em causa por tribunal superior, as partes julguem e apurem o erro do julgador e enveredem por meio de reacção em discordância com o que o próprio tribunal que terá de admitir o meio de reacção dispôs em qualificação desse acto;
P) Expressamente, o Acórdão Impugnado sustenta que as partes são obrigadas a desconsiderar a qualificação que os tribunais façam dos seus actos e acertar nos meios de reacção compatíveis com a natureza que apurarem após essa desconsideração da qualificação que o tribunal emissor emprestou ao seu acto decisório;
Q) Enveredar e consagrar tal imposição às partes no processo é claramente inconstitucional por criação de um sistema de indefesa face às garantias de acesso ao direito e justiça (art. 20.° CRP) e ulteriormente face à própria garantia de tutela jurisdicional efectiva (art. 268.°, n.° 4), por violação de um parâmetro de proporcionalidade nas imposições colocadas às partes no processo, quanto às condições em que podem usar dos meios de reacção;
R) É claramente abusivo e coloca em causa o uso das garantias recursivas ou de reacção, colocar a obrigação às partes de usarem meios contenciosos em discordância com a qualificação do acto que o próprio órgão de soberania que julga a questão impôs, quando o nosso sistema de reacção contra decisões judiciais assente exclusivamente no pressuposto de qualificação do acto como “despacho” ou “sentença” para conduzir as partes no processo aos meios que poderão usar;
S) Defronta o princípio da confiança e da estabilidade jurídica do processo - o due process - definir em lei processual que a selecção de meios contenciosos se faz por apelo a um critério de nominação do acto pelo tribunal, para, posteriormente, quando o particular se conforma com essa nominação que lhe empresta a própria instância que deve admitir o meio, poder essa instância ou a superior, venire contra factum propriu rejeitando o meio de reacção com fundamento em que a nominação não vincula e há mesmo o dever de contrariar uma qualificação jurisdicional;
T) A interpretação e aplicação das normas de processo e que é a seguida pelo Acórdão Impugnado, leva a conclusões contrárias aos ditames do Estado de Direito, em que os princípios pro actione não habilitam tais condutas processuais que promovam a indefesa e incerteza das partes que recorrem ao processo para sua tutela;
U) Elemento impressivo em favor do uso do recurso jurisdicional no caso vertente resulta ainda da observação das normas do CPTA que governam o recurso jurisdicional, e que se estribam na qualificação do acto jurisdicional pelo tribunal que profere a decisão;
V) Uma observação cuidada do regime exposto no art. 142.°, n.° 1 CPTA permite identificar que o Código de Processo nos Tribunais Administrativos foi claro na determinação que das decisões de mérito se interpõe recurso jurisdicional;
W) No sistema de recursos expresso no CPTA é a qualificação de sentença aposta no acto jurisdicional que leva a parte a conhecer a natureza definitiva e final da intervenção judicial na composição dos interesses no litígio, obrigando à conformação dos meios de reacção posteriores, com essa natureza emprestada ao acto pelo texto decisório, O regime constante do art. 142.° CPTA colide com o entendimento subscrito no Acórdão Impugnado;
X) A questão colocada nos presentes autos já foi objecto de análise e decisão por tribunais superiores, no âmbito da presente legislação, através do Acórdão deste mesmo Tribunal - Tribunal Central Administrativo Sul (P Secção, 2° Juízo), no âmbito do Proc. n.° 6360/10, de 14.07.2010. Nesse Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, colocou-se precisamente a questão da invocação, pela 1a instância e num processo de contencioso pré-contratual, da simplicidade da questão decidenda, para avocação da decisão de prolação de sentença por juiz singular da 1ª instância - tudo como no cenário do Acórdão Impugnado;
Y) Ficou assente na matéria de facto desse aresto que houve a decisão de invocação de simplicidade da questão - que se considerou de discricionariedade do Tribunal - , como também se deixou assente que houve a prolação de decisão judicial a título de sentença (factos R), S) e T) aditados ao abrigo do art. 712.° do CPC como refere o Acórdão;
Z) A reacção da parte vencida em 1ª instância fora a de reclamar para a conferência e essa reclamação fora rejeitada, tendo desse Acórdão da conferência interposto recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul que proferiu a seguinte decisão que fez escola (sumário): “1 - Nos termos do art° 27.2 do CPTA, reclama-se para a conferência “dos despachos”, não das sentenças”;
