Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0744/16
Data do Acordão:03/08/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA BENEDITA URBANO
Descritores:ARBITRAGEM
TRIBUNAL COMPETENTE
REGIME JURÍDICO DA URBANIZAÇÃO E DA EDIFICAÇÃO
Sumário:I – Não sendo o artigo 118.º do RJUE susceptível de uma interpretação unívoca, deve privilegiar-se aquela interpretação que estiver mais em conformidade com a constituição.
II – Essa interpretação mais em conformidade com a constituição (com a CRP) é a de que o mencionado artigo 118.º do RJUE não consagra uma imposição unilateral de arbitragem a favor dos particulares.
Nº Convencional:JSTA00070592
Nº do Documento:SA1201803080744
Data de Entrada:02/17/2017
Recorrente:A.......SA
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE CASCAIS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC REVISTA EXCEPC
Objecto:AC TCAS DE 2016/01/28
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR ADM CONT
Legislação Nacional:RJUE ART118.
L 31/86 ART12.
CPC13 ART615 N1 C D
CPTA ART180 ART182 ART1082.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – Relatório

1. A………, SA (……….), devidamente identificada nos autos, recorre para este Supremo Tribunal do Acórdão do TCAS, de 28.01.16, que decidiu “julgar procedente a presente acção, anulando-se o acórdão da Comissão Arbitral datado de 2010”.

Na origem do recurso interposto para o TCAS esteve, então, uma decisão da Comissão Arbitral, de 12.02.10, tendo a decisão do TCAS, no sentido da anulação da dita decisão, assentado no pressuposto de que a mesma tinha sido proferida por tribunal incompetente, em virtude da inexistência de prévia convenção que permitisse o recurso à comissão arbitral prevista no n.º 1 do artigo 118.º do DL n.º 555/99, de 16.12 (Regime Jurídico da Urbanização e Edificação - RJUE).

Relativamente ao acórdão do TCAS, a recorrente invocou a nulidade do acórdão com os seguintes fundamentos: omissão de pronúncia e contradição entre os fundamentos e a decisão. Além disso, imputa ao acórdão rcorrido erro de julgamento por violação de lei substantiva.

Por acórdão de sustentação, de 21.04.16, veio o TCAS “julgar não verificadas as nulidades invocadas pela recorrente, determinando a remessa dos autos ao S.T.A., fixando ao recurso efeito suspensivo com subida imediata, nos próprios autos” (cfr. fls. 260).

Após algumas vicissitudes relacionadas com o pedido inicial da recorrente, formulado sob a forma de recurso de apelação (apenas a título subsidiário se sugerindo a sua admissão como revista), e após a intervenção, em duas ocasiões, deste Supremo Tribunal, chega o caso dos autos a este tribunal por via do recurso de revista consagrado no artigo 150.º do CPTA.

2. A recorrente apresentou alegações, concluindo do seguinte modo (fls. 234v. a 236v.):

“1º O recurso destes autos é admissível, ao abrigo do art.º 629 nº1 do CPC (anterior art.° 678) uma vez que comissão arbitral em 14-07-2009, deliberou adoptar as regras para o processo, e subsidiariamente o CPC.(Ex vi art.º 118 n.º 4 do DL 555/99, por remissão à LAV, art.º 15º n.º 3 Lei 31/86)

2º E o art.º 118 n.º 1 do DL 555/99, refere-se a uma comissão arbitral e não um tribunal arbitral, (art.4º n.º 3 do C.C.) logo o acórdão recorrido é uma pronuncia judicial em primeira instância, e por isso recorrível

3º A acção destes autos, anulou a decisão interlocutória e a consequente decisão de mérito da comissão arbitral, findou o processo, sem apreciar do mérito da acção, logo "ex vi" art.º 142 n.º3 d) e por via do art.º 7º do CPTA, este recurso é admissível.

4º E subsidiariamente o recurso de revisão para o STA, é admissível "ex vi" art.º 150 n.º 1 e 2 do CPTA, está em causa questão de elevada relevância jurídica, dado o amplo campo de aplicação do art.º118 n.º 1 do DL 555/99 (dirimir divergências na interpretação de regulamentos municipais no âmbito do urbanismo),

5º Logo a admissão do recurso é necessária para a melhor aplicação do direito, tendo em conta a posição (errada) do acórdão recorrido, a inexistência de qualquer outra jurisprudência sobre essa norma, e o facto do acórdão tomar uma posição contrária à única doutrina conhecida, que se pronunciou de forma oposta à decisão Recorrida, sendo fundamental a tomada de posição do STA, admitindo o presente recurso, como forma de criar uma orientação para casos futuros, nos Tribunais inferiores.

6º Esse recurso justifica-se quando questões relevantes sejam tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória, de tal modo que seja manifesto que a intervenção do STA é reclamada para dissipar dúvidas sobre o quadro legal que regula certa situação.(nesse sentido ver Ac. STA de 4/4/2013, Proc 376/13, e Ac STA de 26-09-2013 Proc. 01370/13, ambos em www.dgsi.pt)

7º O acórdão, é nulo por omissão de pronúncia, pois que a recorrente invocou que a sentença do presidente do TCA Sul, que nomeou um representante ao Município de Cascais, a requerimento da recorrente, depois de fazer um juízo de mérito sobre a mesma pretensão, acolhendo implicitamente a tese da ré e ora recorrente e não a tese do autor, pois que se o fizesse, por remissão do art.º 118 n.º 4 do D.L. 555/99, teria de cumprir o disposto no art.º 12 n.º 5 da LAV, recusando a nomeação.

