Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02612/17.4BEPRT
Data do Acordão:05/21/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:CADUCIDADE DO DIREITO DE ACÇÃO
JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
Sumário:A junção pelo apelante, com as suas alegações, de cópia de documento constante do PA junto aos autos, não configura junção de documento novo para efeitos de aplicação do artigo 651º, nº1, do CPC, sendo antes documento que podia e devia ter sido levado em conta pelas instâncias.
Nº Convencional:JSTA000P25944
Nº do Documento:SA12020052102612/17
Data de Entrada:10/21/2019
Recorrente:CÂMARA MUNICIPAL DO PORTO
Recorrido 1:A................... E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: I. Relatório
1. O MUNICÍPIO DO PORTO [MP] interpõe recurso de revista do acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte [TCAN], de 29.03.2019, que concedeu provimento à apelação de A………… e B…………, revogou a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto [TAF], de 16.05.2018, e ordenou a baixa dos autos ao TAF para sua subsequente tramitação.

Conclui assim as suas alegações de revista:

1- Os recursos não servem para corrigir erros das partes, mas erros cometidos na decisão, pelo tribunal «a quo»;

2- O tribunal de primeira instância, ao qual nunca foi evidenciado o documento concretizado na notificação da mandatária dos apelantes, decidiu bem, quando entendeu que a acção estava caduca, pois a mesma foi apresentada a destempo e não pode tal acto - por não ser processual - ser praticado contra o pagamento de multa num dos 3 primeiros dias úteis seguintes;

3- O documento em causa não é documento que possa ser qualificado como novo, e, por isso, nunca por nunca poderia ter sido validamente junto com o recurso apresentado pelos apelantes e, muito menos, poderia o tribunal «a quo» ter considerado o mesmo para revogar a decisão proferida, ou melhor dizendo - pois foi isto que aconteceu - para re-julgar a questão da caducidade;

4- A apelação não serve para re-julgar a causa, reexaminando-a, mas para reapreciar a decisão judicial proferida, sendo por isso que a reapreciação tem de ser ponderada à luz do material fáctico e probatório disponível pelo tribunal «a quo» no momento em que proferiu a sua decisão e não considerando outro material junto depois de proferida a decisão que podia e deveria ter sido junto antes de a mesma a ter sido proferida;

5- Está errado - manifestamente - que tenha sido a decisão de caducidade a provocar a necessidade do documento, ou pelo menos a primeira no processo a provocar essa necessidade: antes a necessidade da invocação dos factos constantes do mesmo e da sua junção ocorreu com a arguição de tal excepção pelo apelado e não com a decisão proferida;

6- Face ao sistema recursório português nunca por nunca poderia este documento - notificação ao mandatário - ter sido junto nas alegações de recurso e considerado pelo tribunal para modificar a decisão proferida em primeira instância quanto à caducidade;

7- A junção desse documento [e alegação do facto nele incluído] ficou precludida com a defesa que os apelantes fizeram da questão da caducidade e o tribunal «a quo» não pode, sob pena de re-julgamento da questão, e não de mera reapreciação da decisão recorrida, admitir o mesmo e permitir decidir novamente a questão da caducidade com base neste novo dado;

8- O objecto do recurso de apelação não é a questão da caducidade, mas a decisão que sobre ela foi proferida e da qual foi interposto o recurso e, mais uma vez, esta só pode ser apreciada na sua correcção se se mantiverem intactos os fundamentos em que assentou;

9- O documento já se tinha tornado necessário com a alegação do apelado da caducidade e poderia e deveria ter sido junto - porque já existente e do conhecimento dos apelantes - no prazo para responder e discutir aquela excepção;

10- A decisão aconteceu porque não foi junto o documento em tempo, estando ele disponível para ser junto a decisão da questão concreta da caducidade foi desfavorável aos apelantes e tal circunstância pôs termo à acção.

Termina pedindo que a revista seja admitida e revogado o acórdão recorrido.

2. Os recorridos - autores da acção - não apresentaram contra-alegações.

3. O recurso de revista foi admitido por este STA - «Formação» a que alude o nº6 do artigo 150º do CPTA.

4. O Ministério Público pronunciou-se pelo provimento da revista, com a consequente revogação do acórdão, mas propôs «a baixa dos autos ao TAF para nova apreciação da questão da caducidade do direito de acção» - artigo 146º, nº1, do CPTA.

O ora recorrente veio expressamente discordar desta última proposta - artigo 146º, nº2, do CPTA.

5. Colhidos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir o recurso de revista.

II. De Facto

Com relevância para o conhecimento da «excepção de intempestividade da instauração da acção» as instâncias deram como provada a seguinte factualidade:

1- Em 01.08.2017 foi emitido despacho pelo «Presidente do Conselho de Administração» da DOMUSSOCIAL, EMP, contendo decisão de resolução do arrendamento apoiado correspondente à Casa ……, da Entrada ……, Bloco ……, da Rua ………, Francos - ver documento folhas 293 e 55 do PA;

2- Os autores foram notificados em 10.08.2017 - ver documento de folhas 288-verso do PA;

3- A presente acção foi remetida a este Tribunal em 14.11.2017 - ver documento de folha 3 dos autos.

