Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01419/19.9BELSB
Data do Acordão:07/09/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CRISTINA SANTOS
Descritores:PROTECÇÃO INTERNACIONAL
Sumário:I - O pedido de protecção internacional configura-se perante a evidência de um risco real, seja de perseguição (asilo) seja de sistemática violação de direitos humanos (protecção subsidiária), a ser apreciado objectivamente com fundamento em elementos de facto passíveis de, em juízo de prognose, sustentar uma situação dessa natureza, i.e., de risco real para o requerente.
II - No âmbito do procedimento de retoma a cargo regulado nos artºs. 36º a 40 da Lei 27/2008 de 30.06 e dirigido às situações de pedidos múltiplos em que se trata de colocar o requerente no primeiro país em que requereu asilo, o artº 3º nº 2 do Reg. 604/2013/EU (Reg. de Dublin/III a que o artº 37º nº 1 Lei 27/2008 faz referência expressa) trata expressamente a questão da verificação de falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento do Estado-membro da UE para que o requerente haja de ser transferido por ser o país em que o pedido de asilo foi primeiramente apresentado.
III - No procedimento de retoma a cargo considera-se “impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável” se “existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas” “no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento”.
IV - O artº 3º nº 2 Reg. de Dublin/III exige um nexo de causalidade necessária (e não apenas suficiente) entre (i) a matéria de facto passível de subsunção no conceito normativo de “motivos válidos” e (ii) o juízo de prognose traduzido na existência de “falhas sistémicas” no Estado-membro da UE em que o pedido de asilo foi primeiramente apresentado, em ordem a que o acto final do procedimento de retoma a cargo defina autoritariamente a situação do caso concreto, declarando o efeito jurídico da “impossibilidade de transferir” o requerente e levando o país em causa a assumir o estatuto de Estado-Membro responsável.
Nº Convencional:JSTA000P26209
Nº do Documento:SA12020070901419/19
Data de Entrada:05/21/2020
Recorrente:MAI
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: O Ministério da Administração Interna, com os sinais nos autos, inconformado com o acórdão proferido pelo TCAS de 30.01.2020 dele vem recorrer, concluindo como segue:

1. Resulta evidente que o tribunal a quo na sua ponderação e julgamento do caso sub judice, e refutando a decisão do recorrente, não deu cumprimento às normas legais vigentes em matéria de asilo, mormente no que respeita ao mecanismo de retoma a cargo, ao qual a Itália está vinculada.
2. Revela-se, pois, imprescindível a admissão do presente recurso de revista atenta a clara necessidade de melhor aplicação do Direito, face ao entendimento sustentado nos veredictos a quo,
3. É evidente que o Acórdão escrutinado na sua ponderação e julgamento do caso sub judice, e refutando a decisão do recorrente, não deu cumprimento às normas legais e não se coaduna com as normas legais vigentes em matéria de asilo acima referenciadas.
4. Está in casu, em causa o abalo na confiança jurídica, corolário do princípio da certeza e segurança que se impõe a um estado de direito, também, e sobretudo, na aplicação da justiça.
5. Como outrossim e directamente o princípio da legalidade.
6. De harmonia com o art.° 18° nº 1 al. d) do Regulamento (EU) 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 junho, e o art° 37°, n° 1 da Lei de Asilo, o ora recorrente procedeu à determinação do Estado-Membro responsável pela análise do pedido de asilo, procedimento regido pelo art.° 36° e seguintes da Lei n° 27/2008, de 30 de Junho (Lei de Asilo), tendo, no âmbito do mesmo sido apresentado, aos 27/07/2018, um pedido de retoma a cargo às autoridades italianas, o qual foi tacitamente aceite, atento o estatuído no n° 2 do art.° 25° do Regulamento Dublin.
7. Consequentemente e vinculadamente, por despacho do Director Nacional do ora recorrente proferido aos 23/08/2018, nos termos dos arts. 19°-A, n° 1 a) e 37° n° 2 da citada Lei, foi o pedido considerado inadmissível e determinada a transferência do requerente para Itália, Estado-Membro responsável pela análise do pedido de protecção internacional nos termos do citado Regulamento, motivo pelo qual o Estado Português se torna apenas responsável pela execução da transferência nos termos do art.° 29° e 30° do regulamento Dublin.
8. O ora recorrente deu início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de asilo, que culminou com o apuramento de que essa responsabilidade pertence à Itália (cfr. art.° 13°, n° 2 do citado Regulamento (EU) 604/2013 e art.° 37°, n° 1 da lei n° 27/2008 (Lei de Asilo) impondo a lei como consequência imediata (vinculada; que fosse proferido o ato de inadmissibilidade e de transferência.
9. “Estamos, portanto, perante um acto estritamente vinculado, sendo que a validade dos actos praticados no exercício de poderes vinculados cem de ser feita em função dos pressupostos de facto de direito fixados por lei, ou seja, pela confrontação da factualidade dada como provada com a consequência jurídica imediatamente derivada da lei (...) é a própria Lei 27/2008, de 30 de junho, que no seu artigo 37°, n° 2, lhe impunha a actuação levada a efeito" (gí. Acórdão do TCA Sul de 19/01/2012, proc. n° 08319/11).
10. A alegação do requerente, desacompanhada da apresentação de um mínimo de elementos objectivos, é insuficiente para considerar demonstrada a existência de falhas sistémicas no procedimento de asilo italiano que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante, ou que, dadas as particulares condições do A. a transferência implica um risco sério e verosímil de exposição do A., a um tratamento contrário ao artigo 4° da CDFUE.
11. Nos presentes autos inexiste qualquer indício que permita concluir pela existência de falhas sistémicas no procedimento de asilo italiano, único óbice para que Portugal não proferisse a decisão de transferência ora impugnada.
12. Com efeito, relativamente às condições de acolhimento no Estado-Membro responsável, a Itália encontra-se vinculada pela Directiva 2013/33/EU, do Parlamento e do Conselho, de 26 de junho de 2013, a qual estabelece normas em matéria de acolhimento dos requerentes de protecção internacional.
13. Em conformidade com a confiança mútua entre os Estados-Membros no âmbito do Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA), existe uma forte presunção que as condições materiais de acolhimento a favor dos requerentes de protecção internacional nesses estados-Membros serão adequadas, com respeito pelo Direito da união e pelos direitos fundamentais.
14. Ao contrário do pugnado pelo douto acórdão recorrido, o procedimento de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de protecção internacional (que culminou com o apuramento de que essa responsabilidade pertence a Itália) antecede e fundamenta que o pedido apresentado seja considerado inadmissível e seja determinada a transferência da análise do pedido.
15. Contrariamente ao que o douto acórdão refere, ao ora recorrente não restava outra solução que não fosse propalar a competente decisão de inadmissibilidade e de transferência, a qual não padece de qualquer vício de facto ou de direito.
16. Estabelece o artº 3º, n° 2, do regulamento 604/2103, que, "Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válido para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na acepção do art.° 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no capitulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável.”
17. Estabelece o art° 17°, n° 1, do referido regulamento que “Em derrogação do artigo 3°, n° 1, cada Estado-Membro pode decidir analisar um pedido de protecção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um pais terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos no presente regulamento.”
18. E nos termos do artº 4º da CDFUE “Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas, desumanos ou degradantes.”