8º A inexistência é a forma mais grave de nulidade, pelo que não haveria nunca lugar à nomeação, caso se entendesse ser a convenção manifestamente nula, logo por maioria de razão, se fosse inexistente, jamais poderia ter sido nomeado um representante ao Autor, ora recorrido"

9º Há nulidade do acórdão (violação do art.º 95º n.º 1 do CPTA e art.º 668 nº l b) e d) do CPC -actual 615º n.º 1 b) e d) CPC), pois que neste não se apresentou qualquer fundamentação para a decisão que tomou, na parte em que desatendeu a argumentação da recorrente, anterior.

10º Segundo Alberto dos Reis "Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto."; o que se verifica neste caso, sendo por isso nulo o acórdão recorrido.

11º É também nulo pela contradição entre fundamentos e decisão, art.º 615 n.º 1 c) do CPC, visto que na fundamentação cita, Maria José Castanheira Neves, Fernanda Paula Oliveira e Dulce Lopes, mas cita parcialmente e sem a parte da obra onde estas concluem, em sentido oposto ao acórdão : "Regime Jurídico da Urbanização e Edificação Comentado", 2011, 3a edição, Fernanda Paula Oliveira, Maria José Castanheira Neves, Dulce Lopes, Fernanda Maçãs; Editora Almedina, pág.725 e ss., onde as autoras dizem que A sujeição destas questões a um Tribunal Arbitral não está, a nosso ver, dependente de uma convenção de arbitragem (seja uma cláusula compromissória ou um compromisso arbitral) formada entre as partes, pois entendemos que em causa está um direito potestativo (dos particulares) à constituição e funcionamento da comissão arbitral. De outra forma não se compreenderia a própria formulação do artigo 118º, n.º 1, segundo o qual 'podem os interessados requerer a intervenção de uma comissão arbitral ne não acordar na intervenção desta".

12º Há violação de lei substantiva no acórdão, visto que os artºs 180 e ss do CPTA, são leis especiais, cuja aplicação analógica é proibida, além de ser lei posterior, cujo texto não se refere e nem se aplica ao art.º 118 n.º 1 do DL 555/99, que também é lei especial.

13º Não se entende que essa norma se refira a um tribunal arbitral nos termos da LAV, pois que refere comissão arbitral e não tribunal.(artº 9 n.º 2 do C.C.)

14º E também não se refere a árbitros, mas sim a representantes, um deles técnico especialista na matéria sobre que incide o litígio. (art.º 118 n.º 2 parte final do DL 555/99).

15º O nº 4 do art. 118 do RJUE diz que à constituição e funcionamento das comissões arbitrais se aplica o disposto na lei sobre a arbitragem voluntária.

16º Mas nada diz quanto aos pressupostos da criação ou existência dessas comissões, nem quanto aos seus poderes, nem quanto ao valor das suas deliberações ou quanto ao modo de impugnação das mesmas, ao contrário do art.º l82 do CPTA, que refere que o interessado pode exigir da Adm. a celebração do compromisso arbitral, nos termos da lei.

17º O nº 2 do art. 118 do RJUE diz que a comissão arbitral será constituída, por um representante da câmara municipal e por um representante do interessado, demonstrando que a referência nessa norma a interessados não é relativa também ao município.

18º O interessado é definido nos termos do art.º 52 n.º 1 e ss do CPA, e o art.º l18° refere-se em separado ao representante do interessado e do município, logo para a aplicação da norma existem os interessados e o município.

19º O art. 10 da Lei nº 31/86, de 29 de Agosto, distingue as figuras de árbitro e de representante, pois considera expressa e autonomamente esta última, no seu art. 17: "as partes podem designar quem as represente ou assista em tribunal."

20º A figura de "representante" é distinta do "árbitro" (a parte é representada perante o árbitro), e também não corresponde à do mandatário judicial (v. J. L Lopes dos Reis, 'Representação forense e arbitragem"- Coimbra Editora, 200- págs.119 e segs).

21º Os representantes do nº 2 do art. 118 do RJUE não têm as funções do art.º 17º da LAV), não representam a parte perante o árbitro, sendo eles mesmos que vão deliberar sobre o litígio.

22º O art.º 118º do D.L 555/99 tem uma índole participativa, afastando a aplicação da regime geral da arbitragem voluntária, remetendo para o regime da arbitragem necessária, dos arts. 1525 e ss do CPC(actual art.º l082)

23º Concluindo-se como na decisão anulada, "entendemos não ser necessária qualquer convenção de arbitragem para que, apresentado o requerimento referido no nº 1 do art. 118 do RJUE, deva ser constituída a comissão arbitral."

24° A sujeição destas questões a um Tribunal Arbitral não está, a nosso ver, dependente de uma convenção de arbitragem (seja uma cláusula compromissória ou um compromisso arbitral) formada entre as partes, pois entendemos que em causa está um direito potestativo (dos particulares) à constituição e funcionamento da comissão arbitral. De outra forma não se compreenderia a própria formulação do artigo 118º, nº l, segundo o qual "podem os interessados requerer a intervenção de uma comissão arbitral" e não acordar na intervenção desta." in Regime Jurídico da Urbaniz. e Edif. Comentado, Fernanda Paula Oliveira e outras, obra acima citada.

25º Acrescenta-se para distinguir os regimes do art.º 180 e ss do CPTA, do art.º 118 do D.L. 555/99, que no primeiro regime as situações taxativamente previstas no art.º 180° do CPTA, são : a) contratos, b) responsabilidade civil, c) revogação de actos sem ser por invalidade, os quais nada se confundem com a resolução de conflitos na aplicação de regulamentos municipais no âmbito do urbanismo, da última norma.

