Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02321/18.7BELRS
Data do Acordão:03/01/2023
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NUNO BASTOS
Descritores:ADICIONAL
IMPOSTO MUNICIPAL SOBRE IMÓVEIS
INCONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
DIREITO À HABITAÇÃO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Sumário:I - A utilização do valor patrimonial tributário como índice de capacidade contributiva em sede de AIMI não viola o princípio da igualdade tributária na sua vertente de uniformidade;
II - A aplicação da taxa marginal de 1% ao valor tributável, determinado nos termos do n.º 1 do artigo 135-C do Código do IMI, superior a 1 000 000 € não viola, em si mesma, o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso;
III - A solução legislativa de não excluir do adicional ao IMI os prédios urbanos habitacionais não viola o direito constitucional à habitação.
Nº Convencional:JSTA000P30653
Nº do Documento:SA22023030102321/18
Data de Entrada:02/21/2022
Recorrente:AA E OUTROS
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. AA, contribuinte fiscal n.º ... e BB, contribuinte fiscal n.º ..., ambos com domicílio fiscal na Rua ..., ..., ... em Lisboa, recorreram para o Supremo Tribunal Administrativo da douta sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou improcedente a impugnação judicial da liquidação adicional ao imposto municipal sobre imóveis (AIMI) n.º 2018 009533197, referente ao ano de 2018, no montante de € 32.332,06.

Com a interposição do recurso apresentaram alegações e formularam as seguintes conclusões: «(…)

A. A capacidade contributiva do contribuinte, que na sentença recorrida se considera dever ser analisada ou encontrada entre os grupos homogéneos e não entre a universalidade dos titulares de bens imóveis, não pode resultar da mera definição de um valor arbitrário relativo ao VPT de um qualquer bem imóvel destinado à habitação, a partir do qual se passa a supor-se que o respetivo titular é capaz de suportar um agravamento fiscal que é aquilo em que consiste a tributação em sede de AIMI;

B. Determinando o art. 104.º/3 da CRP que “A tributação do património deve contribuir para a igualdade entre os cidadãos.”, mesmo em sede de tributação do património haverá sempre que ter em conta quem é o sujeito passivo alvo do imposto, através daquilo que Sérgio Vasques denomina como constituindo “a personalização do imposto”, pois só assim se alcança o desiderato do princípio da igualdade;

C. Os critérios aventados pelo Tribunal a quo para integrar o conceito de capacidade contributiva, por assentes no critério único do valor do património, não são suficientes para concluir da medida da efetiva capacidade contributiva do contribuinte titular de tal direito;

D. Em sede de controlo da constitucionalidade o princípio da igualdade apresenta-se como um princípio negativo, com proibição do arbítrio, pelo que a tributação do património dos contribuintes terá de fazer-se de acordo com a real capacidade económica do destinatário;

E. O facto de, por opção legislativa, pretender beneficiar-se determinadas atividades de índole comercial, atribuindo-lhes a isenção de determinados tributos, não é fator bastante para legitimar o agravamento de outras realidades que gozam de proteção constitucional, como é o caso da habitação;

F. O direito à habitação apresenta-se como verdadeiro direito social e, enquanto tal, implica determinadas obrigações positivas do Estado, pelo que, face ao instituído no artigo 65º da CRP, apenas seria admissível ao legislador estabelecer uma discriminação positiva em sede de AIMI para os prédios de habitação, considerada a função social destes;

G. Sendo o princípio da confiança um pilar estruturante do Estado de Direito Democrático, tem de ser por ele garantido com o objetivo de possibilitar ao cidadão o planeamento da sua vida, sem ser confrontado com o imprevisto ou com a surpresa;

H. Não existem razões válidas para um qualquer tratamento diferenciado entre o contribuinte que optou por realizar poupança através da aquisição de bens imóveis destinados à habitação, como alternativa à realização de depósitos bancários em instituições bancárias que sequer garantem o próprio capital depositado, porquanto constituem ambas opções pessoais com idêntico objetivo e resultam do mesmo esforço de poupança; +

I. Por essa razão, considerada a dura intensidade do AIMI (1% do valor patrimonial) e a sua incidência parcelar (só edifícios de habitação, a partir de determinado valor de VPT), tal tributo revela-se desproporcionado e não pode deixar de se entender como arbitrário, por despido de qualquer sentido de justiça, pelo que violador do princípio da igualdade;

