Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0892/12
Data do Acordão:09/12/2012
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:VERIFICAÇÃO DE CRÉDITOS
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CONTRADITÓRIO
CPPT
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário:Havendo outras reclamações de créditos ou tendo sido juntas as certidões de dívidas referidas no art. 241.º do CPPT, o órgão de execução fiscal não pode proferir decisão de verificação e graduação de créditos sem que antes notifique o executado e os credores que reclamaram créditos, como o impõe expressamente o disposto no art. 866.º do CPC, aplicável ex vi do art. 246.º do CPPT e decorre dos princípios do contraditório (cfr. art. 3.º, n.º 3, do CPC) e da igualdade dos meios processuais (art. 98.º da LGT).
Nº Convencional:JSTA000P14507
Nº do Documento:SA2201209120892
Data de Entrada:08/16/2012
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A......, SA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: 1. RELATÓRIO

1.1 O “A………, S.A.”, credor reclamante num processo de execução fiscal (adiante Credor reclamante, Reclamante ou Recorrido), veio junto do Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga reclamar ao abrigo do disposto nos arts. 245.º, n.º 3, e 276.º a 278.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), da decisão do Chefe do Serviço de Finanças de Valença, que procedeu à verificação dos créditos reclamados e sua graduação com o crédito executado.
Sustentou, em síntese, que aquela decisão
(i) enferma de nulidade por falta de fundamentação;
(ii) enferma de nulidade por não ter sido observado o disposto no art. 866.º do Código de Processo Civil (CPC), uma vez que não foi notificado das demais reclamações deduzidas nos autos;
(iii) fez errada interpretação e aplicação da lei ao não ter reconhecido a totalidade dos créditos reclamados pelo Reclamante e ao ter reconhecido (e graduado) créditos fiscais provenientes de Imposto Municipal sobre Imóveis que, por não respeitarem o lapso temporal previsto no art. 744.º do Código Civil, não beneficiam de privilégio imobiliário especial.

1.2 O Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga julgou a reclamação judicial procedente. Isto, em síntese, porque, entendendo conhecer prioritariamente da questão da invocada falta de notificação ao Credor reclamante dos demais créditos reclamados, considerou que a omissão dessa formalidade – imposta na lei (art. 866.º do CPC, aplicável ex vi do art. 246.º do CPPT) e susceptível de influir na decisão a proferir – constitui nulidade, a determinar a anulação de todos os actos praticados ulteriormente, inclusive a decisão reclamada, tudo nos termos do art. 201.º do CPC. Em consequência, considerou prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.