26º E o julgador deveria ter feito uma interpretação da lei, modelada pelo princípio pro actione, do art.º 7 do CPTA, de forma a que a decisão pudesse promover a emissão de uma decisão sobre mérito da questão de fundo, atingindo uma tutela jurisdicional efectiva da situação, cumprindo os desideratos dos artºs 20 e 268 n.º 4 da C.R.P., e não uma interpretação da lei que os viole, como foi o caso no acórdão recorrido.

Termos estes em que deverá ser admitido o presente recurso e anulado o acórdão recorrido, mantendo-se a decisão da comissão arbitral”.

3. O recorrido Município de Cascais (MC) apresentou contra-alegações, oferecendo as seguintes conclusões (cfr. fls. 291 a 296):

“A. O recurso da Recorrente deve ser qualificado como recurso de revista, e como tal, a sua admissibilidade deve ser sindicável à luz dos pressupostos para este tipo de recurso, nos termos do artigo 150.º do CPTA.

B. O n.º 4 do artigo 118.º do RJUE tem como alcance a aplicação subsidiária à Comissão Arbitral que foi constituída do disposto na Lei de Arbitragem Voluntária vigente à data da referida constituição.

C. Decorre do n.º 2 do artigo 26.º e do n.º 1 do artigo 29.º da Lei de Arbitragem Voluntária que as decisões proferidas pelos tribunais arbitrais se equiparam, para todos os efeitos, às decisões proferidas pelos tribunais judiciais, aplicando-se as referidas normas à Comissão Arbitral constituída para dirimir o litígio entre a Recorrente e a Recorrida.

D. E a decisão arbitral pode ser objeto de anulação ou de interposição de recurso, atendendo ao disposto nos artigos 27.º e 29.º da Lei de Arbitragem Voluntária, sendo certo que a especificidade a observar no que tange aos tribunais administrativos é a de que o Tribunal Central Administrativo Sul desempenha as funções que caberiam, em sede de tribunais judiciais, ao Tribunal da Relação, nomeadamente em sede de anulação da decisão arbitral, conforme dispõe o artigo 186.º do CPTA.

E. Em todo o caso, seja a ação tendente à anulação da decisão arbitral, seja a interposição de recurso da mesma, consubstanciam formas de impugnação da decisão arbitral, pretendendo a sua remoção da ordem jurídica.

F. Neste enquadramento, a impugnação de decisões arbitrais com vista à sua anulação, constitui uma forma de apreciação da referida decisão em segundo grau de jurisdição, na medida em que as referidas decisões se equiparam a decisões judiciais de primeira instância e a ação de anulação consiste numa forma de impugnação.

G. O recurso de revista da Recorrente não deve ser admitido porquanto não se encontram verificados os pressupostos constantes do artigo 150.º do CPTA.

H. E que, a única razão concreta que a Recorrente oferece para justificar a interposição do recurso de revista em causa é o facto do Acórdão recorrido decidir de forma contrária a uma anotação doutrinária ao artigo 118.º do RJUE, o que não se pode considerar que seja fundamento suficiente para atestar a relevância social ou jurídica da questão.

I. Alega a Recorrente que o Acórdão recorrido incorreu em omissão de pronúncia, porquanto o mesmo não se terá pronunciado sobre a questão relativa à eventual preclusão da apreciação da competência da Comissão Arbitral face à nomeação do representante do Município para a Comissão Arbitral pelo Sr. Presidente do Tribunal Central Administrativo Sul.

J. O vício de omissão de pronúncia apenas se verifica quando o tribunal não se pronuncie em absoluto sobre uma questão de que deveria conhecer e sempre que o referido tribunal falhe totalmente no seu dever de fundamentação de facto e de direito.

K. Ora, não é o que sucede no acaso do Acórdão recorrido já que o referido Acórdão se pronunciou sobre a alegação da Recorrente, escolhendo desatender a argumentação expendida.

L. Por outro lado, haverá que salientar que a alegação quanto à atitude do Sr. Presidente do Tribunal Central Administrativo Sul de nomear um representante do Município de Cascais mais não consubstancia senão um argumento e não uma questão a que o Tribunal a quo estaria obrigado a conhecer ou a pronunciar-se, razão pela qual, também por esta via, não incorreu o Acórdão recorrido em qualquer omissão de pronúncia.

M. Alega a Recorrente que o Acórdão recorrido padece de contradição entre os seus fundamentos e a decisão proferida, na medida em que citou, seletivamente, uma passagem do comentário das Autoras Maria José Castanheira Neves, Fernanda Paula Oliveira e Dulce Lopes ao artigo 118.º do RJUE, sem identificar a obra na qual é feito o referido comentário, que parece sustentar a decisão tomada, quando na verdade as referidas Autoras pugnam por posição diversa daquela que foi propugnada pelo douto Tribunal a quo.

N. Se é certo que o douto Tribunal a quo não identificou claramente a obra donde foi retirada a citação das Autoras em causa, é igualmente verdade que a Recorrente, conhecedora como é da doutrina nesta matéria, tinha forma de descortinar que tal citação era feita da obra das Autoras "Regime Jurídico da Urbanização e Edificação Comentado", da editora Almedina, datada de fevereiro de 2006.

O. Pelo que não procede a nulidade com base na alegada contradição entre os fundamentos e a decisão recorrida.

P. Alega a Recorrente que o Acórdão recorrido errou na aplicação do Direito, ao ter considerado que o artigo 118.º do RJUE não consagra qualquer direito potestativo dos particulares à constituição da comissão arbitral.

Q. Não se verifica o referido erro de julgamento, pelo que bem andou o Acórdão recorrido.

R. O artigo 118.º do RJUE mais não faz do que atribuir uma faculdade de sujeitar o litígio decorrente da aplicabilidade dos regulamentos municipais a quem nisso vir interesse, faculdade essa que está, naturalmente, dependente do acordo das partes interessadas.