AA) Nesse Acórdão Fundamento concluiu-se de forma contundente para os presentes autos que: “4.1 Nos termos do art. 27.2. do CPTA, reclama-se para a conferência «dos despachos», não das sentenças. Destas recorre-se. Logo não podia a conferência conhecer do mérito, como a recorrente pretende.”. No ponto 4.2 do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul em referência foi ainda dito: “«Se a parte não concorda com a solução final, tem sempre à sua disposição o competente recurso sobre o mérito da decisão»”. Este sentido de decisão, é o sentido a ser mantido;
BB) Temos, portanto, que todos os elementos convocados, desde o argumento literal, ao sistemático, ao da jurisprudência convergem no ponto que uma sentença proferida em juiz singular em 1ª instância é objecto de impugnação pela via do recurso jurisdicional, que não de reclamação para a conferência. Não se vê que a decisão neste recurso possa ser outra senão a de se manter a orientação jurisprudencial aí bem fixada, com revogação do Acórdão Impugnado;
CC) A visão de protecção da segurança jurídica face à qualificação de actos pelos tribunais e em prol da garantia de tutela jurisdicional efectiva (art. 268.°, n.° 4 e art. 20.° da CRP) que o Acórdão Fundamento promove deve ser mantida, pois que o particular não pode ficar desprotegido por ter confiado na qualificação que o Tribunal empresta ao acto, conformando-se com o uso de meios recursivos em face dessa qualificação imposta na decisão a quo, para, posteriormente, um tribunal de recurso lhe negar essa qualificação, com o resulta da indefesa jurisdicional por facto atributivo a erro judicial na qualificação do acto;
DD) Pelo contrário, a visão imposta no Acórdão Impugnado é a de que reside com o destinatário da sentença judicial, a obrigação de ultrapassar a qualificação expressa que ê dada pelo órgão emitente da sentença e conformar esse acto jurisdicional como mero despacho a sujeitar à conferência, por virtude da invocação do art. 27°, n.° 1 do CPTA no texto decisório;
EE) O Acórdão Impugnado encontra-se a sustentar que é legítimo impor ao destinatário do acto de justiça o reconhecimento do erro ou da contradição entre a qualificação do acto decisório e a invocação da base jurídica, optando pela indicação da base jurídica em detrimento da qualificação dada ao acto no mesmo texto, passando a adoptar o papel de corregedor das sentenças, quando os termos internos destas sejam contraditórios.
FF) Essa visão do sistema jurídico não pode proceder, por colocar os particulares à mercê do erro judiciário, pois que implica uma indefesa jurisdicional por facto atribuível à jurisdição inferior, facto que não é admissível e por isso contrário à garantia de tutela jurisdicional efectiva (art. 268.°, n.° 4 CRP) e ao direito ao acesso ao direito e à justiça (art. 20.° CRP), bem como violador do ideal de Estado de Direito Democrático (art. 2.° CRP);
GG) Perante uma contradição no texto da decisão entre a qualificação dada de “sentença” e a invocação do art. 27.°, n.° 1 CPTA, se o particular envereda pelo meio de reacção que se conforma com a qualificação dada de “sentença”, ao invés de enveredar pelos meios de reacção que se relacionam com a invocação do art. 27.°, n.° 1 do CPTA, não pode deixar de ser aceite e decidido o recurso jurisdicional, sob pena de se colocar sobre um destinatário de decisão judicial um ónus que este nunca teve, e que é o de ter de discernir entre erros judiciários, para fins de utilização dos meios de reacção dispostos no sistema jurídico;
HH) A ser aceite tal visão, e é essa que o Acórdão Impugnado propugna, as valências de confiança e estabilidade no uso de meios recursivos face decisões de tribunais administrativas proferidas por juiz singular deixam de existir, desde logo, perante contradições internas à própria decisão no que toca a menções a interpretar para fins de uso de meios de reacção;
II) Os princípios de preferência pela decisão material e pro actione não autorizam a leitura que o Acórdão Impugnado faz da decisão e da aplicação forçosa do art. 27.°, n.° 2 do CPTA, requerendo-se a sua revogação por erro de julgamento nos termos do art. 152.°, por violação dos preceitos legais citados e sua substituição por Acórdão deste Pleno que fixe a orientação constante do Acórdão Fundamento, isto é, que perante decisões finais proferidas por juízes singulares em 1ª instância ao abrigo da alínea i) do n.° 1 do art. 27.° CPTA que os mesmos qualifiquem como sentenças, deverá ser admitido recurso jurisdicional contra as mesmas, em nome dos valores, princípios e normas abundantemente enunciados atrás. Nestes termos,
Deve o presente recurso para uniformização de jurisprudência ser admitido e considerado procedente por provado, mais se revogando o Acórdão Impugnado e se fixando jurisprudência conforme ao Acórdão Fundamento, assim se fazendo a costumada Justiça”
Não houve contra-alegações.
