Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0474/11
Data do Acordão:07/05/2012
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Descritores:LIQUIDAÇÃO OFICIOSA
REGIME SIMPLIFICADO DE TRIBUTAÇÃO
INACTIVIDADE
ÓNUS DE PROVA
Sumário:I - Sendo a Impugnante uma sociedade comercial com início de actividade declarada perante a administração fiscal para realização de actividades de natureza económica produtoras de rendimentos, há que considerar verificado o pressuposto da tributação oficiosa levada a cabo pela administração perante a falta de declaração de cessação de actividade e falta de apresentação de declaração anual de rendimentos.
II - Tendo o lucro tributável sido determinado por aplicação do n.º 4 do artigo 53.º do CIRC, e sabido que o valor mínimo de rendimento constante dessa norma deve ser entendido como uma presunção juris tantum de obtenção desse rendimento, ilidível pelo sujeito passivo por força do disposto no artigo 73.º da LGT, competia a este apresentar prova bastante da ilegitimidade do acto, demonstrando que não exerceu qualquer actividade nem obteve os rendimentos ficcionados na norma, obstando, assim, à sua aplicação.
III - Se nenhuma prova é feita pela Impugnante quanto à sua inactividade e ausência de rendimentos tributáveis, o tribunal tem de decidir a causa em sintonia com as regras substantivas do ónus de prova, tomando em consideração que o non liquet reverte necessariamente contra a parte que tinha esse ónus, ou seja, no caso, contra a Impugnante.
Nº Convencional:JSTA000P14391
Nº do Documento:SA2201207050474
Data de Entrada:05/11/2011
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA E A......, LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. O MINISTÉRIO PÚBLICO recorre para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria que julgou procedente a impugnação judicial que a sociedade A………, LDA., com os demais sinais dos autos, deduziu contra o acto de indeferimento expresso da reclamação graciosa que apresentara contra a liquidação oficiosa de IRC do ano de 2005, derrama e juros, no montante global de € 1.402,57.
1.1. Terminou a sua alegação de recurso enunciando as seguintes conclusões:
1. O art. 53.º n.º 4 do CIRC presume um montante mínimo de rendimentos para as empresas que não apresentem declaração para efeitos de IRC e que não tenham cessado a sua actividade, mantendo a sua existência jurídica;
2. Essa presunção é ilidível, nos termos do art. 73.° da LGT, quer pela apresentação de declarações anuais com rendimento nulo, quer com a prova a efectuar nas reacções processuais contra as liquidações oficiosas respectivas;
3. Não tendo optado, a impugnante, por nenhuma destas possibilidades, limitando-se a alegar teoricamente a sua inactividade, não tinha a Mmª Juiz “a quo” como declarar procedente a presente impugnação;
4. E ao assim declará-la, violou o referido art. 53° n° 4 do CIRC.
Deve, pois, a douta sentença dos autos ser revogada substituindo-se por outra que declare improcedente a oposição. JUSTIÇA.

1.2. Não foram apresentadas contra-alegações.

1.3. Colhidos os vistos dos Exmºs Juízes Conselheiros Adjuntos, cumpre decidir em conferência.

2. Na sentença recorrida julgaram-se como provados os seguintes factos:
a) A impugnante foi notificada para efectuar o pagamento de IRC, derrama e juros, no montante total de € 1.402,57, com data limite de pagamento em 30/12/2009 (fls. 3 dos autos de reclamação graciosa apensos);
b) Na sequência da notificação da liquidação oficiosa referida na alínea anterior a impugnante em 29/12/2009 apresentou a reclamação graciosa de fls. 2 dos autos apensos, que aqui se dá por integralmente reproduzida, alegando, em síntese, que nunca exerceu a actividade para a qual foi constituída;
c) A reclamação graciosa deduzida foi indeferida por despacho do Chefe de Finanças de Leiria-2, no uso de delegação de competências do Director de Finanças de Leiria, que aqui se dá por integralmente reproduzido, datado de 17/02/2010 (Fls. 15 e 16);
d) O despacho referido na alínea anterior foi notificado pelo ofício no 960/1a, datado de 17/02/2010, recebido em 01/03/2010 (fls. 15 a 17 dos autos de reclamação graciosa apensos);
e) A presente impugnação deu entrada neste Tribunal em 15/03/2010 (fls. 2).

E julgou-se como não provado o seguinte:
Não se provou que a impugnante no exercício de 2005 tenha efectuado qualquer venda, nem suportado qualquer custo relacionado com a actividade.