J. A tributação em sede de AIMI, sustentada pela Fazenda Pública contra os recorrentes nos termos do disposto no artigo 135.º-A a M do CIMI, com as suas várias alterações e aditamentos resultantes da promulgação da Lei N.º 42/2016, de 28 de dezembro, está ferida de inconstitucionalidade, uma vez que tais normas violam, de forma incisiva e intolerável, o conteúdo e o sentido do estipulado nos artigos 2º, 12º, 13º, 18º, 62º e 65º, todos da Constituição da República Portuguesa;

K. O acto de liquidação N.º 2018 009533197, de 30 de junho de 2018, relativa ao adicional de IMI referente ao ano de 2018, remetida pelo Serviço de Finanças Lisboa-7 aos Autores, para pagamento da quantia de 32.332,06€, está ferido de ilegalidade, porquanto viola as citadas disposições da Lei fundamental do país.

Pediram fosse o recurso julgado procedente, por provado, fosse a decisão proferida revogada e fosse a mesma substituída por outra que julgasse procedente a impugnação apresentada e anulasse a liquidação impugnada.

A Fazenda Pública não contra-alegou.

O recurso foi admitido com subida imediata nos próprios autos e com efeito devolutivo.

Recebidos os autos neste tribunal, foram os mesmos com vista ao Ministério Público.

O Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto lavrou douto parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso

Foram dispensados os vistos legais, pelo que cumpre decidir.


***

2. Ao abrigo do disposto no artigo 663.º, n.º 6 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 679.º do mesmo Código, dão-se aqui por reproduzidos os factos dados como provados em primeira instância.

***

3. Vem o presente recurso interposto da douta sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que, tendo concluído que as «disposições legais que consagram a tributação em sede de AIMI» não violam «o princípio da igualdade e o princípio da capacidade contributiva», julgou improcedente a impugnação judicial da liquidação do adicional ao imposto municipal sobre imóveis impugnada.

Com o assim decidido não se conformam os Recorrentes, por entenderem que a tributação efetuada nos termos do disposto nos artigos 135.º-A a M do Código do IMI está ferida de inconstitucionalidade, por violar de forma incisiva e intolerável o conteúdo e o sentido do estipulado nos artigos 2.º 12.º, 13.º, 18.º, 62.º e 65.º, todos da Constituição da República Portuguesa.

Desta indicação das normas da Constituição resulta que os Recorrentes consideram que o regime do adicional ao imposto municipal sobre imóveis viola, em bloco, os princípios do estado de direito democrático, da universalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da propriedade privada e o direito à habitação.

Mas, como é sabido, o tribunal de recurso não está vinculado ao enquadramento jurídico que as partes dão aos vícios alegados e não tem, por isso, que considerar a violação de todos estes princípios para decidir o recurso e apenas porque foram nomeados.

Ora, se analisarmos em concreto o teor das doutas alegações de recurso, verificamos que os Recorrentes não se conformam com o decidido em primeira instância por entenderem que o adicional ao imposto municipal sobre imóveis toma no seu pressuposto um «valor arbitrário», inadequado à auscultação da capacidade contributiva dos contribuintes e, por isso, desigual.

Pelo que o que os Recorrentes verdadeiramente põem em causa é a conformidade com o princípio constitucional da igualdade tributária (que constitui expressão específica do princípio geral da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição), do critério de tributação que deriva do artigo 135.º-C do Código do IMI, que consideram completamente inadequado para a determinação da sua capacidade de gastar.

Por outro lado, os Recorrentes também não se conformam com o decidido em primeira instância por entenderem que os prédios destinados à habitação deveriam ser objeto de uma discriminação positiva, considerando a sua função social.

Pelo que o que os Recorrentes verdadeiramente põem em causa, por aqui, é a solução legislativa de não excluir do adicional ao IMI dos prédios urbanos habitacionais. O que, se bem interpretamos o seu ponto de vista, constituiria a única solução que permitiria compatibilizar o regime do tributo com o direito constitucional à habitação.

Finalmente, os Recorrentes consideram-se atingidos no seu direito a uma estabilidade isenta de sobressaltos e consideram intolerável e injusto onerar os que optaram por aplicar o produto das suas poupanças em imóveis destinados a habitação.