1.3 A Fazenda Pública não se conformou com essa sentença e dela recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo, apresentando com o requerimento de interposição do recurso a respectiva motivação, que resumiu em conclusões do seguinte teor:
«
1. A questão a decidir nos presentes autos consiste em saber se o órgão da execução fiscal, no âmbito da verificação e reclamação de créditos (artigo 245.º do CPPT) está obrigado a notificar o reclamante, nos termos do disposto no artigo 866.º do CPC, ex vi do artigo 246.º do CPPT, ou se, pelo contrário, havendo reclamações de créditos ou juntas as certidões de dívida referidas no artigo 241.º do CPPT, procede de imediato à verificação e graduação de créditos, dela notificando todos os credores que reclamaram créditos.
2. A sentença recorrida considerou que, não obstante as alterações legislativas introduzidas pela Lei n.º 55-A/2010, de 31/12, aos artigos 97.º n.º 1 o), 151.º n.º 1, 243.º, 245.º e 278.º, todos do CPPT, a referida Lei manteve inalterado o artigo 246.º do CPPT, que estipula que, nas reclamações de créditos, observar-se-ão as disposições do Código de Processo Civil e que o órgão de execução fiscal, ao proferir a decisão de verificação e graduação de créditos, sem dar conhecimento ao credor reclamante dos outros créditos verificados e graduados, nomeadamente pertencentes à Fazenda Pública, omitiu uma formalidade que a lei prescreve (artigo 866.º do CPC) e que tem influência na decisão da causa.
3. Ressalvado o devido respeito que nos merece, entendemos que a douta sentença padece de erro de julgamento decorrente de uma incorrecta interpretação e aplicação da norma contida no artigo 245.º, n.ºs 2 e 3, do CPPT.
4. Atendendo aos princípios que regem a interpretação das leis, consagrados no artigo 9.º do Código Civil (CC), e à dupla função contida na letra da lei, como ponto de partida e limite da interpretação (cfr. nº 2 do art. 9.º do CC), diremos que do teor literal da norma se extrai a obrigação legal do órgão de execução fiscal, havendo reclamações de créditos ou tendo sido juntas as certidões de dívidas referidas no artigo 241.º do CPPT, proceder à verificação e graduação de créditos, dela notificando todos os credores que reclamaram créditos.
5. De acordo com o n.º 3 da referida disposição legal, os credores podem reclamar da verificação e graduação de créditos nos termos e prazos previstos nos artigos 276.º e seguintes.
6. Resulta da interpretação da letra da lei (elemento literal), no sentido que, a nosso ver, mais adequadamente exprime a motivação do legislador, que o órgão da execução fiscal procede à verificação e graduação de créditos imediata e subsequentemente à apresentação das reclamações e junção das certidões referidas no artigo 241.º do CPPT, sem prévia notificação dos credores reclamantes e do executado para a impugnação dos créditos reclamados, a que se refere o art. 866.º do CPC.
7. A solução oposta, no sentido de que o órgão de execução fiscal deve dar cumprimento ao disposto no art. 866.º do CPC, ex vi do art. 246.º do CPPT (não alterado pela Lei n.º 55-A/2010, de 31/12), parece-nos, com o devido respeito, que muito dificilmente se poderá compatibilizar, por um lado, com as notificações a efetuar pela secretaria do tribunal, nomeadamente ao exequente, e bem assim com a possibilidade deste poder impugnar as reclamações, atendendo a que o exequente é o próprio órgão de execução fiscal.
8. Por outro lado, e principalmente, tal solução não se coaduna com a natureza jurisdicional do julgamento, no caso de a verificação de algum dos créditos impugnados depender de produção de prova, o qual seguirá o regime aplicável ao processo sumário de declaração, conforme determina o artigo 868.º do CPC.
9. A aplicação do art. 866.º do CPC poderá, neste sentido, configurar uma ilegalidade, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 202.º da CRP, atento o âmbito da função jurisdicional dos tribunais nela consagrado, nomeadamente a competência para dirimir os conflitos de interesses públicos e privados, atinentes à verificação dos créditos impugnados, pelo órgão de execução fiscal.
