Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01528/08.0BELRS
Data do Acordão:10/30/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:CADUCIDADE DO DIREITO À LIQUIDAÇÃO
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO FISCAL
Sumário:A falta de notificação da liquidação dentro do prazo da caducidade do direito à liquidação constitui, por força da lei (art. 45.º, n.º 1, da LGT), ilegalidade invalidante do acto de liquidação, susceptível de constituir não só fundamento de impugnação judicial (cf. art. 99.º do CPPT), mas também fundamento de oposição à execução fiscal, por expressa previsão legal na alínea e) do n.º 1 do art. 204.º do CPPT.
Nº Convencional:JSTA000P25095
Nº do Documento:SA22019103001528/08
Data de Entrada:07/12/2019
Recorrente:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A......
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de impugnação judicial com o n.º 1528/08.0BELRS

1. RELATÓRIO
1.1 A Fazenda Pública recorreu para o Tribunal Central Administrativo Sul da sentença por que o Tribunal Tributário de Lisboa, julgando procedente a impugnação judicial deduzida pelo acima identificado Recorrido, na qualidade de responsável subsidiário, anulou a liquidação oficiosa de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) do ano de 2000 com fundamento em caducidade do direito à liquidação.
1.2 O recurso foi admitido, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e a Recorrente apresentou as alegações de recurso, que resumiu em conclusões do seguinte teor:
«I- Visa o presente recurso reagir contra a douta decisão que julgou procedente a impugnação judicial, intentada por A………., já devidamente identificado nos autos e que, em consequência, ordenou a anulação da liquidação oficiosa de IRC do exercício de 2000 cuja destinatária era sociedade relativamente à qual o Recorrido foi constituído em responsável subsidiário por via de reversão efectivada em sede de processo de execução fiscal. Entende a Fazenda Pública que a douta sentença, na subsunção dos factos dados como provados ao direito, promoveu uma errónea aplicação do direito a estes mesmos factos.
II- A Fazenda Pública não se conforma com a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa porquanto a mesma não encerra um correcto entendimento do instituto da caducidade do direito de liquidação dos tributos, indo contra diversa jurisprudência dos tribunais superiores que versaram a questão decidenda.
III- Na diferenciação entre os institutos da caducidade e da prescrição, a doutrina indica que aquela tem por objecto direitos potestativos, poderes ou faculdades de constituir ou anular uma situação jurídica subjectiva, ao passo que a prescrição visa já direitos adquiridos. A caducidade espelha o seu sentido no facto objectivo da falta de exercício do direito no prazo pré-estabelecido. Quando o legislador determina a caducidade, tem por motivação razões objectivas de segurança jurídica, sem atender à negligência ou inércia do titular do direito, considerando somente a necessidade de definir com brevidade a situação jurídica. A Administração Tributária, quando liquida um tributo dentro do prazo de caducidade, fá-lo no exercício de um poder-dever que lhe vem atribuído pela lei tributária, definindo assim os contornos do direito que vai exigir ao contribuinte e, consequentemente, definindo a situação jurídica deste. O direito ao imposto passa a existir, dependendo, todavia, a sua exigibilidade da notificação do mesmo ao contribuinte nos termos do disposto nos arts. 38.º e 39.º do CPPT.
IV- Com efeito, comungando o acto tributário dos caracteres do acto administrativo, resulta desta afinidade que a sua validade e eficácia são conceitos que não se confundem. A validade de um acto não importa a sua eficácia, nem a sua eficácia importa a sua validade. No procedimento tributário, a eficácia do acto tributário depende da notificação, como se extrai do n.º 6 do art. 77.º da Lei Geral Tributária (LGT). E esta diferenciação entre validade e eficácia do acto tributário de liquidação assume especial relevância na compreensão dos meios processuais ao alcance do contribuinte para defender os seus direitos perante a Administração Tributária.
V- Com efeito, consagra o artigo 97.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária (LGT), como corolário do princípio da plenitude dos meios processuais, que “a todo o direito de impugnar corresponde o meio processual mais adequado de o fazer valer em juízo”. A legalidade do acto tributário de liquidação só se afigura sindicável em sede de oposição à execução fiscal, quando “ a lei não assegure meio judicial de impugnação ou recurso contra o acto de liquidação”, como dispõe a al. h) do n.º 1 do art. 204.º do CPPT. De outro modo, a sindicância da validade do acto está sujeito ao meio processual de impugnação previsto no artigo 99.º e seguintes do CPPT, na medida em que daqui resulta que “Constitui fundamento de impugnação qualquer ilegalidade”.