3. Vem o presente recurso jurisdicional interposto da sentença que julgou procedente a impugnação judicial deduzida pela sociedade A………, LDA, ora Recorrida, contra o acto de indeferimento da reclamação graciosa que tinha por objecto a liquidação oficiosa de IRC do ano de 2005, derrama e juros, no montante global de € 1.402,57.
A questão que se coloca neste recurso é a de saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de direito, por violação da norma contida no artigo 53.º, n.º 4, do CIRC, ao julgar ilegal e anular a liquidação oficiosa de IRC/2005 (que constitui o objecto mediato do processo impugnatório) com o único fundamento de não se ter provado que a Impugnante haja exercido, no exercício em causa, a actividade para que foi constituída e pela qual foi tributada.
Segundo o entendimento vertido na sentença, «O lucro tributável é determinado nos termos dos artigos 17° e 53° do CIRC.(…) Dos autos não resultou provado que a impugnante tenha exercido a actividade para a qual foi constituída.
Assim sendo, não tendo a impugnante realizado proveitos, nem contabilizado custos, no exercício de 2005 não ocorreram quaisquer factos tributáveis sujeitos a IRC, pelo que também não pode haver lugar a tributação.».
É contra essa decisão que se insurge o Ministério Público, ora Recorrente, invocando, em suma, que o n.º 4 do artigo 53.º do CIRC instituiu a presunção de um montante mínimo de rendimentos para efeitos de liquidação de IRC, sendo à Impugnante, e não à Administração Fiscal, que cabe ónus de ilidir tal presunção, apresentando declarações anuais com rendimento nulo e fazendo prova, nos meios processuais adequados para atacar as liquidações oficiosas, da inactividade e ausência de rendimentos. Pelo que, conclui, «Não tendo optado, a impugnante, por nenhuma destas possibilidades, limitando-se a alegar teoricamente a sua inactividade, não tinha a Mmª Juiz “a quo” como declarar procedente a presente impugnação».
Atenta a posição assumida pelo Recorrente, verifica-se que não existe, realmente, dissídio quanto à interpretação da norma contida no n.º 4 do artigo 53.º do CIRC, já que a discordância radica unicamente na questão do ónus da prova, pois enquanto na sentença se conclui pela ilegalidade da liquidação por não se ter provado que a impugnante tenha efectuado qualquer venda ou suportado qualquer custo relacionado com a actividade comercial pela qual se encontrava colectada durante o exercício em causa, o Recorrente entende que essa falta de prova conduz à conclusão oposta.
Vejamos.
Tal como a doutrina e a jurisprudência têm repetidamente afirmado, actuando a administração tributária no uso de poderes estritamente vinculados, submetida ao princípio da legalidade, cabe-lhe o ónus de prova da existência de todos os pressupostos do acto de liquidação. Como refere VIEIRA DE ANDRADE ( in “A Justiça Administrativa” (Lições), 2º edição, pág. 269.), «há-de caber, em princípio, à Administração o ónus de prova da verificação dos pressupostos legais (vinculativos) da sua actuação, designadamente se agressiva (positiva e desfavorável); em contrapartida, caberá ao administrado apresentar prova bastante da ilegitimidade do acto, quando se mostrem verificados estes pressupostos», adiantando JORGE LOPES DE SOUSA ( in “Código de Procedimento e Processo Tributário Anotado”, 2ª edição, pág. 470.) que «o ónus de prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque. Embora esta regra (art. 74º/1 LGT) esteja prevista para o procedimento tributário, o seu conteúdo deve ser transposto para o processo judicial que se lhe seguir, por forma a que quem tinha o ónus da prova no procedimento tributário tenha o respectivo ónus no processo judicial tributário (...)».
No caso vertente, trata-se de uma liquidação oficiosa de IRC efectuada segundo as regras do regime simplificado, por aplicação do disposto no artigo 53.º, nº 4, do CIRC, a um sujeito passivo de IRC, dos tipificados na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIRC, que se encontra colectado pelo exercício de uma actividade comercial.
Sobre a interpretação e aplicação do artigo 53.º, n.º 4, do CIRC pronunciou-se já por diversas vezes esta Secção do Supremo Tribunal Administrativo, designadamente nos acórdãos proferidos em 4/11/2009, em 17/11/2010 e em 22/03/2011, nos recursos nºs. 0553/09, 0609/10 e 0988/10, respectivamente, sustentando, em todos eles, idêntica posição doutrinária, que acompanhamos, no sentido de que a inactividade da empresa não obsta a que esta possa ser sujeito passivo de imposto, pois mantendo a sua existência jurídica pode ter obtido rendimentos tributáveis, ainda que não resultantes do exercício do seu objecto social; e, por outro lado, o valor mínimo constante da referida disposição legal terá de ser entendido como mera presunção de rendimento ilidível nos termos do artigo 73.º da Lei Geral Tributária.
