Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:046/12.6BEBJA
Data do Acordão:05/06/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:IRS
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Sumário:I - Os actos procedimentais e processuais das partes no direito tributário são regulados pelo princípio da legalidade e nenhum obstáculo legal existe a que o sujeito passivo que tenha procedido a um determinado enquadramento dos seus rendimentos no âmbito das declarações de rendimentos entregues venha, posteriormente, pugnar por um outro enquadramento dos mesmos, seja por expedientes procedimentais, seja por expedientes processuais, como é o caso da impugnação judicial da liquidação.
II - Através da impugnação judicial assegura-se, primariamente, a verificação da legalidade da tributação dos rendimentos, i. e., assegura-se que os mesmos são tributados segundo o que a lei dispõe, sendo essa uma forma de garantir a afectividade do princípio fundamental da igualdade na contribuição para os encargos públicos, que é pedra angular da tributação.
III - A posição jurídica do sujeito passivo relativamente ao conteúdo dos actos tributários releva como pressuposto processual, quer para determinar a legitimidade para impugnar, quer para aferir do interesse em agir.
Nº Convencional:JSTA000P25828
Nº do Documento:SA220200506046/12
Data de Entrada:01/27/2020
Recorrente:A....... - COOPERATIVA AGRÍCOLA ......, CRL.
Recorrido 1:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

I – Relatório

1 - A …… – Cooperativa Agrícola ………., CRL, com os sinais dos autos, interpôs recurso da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, que, em 26 de Setembro de 2019, julgou improcedente a impugnação judicial que havia deduzido contra a liquidação adicional de IRS (por erros nas taxas de retenção na fonte aplicadas) relativa ao exercício de 2008, no montante global de €184.393,47, apresentando, para tanto, alegações que concluiu do seguinte modo:

I – DA OMISSÃO DO DEVER DE PRONUNCIA - art.º 615.º n.º 1 al. d) do C.P.C.

Artigos 1.º a 16.º
A) A causa de pedir, materializada na impugnação em causa, configura o pedido para que o Tribunal se pronuncie quanto à natureza do retorno dos excedentes líquidos gerados pela cooperativa ora impugnante, projectados na esfera jurídico-patrimonial dos cooperantes.
B) Pretende-se saber e obter decisão judicial sobre se esses valores consubstanciam rendimentos subsumíveis à Categoria A do IRS, ou seja, se têm natureza de rendimentos do trabalho, ou, ao invés, se subsumíveis à Categoria E desse mesmo imposto, ou seja, se esses valores revestem a natureza de rendimentos de capitais.
C) No entendimento da recorrente os mencionados valores revestem a natureza de rendimentos de trabalho dependente, como tal, subsumíveis à Categoria A do IRS – por aplicação do disposto no art.º 2.º do CIRS.
D) Pelo contrário, a AT que defende que tais rendimentos se subsumem à Categoria E do mesmo imposto, isto é, preenchem a natureza de rendimentos de capitais – por aplicação do disposto no art.º 5.º do CIRS.
E) A decisão recorrida é completamente omissa quanto à questão que lhe é colocada e sobre a qual tinha o dever de se pronunciar e decidir.
F) Ou seja, não decide, nem fundamenta se os rendimentos em causa, subjacentes e inerentes à liquidação impugnada se enquadram na Categoria A, ou na Categoria E e, a enquadrarem-se (ou não) numa destas categorias qual a fundamentação jurídica para tal opção de enquadramento.
G) O Tribunal recorrido, ao contrário daquilo a que a lei obriga, não se pronunciou sobre a questão/matéria central que constituía a causa de pedir, pelo que a sentença proferida padece de forma clara, inequívoca e ostensiva, do vício de nulidade, por omissão do dever de pronúncia, a que se reporta o artigo 615.º n.º 1 al. d) do C.P.C. nulidade essa que desde já se invoca deixa arguida e acarreta todos os devidos e legais efeitos inerentes.

II – DO VICIO DE VIOLAÇÃO DE LEI - ERRO NA DETERMINAÇÃO DAS NORMAS APLICÁVEIS – artigo 639.º n.ºs 1 e 2 al.s a) a c) do C.P.C.