S. A questão sobre uma eventual atribuição de um direito potestativo à convenção de arbitragem coloca-se, atualmente, em face do artigo 182.º do CPTA, havendo que atender à versão atualmente em vigor decorrente da revisão protagonizada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro.

T. A norma do artigo 182.º do CPTA carece de eficácia porquanto remete para lei específica sobre a matéria a definição desse direito ao compromisso arbitral, nomeadamente, quanto aos seus pressupostos.

U. A referida lei não existe e nem se perspetiva a sua existência em tempos mais próximos.

V. Ora, na medida em que atualmente a esmagadora maioria da doutrina entende que nenhum direito potestativo se encontra consagrado no artigo 182.º do CPTA, diploma esse de carácter geral no âmbito do contencioso administrativo, não é legítimo, ou sequer crível, pensar que o mesmo legislador, há mais de 10 anos atrás, aquando da aprovação do RJUE, entendeu consagrar tal direito potestativo, em termos que são, no mínimo, ambíguos, para quem pense que tal previsão efetivamente ocorreu no artigo 118.º do RJUE.

W. A interpretação segundo a qual o artigo 118.º do RJUE consagra um direito potestativo do particular ao recurso à comissão arbitral pode ser desconforme ao princípio de tutela jurisdicional efetiva, consagrado no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que restringe o direito de acesso aos tribunais estaduais, mormente aos tribunais administrativos, pela Administração municipal”.

4. Por acórdão deste Supremo Tribunal [na sua formação de apreciação preliminar prevista no n.º 1 do artigo 150.º do CPTA], de 26.01.17 (fls. 368 e 369), veio a ser admitida a revista, na parte que agora mais interessa, nos seguintes termos:

“(…)
2.3. Como se viu, o acórdão sob recurso anulou a decisão arbitral com o fundamento de ter sido «proferida por tribunal incompetente, dada a inexistência de convenção que permitisse o recurso à comissão arbitral prevista no artigo 118 nº 1 do DL 555/99».
Ora, a comissão arbitral, em acórdão de 29.10.2009, julgara «não ser necessária qualquer convenção de arbitragem para que, apresentado o requerimento referido no n.º 1 do art 118 do RJUE, deva ser constituída a comissão arbitral». Por isso, essa mesma comissão proferiu, depois, o acórdão sobre o mérito, de 11.02.2010.
A matéria é de importância fundamental, como logo ressalta das duas decisões contrárias, qualquer delas sustentada em variada argumentação; e, assim, também, as teses opostas de recorrente e recorrido.
E pois que não há corrente jurisprudencial definida, é de todo o interesse a intervenção deste Supremo Tribunal”.

5. O Digno Magistrado do Ministério Público, notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA, não emitiu qualquer pronúncia.

6. Colhidos os vistos legais, vêm os autos à conferência para decidir.

II – Fundamentação

1. De facto:

São os seguintes os factos considerados provados no acórdão recorrido:

“A) A Ré apresentou no dia 2 de Setembro de 2005 perante os serviços da Câmara Municipal de Cascais, um pedido de licenciamento da obra de construção, sita na Rua …………, s/n, no lugar da ……., freguesia do Estoril - facto admitido por acordo.

B) No dia 2 de Fevereiro de 2009, foi aprovado o licenciamento da construção, por despacho do Sr. Vice-Presidente da Câmara Municipal, no uso de competência delegada. - facto admitido por acordo.

C) A Ré discordou do montante das taxas apurado, invocando o cálculo indevido das mesmas. - facto admitido por acordo.

D) Considerou também a Ré não ser exigível, face à operação urbanística em apreço, o pagamento da TRIU. - facto admitido por acordo.

E) A Ré invocou que o montante devido a título de compensação foi calculado em violação do Regulamento de Compensação do Município de Cascais. - facto admitido por acordo.

F) No dia 12 de Maio de 2009, a Ré remeteu ao Autor missiva, invocando o artigo 11º da Lei nº 31/86, de 29 de Agosto, «… aplicável por força do artº 118º nº 4 do D.L. nº 555/99», com o intuito de «notificar da pretensão de recurso a uma comissão arbitral para resolução do litígio decorrente das divergências de interpretação dos regulamentos municipais de compensação, especificamente no facto da Câmara Municipal de Cascais usar um critério objectivo e descrito no regulamento municipal para avaliar o valor a ser pago em numerário, para as compensações, mas não utilizando esse mesmo método para avaliar o que lhe é entregue em espécie, bem como o facto de pretender aplicar a TRIU, ao processo em epígrafe» - cfr. doc. 4 junto com a p.i..

G) Na carta em apreço, a Ré indicava o seu Árbitro, convidando o Autor, «a proceder à designação do V/árbitro» - cfr. doc. supra referido.

H) Não tendo a Ré obtido a resposta pretendida, por parte da Autora, dirigiu aquela, em 15 de Junho de 2009, requerimento ao Senhor Presidente do Tribunal Central Administrativo Sul solicitando a nomeação de Árbitro ao Município de Cascais - cfr. doc. 5 junto com a p.i..

I) No dia 25 de Junho de 2005, o Sr. Presidente do TCAS deferiu o pedido da Ré nomeando o Sr. Juiz Conselheiro Dr. ............ como árbitro do Município de Cascais - cfr. doc. 5 junto com a p.i..

J) No dia 2 de Julho de 2009, os Árbitros nomeados no processo arbitral, dado não terem chegado a acordo quanto à nomeação do Árbitro Presidente, requereram ao Sr. Presidente do TCAS, a nomeação do mesmo. cfr. doc. 7 junto com a p.i..