Ora, decorre dos autos que a administração fiscal procedeu à liquidação oficiosa de IRC por estar em causa um sujeito passivo de IRC e se verificar a presunção juris tantum de obtenção de rendimento decorrente da norma contida no artigo 53.º, n.º 4, do CIRC, tendo em conta que se trata de um imposto que incide sobre os lucros das sociedades comerciais que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola – cfr. artigo 3.º, n.º 1, al. a), do CIRC.
Com efeito, tem de presumir-se que a recorrente, como sociedade comercial que é, com início de actividade declarada perante a administração fiscal, exercia a actividade pela qual se encontrava colectada, tendo a seu cargo a realização de actividades de natureza marcadamente económica, produtoras de rendimentos. Pelo que o pressuposto da tributação levada a cabo pela administração tributária foi a prática de uma actividade comercial geradora de rendimentos, cujo lucro tributável foi, e bem, determinado por aplicação do n.º 4 do artigo 53.º do CIRC, sendo que o valor mínimo de rendimento constante desta norma legal deve ser entendido como mera presunção de rendimento, ilidível pelo sujeito passivo por força do disposto no artigo 73.º da Lei Geral Tributária, como se deixou explicado nos acórdãos acima referenciados.
Face à verificação de tal pressuposto da liquidação, legitimador da actuação da administração tributária, cabia à Impugnante apresentar prova bastante da ilegitimidade do acto, provando que não exerceu qualquer actividade nem obteve os rendimentos ficcionados na norma, obstando, assim, à sua aplicação. Dito de outro modo, agindo a Administração em conformidade com a lei aquando da emissão da liquidação oficiosa, cabia à impugnante o ónus da prova de factos demonstrativos da inexistência de factos tributários resultantes da sua alegada inactividade, caso em que a liquidação do imposto não se poderia manter na ordem jurídica por respeito ao princípio da capacidade contributiva plasmado no artigo 104.° da Constituição da República Portuguesa, interpretado no sentido de que as sociedades apenas devem ser tributadas quando têm rendimento e na exacta medida desse rendimento.
Todavia, tal não sucedeu. Com efeito, o que se diz expressamente na sentença recorrida é que «Não se provou que a impugnante no exercício de 2005 tenha efectuado qualquer venda, nem suportado qualquer custo relacionado com a actividade.».
Destarte, nenhuma prova foi feita pela Impugnante quanto à inactividade e ausência de rendimentos tributáveis no período em análise, sendo certo, ademais, que tais rendimentos poderiam nem resultar directamente do exercício do seu objecto social, quando lhe cabia esse ónus de prova, nos termos do artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil e do artigo 74.º da Lei Geral Tributária.
Ora, como ensinam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, em Código Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, pág. 304, «O significado essencial do ónus da prova não está tanto em saber a quem incumbe fazer a prova do facto como em determinar o sentido em que deve o tribunal decidir no caso de se não fazer prova do facto». A regra do onus probandi no direito português sobressai, assim, quando o Juiz é confrontado com a dúvida insanável sobre os factos e não lhe é permitido abster-se de julgar a causa; aí a causa será julgada em sintonia com as regras substantivas sobre qual das partes incumbe o ónus de tais factos. O non liquet do julgador converte-se contra a parte que tem o ónus de prova, de acordo com o dever de decisão que lhe é imposto pelo artigo 8.º, nº 1, do Código Civil.
Neste conspecto, não tendo a Impugnante provado, como lhe competia, factos denunciadores da ilegitimidade do acto ou ilidido a presunção legal de obtenção do rendimento determinado pelas regras contidas no n.º 4 do artigo 53.º do CIRC, impunha-se ao julgador decidir a causa em sintonia com as aludidas regras do ónus da prova, julgando improcedente o pedido de anulação formulado.
Termos em que se impõe revogar a sentença recorrida e substitui-la por acórdão que julgue improcedente a impugnação judicial, tendo em conta que mais nenhum vício foi assacado ao acto de liquidação impugnado.

4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em revogar a sentença recorrida e julgar improcedente a impugnação judicial, concedendo provimento a este recurso jurisdicional.
Custas pela Recorrida, mas apenas na 1ª Instância por ora não ter alegado.

Lisboa, 5 de Julho de 2012. – Dulce Manuel Neto (relatora) – João Valente Torrão – Lino Ribeiro.