10. As alterações introduzidas pela Lei n.º 55-A/2010, de 31/12, aos artigos 97.º n.º 1 o), 151.º n.º 1, 243.º, 245.º e 278.º do CPPT, não obstam a que, a final, em caso de reclamação do ato do órgão de execução fiscal, a decisão da verificação e graduação de créditos caiba ao tribunal, como expressamente resulta do disposto no artigo 247.º do CPPT.
11. Com efeito, de acordo com o disposto no n.º 1 daquele artigo 247.º do CPPT, Os processos que tiverem subido ao tribunal tributário de 1.ª instância, em virtude de reclamação da decisão do órgão da execução fiscal, para a decisão da verificação e graduação de créditos, são devolvidos ao órgão da execução fiscal após o trânsito em julgado da decisão, sendo também ao tribunal a quem compete a liquidação, nos termos do n.º 2 do referido artigo (sublinhado nosso).
12. A respeito da competência para conhecer da matéria relativa à verificação e graduação de créditos, o STA já se pronunciou em diversos e recentes acórdãos, de que se dá como exemplo o proferido no recurso n.º 0362/11, cuja jurisprudência foi uniformemente seguida nos posteriores arestos, no sentido de que as alterações introduzidas pela Lei n.º 55-A/2010, de 31/12, apenas respeitam à forma ou via processual de proceder à verificação e graduação de créditos no âmbito do processo judicial de execução fiscal, e não contendem com as normas respeitantes à competência dos tribunais tributários ou com o poder jurisdicional conferido aos magistrados destes tribunais de aplicar o direito aos litígios que surjam no âmbito de processos de execução fiscal, já que estes processos executivos continuam a estar na dependência do juiz do tribunal tributário, mesmo na fase em que correm perante as autoridades administrativas, e ele continua a deter poder jurisdicional para apreciar a matéria da verificação e graduação de créditos (agora através da forma processual da reclamação judicial), embora só após a pronúncia do órgão da execução, e, portanto, através de uma forma processualrazão por que se pode continuar a afirmar que as execuções instauradas no serviço de finanças e os inerentes actos de verificação e graduação de créditos continuam a ser da competência do tribunal tributário (negrito nosso).
13. O credor reclamante, de acordo com o regime legal em vigor após a Lei n.º 55-A/2010, de 31/12, poderá proceder à impugnação dos créditos reclamados perante o tribunal tributário através da forma processual de reclamação da decisão proferida pelo órgão da execução fiscal, nos termos do disposto no artigo 276.º, por força do n.º 3 do artigo 245.º do CPPT, cabendo ao tribunal decidir sobre a verificação e graduação dos créditos.
14. O artigo 246.º do CPPT «Disposições aplicáveis à reclamação de créditos» não foi alterado pela Lei n.º 55-A/2010, de 31/12, ou seja, manteve a redacção inicial que lhe foi conferida pelo DL n.º 433/99, de 26/10 (diploma que aprovou o CPPT), correspondente ao artigo 334.º do anterior Código de Processo Tributário (CPT), o que, até então (01-01-2011) se justificava em face de os atos de verificação e graduação de créditos decorrerem totalmente no tribunal tributário de 1.ª instância (cfr. art. 49.º nº 1 d) do ETAF, com a redacção anterior à Lei n.º 55-A/2010, de 31/12), como processo judicial autónomo.
15. Razões que se prendem com a celeridade e simplicidade do incidente de verificação e graduação de créditos (elemento teleológico), motivaram a opção do legislador de alterar a forma processual adequada para o conhecimento da matéria da verificação e graduação de créditos, deixando de ser efetuada através do processo judicial de verificação e graduação de créditos e passando a ser efetuada através do meio processual da reclamação prevista no artigo 276.º do CPPT, dado que a sua tramitação como fase processual da instância executiva perante o órgão da execução fiscal, permitirá uma diminuição do tempo de pagamento dos valores das vendas aos credores graduados (privados, públicos e aos próprios devedores), caso não haja lugar a reclamação.
16. Concluímos, assim, que, por incorrecta interpretação e aplicação da norma contida no artigo 245.º, n.ºs 2 e 3, do CPPT, terá sido feito errado julgamento.