VI- A sentença ora em causa vem conhecer, em sede de impugnação judicial, de um vício que está previsto somente como fundamento de oposição à execução fiscal. A falta de notificação do tributo no prazo de caducidade contendendo com a eficácia do acto tributário e a sua exigibilidade em sede de execução fiscal é matéria vedada ao conhecimento do Tribunal em sede de impugnação judicial, tal como resulta da al. e) do n.º 1 do art. 204.º do CPPT, a contrario.
VII- O julgador, em sede de impugnação judicial, ao aferir da caducidade do direito à liquidação, deve ter presente que a notificação visa apenas garantir que o acto foi praticado dentro do prazo para o exercício desse direito, pois a validade deste está dependente do prazo legalmente fixado. Constatando que o acto foi praticado fora deste prazo, o acto mostrar-se-á ilegal e sujeito a controlo judicial nesta sede. No que se refere à notificação deste acto, acto este emitido dentro do prazo de caducidade, ocorrendo a mesma já fora deste prazo ou sendo esta omitida de todo, estará em causa a exigibilidade do tributo com implicações já em sede de execução fiscal, constituindo fundamento de oposição a esta.
VIII- Mal esteve o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, na medida em que considerou que a falta de notificação da liquidação do tributo dentro do prazo de caducidade importa a apreciação da legalidade do acto tributário podendo ser assim conhecido em sede de impugnação judicial. A sentença em questão ostenta assim uma interpretação errada dos preceitos legais pertinentes, designadamente dos artigos 99.º e 204.º do CPPT, incorrendo em erro de julgamento, motivo pelo qual deve ser revogada, e daqui resultar a improcedência da impugnação apresentada com a consequente manutenção da liquidação de IRC sub judice na ordem jurídica».
1.3 O Impugnante apresentou contra-alegações, com conclusões do seguinte teor:
«A) O presente recurso tem como fundamento exclusivamente matéria de direito, conforme resulta das alegações da Autoridade Tributária, pelo que o recurso deveria ter sido interposto para a Secção de Contencioso do Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do n.º 1 do artigo 280.º do CPPT e da alínea b) do artigo 26.º do ETAF;
B) Nestes termos, vem desde já arguir-se a incompetência do Tribunal ad quem, devendo a Autoridade Tributária requerer a remessa do processo ao tribunal competente, no prazo previsto no n.º 2 do artigo 18.º do CPPT, sob pena de o processo ser considerado findo;
C) O presente recurso tem como objecto a decisão do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a impugnação judicial intentada pelo ora Recorrido e, em consequência, ordenou a anulação da liquidação oficiosa de IRC do exercício de 2000 e dos respectivos juros compensatórios.
D) A douta sentença de que a Recorrente recorre apresenta-se como justa e inequívoca, atendendo aos princípios processuais que devem ser observados;
E) A matéria dada como assente corresponde à integralidade da prova que o Recorrido se propôs fazer e não pode deixar de determinar a procedência da presente acção;
F) As questões controvertidas, nos presentes autos, traduzem-se, essencialmente, em saber (i) se a caducidade do direito à liquidação configura um fundamento que pode ser empregue em sede de impugnação judicial e (ii) se estamos perante a caducidade do direito à liquidação por parte da Autoridade Tributária;
G) Quanto à primeira questão, note-se que a caducidade do direito à liquidação é susceptível de ser invocada enquanto fundamento de impugnação judicial, independentemente de ter sido invocada em sede da reclamação graciosa que precedeu o processo de impugnação.
H) O entendimento do Recorrido quanto a este ponto é corroborado por inúmera jurisprudência, nomeadamente pelo Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte proferido no processo n.º 00369/04.5BEPRT e pelos Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo proferidos nos processos n.ºs 595/09, 0156/11 e 01942/11.
I) A isto acresce que a susceptibilidade de a caducidade do direito à liquidação ser invocada como fundamento de impugnação judicial, nos termos do artigo 99.º do CPPT, não é prejudicada pela circunstância de configurar igualmente fundamento de oposição à execução fiscal, nos termos do artigo 204.º do CPPT.