O Magistrado do Ministério Público não se pronunciou.
Sem vistos, mas com distribuição prévia do projecto de acórdão, cumpre decidir.

II Factos

Remete-se, nos termos da lei (art. 713º, n.º 6, do CPC), para a matéria de facto constante do acórdão recorrido.

III Direito

1. De acordo com o preceituado no art. 152º do CPTA, os requisitos de admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência são os seguintes: a) que exista contradição entre acórdão do TCA e outro acórdão anterior, do mesmo TCA ou do STA ou entre acórdãos do STA; b) que essa contradição recaia sobre a mesma questão fundamental de direito; c) que se tenha verificado o trânsito em julgado do acórdão impugnado e do acórdão fundamento; d) que não exista, no sentido da orientação perfilhada no acórdão impugnado, jurisprudência mais recentemente consolidada no STA. Por outro lado, mantêm-se os princípios que vinham da jurisprudência anterior (da LPTA) segundo os quais (i) para cada questão relativamente à qual se pretenda ocorrer oposição deve o recorrente eleger um e só um acórdão fundamento; (ii) só é figurável a oposição em relação a decisões expressas e não a julgamentos implícitos; (iii) é pressuposto da oposição de julgados que as soluções jurídicas perfilhadas em ambos os acórdãos - recorrido e fundamento - respeitem à mesma questão fundamental de direito, devendo igualmente pressupor a mesma situação fáctica; (iv) só releva a oposição entre decisões e não entre a decisão de um e os fundamentos ou argumentos de outro (entre muitos outros o acórdão STA de 20.5.10 no recurso 248/10).
2. Pretende a recorrente que os arestos em confronto - ambos transitados em julgado - no contexto do mesmo quadro factual e jurídico, decidiram de forma oposta a questão de saber se a decisão tiver sido tomada pelo juiz relator, no quadro da invocação dos poderes conferidos pelo artigo 27.º, n.º 1, alínea i), do CPTA, haverá lugar a reclamação para a conferência, por força do seu n.º 2, ou se, pelo contrário, estará sujeita a recurso jurisdicional, nos termos gerais, face ao disposto no art. 142º, n.º 1.
3. No acórdão recorrido, que concluiu pela primeira hipótese da alternativa, escreveu-se o seguinte: “A fls. 846, o relator proferiu o seguinte despacho: “Conforme resulta de fls. 611 dos autos, no caso em apreço, a sentença foi proferida pelo juiz relator no quadro da invocação dos poderes conferidos pelo art. 27°, n° 1, al. i), do CPTA. Ora, como estabelece o citado art. 27°, n° 2, dos despachos do relator cabe reclamação para a conferência, salvo as excepções nele contempladas, nas quais não se enquadra a decisão sob recurso. Assim, afigurando-se-nos que a sentença era insusceptível de recurso - mas apenas de reclamação para a conferência - que não deve, por isso, ser conhecido, determina-se a notificação da recorrente para, no prazo de 5 (cinco) dias, se pronunciar sobre esta questão”. A recorrente pronunciou-se sobre a referida questão, concluindo pela sua improcedência (…).
Em despacho anterior à sentença, a Sra. juíza do T.A.F. de Almada referiu o seguinte: “Por a causa não se apresentar complexa, profere-se decisão em Juiz Singular, ao abrigo do disposto no art. 27° n° 1 al. i), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA). Segue Sentença:” Como se referiu no atrás transcrito despacho do relator de fls. 846 e na esteira do Ac. deste Tribunal de 23/11/2011 - Proc. n° 07830/11 e do Ac. do STA de 19/10/2010 - Proc. n° 0542/10, da decisão proferida no quadro da invocação dos poderes conferidos pelo art. 27°, n° 1, al. i), do CPTA, não cabe recurso jurisdicional, mas reclamação para a Conferência, nos termos do n° 2 desse preceito. Assim, procede a questão prévia suscitada, não podendo este Tribunal conhecer do recurso jurisdicional.