L) Tendo sido nomeado, por despacho de 6 de Julho de 2009, o Sr. Juiz Conselheiro .............. - cfr. doc. 8 junto com a p.i..

M) No dia 14 de Julho de 2009, a Comissão Arbitral deliberou ser subsidiariamente aplicável ao processo o disposto no Código de Processo Civil, na forma sumária. - cfr. doc. 2 junto com a p.i..

N) Citado o ora A., no âmbito do processo arbitral, contestou este deduzindo, como questão prévia a questão da inexistência de compromisso arbitral. - facto admitido por acordo.

O) A Comissão Arbitral por decisão proferida em 29 de Outubro de 2009, entendeu «… não ser necessária qualquer convenção de arbitragem para que, apresentado o requerimento referido no nº 1 do artº 118º do RJUE, deva ser constituída a comissão arbitral.» - cfr. doc. 3 junto com a p.i..

P) A referida decisão arbitral foi notificada por telecópia datada de 4 de Novembro de 2009 - cfr. doc. 2 junto com a contestação.

Q) No dia 12 de Fevereiro de 2010 foi proferido Acórdão Arbitral, no qual se decidiu que:
i) o método constante do artº 7º do Regulamento Municipal de Compensação, de Cascais, publicado na IIª Série do Diário da República de 22 de Junho de 2004, é aplicável tanto à avaliação do que a requerente, como compensação, preste em espécie, como ao que deva entregar em numerário;
ii) na aplicação da Tabela anexa ao Regulamento supra referido, não é de considerar o salário mínimo nacional de 2005;
iii) considerar que a TRIU tem a natureza de taxa e que deve ser calculada de acordo com a tabela anexa ao Regulamento nº 35/2009 do Município de Cascais, publicado na IIª Série do Diário da República, de 16 de Janeiro de 2009. - cfr. doc. 1 junto com a p.i..

Q) A referida decisão foi notificada em 12 de Fevereiro de 2010. - cfr. doc. 4 junto com a p.i..

R) A p.i. relativa à presente acção foi remetida a este Tribunal, por telecópia, no dia 12 de Março de 2010 - cfr. fls. 3 dos autos”.

2. De direito:

2.1. Cumpre apreciar a questão suscitada pelo ora recorrente – delimitado que está o objecto do respectivo recurso pelas conclusões das correspondentes alegações –, qual seja, resumidamente, a de saber se o n.º 1 do artigo 118.º do RJUE consagra um direito potestativo à arbitragem, dispensando-se, desse modo, a celebração de uma convenção de arbitragem.

Antes, porém, há que apreciar as nulidades assacadas ao acórdão recorrido – por omissão de pronúncia e por contradição entre os fundamentos e a decisão.

2.1.1. Nulidade por omissão de pronúncia

A recorrente sustenta esta nulidade, resumidamente, da seguinte forma:

“2.º Assim na contestação invocou-se que a nomeação efectuada pelo Presidente do Tribunal Central Administrativo Sul, não poderia ter ocorrido, por força do art.º 12.º n.º 4 da Lei 31/86, se este tivesse entendido como o fez o Acórdão recorrido, de que o art.º 118 n.º 1 do DL 555/99, ainda assim obrigava à existência de uma convenção de arbitragem ou cláusula compromissória aceite pelo Município, e não um verdadeiro direito potestativo do particular requerer a intervenção de uma comissão arbitral, sem necessidade de consentimento do município.

3.º E quanto a essa questão o acórdão apenas disse que:
«direito esse que, ao contrário do sustentado pela Ré não foi reconhecido, ainda que implicitamente, pelo Presidente do T.C.A. Sul, quando por despacho datado de 25 de Junho de 2009, nomeou o representante do ora A. na comissão arbitral». (…)

5.º Pelo que nessa parte há uma total omissão de fundamento e portanto nulidade do acórdão nos termos supra referidos”.

No acórdão de sustentação do TCAS, de fls. 259 a 260, rebate-se esta argumentação, invocando, por um lado, que a questão em apreço “foi matéria abordada no último parágrafo do Acórdão recorrido quando se refere «… direito esse que, ao contrário do sustentado pela Ré não foi reconhecido, ainda que implicitamente, pelo Presidente do T.C.A. Sul, quando por despacho datado de 25 de Junho de 2009, nomeou o representante do ora A. na comissão arbitral», como a Recorrente reconhece, não existindo a invocada nulidade por «… total omissão de fundamento …». Por outro lado, invocando que, “mesmo que não constasse do Acórdão recorrido o segmento supra transcrito, por força do qual se afastou a argumentação da Recorrente, sempre não padeceria o mesmo da invocada nulidade dado se estar perante argumento que visaria estribar um juízo de improcedência de acção e não uma questão da qual este Tribunal tivesse de conhecer no Acórdão recorrido”.

Como é sabido, a obrigatoriedade de conhecimento de todas as questões colocadas pelas partes à apreciação do tribunal resulta do disposto no n.º 2 do artigo 608.º do CPC, servindo a sanção de nulidade constante da al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC de cominação ao seu desrespeito. Basicamente, o juiz deve resolver na decisão judicial todas as questões (não resolvidas antes) que as partes tenham suscitado, com excepção daquelas que estejam prejudicadas (e, portanto, se tenham tornado inúteis) pela solução já adoptada quanto a outras. Além disso, uma tal nulidade não se verificará quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre meros argumentos, considerações, razões ou motivos de que as partes se socorram para fundar as suas pretensões. Feita esta brevíssima explanação, deve improceder a arguição da nulidade com este específico fundamento, haja em vista que, como se viu, o acórdão recorrido abordou e tratou a questão que a recorrente entende não ter merecido a sua atenção. Distinta questão é a de a recorrente não concordar com o sentido da decisão, mas esta discordância não cabe na figura da nulidade por omissão de pronúncia.