J) Isto mesmo resulta de recente jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, em concreto do Acórdão proferido no processo n.º 0660/15.
K) Relativamente à segunda questão em análise no presente recurso, ou seja, a de saber se estamos perante a caducidade do direito à liquidação por parte da Autoridade Tributária, cumpre esclarecer que o prazo de caducidade continua a correr enquanto não ocorrer a notificação válida do acto que o interrompa.
L) Nesta conformidade, entende o Recorrido que quer o exercício do direito à liquidação, quer a notificação do seu conteúdo ao sujeito passivo originário têm de ocorrer dentro do prazo de quatro anos contados do facto tributário, sob pena de operar a caducidade do direito à liquidação.
M) A confirmar esta posição do Recorrido encontra-se vária jurisprudência, de que são exemplo o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no processo n.º 0660/15 e o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido no processo n.º 940/12.4BELRS.
N) No caso sub judice, não tendo a liquidação de IRC do exercício de 2000 sido notificada ao sujeito passivo originário do tributo no prazo de 4 anos contados a partir do termo do ano que se verificou o facto tributário, ou seja, até 31 de Dezembro de 2004, verificou-se a caducidade do direito à liquidação, nos termos do n.º 1 e do n.º 4 do artigo 45.º da LGT.
O) Este entendimento do Recorrido é suportado por inúmera jurisprudência, designadamente pelos Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo proferidos nos processos n.ºs 0381/05, 0660/15 e 0173/17 e pelo Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul proferido no processo n.º 940/12.4BELRS.
P) Face a todo o enquadramento exposto, salvo o devido respeito, não colhe a argumentação expendida pela Recorrente, devendo, como tal, negar-se provimento ao presente recurso e manter-se a decisão do Tribunal a quo».
1.4 O Tribunal Central Administrativo Sul declarou-se incompetente em razão da hierarquia para conhecer do recurso, declarando que essa competência era do Supremo Tribunal Administrativo, ao qual os autos foram remetidos a requerimento da Recorrente.
1.5 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que seja negado provimento ao recurso, com a seguinte fundamentação: «[…]
O direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for notificada ao contribuinte no prazo de 4 anos, quando a lei não fixar outro, nos termos do estatuído no artigo 45.º/1 da LGT.
O citado normativo considera, assim, a falta de notificação da liquidação uma preterição de formalidade integrada no complexo procedimento administrativo da liquidação que afecta a própria validade do acto e não, apenas, a sua eficácia (acórdão do STA, de 04/10/2017-recurso n.º 0660/15, disponível em www.dgsi.pt).
Portanto, a falta de notificação da liquidação da liquidação do tributo dentro do prazo de caducidade constitui, assim, também, fundamento de impugnação judicial, nos termos do disposto no artigo 99.º do CPPT.
Isto sem prejuízo de a falta de notificação da liquidação dentro do prazo de caducidade ou a inexistência de notificação da liquidação constituir, também, fundamento de oposição judicial, por inexigibilidade da dívida exequenda, nos termos do estatuído no artigo 204.º/1/e) / i) do CPPT.
Ora, resulta do probatório que não resulta provado que a devedora originária tivesse sido notificada da liquidação sindicada, nomeadamente até 31/12/2004.
Mostra-se, assim, caducado o direito de liquidar o tributo.
A nosso ver, a sentença não merece censura».