Termos em que, concedido provimento ao recurso, deverá a douta sentença recorrida ser revogada e a reclamação ser julgada improcedente».

1.4 O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

1.5 A Reclamante contra alegou e, subsidiariamente, requereu a ampliação do objecto do recurso. Resumiu a sua posição nas seguintes proposições conclusivas:
«
I - A Fazenda Pública veio agora recorrer da decisão proferida pelo Tribunal a quo, defendendo a inaplicabilidade do disposto no art. 866.º do CPC aos processos de execução fiscal, após as alterações produzidas pela Lei n.º 55-A/2010, de 31/12.
II - Não lhe assiste qualquer razão, porquanto a sentença em crise é perfeitamente esclarecedora e, como tal, deverá ser mantida na íntegra.
III - Conforme bem referiu a sentença em sindicância, mesmo com a actual redacção do n.º 2 do artigo 245.º do CPPT, o órgão de execução fiscal está obrigado a cumprir o princípio do contraditório, enunciado no n.º 3 do art. 3.º do CPC, após a dedução das reclamações e junção das certidões referidas no art. 241.º, isto porque, não obstante as recentes alterações legislativas, a referida lei manteve inalterado o art. 246.º do CPPT, que estipula que, nas reclamações de créditos, observar-se-ão as estipulações do CPC.
IV - A Fazenda afirma que a interpretação literal do n.º 2 do art. 245.º aponta no sentido da imediata produção da decisão de verificação e graduação de créditos, sem mencionar a obrigação de notificação dos demais credores reclamantes das reclamações deduzidas pelos demais.
V - Não colhe tal argumento, na medida em que o legislador não necessitaria de prever expressamente algo que já está previsto na legislação aplicável subsidiariamente, id est, o art. 866.º do CPC.
VI - O cuidado do legislador ao redigir esta norma, embora não se trate de redacção totalmente feliz, foi apenas o de frisar a transferência para o órgão de execução da competência para verificar e graduar os créditos reclamados, mantendo inalterado o que não era de alterar.
VII - Se ao reclamante não for dada a oportunidade de sindicar os créditos reclamados pelos demais credores, inclusive pela Fazenda Nacional, não pode certificar-se da exigibilidade dos mesmos, nem apreciar, entre outras questões, da tempestividade da junção aos autos de execução das certidões de dívida dos serviços periféricos que valem por reclamações.
VIII - Tal factualidade redunda na violação do princípio constitucional da igualdade, na vertente da privação do exercício de direitos previstos nos artigos 13.º e 20.º C R Portuguesa, uma vez que impede a verificação pelos interessados da correcção da liquidação e o consequente direito de reclamação e recurso.
IX - Pelo que, deverá improceder na íntegra o recurso da Fazenda Pública, mantendo-se a decisão recorrida neste domínio.
X - Quanto à ampliação do recurso ao abrigo do disposto no artigo 684.º-A n.º 2 do CPC, dir-se-á que o órgão de execução fiscal não fundamentou a decisão de não reconhecimento aludidos créditos, seja na própria decisão de verificação e graduação seja por notificação autónoma.
XI - Ao prescindir da fundamentação da decisão de graduação, o órgão de execução ocultou todo o processo decisório que subjaz a tal decisão e que lhe dá esteio, coarctando ao Recorrente a possibilidade de o contraditar.
XII - A decisão em preço é nula por violação do dever de fundamentação a que a administração tributária está vinculada nos termos do art. 268.º da Constituição da República, do art. 77.º da Lei Geral Tributária».

Concluiu com o pedido de que seja negado provimento ao recurso ou, subsidiariamente e ao abrigo do disposto no art. 684.º-A, n.º 1, do CPC, de que seja apreciado o fundamento que invocou também na reclamação judicial – a falta de fundamentação da decisão do Chefe do Serviço de Finanças de Valença que procedeu à verificação e graduação de créditos –, e que o Juiz do Tribunal a quo julgou prejudicada.

1.6 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que seja negado provimento ao recurso e de que é de «confirmar o decidido quanto à anulação dos actos posteriormente praticados, mais sendo de julgar como prejudicado o conhecimento da questão da falta de fundamentação que foi também suscitada na resposta apresentada pelo A………». Isto, em síntese, porque considera que, pese embora as alterações introduzidas no regime da verificação e graduação de créditos pela Lei n.º 55-A/2010, a AT, sendo «chamada, em primeira linha, a decidir as reclamações de créditos», não foi dispensada do cumprimento das formalidades previstas no art. 866.º, n.º 1, do CPC, sempre que tal se impuser, norma esta cuja aplicação subsidiária é imposta pelo art. 246.º do CPPT e em obediência aos princípios do contraditório e da igualdade de armas.

1.7 Dispensaram-se os vistos dos Juízes adjuntos, atento o carácter urgente do processo.

1.8 As questões a apreciar e decidir são
(i) se a sentença fez correcto julgamento quando considerou que se verificava a nulidade por falta da notificação ao Credor reclamante das demais reclamações de créditos, o que determinou a anulação de todos os actos ulteriores a essa omissão, inclusive a decisão administrativa de verificação e graduação de créditos, o que passa por indagar se a lei impõe essa notificação; na negativa,
(ii) se essa decisão enferma de falta de fundamentação (conclusões X a XII das alegações do Recorrido).