19. O douto Acórdão recorrido ao considerar a acção procedente e condenar o ora Recorrente no dever de reconstruir o procedimento, instruindo-o com informação actualizada sobre as condições de acolhimento dos requerentes de protecção internacional em Itália, de molde a aferir se no caso concreto o aqui Recorrido tem enquadramento na previsão do artigo 3°, n° 2, 2° parágrafo do Regulamento, carece de fundamentação legal, porquanto não logrou fazer a melhor interpretação do regime que regula os critérios de determinação do Estado-Membro responsável, em conformidade com o regulamento (EU) que o hospeda.
20. Ora, no âmbito do Procedimento Especial previsto no Capítulo IV da Lei de Asilo (artigos 36° a 40°) relativo à determinação do Estado-Membro responsável pela análise do pedido, na medida em que não se vai analisar o mérito do pedido nem os fundamentos em que se baseiam a pretensão do requerente, não se impõe à Administração que adoptasse quaisquer outras diligências de prova ou de instrução do pedido, ao contrário do invocado pelo douto acórdão ora recorrido.
21. Nos elementos constantes nos autos, inexistem quaisquer indícios que permitam concluir pela existência de falhas sistémicas no procedimento de Asilo e nas Condições de acolhimento dos requerentes, que impliquem um risco de tratamento desumano ou degradante, ou que dadas as particulares condições do requerente, a transferência implique um risco sério e verosímil de exposição a um tratamento contrario ao art.° 4o da CDFUE, nem risco objectivo (directo ou indirecto; de reenvio para o país de origem, para que Portugal não proferisse a decisão de transferência ora impugnada, motivos esses que o requerente não invocou quando efectuou o pedido de Protecção Internacional.
22. Nessa linha, veja-se as sentenças proferidas pela 41 U.O no Proc. n° 1843/19.7BELSB e pela 31 U.O no Proc.2115/19.2BELSB e, sobretudo, a Sentença proferida pelo TACL, no processo 1741/18.1BELSB; o Acórdão do TCA Sul de 10/01/19 proferido no Proc. n° 1353/18.0BELSB, o Acórdão do TCA Sul de 21/02/2019 proferido no Proc. n° 1740/18.3BELSB, os Acórdãos do TCA Sul de 26/09/2019 proferidos nos Procs. nas 743/19.5BELSB e 559/19.9BELSB, o Acórdão do TCA Sul de 21/11/2019 proferido no proc. 1258/19.7BELSB e o Acórdão do TCA Sul de 30/12/2019 proferido no proc. 1258/19.7BELSB e o Acórdão do TCA Sul de 30/12/2019 proferido no proc. 1361/19.7BELSB.
23. Não menos importante veja-se também a douta argumentação proferida no Acórdão recorrido, pelo digníssimo desembargador que votando contra a posição do colectivo, teve por referência o acórdão de 10.12.2019, proc°. n° 1383/19.4BELSB, no qual foi relator, e no qual entendeu então o seguinte:
“de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, quando o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso de uma decisão de transferência ou de uma decisão que declara um novo pedido de protecção internacional inadmissível dispõe de elementos apresentados elo requerente para demonstrar a existência do risco de um trato desumano ou degradante no outro Estado-Membro, esse órgão jurisdicional deve apreciar a existência de deficiências sistémicas ou generalizadas ou que afectem certos grupos de pessoas. Contudo, tais deficiências só são contrárias à proibição de tratamento desumano ou degradante se tiverem um nível particularmente elevado de gravidade, que depende do conjunto dos dados da causa "
E a situação dos autos é, aliás, em tudo idêntica à tratada no recentíssimo acórdão do STA de 16.01.2020, proc. n° 2240/18.7BELSB, em que escava igualmente em questão a retoma a cargo pelo Estado Italiano. Nesse acórdão concluiu-se:
"I - Apenas em casos devidamente justificados, ou seja, naqueles casos em que existem válidos motivos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes e que tais falhas implicam o risco de tratamento desumano ou degradante, nomeadamente por envolver tortura, é que se impõe ao estado em causa diligenciar pela obtenção de informação actualizada acerca da existência de risco de o requerente ser sujeito a esse tipo de tratamentos:
II - A imigração ilegal, que ocorre por muitos e variados motivos, visando todos eles a melhoria das condições de vida do imigrante, não se pode confundir simplesmente com a situação do refugiado. Este, que em sentido amplo não deixa de ser imigrante, busca refúgio em país estrangeiro por recear, com razão, ser perseguido no seu país de origem em consequência de actividade por si exercida em favor da democracia, da liberdade social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana, ou em virtude da sua raça, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a determinado grupo social"
Ou seja, a premissa de que parte o acórdão de que a decisão de transferência do requerente de protecção internacional para o primeiro Estado responsável tem como pressuposto a análise prévia de que nesse Estado não existem falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado, salvo o devido respeito, não tem acolhimento na lei, ou pelo menos não o tem com o grau de injuntividade pretendido. No caso concreto dos autos, face ao que vem evidenciado, nada mais se impunha ao SEF. Nesse pressuposto, concederia provimento ao recurso, revogaria a sentença recorrida e julgaria a acção improcedente.”
24. Nesse contexto, o Acórdão recorrido carece efectivamente de legalidade, porquanto, conforme precedentemente explanado, no estrito cumprimento do estatuído pelo direito vigente sobre a matéria, se lhe impunha considerar impoluto o acto Recorrente.
25. Ao invés, assim não actuou, razão pela qual ora se pugna pela revogação do douto Acórdão, atenta a correta interpretação e aplicação da Lei.
Nestes termos e nos mais de Direito, deve o presente recurso, face à sua natureza excepcional, não ser admitido em sede de apreciação preliminar sumária (cf. art.° 150° n° 1 e 2 do CPTA ou, se assim não for entendido, ser julgado improcedente, mantendo-se o Acórdão ora recorrido.