1.6 Colhidos os vistos dos Conselheiros adjuntos, cumpre apreciar e decidir.
* * *
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 DE FACTO
A sentença recorrida efectuou o julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:
«Factos provados
De acordo com os elementos existentes nos autos, apurou-se a seguinte matéria de facto:
1) O impugnante foi gerente da sociedade “B………., Lda.”, desde a data da sua constituição e até à sua dissolução (cfr. certidão no processo instrutor);
2) Em 06/10/2009, a sociedade “B…………., Lda.” foi dissolvida, por escritura outorgada em Cartório Notarial de Lisboa (cfr. Doc. n.º 3 da p.i.);
3) Em 12/10/1999 a sociedade “B………., Lda.” declarou a cessação da actividade para efeitos de IVA e em 30/11/2005 para efeitos de IRC (cfr. Docs. n.ºs 4 e 5 da p.i. e informação de fls. 43 do procedimento de reclamação graciosa);
4) A sociedade “B………., Lda.” não procedeu à entrega da declaração periódica de rendimentos, modelo 22, de IRC, referente ao exercício do ano de 2000 (cfr. processos apensos);
5) Em 20/09/2004 a Administração Tributária emitiu a liquidação oficiosa n.º 2004 8310013386 relativa a IRC, do ano de 2000, no montante de € 40.679,55, com data limite de pagamento em 27/10/2004, efectuada nos termos da alínea b), do n.º 1 do artigo 71.º do CIRC, por falta de entrega da declaração de rendimentos, e a liquidação juros compensatórios n.º 2004 1914030, no valor de € 1.427,68, no montante total de € 42.107,23 (cfr. do procedimento de reclamação graciosa);
6) Para cobrança coerciva do montante total referido no ponto 4 foi instaurada contra a sociedade devedora execução fiscal (cfr. processo instrutor apenso);
7) O processo de execução fiscal a que se refere o ponto anterior foi revertido contra o aqui impugnante por despacho de 28/12/2005 do Chefe do Serviço de Finanças de Sintra-3, tendo aquele sido citado para os termos da execução em 24/01/2006 (cfr. procedimento de reclamação graciosa apenso);
8) O impugnante deduziu em 24/04/2006 reclamação graciosa contra a liquidação de IRC a que alude o ponto 5, com fundamente, para além do mais, que só no ano de 2005 tomou conhecimento da liquidação oficiosa, a qual foi indeferida por despacho do Director de Finanças Adjunto de 02/98/2008 (cfr. procedimento de reclamação graciosa);
9) Em 04/09/2008 o Impugnante foi notificado da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, através do ofício n.º 066741 de 03/04/2008 (cfr. procedimento de reclamação graciosa);
10) Em 19/09/2008 foi apresentada a presente impugnação (carimbo aposto no rosto da p.i.)
Factos não provados
Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa, designadamente que a sociedade “B………., Lda.” tenha sido notificada pela Administração Tributária da liquidação oficiosa de IRC e respectivos juros compensatórios».
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2.2 DE DIREITO
2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR
O ora Recorrido apresentou impugnação judicial na sequência do indeferimento expresso da reclamação graciosa que apresentou contra a liquidação oficiosa de IRC que a AT efectuou a uma sociedade e cujo pagamento lhe exigiu a ele em sede de execução fiscal, enquanto responsável subsidiário e, por isso, sujeito passivo [cfr. art. 18.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária (LGT)] (Como resulta do disposto no n.º 5 do art. 22.º da Lei Geral Tributária (LGT), o responsável subsidiário pode reclamar graciosamente ou impugnar judicialmente a liquidação que deu origem à dívida exequenda nos mesmos termos do devedor originário, abrindo-se o prazo para o efeito da data da sua citação.). O Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa julgou procedente essa impugnação com fundamento na caducidade do direito à liquidação. Isto, em síntese, porque considerou que, estando em causa a tributação em IRC do ano de 2000, não se demonstrou que a sociedade (sujeito passivo do imposto como contribuinte directo) tivesse sido notificada da liquidação, que foi efectuada em Setembro de 2004, até ao final desse ano, em violação do disposto no art. 45.º, n.ºs 1 e 4, da LGT.
A Fazenda Pública insurge-se contra a sentença porque entende que a falta de notificação da liquidação dentro do prazo da caducidade do direito à liquidação não constitui fundamento de impugnação judicial, apenas podendo ser invocada em sede de oposição à execução fiscal, como fundamento subsumível à alínea e) do n.º 1 do art. 204.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).
Por seu turno, o Recorrido parece considerar que o recurso tem dois fundamentos, sendo o primeiro a impossibilidade de, em sede de impugnação judicial, arguir vícios que não tenham sido invocados em sede da reclamação graciosa que a precedeu, designadamente a caducidade do direito à liquidação. Diga-se desde já que essa impossibilidade não foi sustentada nem na sentença nem nas alegações de recurso, motivo por que dela não nos ocuparemos.
Por outro lado, o Recorrido discorda do entendimento da Recorrente quanto à impossibilidade de a falta de notificação da liquidação dentro do prazo da caducidade constituir fundamento de impugnação judicial. Por isso, sustenta que a sentença julgou correctamente ao apreciar e decidir pela caducidade do direito à liquidação em sede de impugnação judicial, adoptando uma posição que diz ser a sustentada em diversa jurisprudência.