Contra este entendimento, a recorrente invoca fundamentalmente que o n° 2 do citado art. 27° só abrange os despachos interlocutórios e não as sentenças, correspondendo a uma aplicação inconstitucional desse preceito - por violação dos princípios do Estado de Direito Democrático, consagrado no art. 2° da CRP, em virtude de as partes não poderem confiar na qualificação que os tribunais fazem dos seus próprios actos - a doutrina perfilhada. Mas não tem razão. Efectivamente, se é indubitável que a al. i) do art. 27°, n° 1, abrange as sentenças proferidas pelo relator já nada permite exclui-las do campo de aplicação do n° 2 desse preceito que é expresso quanto às excepções que estabelece. Aliás, no domínio do processo civil, perante a disposição paralela do n° 3 do art. 700° do C.P. Civil, sempre se entendeu que por ela ficavam abrangidas as decisões (de mérito) do objecto do recurso jurisdicional ao abrigo do art. 705° do mesmo diploma (cfr. António Abrantes Geraldes in “Recursos em Processo Civil”, 2008, pág. 243), apesar de a utilização do vocábulo “despacho” naquele art. 700°, n° 3. Também Mário Aroso de Almeida e Carlos Fernandes Cadilha (in “Comentário ao CPTA”, 3 edição revista - 2010, págs. 180 e 181) parecem perfilhar o entendimento que se adoptou, quando referem que “a faculdade conferida pela al. i) do nº 2 reporta-se .... à decisão liminar sobre o objecto do processo, sendo os respectivos pressupostos idênticos aos previstos no art. 705° do C.P.C. para a apreciação sumária do recurso jurisdicional em processo civil”, embora “os direitos das partes fiquem sempre acautelados pela possibilidade conferida pelo n° 2, de reclamarem para a conferência”. Assim, neste âmbito não há um regime diferente para os despachos interlocutórios e para as decisões de mérito, pelo que não é pelo facto de o juiz designar a decisão de sentença que as partes devem confiar que ela é imediatamente recorrível, tanto mais que, como sucedeu no caso em apreço, ele referiu expressamente que a tomava ao abrigo da al. i) do n° 1 do art. 27° do CPTA. Não se verifica, pois, uma aplicação inconstitucional do n° 2 do citado art. 27°.
Deve-se notar, porém, que nada obsta a que se convole oficiosamente o recurso em reclamação, ordenando-se a baixa dos autos ao TAF, para que aí seja apreciada enquanto reclamação para a conferência, pois, como se decidiu, em situação análoga, no Ac. do STA (P) de 6/3/2007 - Proc. n° 46051, “a interposição de recurso desse despacho consubstancia opção por um meio processual inadequado, situação em que em vez do despacho de admissão do recurso se deveria ter ordenado que o processo seguisse a forma processual adequada, nos termos do art. 199°, n° 1, do CPC”.
Mas, como se entendeu no citado Ac. do STA de 19/10/2010, “só haverá um efectivo prosseguimento da forma processual adequada se for possível, se estiverem preenchidos todos os seus pressupostos”, o que implica que os autos baixem ao Tribunal recorrido “que decidirá se estão preenchidos os pressupostos para a apreciação do requerimento, enquanto reclamação e, no caso afirmativo, conhecerá do seu mérito”.
Pelo exposto, acordam em não conhecer do recurso, ordenando-se a baixa dos autos ao T.A.F”.
No acórdão fundamento, sobre este ponto, respondendo a uma questão que ele próprio colocou (Verifica-se a nulidade do Acórdão da conferência por a mesma não ter conhecido de mérito?) disse-se, simplesmente, que: “Nos termos do artº 27.2. do CPTA, reclama-se para a conferência “dos despachos”, não das sentenças. Destas recorre-se. Logo, não podia a conferência conhecer do mérito, como a recorrente pretende. Assim sendo, não se verifica a imputada nulidade”. Concluiu, pois, pela segunda alternativa.