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

2.1.1 A sentença recorrida efectuou o julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:

« Considero provados os seguintes factos, com relevância para a decisão, com base na prova documental junta aos autos:
· A 16.10.2010, o “A………” apresentou reclamação de créditos, por apenso à execução fiscal n.º 2330200401003127 e aps., a correr termos no Serviço de Finanças de Valença, contra B………, nif. ………, cfr. apenso;
· A 27.10.2003, foi a Fazenda Pública notificada nos termos do disposto no art. 243.º do CPPT, cfr. fls. 84 e 85 do apenso;
· Por decisão judicial de 18.03.2011, foi determinada a remessa dos autos ao Serviço de Finanças para aí serem tramitados, tendo em consideração as alterações levadas a cabo pela Lei n. 55-A/2010, de 31/12, cfr. fls. 93 a 96 do apenso;
· O órgão de execução fiscal proferiu decisão de graduação e verificação de créditos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais, cfr. fls. 41 a 44 dos autos;
· A 8.03.2012, o reclamante foi notificado da decisão, cfr. fls. 39 e 40 dos autos.

Inexistem quaisquer outros factos provados ou não provados com relevância para a decisão da causa».

2.1.2 Na sentença foram ainda dados como assentes os seguintes factos, ainda que não na parte em que o Juiz se propôs efectuar o julgamento da matéria de facto ( Embora a lei não imponha que o julgamento da matéria de facto seja feito de forma destacada, a praxis judiciária instituiu esse procedimento como boa prática.), mas já na parte que sujeitou à epígrafe «O DIREITO»:

«[…] a decisão de verificação e graduação de créditos foi proferida sem que, antes, fosse dado conhecimento ao credor reclamante dos outros créditos verificados e graduados, nomeadamente pertencentes à fazenda pública»

(cfr. pág. 5 da sentença, a fls. 85).

2.2 DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

No âmbito de uma execução fiscal, o Serviço de Finanças de Valença proferiu decisão de verificação e graduação de créditos sem que previamente tenha notificado o Credor reclamante dos demais créditos reclamados, no caso pela Fazenda Pública.
O Credor reclamante insurgiu-se contra essa decisão administrativa mediante reclamação judicial. Para além do mais, invocou a nulidade decorrente da falta da sua notificação dos demais créditos reclamados, o que o impediu de sindicar os requisitos da admissibilidade e eventual lugar na graduação desses créditos. Invocou ainda a falta de fundamentação da decisão reclamada.
O Juiz do Tribunal de 1.ª instância, deferindo a reclamação, julgou verificada a nulidade decorrente da falta de notificação ao Reclamante dos demais créditos reclamados e, em consequência, anulou todos os actos ulteriores a essa omissão, incluindo a decisão reclamada.
Dessa decisão recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo a Fazenda Pública com o argumento de que a lei não impõe a notificação considerada em falta.
Nas contra alegações, e a título subsidiário, o Recorrido pediu o alargamento do âmbito do recurso à questão da falta de fundamentação da decisão administrativa reclamada.
Daí que tenhamos enunciado as questões a apreciar e decidir nos termos em que o fizemos no ponto 1.8.

2.2.2 DA NECESSIDADE DO RESPEITO PELO CONTRADITÓRIO EM SEDE DE VERIFICAÇÃO E GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS

Como tem vindo a ser reiteradamente afirmado por este Supremo Tribunal Administrativo, numa corrente jurisprudencial uniforme iniciada com o acórdão de 6 de Julho de 2011, proferido no processo com o n.º 362/11 ( Publicado no Apêndice ao Diário da República de 22 de Março de 2012 (http://dre.pt/pdfgratisac/2011/32230.pdf), págs. 1190 a 1195, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/ed2b6db93f9c3701802578c700527379?OpenDocument.)-( No mesmo sentido decidiram, entre outros, os seguintes acórdãos
ـ de 6 de Julho de 2011, no processo com o n.º 384/11;
ـ de 13 de Julho de 2011, nos processos com os n.ºs 361/11, 392/11, 393/11, 394/11, 395/11, 398/11, 445/11, 451/11, 466/11, 476/11, 492/11, 499/11, 500/11, 510/11, 511/11, 521/11, 522/11, 561/11, 580/11, 594/11, 595/11, 597/11 e 632/11;
ـ de 14 de Setembro de 2011, processos com os n.ºs 588/11 e 623/11;
ـ de 28 de Setembro de 2011, processo com o n.º 704/11;
ـ de 12 de Outubro de 2011, processos com os n.º s 516/11, 687/11 e 703/11.), que passamos a transcrever, a Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, para além das alterações introduzidas nos arts. 49.º, n.º 1, alínea d), e 49.º-A, n.ºs 1, alínea c), 2, alínea c), e 3, alínea c), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, «alterou os arts 97.º, alínea o), 151.º, n.º 1, 243.º, 245.º, 247.º e 278.º, todos do CPPT, do seguinte modo:
a alínea o) do artigo 97.º eliminou, como espécie processual, o processo judicial tributário de verificação e graduação de créditos, substituindo-o pelo processo judicial tributário de reclamação da decisão da verificação e graduação de créditos;
o n.º 1 do artigo 151.º eliminou a referência à verificação e graduação de créditos como espécie processual da competência dos tribunais tributários;
o artigo 243.º, que regulava o prazo para o Representante da Fazenda Pública reclamar os seus créditos no aludido processo judicial, foi revogado;
os artigos 245.º e 247.º e 278.º vieram estabelecer e disciplinar a nova forma processual de proceder à verificação e graduação de créditos – determinando a sua tramitação dentro do processo executivo, presidida e decidida pelo órgão da execução fiscal, com possibilidade de utilização da reclamação para tribunal da verificação e graduação de créditos realizada por esse órgão.

Esta breve exposição revela as significativas alterações de regime produzidas com a Lei n.º 55-A/2010, e denuncia a vontade do legislador de fazer desaparecer da ordem judiciária a espécie processual “verificação e graduação de créditos”, que detinha autonomia estrutural relativamente ao processo de execução fiscal (embora funcionalmente subordinado a ele) e que corria como processo judicial autónomo no Tribunal Tributário de 1ª instância, classificada na 9ª espécie pela deliberação do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais de 30.05.2005 (Cfr. D.R. II Série, de 16 de Junho de 2005). E evidencia a opção legislativa de que os actos de verificação e graduação de créditos decorram no seio do processo executivo (que é já um processo de natureza judicial – artigo 103.º da LGT), como fase processual da instância executiva, sendo a sua tramitação realizada pelo órgão da execução, que fará, em primeira linha, a verificação e graduação de créditos, com possibilidade de ulterior reclamação para tribunal pelos interessados, nos termos dos artigos 276.º e 278.º do CPPT, passando, assim, esta reclamação judicial a constituir a via de conhecimento jurisdicional da matéria, isto é, a forma de exercer a tutela jurisdicional no que toca à verificação e graduação de créditos.
Trata-se, pois, de alteração de normas estritamente adjectivas, que dizem respeito à forma ou via processual de proceder à verificação e graduação de créditos no âmbito do processo judicial de execução fiscal, e não de normas respeitantes à competência dos tribunais tributários ou de normas que contendam com o poder jurisdicional conferido aos magistrados destes tribunais de aplicar o direito aos litígios que surjam no âmbito de processos de execução fiscal, já que estes processos executivos continuam a estar na dependência do juiz do tribunal tributário, mesmo na fase em que correm perante as autoridades administrativas, e ele continua a deter poder jurisdicional para apreciar a matéria da verificação e graduação de créditos (agora através da forma processual da reclamação judicial), embora só após a pronúncia do órgão da execução, e, portanto, através de uma forma processual diversa – razão por que se pode continuar a afirmar que as execuções instauradas no serviço de finanças e os inerentes actos de verificação e graduação de créditos continuam a ser da competência do tribunal tributário».
A menos feliz redacção dada ao n.º 2 do art. 245.º – «Havendo reclamações ou juntas as certidões referidas no artigo 247.º, o órgão de execução fiscal procede à verificação e graduação de créditos» – permite, prima facie, que se sustente, como o faz a Recorrente, que a verificação e graduação de créditos seria feita imediatamente a seguir à junção ao processo das reclamações e certidões referidas no art. 241.º, sem prévia audição das partes e do executado sobre a matéria.
No entanto, salvo o devido respeito, essa posição não resiste a uma mais cuidada análise. Sobre a questão, permitimo-nos citar JORGE LOPES DE SOUSA que, sob a epígrafe «Necessidade de observância do princípio do contraditório» ( JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, volume IV, anotação 2 b1) ao art. 245.º, págs. 69/70.), demonstra inequivocamente o vício em que assenta aquela tese:

«[…] sendo inequívoco que a verificação de créditos e graduação de créditos envolve a resolução de questões de direito e de facto, o princípio do contraditório, enunciado no art. 3.º, n.º 3, do CPC, aplicável à globalidade dos actos do processo de execução fiscal, por ser um processo com natureza judicial na sua totalidade, mesmo na parte que é processada pela administração tributária (art. 103.º, n.º 1, da LGT), proíbe que, salvo caso de manifesta desnecessidade, sejam decididas questões de direito ou de facto, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem. Por outro lado, trata-se de um princípio que é de «observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo».
À mesma conclusão conduz o principio da «igualdade de meios processuais», enunciado no art. 98.º da LCT, que estabelece que «as partes dispõem no processo tributário de iguais faculdades e meios de defesa», o que supõe que à invocação pelos reclamantes das suas razões para verem reconhecidos e graduados os seus créditos, seja proporcionada aos outros interessados, designadamente os outros credores e ao executado, a possibilidade de as rebaterem.
De resto, aquela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, manteve em vigor o art. 246.º do CPPT em que se estabelece que «na reclamação de créditos observar-se-ão as disposições do Código de Processo Civil, mas só é admissível prova documental», o que não deixa margem para dúvidas sobre esta questão de a decisão de verificação e graduação de créditos ser ou não imediata subsequente à apresentação das reclamações e junção das certidões, pois esta remissão conduz directamente a aplicação do regime dos arts. 866.º a 868.º do CPC, em que se prevê que a verificação de créditos, quando há necessidade de produção de prova, siga os termos do processo sumário de declaração.
Por outro lado, embora neste art. 246.º do CPPT se faça restrição dos meios probatórios à prova documental, esta limitação será inconstitucional, se aplicada a casos em que o direito real de garantia não pode ser provado apenas por prova desse tipo, pelo que uma interpretação do art. 245.º n.º 2, do CPPT no sentido de ser proferida decisão de verificação e graduação de créditos imediatamente a seguir à apresentação das reclamações de créditos e junção das certidões referidas no art. 241.º, obstando à produção de prova não documental e sua discussão, seria materialmente inconstitucional por incompaginável com o princípio do acesso aos tribunais para defesa de direitos (art. 20.º, n.º 1, da CRP)».