Artigos 17.º a 95.º da Motivação
- A douta sentença, tal como de seguida se irá demonstrar, violou, no entender da Recorrente, o ordenamento jurídico vigente e regulamentador da matéria em apreço.
- Desde logo consignar que a sentença recorrida é ilegal, violando o disposto nos artigos 2.º do C.P.C., 2.º do Código Cooperativo e 16.º do Estatuto Fiscal Cooperativo (em vigor em 2008), 71.º n.º 3, al. c) do CIRS (na versão da Lei 6-A/2007 de 31.12), 2.º, 5.º, e 101.º n.º 1 al. a) do CIRS e 59.º da LGT, porquanto:
i.
H) Desconsiderou, por completo, o facto de a impugnante se tratar de uma cooperativa e, como tal, se reger por estatutos e diplomas próprios/específicos, entre outros e com interesses para a boa decisão da causa, os normativos atrás referidos isto não obstante ter julgado como provado que a impugnante era uma cooperativa.
I) Desconsiderou que:
- Atenta a natureza/personalidade jurídica da impugnante o resultado positivo do exercício da cooperativa não é lucro propriamente dito, antes a importância que os cooperantes entregaram a mais ao a utilizarem, e que depois lhes é devolvida na proporção dessa mesma utilização.
- É por esta razão que esse retorno não configura rendimento de capitais.
- As cooperativas não têm, perante a concepção e terminologia de “capitais” que integram o leque de rendimentos sujeitos a IRS pela Categoria E (rendimentos de capitais), o mesmo tratamento que as sociedades comerciais ou civis sob a forma comercial.
- As cooperativas visam a entreajuda dos seus membros através da sua cooperação, pretendem unicamente a satisfação, sem fins lucrativos, das suas necessidades económicas.
- As cooperativas não geram lucros, antes excedentes líquidos, cuja raiz e matriz são absolutamente distintas.
J) Tudo como resulta não só dos princípios antes enunciados, quanto do art.º 2.º do Código Cooperativo, o qual foi, por isso violado. Acresce que;
L) O excedente líquido será o acréscimo patrimonial que se verifica entre o início do exercício social e o respectivo encerramento, no que tange ao balanço entre as receitas, e os custos e despesas registadas
M) - Uma percentagem desse excedente líquido reverterá para a reserva legal e para a reserva para educação e formação cooperativa, bem como para o eventual pagamento de juros pelos títulos de capital, juros estes que, sim, verdadeiros rendimentos de capitais, subsumidos naturalmente às regras do IRS enquanto rendimentos da Categoria E.
N) Só o valor remanescente estará sujeito à aplicação do princípio do retorno, isto é, à devolução dos excedentes aos associados na proporção do trabalho que cada cooperador forneceu à cooperativa, no caso, de produção agrícola.
O) Logo não subsumível nem tributável em IRS, por força da Categoria E de rendimentos do IRS – art.º 5.º do CIRS.
P) Esses rendimentos serão subsumíveis à Categoria A de rendimentos para efeitos de IRS, tudo por decorrência da própria natureza, origem ou fonte donde emanam.
Q) E não sendo os controvertidos rendimentos sujeitos a IRS pela Categoria E, não pode a AF querer subsumi-los, por parte da impugnante, à sujeição a uma retenção na fonte de IRS, com natureza liberatória, à taxa de 20% ou a qualquer outra, com enquadramento no art.º 71.º n.º 3 al. c) do CIRS (na versão ao tempo, dada pela Lei 6-A/2007 de 31.12), porquanto tais rendimentos configuram a natureza de rendimentos de trabalho dependente e como tais subsumidos às regras destes – rendimentos da Categoria A de IRS –
Termos em que a sentença recorrida violou a legislação supra referida o que a torna ilegal.
R) Porque os rendimentos sub judice não se enquadram, como rendimentos de capitais, na previsão constante do art.º 5.º do CIRS, não podem os mesmos ser sujeitos a retenção na fonte nos termos e moldes reclamados pela Autoridade Tributária, isto é, a título de rendimentos de capitais (Categoria E) para efeitos da sua submissão a IRS naquela sede.
S) Ao invés do vertido no relatório inspectivo sancionado pelo Director de Finanças de Évora e que esteve na origem da liquidação ora sob sindicância e de que derivou o apuramento da quantia de 165.885,76 € a pretender imputar à impugnante/recorrente, não há lugar a qualquer retenção na fonte sobre rendimentos enquadráveis como de capitais, nem à taxa de 15% tão pouco de 20% como agora a AT pretende.