4. Se confrontarmos o teor de ambos os arestos logo verificamos ser patente a contradição de julgados. Com efeito, em ambos os casos estavam em causa processos de contencioso pré-contratual, a decidir por tribunal colectivo (art. 40º, n.º 3, do ETAF), mas em que o relator, por ter entendido enquadrar a situação na hipótese contemplada na alínea i) do n.º 1 do art. 27º do CPTA (“Compete ao relator, sem prejuízo dos demais poderes que lhe são conferidos neste Código”: “Proferir decisão quando entenda que a questão a decidir é simples, designadamente por já ter sido judicialmente apreciada de modo uniforme e reiterado, ou que a pretensão é manifestamente infundada”), proferiu decisão a que terá chamado sentença. O acórdão recorrido, cujo segmento decisório se transcreveu integralmente, concluiu no sentido de que o decidido apenas podia ser impugnado por via da reclamação para a conferência, nos termos do n.º 2 do preceito. O acórdão fundamento entendeu que, tratando-se de uma “sentença”, o meio próprio seria o recurso jurisdicional.
5. Dir-se-á, desde já, que o acórdão recorrido é para confirmar nos seus precisos termos. De resto, ele próprio colhe o seu apoio num aresto deste tribunal (Acórdão STA de 19.10.10 proferido no recurso 542/10), que sintetiza a prática habitual em situações similares de decisões adoptadas pelo relator sob a invocação do referido preceito, donde resulta que se a decisão for “tomada pelo juiz relator, no quadro da invocação dos poderes conferidos pelo artigo 27.º, n.º 1, i), do CPTA” o meio próprio de reacção, nos termos do n.º 2, é a “reclamação para a conferência, salvo as excepções nele contempladas, nas quais não se enquadra a decisão sob recurso”, e não o recurso. E, como é óbvio, esta posição não viola qualquer preceito constitucional, designadamente os invocados pela recorrente, pois a reclamação para a conferência é uma forma como outra qualquer de reagir contra decisões desfavoráveis que não limita – antes acrescenta – as formas de reacção. Por outro lado, é irrelevante que em ambos os casos se lhe possa ter chamado “sentença” pois aquilo que foi emitido foi sempre e só a “decisão” a que alude a referida alínea i), alínea que foi invocada, desde o início, como fundamento para decidir por juiz singular aquilo que estava previsto na lei, como regra geral (art. 40º, n.º 3, do ETAF), para ser adoptado por tribunal colectivo. É, pois, a invocação desse preceito que captura definitivamente a regra contida no n.º 2. Das decisões proferidas por juiz singular que, nos termos da lei, devam ser apreciadas por tribunal colectivo, há sempre, e apenas, reclamação para a conferência. Nunca recurso. Acresce, ainda, que não é o nome dado aos actos pelos participantes processuais que altera a sua essência. Cada acto processual ou instituto jurídico é o que é em consequência do modo como a lei os caracteriza, das suas qualidades próprias, e não por virtude do nome que lhes atribuímos. Se assim não fosse, e seguindo a perspectiva da recorrente, qualquer despacho de um relator deixaria de o ser se lhe chamasse sentença, ficando sujeito a recurso jurisdicional e não à reclamação para a conferência que o legislador desenhou para essa situação.
Improcedem, assim, todas as conclusões da alegação da recorrente.

III Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam em negar provimento ao recurso e em fixar jurisprudência no sentido de que “Das decisões do juiz relator sobre o mérito da causa, proferidas sob a invocação dos poderes conferidos no art. 27º, n.º 1, alínea i), do CPTA, cabe reclamação para a conferência, nos termos do n.º 2, não recurso”.
Custas a cargo da recorrente.
Publique-se (art. 152º, n.º 4, do CPTA)
Lisboa, 05 de Junho de 2012. – Rui Manuel Pires Ferreira Botelho (relator) – José Manuel da Silva Santos Botelho – Alberto Augusto Andrade de Oliveira – Rosendo Dias José – Américo Joaquim Pires Esteves – Alberto Acácio de Sá Costa Reis – Adérito da Conceição Salvador dos Santos – Luís Pais Borges – Jorge Artur Madeira dos Santos – António Bento São Pedro – António Políbio Ferreira Henriques – Fernanda Martins Xavier e Nunes – António Bernardino Peixoto Madureira.