III. De Direito

1. Os autores da acção administrativa – A………… e B………… - pediram ao TAF do Porto que anulasse a decisão administrativa de resolução do arrendamento apoiado relativa à Casa ……, Entrada ……, Bloco ……, da Rua ………, Francos [ver ponto 1 do provado].

Alegaram, como causa de pedir, que essa decisão administrativa padecia dos seguintes vícios: - caducidade do direito à resolução; - erro nos pressupostos; - e violação do princípio da proporcionalidade.

O TAF, em sede de saneador, e com base nos factos supra consignados [ponto II], julgou procedente a excepção da «intempestividade do exercício do direito de acção» e absolveu o réu MP da instância [artigos 87º-B, nº1, do CPTA].

Para tanto, entendeu que os referidos vícios eram indutores de mera «anulabilidade» - artigos 161º e 163º do CPA - e que, assim, lhes seria aplicável o prazo de caducidade de «três meses» - artigo 58º, nº1 alínea b), CPTA -, o qual já teria decorrido entre as datas consignadas nos pontos 2 e 3 do provado.

O TCAN concedeu provimento à apelação interposta pelos autores, revogou a sentença de 1ª instância e ordenou a baixa dos autos à mesma, para seu prosseguimento.

A «questão essencial» apreciada e decidida pelo TCAN foi, como expressamente diz no seu acórdão, a de «saber se o tribunal a quo, ao decidir pela intempestividade da propositura da acção, incorreu em erro de julgamento» [página 4 do acórdão ora recorrido]. Nesta senda, e com expressa invocação do artigo 662º do CPC - «modificabilidade da decisão de facto» pela 2ª instância -, decidiu aditar um novo facto aos dados como provados no saneador-sentença recorrido, e fê-lo com base num documento junto aos autos pelos autores com as suas alegações de apelação, que para o efeito «admitiu ao abrigo do artigo 651º do CPC» - ex vi artigo 1º do CPTA - concretamente por ter entendido que a sua junção se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.

O «facto aditado» foi este: «4. Através de ofício, datado de 11.08.2017, remetido por correio registado com A/R à mandatária dos autores, e por ela recepcionado em 17.08.2017 [ver data e assinatura aposta no respectivo aviso de recepção], foi-lhe notificada, na qualidade de mandatária dos autores, a decisão final de resolução do contrato de arrendamento apoiado - ver documento 1 junto a folhas 139 e seguintes do SITAF».

Com base nele, e invocando o disposto no «artigo 59º, nº2, do CPTA», o tribunal de 2ª instância julgou tempestiva a propositura da acção, levando em conta, para o efeito, as datas consignadas nos pontos 4 [facto aditado] e 3 do provado. E porque assim, respondeu afirmativamente à «questão essencial» que havia enunciado, revogou a decisão da 1ª instância e ordenou que aí se prosseguisse a tramitação da acção administrativa.

No presente recurso de revista, o recorrente MP insurge-se contra a «atendibilidade do documento junto com as alegações do recurso de apelação», que considera errada face ao que estatui o artigo 651º, nº1, do CPC [aplicável ex vi 1º e 140º, nº3, do CPTA].

2. Constata-se, pois, que o tribunal de apelação alterou o julgamento de facto efectuado na 1ª instância, fazendo-o ao abrigo do permitido pelo «artigo 662º do CPC» [aplicável ex vi artigo 140º, nº3, CPTA], aditando-lhe um novo facto que extraiu de documento apresentado com as alegações de apelação ao abrigo do «artigo 651º, nº1, do CPC» [aplicável ex vi artigo 140º, nº3, CPTA].

O recorrente da revista não reage à bondade dessa alteração, mas apenas ao facto de a mesma ter sido efectuada com base em documento que o tribunal não deveria admitir porque a sua junção aos autos foi intempestiva.

Assim, o que cumpre apreciar, nesta revista, é se a alteração do julgamento de facto feita pelo tribunal de apelação com base nesse documento, cumpriu as normas de direito que se lhe impunham.

3. Nos termos do artigo 662º do CPC - aplicável ex vi artigo 140º, nº3, do CPTA - a «2ª instância» «deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».

E nos termos do artigo 651º, nº1, do CPC - aplicável ex vi artigo 140º, nº3, CPTA -, sobre junção de documentos - com as alegações do recurso de apelação - «As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância», e diz o 425º que «Depois do encerramento da discussão só são admitidos, em caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento».