No entanto, embora façam alusão, a este propósito, ao princípio da confiança, os Recorrentes ressalvam que o problema não está no facto de terem sido surpreendidos com um novo imposto, mas com «a sua dura intensidade» e com o facto de haver um tratamento diferenciado em relação aos que recorrem a outras formas de poupança. O que nos remete, mais uma vez, para um problema de igualdade na tributação, a que acrescerá um problema que tem a ver mais com a expressão quantitativa da incidência objetiva, ou seja, um problema de desproporcionalidade no recorte quantitativo da regra da incidência objetiva inserida no n.º 1 do artigo 135.º-B do mesmo Código.

Em suma, as questões a decidir são as seguintes: as de saber se as identificadas regras quantitativas de incidência do imposto violam os princípios constitucionais da igualdade tributária e da proporcionalidade; saber se o regime legal que instituiu o AIMI viola o direito constitucional à habitação.

Delas conheceremos no ponto seguinte.

4. À questão de saber se a utilização do valor patrimonial tributário como índice de capacidade contributiva em sede de AIMI constitui um critério arbitrário e, por isso, atentatório em si mesmo do princípio da igualdade tributária respondemos negativamente.

De certa forma, o Tribunal Constitucional já respondeu a essa questão: no acórdão de 4 de julho de 2018, (acórdão n.º 378/2018, tirado em Plenário para resolver a oposição entre o acórdão n.º 250/2017 – invocado pelos ora Recorrentes – e o acórdão n.º 568/2016), foi concluído que a solução de tributar os titulares patrimónios imobiliários cujo valor patrimonial tributário seja superior a determinado valor «não constitui uma solução arbitrária, ou racionalmente infundada, por assentar em indícios seguros, embora não infalíveis, de especial ou acrescida capacidade contributiva» (ver ponto 13 do acórdão).

Embora esse acórdão tenha analisado a conformidade com o princípio da capacidade contributiva da norma constante da Verba 28.1 da tabela anexa ao Código do Imposto de Selo (na redação então em vigor), o acórdão do mesmo Tribunal citado na sentença recorrida concluiu que esse entendimento se mantém válido e é transponível para a questão equivalente suscitada no âmbito do AIMI.

Os Recorrentes contrapõem, a esse propósito, que o valor é arbitrário porque poderia ser de € 1.000.000,00 como de € 250.000,00.

No entanto, o Tribunal Constitucional também tem concluído, a este propósito, que o princípio da capacidade contributiva não retira ao legislador a liberdade de conformação necessária na determinação do critério que considera adequado a aferi-la. O que impede é que o critério adotado pelo legislador seja desprovido de fundamento racional (neste sentido, pode ver-se o acórdão de 11 de novembro de 2015, com o n.º 590/2015).

Ora, a inclusão no elemento quantitativo do facto tributário, para efeitos de AIMI, de um valor mínimo, abaixo do qual não ocorre a sujeição ao imposto, não é desprovida de fundamento racional. Porque toma por base uma manifestação de riqueza superior, que revelam os titulares de um património de determinado valor em relação aos que não o têm e a que corresponderá uma acrescida capacidade económica para contribuir.

Contrapõem, no entanto, os Recorrentes que este valor não atende à capacidade económica dos sujeitos que estão por trás do tributo e às condições em que se encontra. E problematiza dizendo que o critério único do valor do património não é vetor bastante para considerar demonstrada uma qualquer abastança ou pujança patrimonial.

Sobre esta matéria, importa referir desde já que os tribunais ordinários apreciam a inconstitucionalidade das normas em situações concretas, como deriva do artigo 204.º da Constituição. Assim, o exercício teórico que se destine a aferir situações de inconstitucionalidade não aproveita ao sujeito que não demonstre que a sua situação concreta se subsume à situação hipotética configurada.

De qualquer modo, a argumentação desenvolvida toma como pressuposto que os impostos sobre o património cumprem uma função equivalente à dos impostos sobre o rendimento (que são impostos pessoais) e atendem, por isso, à situação pessoal do contribuinte. E não é assim: os impostos sobre o património são impostos reais, precisamente porque atendem a uma realidade económica que abstrai da situação em que se encontra a pessoa do contribuinte. E que, por isso mesmo, complementam o sistema de tributação. Porque lhe conferem uma certa multidimensionalidade e permitem, assim, atender a diferentes manifestações de riqueza.

Contrapõem, ainda, os Recorrentes que não existem razões válidas para tratar de modo diferenciado a poupança através da aquisição de imóveis em relação aos depósitos bancários, que nem sequer garantem o próprio capital depositado.