Assim, a questão que cumpre apreciar e decidir é a de saber se a sentença incorreu em erro de julgamento ao apreciar em sede de impugnação judicial a caducidade do direito à liquidação com base na falta de notificação da liquidação dentro do prazo da caducidade.
2.2.2 DO CONHECIMENTO DA CADUCIDADE DO DIREITO À LIQUIDAÇÃO EM IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
Dispõe o n.º 1 do art. 45.º da LGT: «O direito de liquidar impostos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro». Ou seja, para efeitos de fazer parar o prazo da caducidade (e, assim, obstar à extinção por esse motivo do direito de liquidar), a lei fixa como relevante, não o momento em que a liquidação é efectuada, mas o momento em que a liquidação se considera validamente notificada ao contribuinte. Dito de outro modo, é a notificação da liquidação, e não apenas a efectivação deste acto, o elemento relevante para aferir da caducidade no direito tributário; é essa notificação o acto impeditivo da caducidade. Assim, a caducidade da obrigação tributária relaciona-se, não só com o prazo durante o qual a lei permite que a obrigação seja declarada, mas também com a notificação desse acto declarativo da obrigação (Para maior desenvolvimento, CASIMIRO GONÇALVES, Problemas fundamentais do Direito Tributário, A caducidade face ao Direito Tributário, Vislis Editores, 1999, págs. 225 a 257. ).
Significa isto que se não se demonstrar que o contribuinte foi, ou se deve considerar como tendo sido, validamente notificado dentro do prazo da caducidade, deve ter-se como caducado o direito de liquidar.
No caso, respeitando o IRC ao ano de 2000, a liquidação deveria ter sido notificada até ao dia 31 de Dezembro de 2004 (nos termos do art. 45.º, n.ºs 1 e 4, da LGT) e não o foi (ou, pelo menos, não se comprova que o tenha sido, recaindo o ónus dessa demonstração sobre a Fazenda Pública), motivo por que deve considerar-se caducado o direito de liquidar aquele tributo.
Nos autos, não há dissídio quanto à caducidade do direito de liquidar. A Fazenda Pública não questiona que caducou o direito de liquidar o IRC do ano de 2000.
Onde a Fazenda Pública discorda da sentença é quanto à possibilidade de essa caducidade constituir fundamento de impugnação judicial. Para tanto, considera que nas situações como a dos autos, em que se comprova que a liquidação foi efectuada dentro do prazo da caducidade, mas não se comprova a notificação da liquidação dentro desse prazo, o único meio de defesa ao dispor do contribuinte é a oposição à execução fiscal, com o fundamento previsto na alínea e) do n.º 1 do art. 204.º do CPPT.
Em resumo, sustenta essa interpretação em diversos considerandos doutrinais em torno da invalidade e da ineficácia do acto administrativo e, reconduzindo a falta de notificação àquela modalidade, sustentou que o único meio processual onde a mesma podia ser discutida era a oposição à execução fiscal e já não a impugnação judicial; isto porque este último meio processual só admite como fundamentos vícios que contendam com a validade ou a existência do acto impugnado e já não circunstâncias ulteriores à prática do acto, que não afectam a sua validade, mas apenas a exigibilidade da obrigação tributária liquidada, as quais apenas poderão constituir fundamento de oposição à execução fiscal.
Da tese da Recorrente resultaria que a sentença – que julgou verificada a caducidade do direito de liquidar e, assim, anulou a liquidação impugnada – deveria ser revogada e, em face da impossibilidade da sua convolação em oposição à execução fiscal (Ainda que, de acordo com o entendimento da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, se pudesse interpretar o pedido de modo a acomodar o pedido de extinção da execução fiscal, seriam inultrapassáveis os obstáculos decorrentes da intempestividade (o ora Recorrido foi citado em 24 de Janeiro de 2006 e a petição inicial deu entrada em 19 de Setembro de 2008, ou seja, bem para além do termo do prazo do art. 203.º do CPPT) e da circunstância de na petição inicial se terem invocado outros fundamentos relativamente aos quais é inequívoca a adequação da forma processual escolhida.), ao ora Recorrido não restaria agora meio de defesa contra a execução fiscal em que lhe está a ser exigida a dívida correspondente à respectiva obrigação tributária, inequivocamente caducada.