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Devidamente notificada, a Recorrida não ofereceu contra-alegações.

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Mediante acórdão da Formação de Apreciação Preliminar deste STA foi decidido admitir a revista.

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O Digno Magistrado do Ministério Publico emitiu parecer pronunciando-se no sentido da procedência do presente recurso.

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Com dispensa legal de vistos, substituídos pela entrega das competentes cópias aos Exmos. Juízes Conselheiros Adjuntos, vem para decisão em conferência.

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Ao abrigo do regime do artº 663º nº 6 CPC ex vi artº 142º nº 3 CPTA remete-se para o probatório fixado pelas Instâncias.



DO DIREITO


Vem assacado o acórdão proferido de incorrer em erro de julgamento em matéria de pressupostos na determinação do Estado responsável pela retoma a cargo do requerente de protecção internacional, o ora Recorrido A…………, estando em causa a transferência para Itália.

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Em síntese e conforme declarações do ora Recorrido A………… prestadas em 03.07.2019 no Gabinete de Asilo e Refugiados (GAR) do Serviço de Estrangeiros e Fronteira (SEF), levadas ao probatório,
o é natural da Gâmbia donde saiu em 16.02.2014;
o na sequência da saída do seu País de origem, esteve sucessivamente no Senegal, Mauritânia, Mali, Argélia, Líbia e Itália, transitando de autocarro por França e Espanha antes de entrar em Portugal em 21.05.2019;
o apresentou pedido de protecção internacional no Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF em 23.05.2019, tendo formulado idêntico pedido em Itália e registado as suas impressões digitais na unidade central EURODAC (Reg. 603/2013 de 26.06 que autoriza o registo de impressões digitais de requerentes de asilo e de quem atravesse irregularmente as fronteiras externas da União), tendo permanecido durante dois anos em campos de refugiados nas cidades de Massama, Oristano e Norbelo de Itália;
o face aos pedidos múltiplos de asilo, pelos serviços do GAR foi solicitada em 01.07.2019 a retoma a cargo junto das autoridades de Itália, primeiro país onde o Recorrido solicitou asilo nos termos do artº 18º nº 1 d) do Reg. 604/2013/EU (Reg. de Dublin/III);
o as autoridades italianas não se pronunciaram no prazo de 2 (duas) semanas estabelecido no artº 25º nº 1 do Reg. de Dublin/III, valendo a aceitação tácita do pedido por parte de Itália, nos termos do artº 18º nº 7 do Reg. 604/2013/EU;
o por despacho do Director Nacional do SEF de 17.07.2019 foi o pedido de asilo do Recorrido considerado inadmissível por conjugação do disposto nos artºs. 19º-A nº 1 a) e 37º nº 2 Lei 27/2008 e 25º nº 2 do Reg. de Dublin/III;
sendo esta decisão que constitui o objecto de impugnação judicial ex vi artº 22º nº 1 Lei 27/2008.


1. princípio da exclusividade – teoria da protecção;