ii
DA ACTUAÇÃO DA IMPUGNANTE NUM “VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM”.
T) Tem a impugnante como assente, salvo naturalmente opinião mais avisada, do direito que lhe assiste a reagir contra liquidações que ofendam a legalidade, ainda e mesmo daquelas que, originariamente, o inicial enquadramento tenha sido de sua autoria, ou seja, daquelas que se mostrem desconformes com o direito.
U) Se há erro, seja de que natureza for, se estiver em tempo só há que agir em ordem a repor a legalidade.
V) O facto da Recorrente ter, inicialmente, enquadrado os rendimentos como se de rendimentos de capitais se tratasse, Categoria E, se o não forem, não existe impedimento a que desse enquadramento se reaga [sic], mormente impugnando essas liquidações (ou quaisquer outras ainda que adicionais), quando as entenda como legalmente viciadas/inquinadas.
X) É verdade que inicialmente a impugnante tratou a questão como se de rendimentos de capital se tratasse, erro que já não pôde reparar por já não estar em tempo, mas que não o quer ver repetido através da liquidação impugnada.
Z) E quando da sentença se faz constar “entendeu-os desde o início como rendimentos de capital, ou seja, como vantagem económica obtida pelo funcionamento da cooperativa”, esta está a lograr num erro.
AA) Os rendimentos de capital no seio das cooperativas serão, por exemplo, os que derivam dos juros que os eventuais títulos dos cooperantes possam gerar, estes sim, rendimentos de capitais subsumíveis à categoria E.
AB) Mas isto é outra questão que nada tem o ver com os excedentes líquidos gerados pela cooperativa e que são redistribuídos pelos associados/cooperantes imputados a título de contrapartida pelo seu labor em benefício da cooperativa e do propósito pelo qual foi a mesma constituída.
AC) Estes revestindo a natureza de rendimentos de trabalho e como tal sujeitos a tributação e disciplina da Categoria A do IRS.
AD) Uma realidade é a obtenção duma vantagem económica obtida pela cooperativa, ou seja, o resultado positivo dos exercícios, outra bem diferente a sua redistribuição pelos cooperantes imputada a título de contrapartida pelo seu labor em benefício da cooperativa. Como tal e em face do exposto o Tribunal recorrido errou na aplicação da lei e violou o disposto nos artigos artigos [sic] 2.º do Código Cooperativo e 16.º do Estatuto Fiscal Cooperativo (em vigor em 2008), 71.º n.º 3, al. c) do CIRS (na versão da Lei 6-A/2007 de 31.12), 2.º, 5.º, e 101.º n.º 1 al. a) do CIRS e 59.º da LGT.

iii.
DA BOA FÉ E COLABORAÇÃO
AE) A impugnante, nos presentes autos, agiu e actuou sempre de boa fé e com verdeiro espírito de colaboração processual.
AF) Devidamente estudado o assunto e colhidos elementos, ensinamentos, teses, doutrina, etc. foi formada uma convicção sobre a questão base da liquidação com que a impugnante se confrontava.
AG) Tese que reitera integralmente, revendo-se totalmente no que fez constar da p.i., o que aqui dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos.
AH) O facto da ora impugnante ter inicialmente seguido uma interpretação legal incorrecta, não pode impedir que qualquer reação contra liquidação posterior que seguiu idêntico caminho se veja afastada da sua sindicância pelas instâncias judiciais competentes, tão pouco que possa constituir qualquer violação dos princípios da boa fé ou da colaboração.
AI) É antes o exercício legítimo e facultado por lei de um direito de defesa que os administrados/ contribuintes usufruem.
AJ) Diga-se, além do mais, que a impugnante não atacou as liquidações decorrentes da entrega voluntária de IRS pela Categoria E de rendimentos à taxa de 15%; esclareça-se que somente porquanto já não se encontrava em tempo (as ditas feitas voluntariamente).
AL) O que foi atacado foi a liquidação adicional levada a cabo pela AT na decorrência de acto inspectivo que entende que tais rendimentos seriam sujeitos à taxa de 20% que não de 15% como a impugnante liquidou e entregou.
AM) E que a impugnante defende que tais rendimentos não são sujeitos nem a uma taxa nem a outra porquanto os rendimentos são de trabalho dependente e não de rendimentos de capitais.
AN) Ao negar-se a defesa de tais direitos à Impugnante tal como o fez da decisão recorrida o TAF de Beja violou, para além dos referidos normativos, o disposto no artigo 2.º n.ºs 1 e 2 do C.P.C., já que a interpretação judicial de que se recorre impede a Impugnante de fazer valer os seus direitos, ainda por cima através da reposição da legalidade. O que constitui nulidade da sentença.
Termos em que deverá o presente Recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida substituindo-a por outra que declare a anulação da liquidação adicional em apreço e objecto dos presentes autos, fazendo-se assim a tão costumada JUSTIÇA !!!».