2.1.2. Nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão

A recorrente sustenta esta nulidade, resumidamente, da seguinte forma:

“6º Quanto ao segundo fundamento, a nulidade por oposição entre os fundamentos e a sentença, prevista no actual art.º 615 n.º 1 c) do CPC, como já se indicou, o acórdão recorrido na sua fundamentação cita, sem indicação de obra, as professoras Maria José Castanheira Neves, Fernanda Paula Oliveira e Dulce Lopes, mas cita parcialmente e sem a parte da obra onde estas concluem, exactamente em sentido oposto ao acórdão, obra essa que agora se passa a citar correctamente e de forma completa. (…)

7º Ora assim a obra e autoras citadas, concluem exactamente no sentido oposto ao Acórdão recorrido, havendo assim contradição entre o fundamento citado e a conclusão, causador da nulidade do acórdão recorrido”.

Uma vez mais, no acórdão de sustentação do TCAS, de fls. 259 a 260, rebate-se esta outra argumentação, defendendo que, “se é certo que, no Acórdão em apreço, por mero lapso, não se referiu qual a obra das Autoras Maria José Castanheira Neves, Fernanda Paula Oliveira e Dulce Lopes que parcialmente foi transcrita na pág. 7 o certo é que foi efectuada, correctamente, transcrição do “Regime Jurídico da Urbanização e Edificação”, págs. 496/497, edição de Fevereiro de 2006, não se verificando a arguida nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão”.

A nulidade da decisão por infracção do disposto na al. c) do n.º 1 do artº 615.º do CPC só ocorre, por um lado, quando se verifique ambiguidade ou obscuridade que a tornem ininteligível, o que não sucede quando a decisão, lida à luz dos respectivos fundamentos, é perfeitamente compreensível; ou, por outro lado, quando os fundamentos invocados na decisão deveriam conduzir, num processo lógico, a uma solução distinta daquela que foi adoptada. A recorrente invoca que houve contradição entre os fundamentos da decisão e a própria decisão na medida em que o acórdão recorrido decide de forma distinta daquela que a recorrente diz ser a opinião das já citadas autoras, opinião expressa em trecho que terá sido omitido na decisão recorrida. Vale isto por dizer que a alegada contradição não é entre a decisão e os respectivos fundamentos, mas entre a decisão e a tal opinião das autoras que dela não consta. Ora, qualquer que pudesse ser a censura a aplicar a tal alegado truncamento, a verdade é que não se pode dizer, com base nos argumentos apresentados pela recorrente, que estejamos perante uma das situações previstas no artigo 615.º, n.º 1, al. c). Assim sendo, pode afirmar-se com segurança que o acórdão recorrido não padece desta nulidade que a ora recorrente vem igualmente arguir.

2.2. Além das nulidades que assacou ao acórdão recorrido, a recorrente alega ainda haver erro de julgamento por má interpretação e aplicação do artigo 118.º do RJUE. Não só o acórdão recorrido não foi capaz de abarcar a figura contida no artigo 118.º, n.º 1, designadamente por aí não vislumbrar a consagração de um direito potestativo à arbitragem, como remeteu para os artigos 180.º e ss. do CPTA, propondo uma aplicação analógica dos mesmos, o que a recorrente entende não ser possível em virtude da natureza excepcional, quer do CPTA, quer do RJUE.


2.2.1. Relativamente à primeira questão, a recorrente entende que há vários indícios no texto do artigo 118.º do RJUE que apontam para a especificidade da figura aí recortada, especificidade essa que justifica a desnecessidade de prover a uma convenção de arbitragem a celebrar entre a recorrente e o recorrido MC.
Assim, e a favor da ideia de que se trata de uma figura de contornos próprios, não assimilável à arbitragem prevista e regulada, em parte, nos artigos 180.º e ss. do CPTA, a recorrente chama a atenção para a circunstância de apenas o interessado-particular dela poder lançar mão; para a circunstância de o artigo 118.º do RJUE utilizar a fórmula “requerer” e não “acordar” – o que sugere que o particular é detentor de um verdadeiro direito potestativo; para a circunstância de no artigo 118.º do RJUE se mencionar a cooptação de um “técnico” e não de um “árbitro”; para a circunstância de se aludir, no preceito em apreço, a “representantes” do interessado e do município; e, por, fim, para a circunstância de se mencionar no preceito em causa uma “comissão arbitral” e não um “tribunal arbitral”.
Passemos à análise desta argumentação.

O n.º 1 do artigo 118.º do RJUE consagra uma hipótese de recurso à arbitragem no âmbito das relações entre a administração pública (in casu, uma autarquia local, pessoa colectiva de direito público) e os particulares, mais concretamente, uma situação de arbitrabilidade no âmbito da actividade administrativa unilateral, e, ainda mais concretamente, no domínio da interpretação de regulamentos. A arbitragem no âmbito das relações entre Administração e particulares é hoje permitida pela LAV (cfr. art. 1.º, n.º 5) e prevista, e em parte regulada, pelo CPTA (arts. 180.º e ss.). Diga-se, desde já, que a redacção do artigo 118.º do RJUE suscita algumas dúvidas quanto ao seu exacto alcance. Atentemos no seu teor:


Artigo 118.º
Conflitos decorrentes da aplicação dos regulamentos municipais

“1 - Para a resolução de conflitos na aplicação dos regulamentos municipais previstos no artigo 3.º podem os interessados requerer a intervenção de uma comissão arbitral.
2 - Sem prejuízo do disposto no n.º 5, a comissão arbitral é constituída por um representante da câmara municipal, um representante do interessado e um técnico designado por cooptação, especialista na matéria sobre que incide o litígio, o qual preside.
3 - Na falta de acordo, o técnico é designado pelo presidente do tribunal administrativo de círculo competente na circunscrição administrativa do município.
4 - À constituição e funcionamento das comissões arbitrais aplica-se o disposto na lei sobre a arbitragem voluntária.
5 - As associações públicas de natureza profissional e as associações empresariais do sector da construção civil podem promover a criação de centros de arbitragem institucionalizada para a realização de arbitragens no âmbito das matérias previstas neste artigo, nos termos da lei”.