Salvo o devido respeito, as objecções feitas pela Recorrente a este entendimento não colhem.
Desde logo, não pode sustentar-se que a letra do n.º 2 do art. 245.º do CPPT determine, como sustenta a Recorrente, que «o órgão da execução fiscal procede à verificação e graduação de créditos imediata e subsequentemente à apresentação das reclamações e junção das certidões referidas no artigo 241.º do CPPT, sem prévia notificação dos credores reclamantes e do executado para a impugnação dos créditos reclamados». O que a norma diz é, tão só, que «[h]avendo reclamações ou juntas as certidões referidas no artigo 247.º, o órgão de execução fiscal procede à verificação e graduação de créditos». Ou seja, a norma não regula exaustivamente a tramitação da verificação e graduação de créditos, antes consagra que essa tramitação, designadamente a decisão, será feita pelo órgão da execução fiscal (com possibilidade de ulterior reclamação para tribunal pelos interessados, nos termos dos arts. 276.º e 278.º do CPPT).
Não tinha a norma que referir expressamente a necessidade de, previamente à decisão de verificação e graduação de créditos, se notificar os reclamantes das demais reclamações, pela simples razão de que, como ficou já referido, tal imposição resultava já, mediante remissão expressa operada pelo art. 246.º do CPPT – que quedou inalterado pela Lei n.º 55-A/2010 – para o art. 866.º do CPC, que determina que «[f]indo o prazo para a reclamação de créditos, ou apresentada reclamação nos termos do n.º 3 do artigo 865.º, dela são notificados, pela secretaria do tribunal, o executado, o exequente, os credores reclamantes e o cônjuge do executado, caso se tenha oposto à execução ou à penhora nos termos do n.º 1 do artigo 864.º-A, aplicando-se à notificação do executado o artigo 235.º, devidamente adaptado, sem prejuízo de a notificação se fazer na pessoa do mandatário, quando constituído».
Essa notificação é condição necessária e imprescindível ao exercício do direito de impugnação, não fazendo sentido que um crédito possa ser verificado sem que se tenha concedido aos interessados (executado e outros credores reclamantes) a possibilidade de o impugnar.
Questão diversa, mas que ora não cumpre abordar, é a da eventual inconstitucionalidade do n.º 1 do art. 245.º, n.º 1, do CPPT, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 55-A/2010, na medida em que comete ao órgão da execução fiscal a verificação dos créditos nos casos em que tenha havido impugnação, por violação do disposto no art. 202.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (Sobre a questão, desenvolvidamente, JORGE LOPES DE SOUSA, ob. cit, volume IV, anotação 2 b2) ao art. 245.º, págs. 70/71. )-( A nosso ver, melhor teria sido, a fim de evitar dúvidas sobre a conformidade constitucional e a duplicação de esforços que facilmente se adivinha, que a opção do legislador tivesse sido a de apenas permitir que a decisão de verificação e graduação de créditos fosse proferida pelo órgão de execução fiscal no caso de não haver impugnação das reclamações, reservando essa decisão para o tribunal no caso contrário.). Em todo o caso, sempre diremos que a conformidade constitucional do preceito poderá estar assegurada pela possibilidade de reclamação judicial dessa decisão, garantida pelo n.º 3 do art. 245.º do CPPT.
As invocadas razões de celeridade e simplicidade que presidiram às alterações legislativas em sede de verificação e graduação de créditos não permitem concluir que o legislador tivesse pretendido que o órgão da execução fiscal pudesse proceder à verificação sem que previamente assegurasse o contraditório; e, se o tivesse pretendido, para além das manifestas objecções que se suscitariam do ponto de vista da conformidade constitucional de uma tal solução, um tão grave entorse aos princípios gerais do processo judicial – e, nunca é demais recordá-lo, estamos no âmbito de um processo de natureza judicial (cfr. art. 103.º da LGT) – por certo teria ficado expressamente consagrado na letra da lei (cfr. art. 9.º, n.º 3, do Código Civil).

Por estes motivos, o recurso não pode proceder, ficando assim prejudicado o conhecimento da questão suscitada a título subsidiário pelo Recorrido.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos a seguinte conclusão:

Havendo outras reclamações de créditos ou tendo sido juntas as certidões de dívidas referidas no art. 241.º do CPPT, o órgão de execução fiscal não pode proferir decisão de verificação e graduação de créditos sem que antes notifique o executado e os credores que reclamaram créditos, como o impõe expressamente o disposto no art. 866.º do CPC, aplicável ex vi do art. 246.º do CPPT e decorre dos princípios do contraditório (cfr. art. 3.º, n.º 3, do CPC) e da igualdade dos meios processuais (art. 98.º da LGT).


* * *

3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, negar provimento ao recurso.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 12 de Setembro de 2012. - Francisco Rothes (relator) - Fernanda Maçãs - Casimiro Gonçalves.