2 - Não foram apresentadas contra-alegações.

3 - O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso, revogada a sentença por “não ocorrer o invocado abuso do direito na vertente venire contra factum proprium” e ordenada a baixa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja para que conheça da alegada ilegalidade da liquidação adicional.

4 - Colhidos os vistos legais, cabe decidir.


II – Fundamentação

1. De facto
Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte factualidade concreta:
A) A Impugnante é uma cooperativa tendo sido como tal constituída e registada em 17/11/1977;
B) O seu objeto foi o de estimular, criar e desenvolver todo o tipo de atividade nos ramos de produção, comércio e serviços nas áreas de exploração agrícola, pecuária e florestal;
C) A sua sede situa-se na área deste Tribunal Tributário, ou seja, em …….;
D) A atividade económica pela qual está coletada, a que corresponde o CAE 1500, é a de exploração agrícola, agro-pecuária, silvícola, pecuária e cinegética;
E) A Impugnante está enquadrada em sede de IVA no regime normal de periodicidade trimestral desde 01/01/2000 e em sede de IRC no regime geral de tributação;
F) A Impugnante apresentou declarações modelo 22 de IRC quanto aos exercícios de 2007 e 2008;
G) A Impugnante decidiu a sua dissolução e liquidação que se mostra registada na respetiva conservatória em 11/09/2008;
H) Credenciada pela ordem de serviço nº OI201100809 foi levada a cabo ação inspetiva tributária aos elementos de contabilidade da sociedade Impugnante;
I) Esta ação foi concluída com relatório final datado de 30/09/2011 que apresenta, além do mais, as seguintes conclusões:

“(…) Na análise prévia efetuada verificou-se que:

- No exercício de 2008 foi aplicada, incorretamente, a taxa de retenção na fonte de 15% (art. 101º do CIRS) aos lucros distribuídos em vez da taxa liberatória de 20% conforme consta do artigo 71º, nº 3, al. c) do Código do IRS (..)

Com referência às retenções na fonte de IRS efetuadas e pagas em 200 verifica-se que foi submetida uma declaração em 2008-07-17 referente a rendimentos de capitais no montante de € 26.070,84.

(…)

E uma declaração submetida em 2008-12-15 que também é referente a imposto de capitais, no montante de €471.586,46.

As referidas retenções na fonte de IRS incidiram sobre os rendimentos de capitais, ou seja, sobre os lucros colocados à disposição dos associados em 2007, no montante de € 173.805,55 e em 2008 no montante de € 3.143,909,75, tendo sido efetuada uma retenção na fonte de IRS por aplicação da taxa de 15% prevista no art. 101º, nº 1, alínea a) do Cód. IRS. (…)

No entanto, com a entrada em vigor da nova redação dada à alínea c) do nº 3 do art. 71º do CIRS, pelo Decreto-Lei nº 192/2005, de 7 de novembro, a distribuição de lucros passou a estar sujeita a retenção na fonte de IRS à taxa de 20 % (…).