Cumpre dizer, em primeiro lugar, que da leitura dos dois primeiros parágrafos deste preceito não resulta muito claro quem pode, afinal, requerer a arbitragem. Se o n.º 1 fala em interessados no plural, podendo entender-se que tanto podia ser o particular como a autarquia a requerê-la, o n.º 2, ao referir-se, a propósito da constituição da comissão arbitral, a um “representante da câmara municipal, [e a ] um representante do interessado”, pode levar a crer que, afinal, os interessados são apenas os particulares (o que, segundo a recorrente, iria ao encontro do disposto no n.º 1 do artigo 52.º, n.º 1, do CPA velho [Intervenção no procedimento administrativo], que, situado no Capítulo II – “Dos interessados”, dispõe que “Todos os particulares têm o direito de intervir pessoalmente no procedimento administrativo ou de nele se fazer representar ou assistir”). Ainda que não seja totalmente de excluir – dada a ambiguidade do texto – que, nos termos do artigo 118.º do RJUE, apenas o particular pode requerer a arbitragem, e não também a autarquia (o que poderá ser visto como um resquício de uma tese antiga, que nem todos acompanham, segundo a qual os entes do Estado não podem recorrer à arbitragem, mormente quando estiver em causa uma sua actuação nas vestes de autoridade pública ou, em todo o caso, em virtude do problema da disponibilidade das situações jurídicas subjectivas relacionadas com a tutela do interesse público – como se viu, a LAV já resolve esta questão), esta conclusão, por isso só, não implicaria que fosse dispensável uma convenção de arbitragem.

Diga-se, em segundo lugar, que a conclusão a que acima se chegou não é posta em causa pelo facto de no artigo 118.º se utilizar o verbo “requerer” e não o verbo “acordar”. Com efeito, estamos em crer, a propósito da utilização do verbo “requerer” no artigo 118.º do RJUE, que não é totalmente desrazoável admitir que isso tenha que ver com a circunstância de não estar previsto, mediante acordo prévio materializado em cláusual arbitral, o recurso à arbitragem. O artigo 118.º, como se pode constatar, reporta-se a um recurso à arbitragem contemporâneo da ocorrência de um litígio que urge dirimir. Verdadeiramente, se nos formos ater apenas à semântica, sempre poderíamos chamar a atenção para a circunstância de que o artigo 182.º do CPTA, já atrás mencionado, utiliza um verbo bem mais forte do que “requerer” – “exigir” – e nem por isso a doutrina tende a entender que ele prevê um direito potestativo à arbitragem. E isto transporta-nos para aquela outra questão de saber se, como sustenta a recorrente, o artigo 118.º consagra um direito potestativo à arbitragem (a atribuir aos particulares ou aos particulares e à Administração), à semelhança do que, ainda segundo a recorrente, sucede com o artigo 182.º do CPTA. No que respeita a este último preceito, nem toda a doutrina nacional considera que o artigo 182.º do CPTA consagra um direito potestativo do particular, tese que não cabe aqui discutir, mas que se antecipa ser consentânea com a utilização, no preceito em apreço, da expressão “compromisso arbitral”, que é um tipo de convenção arbitral.

Relativamente à menção a um “técnico” e não a um “árbitro”, não nos parece ser de extrair consequências, em termos dogmáticos, quanto à figura consagrada no artigo 118.º do RJUE. É que, a querer retirar todas as consequências desta menção, sempre se poderia dizer que o referido preceito nem sequer consagraria uma situação de arbitragem. A figura do “técnico” enquanto especialista ou perito não se confunde com a do árbitro e nem sequer com a do mediador. Com efeito, o especialista ou perito, tal como o árbitro e o mediador, é uma terceira pessoa neutra, mas ele apenas ajuda a esclarecer o debate entre as partes em litígio, não sugerindo qualquer solução (como faz o mediador) e, muito menos podendo impor alguma solução concreta (como faz o árbitro). Além disso, a intervenção de técnicos, enquanto meros especialistas ou peritos, em regra dá-se com vista ao pronunciamento sobre questões técnicas e não para dirimir litígios de natureza jurídica. Ora, parece-nos inquestionável que o artigo 118.º do RJUE prevê uma situação de arbitragem.

Quanto à utilização da expressão “representante”, também ela nos parece inócua em termos de delimitação de uma particular figura jurídica. Como se percebe da leitura do artigo 118.º do RJUE, não há nada neste preceito que indique que os “representantes” não vão actuar como árbitros, ou, visto de uma outra perspectiva, que eles vão actuar como simples representantes (processuais) das partes do litígio. A designação de um técnico (um terceiro) que também integrará a comissão arbitral e a remissão, no n.º 4 deste dispositivo, para a LAV no que toca à constituição e ao funcionamento das comissões arbitrais reforça esta ideia. Acresce a isto que esta interpretação se mostra consentânea com o instituto da arbitragem, em que, ao contrário, por exemplo, da mediação, o litígio é resolvido por terceiros e não por aqueles envolvidos directamente no litígio (ou pelos respectivos representantes stricto sensu).