Salvo o devido respeito, a Recorrente não faz a melhor interpretação da lei.
Independentemente da congruência do regime legal fixado pelo n.º 1 do art. 45.º da LGT com a doutrina respeitante ao acto administrativo e da coerência global da jurisprudência sobre a natureza do acto de notificação e sua relação com o acto de liquidação, designadamente no que se refere à distinção entre validade e eficácia, é inequívoco que naquele artigo se fixou a notificação da liquidação, e não a prática do acto de liquidação, como facto impeditivo da caducidade do direito de liquidar. O que significa que, de acordo com a lei – numa opção que está dentro dos poderes que constitucionalmente estão cometidos ao legislador e os não excede, motivo por que ao intérprete não cumpre sindicar tal opção –, a falta de notificação da liquidação dentro daquele prazo tem efeito invalidante deste acto. Note-se que é a interpretação doutrinal que deve conformar-se com a lei (que é fonte de direito, nos termos do art. 1.º do Código Civil), designadamente com a sua letra (que constitui ponto de partida e limite da tarefa hermenêutica, devendo ainda presumir-se que «o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados», tudo nos termos do disposto no art. 9.º), e não o contrário.
Como ficou dito no acórdão deste Supremo Tribunal citado pela sentença recorrida (Acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 4 de Outubro de 2017, proferido no processo com o n.º 660/15, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/98fd1f769da5dee4802581b6004f33b0.), «o termo liquidação na LGT é empregue com um duplo sentido: o de procedimento e o de acto administrativo que culmina o procedimento e quer num sentido quer noutro a sua função consiste em fixar o “an e o quantum” da obrigação tributária e exigi-la ao obrigado tributário
A liquidação contém, assim, uma manifestação unilateral, da Administração Tributária sobre o montante da prestação que fixa de modo exacto indicando para tanto ao obrigado tributário o prazo e o órgão onde efectuar o pagamento, bem como os meios de defesa quer administrativos quer contenciosos que pode utilizar.
E só com a notificação válida do acto da liquidação é que se pode considerar totalmente encerrado o procedimento de liquidação.
[…]
Neste entendimento há que convir que embora quer conceptualmente quer materialmente distintos o acto administrativo da liquidação e o acto que o notifica, a notificação não deixa de integrar o procedimento de liquidação e embora não seja pressuposto da legalidade do acto da liquidação na medida em que a notificação é sempre um acto posterior é contudo pressuposto da sua eficácia donde o prazo de caducidade continuar a correr enquanto não ocorrer a notificação válida do acto que o interrompa.
E dado que neste caso e em todo o direito público a notificação adquire a relevância de princípio essencial no procedimento administrativo, como direito e garantia dos administrados ex vi do disposto no artigo 268.º do CRP, o artigo 45.º da LGT explicitando essa relevância e exigência constitucional, integrando a exigência de notificação da liquidação no prazo de caducidade do direito à liquidação faz decorrer a interrupção do prazo da caducidade do direito de liquidar pela AT não do momento em que pratica o acto de liquidação mas do momento da sua notificação ao sujeito passivo desse acto.
E decorrido o prazo de caducidade da liquidação sem que a sua notificação válida tenha ocorrido tal acto ainda que praticado dentro do prazo não deixa por força do artigo 45.º da LGT de estar ferido de ilegalidade» (sublinhado nosso).
Esclarecedor a este propósito é CASIMIRO GONÇALVES; após se pronunciar sobre a notificação como requisito da eficácia do acto, elucida: «a obrigatoriedade da notificação da liquidação no prazo de caducidade não retira ao próprio acto da notificação a natureza de requisito de eficácia, embora para efeitos de caducidade tal notificação tenha, por força da lei, definido um regime especial, pois que releva, agora, também como pressuposto da caducidade do direito à liquidação por parte do Estado, esta sim, uma ilegalidade concreta que afecta a validade do acto de liquidação e que, como tal, é susceptível de fundamentar a respectiva impugnação» (Ob. cit., pág. 237.).