Esta retenção na fonte de IRS tem natureza liberatória podendo os titulares destes rendimentos optar pelo respetivo englobamento para efeitos de tributação, nos termos previstos no nº 6, alínea c) do art. 71º do CIRS com a redação dada pelo Decreto-Lei nº 192/2005, de 7 de novembro. (…)

Pelo exposto propõe-se uma correção no montante total de €165.885,76 (…) nas retenções na fonte de IRS do exercício de 2008.

J) O projeto de relatório de procedimento de inspeção foi notificado à Impugnante para exercício do direito de audição;

K) A Impugnante exerceu o direito de audição relativamente das diversas matérias objeto de apreciação no relatório à exceção das correções mencionadas na alínea I);

L) As conclusões, e correções assim descritas, mereceram despacho de concordância do Diretor de Finanças de Évora;

M) Em consequência foi emitida em 04/10/2011 a liquidação nº 20116410001404 referente a retenções na fonte de IRS que apurou imposto a pagar no montante de € 165.885,76 e juros compensatórios a pagar no montante de € 18.507,72, totalizando € 184.393,47;

N) Não se conformando com a sobredita liquidação apresentou em 11/02/2012 petição inicial que deu origem à presente impugnação.


2. Questões a decidir
Saber se a sentença do Tribunal a quo enferma de nulidade por omissão de pronúncia, bem como de erro de julgamento quando considera que o sujeito passivo não poderia, atento o princípio da boa fé dos sujeitos passivos dos tributos, impugnar a liquidação com fundamento em ilegalidade por diferente enquadramento dos rendimentos.

3 – Do direito


3.1. Da alegada omissão de pronúncia
Entende a Recorrente que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre a questão que havia sido suscitada na impugnação judicial da liquidação quanto ao enquadramento do retorno dos excedentes líquidos gerados pela cooperativa no âmbito das categorias de rendimentos do IRS, mais precisamente, quanto a saber se esses rendimentos deveriam ser integrados na Categoria A (rendimentos do trabalho dependente) ou na Categoria E (rendimentos de capitais), o que era determinante para a correcta fixação da taxa de retenção na fonte a que estariam subordinados.
Na resposta a esta questão seguimos integralmente o bem fundamentado parecer do Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal, quando aí se afirma que:
«De harmonia com o disposto nos artigos 608.º, n.º 2 e 615.º, n.º 1, alínea d), ambos do CPC ocorre omissão de pronúncia susceptível de originar a nulidade da sentença, quando o Tribunal deixe de se pronunciar sobre questão submetida pelas partes à sua apreciação e decisão e que não se mostre prejudicada pelo conhecimento e decisão porventura dado a outras.
Resulta também do artigo 125.º, do CPPT que constituem causas de nulidade da sentença a falta de assinatura do juiz, a não especificação dos fundamentos de facto e de direito, a oposição dos fundamentos com a decisão, a falta de questões que o juiz deva apreciar ou a pronúncia sobre questões que não deva conhecer.
E haverá omissão de pronúncia sempre que o tribunal, pura e simplesmente, não tome posição sobre qualquer questão que devesse conhecer, inclusivamente, não decidindo explicitamente que não pode dela tomar conhecimento (cf., neste sentido, os Acórdãos do STA, de 19/04/2014, recurso n.º 126/14, de 9/04/2008, recurso n.º 756/07, e de 3/04/2008, recurso n.º 964/06, disponíveis, tais como os que futuramente se citarão, em www.dgsi.pt).
Ora, importa ainda ter presente que esta obrigação não significa que o juiz tenha de conhecer todos os argumentos ou considerações que as partes hajam produzido.
Uma coisa são as questões submetidas ao Tribunal e outra são os argumentos que se usam na sua defesa para fazer valer o seu ponto de vista.
O que importa é que o Tribunal decida a questão posta, não lhe incumbindo apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.
E o Supremo Tribunal Administrativo também afirmou já que não se verifica omissão de pronúncia quando “o Tribunal deixe de se pronunciar sobre uma questão ao decidir dela não conhecer” (v. neste sentido, acórdão de 6 de Fevereiro de 2019, no processo 0503/14.0BECBR 0893/17).
Ora, in casu, salvo o devido respeito por melhor opinião, não ocorre nulidade por omissão de pronúncia, uma vez que, conforme consta da douta sentença recorrida, a Mmª Juíza a quo referiu:
“Com efeito, mostra-se inquestionável a configuração dos rendimentos nas declarações em apreço como de capitais se tratando, sendo que a aplicação da taxa corresponde efectivamente a tal natureza conforme se extrai do relatório da inspecção efectuada à contabilidade da Impugnante” (cf. fls. 13, da sentença, 121, do processo físico, sublinhado nosso).
E fundamentou tal decisão com o facto da Impugnante, ora Recorrente, aquando da submissão das declarações de retenções na fonte efectuadas nos anos de 2007 e 2008, ter declarado à Administração Fiscal tais rendimentos como de capital,
Ou seja, como vantagem económica obtida pelo funcionamento da cooperativa e não a partir do seu trabalho em benefício da mesma (cf. fls. 12, da sentença, 120, do processo físico),
Configurando a presente impugnação judicial “…o denominado venire contra facto proprio…” (cf. fls. 10 da sentença, 118, do processo físico)».