Por fim, a referência a uma “comissão arbitral” e não a um “tribunal arbitral” não nos parece ser também ela de molde a fundar a ideia de que estamos, no artigo 118.º do RJUE, em face de uma figura sui generis de arbitragem que, como defende a recorrente, não se compadece com a LAV e antes se aproxima do regime de arbitragem necessária do CPC – ainda de acordo com a recorrente. De facto, nada há no texto que indicie que não se trate de mera questão de nomenclatura, podendo a “comissão arbitral” ser vista tão simplesmente como uma instância com competência arbitral, à semelhança dos tribunais arbitrais.

Em síntese, os termos que são utilizados no artigo 118.º do RJUE e que, no entender da recorrente, indiciariam a consagração neste dispositivo de um tipo de arbitragem sui generis que prescindia de convenção de arbitragem, parecem-nos, na realidade, e, como se viu, inócuos em termos dogmáticos.

Reportando-nos novamente à tese do recorrente – tese segundo a qual o artigo 118.º do RJUE consagra um direito potestativo à arbitragem, daí não sendo necessário o consentimento da autoridade pública –, diríamos que, justamente em termos dogmáticos, a referida tese não parece ser a mais coerente com a figura da arbitragem (na medida em que nega a sua base consensual) e, nesse sentido, não será a mais correcta. Com efeito, do que a recorrente nos fala é de um tertium genus, de uma arbitragem que não é obrigatória (porque não imposta por lei) nem totalmente voluntária (porque não depende de convenção de arbitragem, ficando uma das partes a ela obrigada). A sua realização dependeria tão-somente do exercício de um direito potestativo por parte do particular, redundando numa imposição unilateral de arbitragem – tese, como já indicado, com escassa sustentação teórico-jurídica. Mas, ainda que se possa admitir que o legislador, no uso de uma certa margem de liberdade de que dispõe, tenha criado o tal tertium genus (in casu, uma imposição unilateral de arbitragem), abrindo desta maneira uma excepção ao fundamento voluntário da arbitragem, ainda assim, certamente que não recorreria a um texto tão ambíguo para o fazer. Com efeito, uma solução jurídica como a que propõe a recorrente, que pressupõe uma figura que foge aos moldes clássicos ou típicos da arbitragem (vista como uma manifestação de jurisdição voluntária), que põe em causa a igualdade entre os sujeitos de uma relação jurídica – estabelecendo um privilégio de jurisdição para os particulares – sem que se vislumbre uma qualquer justificação razoável que a legitime (o consentimento é o fundamento da arbitragem clássica ou tradicional; a arbitragem obrigatória e a forçada têm que encontrar elas próprias outras fontes de fundamentação), uma solução destas, como dizíamos, nunca poderia ser consagrada de forma tão nebulosa, sob pena de inconstitucionalidade por violação do princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança que impõe que as leis sejam claras e densas (precisão e determinabilidade das leis), exigência particularmente premente quando estão em causa direitos e princípios fundamentais (como vimos, umas das partes é privada da possibilidade de escolher entre a arbitragem e a justiça estadual). A intervenção do legislador no domínio da justiça privada, sobretudo na medida em que ponha em causa a regra da voluntariedade da sujeição à arbitragem, tem, pois, que ser evidente e clara. Assim sendo, pretender extrair a solução da imposição unilateral de arbitragem (arbitragem ‘forçada’) de um enunciado linguístico que também consente uma interpretação que conduz a uma solução mais em conformidade com a figura da arbitragem e com os valores constitucionais é uma tentativa que, obviamente, está votada ao fracasso, sobretudo à luz do princípio da interpretação em conformidade com a constituição. Relembre-se que mesmo em relação ao artigo 182.º do CPTA é muito duvidoso que ele consagre um direito potestativo à arbitragem.

2.2.2. No que concerne ainda ao alegado erro de julgamento, invoca a recorrente que o acórdão recorrido fez uma errada aplicação analógica dos artigos 180.º e ss. do CPTA, pois estão em causa normas especiais, logo não é possível a sua aplicação analógica. Mesmo deixando de parte a discussão sobre a alegada natureza especial das normas em questão, esta argumentação da recorrente debate-se com uma série de objecções. Desde logo, o próprio artigo 118.º remete para a legislação relativa à arbitragem voluntária. Por sua vez, se é certo que o CPTA faz menção a certo tipo de relações ou situações em que a arbitragem é possível no âmbito do direito administrativo, dessa lista não constando a situação descrita nos autos, também é certo que o artigo 180.º do CPTA alude a outras situações especialmente previstas na lei. Cabe ainda notar que a recorrente não se coíbe, ela própria, de chamar à colação, para fundar a solução que preconiza, o artigo 182.º do CPTA. Por último, e porventura o mais importante, o acórdão recorrido no fundo o que faz é ter em atenção a remissão que o próprio artigo 118.º do RJUE faz para a lei de arbitragem voluntária. Remissão que existe, ao contrário da remissão para o regime da arbitragem necessária do CPC que a recorrente entende decorrer do artigo 118.º do RJUE (“O art.º 118º do D.L 555/99 tem uma índole participativa, afastando a aplicação da regime geral da arbitragem voluntária, remetendo para o regime da arbitragem necessária, dos arts. 1525 e ss do CPC (actual art.º 1082)” – conclusão 22.ª das alegações de recurso).

2.3. Em face de todo o exposto, pode concluir-se que improcede o invocado erro de julgamento de direito relativo à má ou errada aplicação do disposto no artigo 118.º por parte do acórdão recorrido, o qual não merece censura.


III – Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em negar provimento ao recurso e em confirmar a decisão recorrida.

Custas a cargo da recorrente.


Lisboa, 08 de Março de 2018. – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano (relatora) – Alberto Acácio de Sá Costa Reis – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.