Atenta a criação na Europa de um espaço de territórios soberanos sem fronteiras internas, o princípio da exclusividade ou da oportunidade única no espaço da União Europeia para apresentação de um pedido de asilo, princípio vazado no artº 3º do Reg. 604/2013/EU (Reg. de Dublin/III) sucedâneo da Convenção de Dublin/1990 (entrada em vigor em Setembro/1997) visa definir, seguindo a doutrina da especialidade, “(..) qual é o Estado responsável pela apreciação dos pedidos de asilo apresentados por nacionais de Estados terceiros ou apátridas, de modo a garantir que todos os pedidos eram apreciados uma vez – apenas uma – no interior das fronteiras da União Europeia, visando “desencorajar os pedidos de asilo múltiplos (sucessivos ou simultâneos) e solucionar conflitos negativos de competência entre os Estados-membros” que resultavam da invocação da regra do primeiro país de asilo e que geravam a situação dos chamados “requerentes de asilo em órbita” (..)”. (A. Sofia Pinto Oliveira, Direito de asilo, in Tratado de direito administrativo especial, Vol-VII (coord. Paulo Otero / Pedro Gonçalves), pág.101.)
Materializa-se aqui mais um afloramento da teoria da protecção de actos de perseguição “(..) que revela o sentido de protecção interna, ou seja, aquela conferida por um Estado dentro das suas linhas territoriais a um estrangeiro vítima de perseguição por parte do seu Estado, conforme concepção da Convenção [de Genebra] de 51. Paralelamente o refugiado é definido como sendo aquela pessoa que se encontra fora do seu território nacional, devido a um fundado medo de ser perseguido em razão da sua raça, religião, nacionalidade, filiação a determinado grupo social ou opinião política.
Consequentemente, a protecção internacional, criada conforme a noção Estadocêntrica da soberania, faz parte de um system of state self-regulation e, por isso, dele dependente (..) Deste prisma, a concessão de asilo é um acto, portanto, de “extensão de soberaniado Estado de acolhimento. Desde o início da protecção internacional dos refugiados, a figura do estrangeiro e a ausência de protecção do Estado nacional estiveram sempre ligadas à pessoa do refugiado. (..)” (Márcia Mieko Morikawa, Deslocados internos: entre a soberania do Estado e a protecção internacional dos Direitos do Homem, Studia Iuridica/87, Coimbra Editora/2006, págs. 223-224.)
De acordo com a teoria da protecção perante situações em que o Estado de origem “(..) demonstra incapacidade de facto para proteger os seus nacionais das violações de direito fundamentais de que eram vítimas … não é função do Estado [de acolhimento] ao conceder asilo, emitir juízos quanto à actuação do Estado de origem, mas apenas verificar a necessidade de protecção internacional por parte de quem invoca o asilo e a possibilidade de essa protecção ser concedida internamente pelo Estado da nacionalidade ou da residência habitual (..)
Assim, sempre que o requerente consiga convencer as autoridades nacionais que, caso regresse ao país de origem, vai ser com toda a probabilidade vítima de perseguição e não vai poder contar com a protecção do Estado, já que este, por incapacidade ou por falta de vontade, não consegue pôr cobro a situações daquela natureza – sendo inútil recorrer, por isso, às autoridades do país de origem -, deve ser-lhe reconhecido o direito de asilo. (..)”. ( A. Sofia Pinto Oliveira, Direito de asilo, Tratado … Vol. VII, págs. 67-68.)
A nosso ver, no entendimento exposto, o pedido de protecção internacional configura-se perante a evidência de um risco real seja de perseguição (asilo) seja de sistemática violação de direitos humanos (protecção subsidiária), a ser apreciado objectivamente com fundamento em elementos de facto passíveis de, em juízo de prognose, sustentar uma situação dessa natureza, de risco real para o requerente.


2. procedimento de retoma a cargo – falhas sistémicas – condições de acolhimento;

Transpondo a teoria da protecção nos termos expostos para o procedimento de retoma a cargo regulado nos artºs. 36º a 40º da Lei 27/2008 e dirigido às situações de pedidos múltiplos em que se trata de colocar o requerente no primeiro país em que requereu asilo, o artº 3º nº 2 do Reg. 604/2013/EU (Reg. de Dublin/III a que o artº 37º nº 1 Lei 27/2008 faz referência expressa) trata expressamente a questão de se verificarem falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento do Estado-membro da UE para que o requerente deva ser transferido, no caso em apreço Itália, o que, a nosso ver, passa pela avaliação do risco real para o requerente e ora Recorrido.
Sob a epígrafe Acesso ao procedimento de análise de um pedido de protecção internacional, diz o artº 3º nº 2 do Reg. de Dublin III, evidenciando-se a negrito e sublinhados os segmentos julgados relevantes
“2. Caso o Estado-Membro responsável não possa ser designado com base nos critérios enunciados no presente regulamento, é responsável pela análise do pedido de protecção internacional o primeiro Estado-Membro em que o pedido tenha sido apresentado.
Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na acepção do artigo 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável.

Caso não possa efectuar-se uma transferência ao abrigo do presente número para um Estado-Membro designado com base nos critérios estabelecidos no Capítulo III ou para o primeiro Estado-Membro onde foi apresentado o pedido, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável passa a ser o Estado-Membro responsável.
3. Os Estados-Membros mantêm a faculdade de enviar um requerente para um país terceiro seguro, sem prejuízo das regras e garantias previstas na Directiva 2013/32/UE.”