Acompanhamos esta jurisprudência e doutrina, no sentido de que a falta de notificação da liquidação dentro do prazo da caducidade fere de ilegalidade o procedimento de liquidação (a liquidação em sentido amplo), ainda que o acto de liquidação (a liquidação em sentido estrito) tenha sido praticado dentro desse prazo. Como tal, não vislumbramos obstáculo a que essa ilegalidade seja invocada em impugnação judicial, que é o meio próprio para a invocação de todas as ilegalidades do acto (cf. art. 99.º do CPPT), designadamente a preterição de formalidades legais ocorridas no procedimento de liquidação.
Sempre salvo o devido respeito, do disposto na alínea e) do n.º 1 do art. 204.º do CPPT não pode extrair-se o argumento a contrario sensu que dele extraiu a Recorrente. Vejamos:
Desde logo, em sede de hermenêutica jurídica, como adverte BAPTISTA MACHADO, o argumento a contrario, «deve ser usado com muita prudência» (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, págs. 187/188.).
Na verdade, a consagração na referida alínea e) do n.º 1 do art. 204.º do CPPT como fundamento de oposição à execução fiscal da «[f]alta de notificação da liquidação do tributo no prazo da caducidade» não permite deduzir a conclusão de que esse fundamento é exclusivo da oposição e de que não pode ser invocado em sede de impugnação judicial. Só assim não seria se essa norma incorporasse de algum modo um elemento de taxatividade – designadamente expresso pela afirmação de que a falta de notificação da liquidação do tributo no prazo da caducidade ou apenas poderia ser fundamento de oposição à execução fiscal – que permitisse dela deduzir uma norma de sentido oposto como regime-regra, ou seja, que esse fundamento não poderia ser invocado em qualquer outro meio processual, o que não sucede.
A nosso ver, o que a alínea e) do n.º 1 do art. 204.º do CPPT veio salientar foi que nas situações em que não se demonstrou a existência de notificação ocorrida dentro do prazo da caducidade, o contribuinte pode reagir contra essa liquidação, não só mediante impugnação judicial, mas também em sede de oposição à execução fiscal.
Ou seja, o legislador, em face de alguma jurisprudência que não permitia que, nos casos em que a notificação da liquidação ocorreu para além do termo do prazo da caducidade, o executado usasse a oposição à execução fiscal para reagir – por considerar que o único modo de reacção era a impugnação judicial, uma vez que estava em causa a legalidade da liquidação, atento o disposto no art. 45.º, n.º 1, da LGT [e, anteriormente, o art. 33.º do Código de Processo Tributário (CPT)] – veio, esclarecendo essas situações, consagrar mais uma possibilidade (relativamente às já existentes no CPT) excepcional de em sede de oposição à execução fiscal se discutir a legalidade concreta da liquidação da dívida exequenda, tal como acontecia já com os fundamentos hoje previstos nas alíneas a), g) e h) do n.º 1 do art. 204.º do CPPT [e, antes, nas alíneas a), f) e g) do art. 286.º CPT].
Como também bem salientou o já citado acórdão de Supremo Tribunal, o art. 1.º do CPPT, reconhecendo a supremacia da LGT, nunca consentiria a interpretação de que a alínea e) do n.º 1 do art. 204.º do CPPT revogou o n.º 1 do art. 45.º da LGT, na parte em que este atribui à falta de notificação tempestiva efeito invalidante.
Concluindo, podemos dizer que a falta de notificação da liquidação dentro do prazo da caducidade do direito à liquidação constitui, por força da lei (art. 45.º, n.º 1, da LGT), ilegalidade invalidante do acto de liquidação (cf. art. 99.º do CPPT), susceptível de constituir não só fundamente de impugnação judicial, mas também fundamento de oposição à execução fiscal, por expressa previsão legal na alínea e) do n.º 1 do art. 204.º do CPPT (Neste sentido, se bem o interpretamos, JORGE LOPES DE SOUSA, ob. e vol. cit., nota 34 b) ao art. 204.º, págs. 488/489.)
A sentença recorrida, que decidiu neste sentido, não merece censura, motivo por que o recurso não merece provimento.
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3. DECISÃO
Pelo exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em negar provimento ao recurso.
Custas pela Recorrente (art. 527.º do CPC).
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Lisboa, 30 de Outubro de 2019. – Francisco Rothes (relator) – José Manuel Carvalho Neves Leitão – Nuno Bastos.