Na tese do recorrente, o documento junto pelos apelantes não podia ser tido em conta pelo tribunal porque a sua apresentação teria sido possível «antes do encerramento da discussão» - na 1ª instância - e porque a sua junção não se tornou necessária «em virtude do julgamento» - na 1ª instância. O que significa que foi revogado o saneador-sentença do TAF, que lhe foi favorável, com fundamento num documento que nem sequer poderia ter sido admitido nos autos.

Acrescenta, ainda, que tendo sido a junção posterior à sentença da 1ª instância esta não podia, logicamente, ter considerado tal documento, pelo que a sua decisão não poderia ter sido outra. Assim, o que a 2ª instância fez foi corrigir a «falha» dos autores, e «re-julgar» a causa, traindo a finalidade legal da apelação que é «reexaminar questões» já submetidas à apreciação da 1ª instância.

Mas a tese do ora recorrente assente num falso pressuposto que foi criado pelo próprio tribunal «a quo»: o de que foi junto com as alegações da apelação um documento novo, que poderia e deveria ter sido apresentado atempadamente.

E não é assim.

4. Efectivamente tal documento consta do procedimento administrativo junto aos autos, e para o facto alertaram os próprios apelantes quando o juntaram [ver página 2 das alegações de apelação]. Procedimento que foi consultado, ao menos, pela 1ª instância, como resulta da fundamentação apresentada nos pontos 1 e 2 do provado, a qual, apesar disso, não retirou daí as devidas consequências de facto e de direito.

E isto faz toda a diferença, porque significa que não estamos perante documento novo, submetido à disciplina do artigo 651º, nº1, do CPC, mas antes perante documento que podia e devia ter sido em consideração pelas instâncias.

Na verdade, e como decorre da lei, no âmbito das «acções administrativas», desde que relativas a «actos administrativos ou normas», o juiz dispõe de amplos poderes - deveres - inquisitórios, não só para comprovação de factos essenciais articulados pelas partes mas também para a fixação de factos instrumentais pertinentes para a boa decisão da causa, quer respeitantes ao mérito quer a excepções de conhecimento oficioso, como é o caso da caducidade - ver artigos 83º, nº4, 84º, nº1, 90º, nºs 1 e 3, 95º, nº3, 89º, nº2 e nº4 alínea k), do CPTA.

Como diz a doutrina, «A autoridade administrativa […] está obrigada a remeter o original do processo administrativo e de todos os documentos respeitantes à matéria do processo de que seja detentora. […] Os poderes de instrução do juiz [...] na acção administrativa especial são muito mais amplos, podendo abranger quer os factos principais quer os factos instrumentais, tenham sido ou não alegados pelas partes. […] O juiz administrativo, na acção administrativa especial, não dispõe de meros poderes de instrução, tal como são admitidos no artigo 265º, nº3, do CPC, mas de amplos poderes inquisitórios que vão muito além do que nesse domínio consente o artigo 264º, nºs 2 e 3, desse diploma. [...] O processo instrutor, quando tenha sido junto, releva para a determinação da matéria de facto independentemente da entidade demandada ter contraditado, ou não, os factos alegados pelo autor. […] O tribunal dispõe de um poder de investigação oficiosa [e não apenas de instrução] que tem como finalidade a descoberta da verdade e que não está condicionada à natureza [essencial ou instrumental] dos factos a averiguar» - Carlos Cadilha, A prova em contencioso administrativo, ponto 5, in CJA nº69, páginas 50-52.

Ora, nesta senda, ao aditar um facto ao acervo provado pelo tribunal de 1ª instância, o acórdão recorrido limitou-se a corrigir o erro de julgamento de facto que lhe foi alegado na apelação, que consistiu na omissão, no saneador-sentença aí recorrido, de um facto indispensável para a boa decisão da excepção da «caducidade do direito de acção», de conhecimento oficioso, e que se encontrava provado mediante documento integrado no procedimento administrativo junto aos autos pela autarquia recorrida.

Não estamos, pois, verdadeiramente, apesar de o acórdão recorrido assim o dizer, face à admissão de documento junto com as alegações do recurso de apelação, admitido por se ter tornado necessário devido ao decidido em 1ª instância, mas antes face à alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto porque a prova produzida - documento constante do PA - impunha decisão diversa, isto é, impunha a inclusão de facto relevante para a decisão da excepção da caducidade do direito de acção.

Assim, o acórdão recorrido, ao revogar a sentença e mandar baixar os autos à 1ª instância para prosseguirem a sua tramitação, proferiu uma decisão juridicamente certa, embora com fundamento errado.

5. Ressuma do exposto que deve ser negado provimento à revista, e mantido o acórdão recorrido com a actual fundamentação.

Assim se decidirá.

IV. Decisão

Nos termos do exposto, decidimos negar provimento ao recurso de revista e manter o decidido no acórdão recorrido com a actual fundamentação.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 21 de Maio de 2020. - José Augusto Araújo Veloso (relator) - Ana Paula Soares Leite Martins Portela - Cláudio Ramos Monteiro.