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Como evidencia a doutrina que vimos citando, relativamente ao artº 3º nº 2 do Reg. de Dublin III “(..) Esta cláusula foi objecto de particular atenção pela doutrina desde que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) considerou no caso M.S.S. contra a Bélgica e a Grécia, de 21 de Janeiro de 2011, que a transferência – no caso concreto, requerida e executada pela Bélgica – de requerentes de asilo para um Estado-membro em dificuldades pelo elevado número de pedidos que estava a receber – concretamente a Grécia – constituía a violação do artº 3º da CEDH (Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 1950).
O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) secundou esta posição na decisão de 21 de Dezembro de 2011, no caso N.S. (..)” (A. Sofia Pinto Oliveira, Direito de asilo, Tratado … Vol. VII, pág. 105.)
É esta evolução na jurisprudência do TEDH e do TJUE que o Reg. de Dublin III reflecte no artº 3º nº 2, posto que “(..) A cláusula de soberania aí prevista impõe aos Estados um juízo de prognose relativamente à situação a que o requerente ficará exposto após a transferência Dublin, devendo o Estado onde se encontra o requerente paralisar o processo de transferência sempre que entenda que esta pode significar a sujeição do requerente a tratamento cruel, degradante ou desumano num Estado-membro. (..)” (A. Sofia Pinto Oliveira, Direito de asilo, Tratado … Vol. VII, pág. 109.)

Ou seja.
No procedimento de retoma a cargo considera-se
o impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável” se
o “existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas
o “no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento
O que significa que o artº 3º nº 2 Reg. de Dublin III exige um nexo de causalidade necessária (e não apenas suficiente) entre (i) a matéria de facto passível de subsunção no conceito normativo de “motivos válidos” e (ii) o juízo de prognose traduzido na existência de “falhas sistémicas” no Estado-membro da UE em que o pedido de asilo foi primeiramente apresentado.
Só assim, perante matéria de facto subsumível no conceito de “motivos válidos” de existência de “falhas sistémicas”, pode o acto final do procedimento de retoma a cargo definir autoritariamente a situação do caso concreto, declarando o efeito jurídico da “impossibilidade de transferir” o requerente e levando o país em causa a assumir o estatuto de Estado-Membro responsável.
Como já se deixou dito, o conceito de “motivos válidos” passa pela avaliação do risco real em que será colocado o requerente de asilo em caso de transferência para o primeiro país em que deduziu o pedido, no âmbito do procedimento de retoma a cargo, risco real de sujeição do requerente a tratamento cruel, degradante ou desumano.

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Tomando em conta as declarações prestadas pelo ora Recorrido no tocante à sua passagem por Itália e com reporte ao período de 02/2014 (saída do país de origem) a 05/2019 (entrada em Portugal), levadas à alínea D) do probatório consta:
1. À pergunta “percurso efectuado desde o país de origem até chegar a Portugal?
2. Respondeu “ … fui de barco para Itália com outros refugiados, fiquei num campo de refugiados em Oristano durante três meses, depois fui transferido para outro campo em Massama onde fiquei 01 ano e dois meses, depois fui transferido de volta ao campo de Oristano, onde fiquei 04 meses, depois fui transferido para outro campo em Norbelo, onde fiquei 02 meses, depois fui para Portugal de autocarro, passei por França e Espanha."
3. À pergunta “perante a presente informação tem algo mais a declarar?
4. Respondeu “Se a decisão for de me transferirem para Itália, eu não quero ir, porque quando estava no campo de refugiados em Norbelo, puseram-me na rua, porque o meu advogado não meteu o segundo recurso para contestar a decisão negativa do meu pedido de asilo em Itália, meteu só o primeiro recurso, que foi negativo. Depois vivi dois meses na rua em Oristano, consegui dormir só duas semanas na Cáritas, porque não havia lugar para todos, mas ia comer todos os dias à Cáritas, depois decidi vir para Portugal, porque me pareceu o melhor país para vir, quando consultei na internet…”
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Das declarações levadas à alínea D) do probatório extrai-se que o Recorrido esteve 23 (vinte e três) meses em Itália, ou seja, de Junho/2017 a Maio/2019 quando entrou em Portugal, nos campos de refugiados de Oristano (duas vezes), Massama e Norbelo, sendo que na primeira resposta o ora Recorrido referiu-se sempre a ter sido “transferido” entre os campos e na segunda referiu-se a “puseram-me na rua” e “vivi dois meses na rua em Oristano”.
Na circunstância concreta é o ora Recorrido que carreia para o procedimento a informação de que consultou a internet; em critério de razoabilidade, tal significa que é pessoa capaz de alcançar a diferença entre ser “transferido” a “ser posto na rua” e “viver dois meses na rua em Oristano”.

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Por outro lado, no tocante à sequência de estada nos campos de refugiados em Itália verifica-se que a informação dada pelo ora Recorrido na primeira, não coincide com a dada na segunda resposta.
Primeira versão: “de volta a Oristano (04 meses)” “fui transferido para Norbelo (02 meses)” donde “fui para Portugal de autocarro, passei por França e Espanha”.
Segunda versão: “em Norbelo, puseram-me na rua”, “vivi dois meses na rua em Oristano”, “depois decidi vir para Portugal”.

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Por último, os relatos informativos divulgados pela imprensa de massas, em jornais de grande circulação, na internet e canais televisivos e levados às alíneas H) a L) do probatório são fortemente explícitos quanto à natureza gravemente atentatória da dignidade e integridade física, mental e moral das pessoas que vivenciaram aquelas circunstâncias, ou seja, são relatos de desprotecção em grau muito elevado, sobre pessoas que entram no espaço da UE vindos em deslocamento forçado dos seus países de origem ou de países em trânsito temporário.
Todavia, das declarações levadas à alínea D) do probatório retira-se que o relato em discurso directo do ora Recorrido sobre factos pessoais nos 23 (vinte e três) meses nos campos de refugiados de Oristano (duas vezes), Massama e Norbelo no período de Junho/2017 a Maio/2019 em Itália, constitui um relato que não traduz a vivência de circunstâncias do cariz desumano, cruel e degradante das relatadas pela imprensa de massas conforme alíneas H) a L) do probatório.
O mesmo é dizer que não resulta provado, em grau de verosimilhança e razoabilidade, que em caso de transferência para o país da apresentação do primeiro pedido de asilo, a Itália, as condições de acolhimento nesse Estado-membro impliquem para o ora Recorrido o risco de tratamento desumano ou degradante na acepção do artigo 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, conforme determina o artº 3º nº 2 do Reg. 604/2013/EU (Reg. de Dublin/III).
Concluindo, no caso concreto não logra sustentação o nexo de causalidade necessária entre a matéria de facto que, em juízo de prognose, evidencie “motivos válidos” de existência de “falhas sistémicas” no Estado-membro da UE em que o pedido de asilo foi primeiramente apresentado, conforme exige o artº 3º nº 2 do Reg. 604/2013/EU (Reg. de Dublin/III).

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Pelo que vem dito não se acompanha o entendimento sustentado pelas Instâncias no sentido da verificação de “falhas sistémicas” no Estado-membro da UE em que o pedido de asilo foi primeiramente apresentado, ou seja, em Itália.
Consequentemente, em via de revogação do acórdão recorrido, mantém-se válido e eficaz o despacho do Director Nacional do SEF de 17.07.2019 de inadmissibilidade do pedido de asilo do ora Recorrido A…………, conforme disposições conjugadas dos artºs. 19º-A nº 1 a) e 37º nº 2 Lei 27/2008 e 25º nº 2 do Reg. de Dublin/III;


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Tudo visto acordam, em conferência, os Juízes Conselheiros da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo em, na procedência do recurso, revogar o acórdão recorrido, mantendo válido e eficaz o despacho do Director Nacional do SEF de 17.07.2019 de inadmissibilidade do pedido de asilo formulado pelo ora Recorrido A………….

Sem custas, atento o disposto no artº 84º da Lei 27/2008 de 30.06.

Lisboa, 9 de Julho de 2020

A Relatora atesta, nos termos do disposto no artº 15º-A do DL 10-A/2020 de 13.03 aditado pelo artº 3º do DL 20/2020 de 01.05, o voto de conformidade ao presente acórdão dos restantes Conselheiros integrantes desta formação de conferência, Conselheiro José Veloso e Conselheira Ana Paula Portela.

Maria Cristina Gallego dos Santos (relatora) - José Augusto Araújo Veloso - Ana Paula Soares Leite Martins Portela.