Resulta assim claro que a sentença recorrida se pronunciou sobre a questão formulada pela Impugnante (ora Recorrente) quanto à qualificação dos rendimentos, não no sentido de corroborar que estamos perante rendimentos de capitais, mas sim no sentido de que a qualificação daqueles rendimentos não poderia ser questionada pelo sujeito passivo no âmbito da impugnação judicial deduzida do acto de liquidação adicional. Não sendo a resposta pretendida pelo sujeito passivo relativamente à questão que vinha suscitada, é, porém, a resposta à questão suscitada, pois, independentemente de incorrer ou não em erro de julgamento (por errada interpretação do direito ou dos pressupostos em que se baseie), apresenta uma solução integral para a questão, uma vez que expõe o fundamento pelo qual a pretensão do impugnante não poderia, juridicamente, ser atendida.
Inexiste, portanto, in casu, omissão de pronúncia e, consequentemente, causa de nulidade da sentença.

3.2. Do alegado erro de julgamento
A segunda questão que vem formulada no âmbito do presente recurso prende-se com o erro de julgamento quanto à impossibilidade de o sujeito passivo questionar no âmbito da impugnação judicial da liquidação adicional em IRS (por erro na taxa de retenção na fonte aplicada), resultante da inspecção tributária aos elementos de contabilidade da sociedade, realizada em 2011 e respeitante aos rendimentos de 2007 e 2008, o enquadramento dos rendimentos, atendendo ao facto de não só ter inscrito aqueles rendimentos como rendimentos de capitais (e agora pretender que os mesmos sejam qualificados como rendimentos do trabalho dependente), como ainda à circunstância de não ter suscitado esta questão em sede de audição prévia no procedimento de inspecção tributária.
Com efeito, a este propósito, pode ler-se na decisão judicial recorrida o seguinte:
«(…) cumpre registar que a presente impugnação configura o denominado venire contra factum proprium.
(…)
Com efeito, pretende a Impugnante – neste momento, cumpre registar – que sejam caracterizados tais rendimentos como se de trabalho se tratassem laborando a respeito da natureza da constituição das cooperativas e daí concluindo que todos os excedentes líquidos que sejam distribuídos pelos associados / cooperantes devem ser imputados a título de contrapartida pelo seu labor em benefício da cooperativa e do propósito pelo qual foi a mesma constituída. Logo, devem ser enquadrados tais rendimentos como rendimentos da categoria A, isto é, rendimentos de trabalho dependente.
Sucede, porém, que a própria assim não o entendeu desde o momento em que colocou tais rendimentos à disposição dos seus associados e assim o não registou na sua contabilidade. Do mesmo modo assim não os declarou à Administração Tributária aquando da submissão das declarações de retenções na fonte efetuadas nos referidos anos de 2007 e 2008. Repete-se, porque relevante, entendeu-os desde o início como rendimentos de capital, ou seja, como vantagem económica obtida pelo funcionamento da cooperativa e não a partir do seu trabalho em benefício da cooperativa.
Posto isto, e porque nem sequer em sede de audição prévia à conclusão da inspeção tributária a Impugnante havia manifestado diferente entendimento quando do projeto de relatório de inspeção já se mostrava patente a correção em apreço, não pode agora colher a sua tese. Está em causa o princípio da boa fé na atuação dos sujeitos passivos, aqui manifestamente questionável e atentatória frontalmente da presunção contida no n.º 2 do art. 59.º da LGT, e ainda do princípio da colaboração contido no n.º 4 do mesmo preceito (…)».