Há que observar, a este propósito, que este tribunal nada sabe sobre as razões que levaram os Recorrentes a adquirir os prédios urbanos em causa e, designadamente, se o fizeram como instrumento de aforro de riqueza. No entanto, a própria argumentação que desenvolvem sugere a resposta: estamos perante instrumentos de poupança completamente diferentes, quanto às características, propriedades, quanto à sua rentabilidade e quanto à garantia do retorno do capital. E que, por isso, sustentam formas de tributação também distinta.

À questão de saber se a taxa de 1% ao valor tributável é excessiva e, nesse sentido, desproporcionada (em sentido estrito) deve contrapor-se que se trata de uma taxa marginal, aplicável apenas a uma parcela do valor que seja superior a 1.000.000 €. Assim, o próprio sistema de tributação assegura alguma progressividade no seu funcionamento e, por essa via, tempera a carga tributária em função da riqueza a tributar.

Deve também ressalvar-se que não compete ao tribunal substituir-se ao legislador na ponderação de fatores financeiros. Descontadas as situações em que os valores por ele considerados se revelem manifestamente infundados ou irrazoáveis, as consequências das opções legislativas centram-se no plano da avaliação política e não jurídica.

De qualquer modo, o Tribunal Constitucional também analisou a questão de saber se a tributação em sede de AIMI satisfaz as exigências do princípio da proporcionalidade, tendo concluído (designadamente no acórdão citado na sentença recorrida, ponto 20, que passamos a citar) que «não se mostra desmedida», designadamente em função das taxas aplicáveis.

Por último, à questão de saber se a solução legislativa de não excluir do adicional ao IMI dos prédios urbanos habitacionais viola o direito constitucional à habitação respondemos também negativamente.

Há que referir que o direito à habitação consagrado no artigo 65.º, n.º 1, da Constituição é um direito de natureza social, que se funda na dignidade da pessoa humana e que, por isso, se centra no direito a ter uma morada decente e condigna, que ofereça os serviços básicos proporcionada ao número de membros do agregado e adequada a preservar a intimidade e um ambiente fisicamente são. Este direito não é atingido pela tributação do património ou do usufruto de habitações de valor mais elevado e a que só poderá aceder quem já tem o direito à habitação plenamente assegurado.

Por outro lado, o regime do AIMI já contempla algumas regras e cujo teor se entrevê a ponderação deste direito por parte do legislador, visto que o artigo 135.º-C, n.º 3, do Código exclui do valor tributável para este efeito os prédios cujos titulares sejam cooperativas de habitação e construção ou associações de moradores, e os condomínios de prédios cujo valor patrimonial não exceda 20 vezes o valor anual do indexante de apoios sociais.

Finalmente, não pode deixar de observar-se a este propósito que o direito à habitação é também um princípio de solidariedade social. A ele se vinculam também os titulares da propriedade privada, visto que também têm uma função social a cumprir, na medida das suas capacidades. No caso, o AIMI é um imposto consignado ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social e, tem, por isso, por objetivo o alargamento das fontes de financiamento da Segurança Social, que tem responsabilidades precisamente no financiamento das medidas de proteção social.

Deve assim, concluir-se que o direito à habitação consagrado no artigo 65.º da Constituição não obriga o legislador a discriminar positivamente, em impostos sobre o património, as tipologias de imóveis destinados à habitação independentemente do seu valor. E que, por isso, o regime tributário em análise também não viola a Constituição por aqui.

Pelo que o recurso não merece provimento.


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5. Preparando a decisão, formula-se as seguintes conclusões, que valerão também como sumário do acórdão:

I. A utilização do valor patrimonial tributário como índice de capacidade contributiva em sede de AIMI não viola o princípio da igualdade tributária na sua vertente de uniformidade;

II. A aplicação da taxa marginal de 1% ao valor tributável, determinado nos termos do n.º 1 do artigo 135-C do Código do IMI, superior a 1 000 000 € não viola, em si mesma, o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso;

III. A solução legislativa de não excluir do adicional ao IMI os prédios urbanos habitacionais não viola o direito constitucional à habitação.


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6. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso.

Custas pelos Recorrentes.

Lisboa, 1 de março de 2023. - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos (relator) – Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro – Isabel Cristina Mota Marques da Silva.