Ora, resulta assim evidente que a sentença recorrida padece do alegado erro de julgamento, na medida em que os actos procedimentais e processuais das partes são neste âmbito regulados pelo princípio da legalidade e nenhum obstáculo legal existe a que o sujeito passivo que tenha procedido a um determinado enquadramento dos seus rendimentos no âmbito das declarações de rendimentos entregues venha, posteriormente, pugnar por um outro enquadramento legal daqueles rendimentos, seja por expedientes procedimentais – como a reclamação graciosa (ou mesmo a revisão do acto tributário), no âmbito da qual se inclui, também, a reclamação graciosa obrigatória para os casos de erro na autoliquidação (artigo 131.º do CPPT) – seja por expedientes processuais, como é o caso da impugnação judicial da liquidação.
Com efeito, um dos fundamentos da impugnação judicial é precisamente a errónea qualificação dos rendimentos (alínea a) do artigo 99.º do CPPT), buscando-se através deste meio impugnatório, primariamente, a verificação da legalidade da tributação dos mesmos, i. e., assegurar que os rendimentos sejam tributados segundo o que a lei dispõe, como forma de garantir, desde logo, o princípio fundamental da igualdade na contribuição para os encargos públicos, que é pedra angular da tributação.
Neste contexto, a posição jurídica do sujeito passivo relativamente ao conteúdo daqueles actos releva como pressuposto processual, quer para determinar a legitimidade para impugnar o acto tributário, quer para aferir do interesse em agir.
De resto, como bem destaca o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal, o direito de impugnação não é sequer renunciável, como se consagra no artigo 96.º da LGT, a não ser nos casos (especiais e excepcionais) previstos na lei. Por exemplo, quando exista uma acordo entre os peritos na fixação da matéria colectável por métodos indirectos (artigo 92.º, n.º 3 da LGT), situação em que aquele valor não pode ser objecto de impugnação no âmbito de uma eventual impugnação judicial ulterior do acto tributário a que dê origem, ou quando o sujeito passivo celebre com a Fazenda Pública um acordo de regularização de dívidas fiscais, caso em que só é admissível o acordo se as dívidas que fazem parte do conteúdo do mesmo não forem objecto de impugnação administrativa ou judicial.
Só nos casos em que tal se encontre expressamente previstos é que se poderá falar da existência de um pressuposto processual negativo equiparável ou semelhante à aceitação do acto nos termos do disposto no artigo 56.º do CPTA. Mas estas limitações ao direito de impugnação dos actos tributários têm de decorrer expressamente da lei. Lembre-se que mesmo no âmbito do direito administrativo a aceitação tácita de um acto só consubstancia um pressuposto processual negativo quando se efective através da “prática, espontânea e sem reserva, de facto incompatível com a vontade de impugnar” (artigo 56.º, n.º 2 do CPTA); um pressuposto que nunca se poderia considerar preenchido neste caso, quer pela declaração de rendimentos apresentada pela Recorrente, quer pela ausência de referência a uma diversa categorização do rendimento em sede de audição prévia no procedimento de inspecção tributária.
Em suma, a decisão recorrida errou na convocação e aplicação à factualidade assente da figura de venire contra factum proprium, ignorando a dogmática que é própria do direito público e da aplicação das regras relativas ao princípio da legalidade dos actos tributários.

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem esta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, em dar provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e ordenar a baixa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja para que conheça da alegada ilegalidade da liquidação adicional.

Custas pela Recorrida [nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi a alínea e), do artigo 2.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário], com isenção de pagamento de taxa de justiça por não ter contra-alegado.


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Lisboa, 6 de Maio de 2020. - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (relatora) – Aníbal Augusto Ruivo Ferraz – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes.