Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo | |
Processo: | 046/12.6BEBJA |
Data do Acordão: | 05/06/2020 |
Tribunal: | 2 SECÇÃO |
Relator: | SUZANA TAVARES DA SILVA |
Descritores: | IRS IMPUGNAÇÃO JUDICIAL PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS |
Sumário: | I - Os actos procedimentais e processuais das partes no direito tributário são regulados pelo princípio da legalidade e nenhum obstáculo legal existe a que o sujeito passivo que tenha procedido a um determinado enquadramento dos seus rendimentos no âmbito das declarações de rendimentos entregues venha, posteriormente, pugnar por um outro enquadramento dos mesmos, seja por expedientes procedimentais, seja por expedientes processuais, como é o caso da impugnação judicial da liquidação. II - Através da impugnação judicial assegura-se, primariamente, a verificação da legalidade da tributação dos rendimentos, i. e., assegura-se que os mesmos são tributados segundo o que a lei dispõe, sendo essa uma forma de garantir a afectividade do princípio fundamental da igualdade na contribuição para os encargos públicos, que é pedra angular da tributação. III - A posição jurídica do sujeito passivo relativamente ao conteúdo dos actos tributários releva como pressuposto processual, quer para determinar a legitimidade para impugnar, quer para aferir do interesse em agir. |
Nº Convencional: | JSTA000P25828 |
Nº do Documento: | SA220200506046/12 |
Data de Entrada: | 01/27/2020 |
Recorrente: | A....... - COOPERATIVA AGRÍCOLA ......, CRL. |
Recorrido 1: | AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA |
Votação: | UNANIMIDADE |
Aditamento: | |
Texto Integral: | Acordam na secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo: I – Relatório 1 - A …… – Cooperativa Agrícola ………., CRL, com os sinais dos autos, interpôs recurso da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, que, em 26 de Setembro de 2019, julgou improcedente a impugnação judicial que havia deduzido contra a liquidação adicional de IRS (por erros nas taxas de retenção na fonte aplicadas) relativa ao exercício de 2008, no montante global de €184.393,47, apresentando, para tanto, alegações que concluiu do seguinte modo: I – DA OMISSÃO DO DEVER DE PRONUNCIA - art.º 615.º n.º 1 al. d) do C.P.C. Artigos 1.º a 16.º A) A causa de pedir, materializada na impugnação em causa, configura o pedido para que o Tribunal se pronuncie quanto à natureza do retorno dos excedentes líquidos gerados pela cooperativa ora impugnante, projectados na esfera jurídico-patrimonial dos cooperantes.B) Pretende-se saber e obter decisão judicial sobre se esses valores consubstanciam rendimentos subsumíveis à Categoria A do IRS, ou seja, se têm natureza de rendimentos do trabalho, ou, ao invés, se subsumíveis à Categoria E desse mesmo imposto, ou seja, se esses valores revestem a natureza de rendimentos de capitais. C) No entendimento da recorrente os mencionados valores revestem a natureza de rendimentos de trabalho dependente, como tal, subsumíveis à Categoria A do IRS – por aplicação do disposto no art.º 2.º do CIRS. D) Pelo contrário, a AT que defende que tais rendimentos se subsumem à Categoria E do mesmo imposto, isto é, preenchem a natureza de rendimentos de capitais – por aplicação do disposto no art.º 5.º do CIRS. E) A decisão recorrida é completamente omissa quanto à questão que lhe é colocada e sobre a qual tinha o dever de se pronunciar e decidir. F) Ou seja, não decide, nem fundamenta se os rendimentos em causa, subjacentes e inerentes à liquidação impugnada se enquadram na Categoria A, ou na Categoria E e, a enquadrarem-se (ou não) numa destas categorias qual a fundamentação jurídica para tal opção de enquadramento. G) O Tribunal recorrido, ao contrário daquilo a que a lei obriga, não se pronunciou sobre a questão/matéria central que constituía a causa de pedir, pelo que a sentença proferida padece de forma clara, inequívoca e ostensiva, do vício de nulidade, por omissão do dever de pronúncia, a que se reporta o artigo 615.º n.º 1 al. d) do C.P.C. nulidade essa que desde já se invoca deixa arguida e acarreta todos os devidos e legais efeitos inerentes. II – DO VICIO DE VIOLAÇÃO DE LEI - ERRO NA DETERMINAÇÃO DAS NORMAS APLICÁVEIS – artigo 639.º n.ºs 1 e 2 al.s a) a c) do C.P.C. Artigos 17.º a 95.º da Motivação - Desde logo consignar que a sentença recorrida é ilegal, violando o disposto nos artigos 2.º do C.P.C., 2.º do Código Cooperativo e 16.º do Estatuto Fiscal Cooperativo (em vigor em 2008), 71.º n.º 3, al. c) do CIRS (na versão da Lei 6-A/2007 de 31.12), 2.º, 5.º, e 101.º n.º 1 al. a) do CIRS e 59.º da LGT, porquanto: i. H) Desconsiderou, por completo, o facto de a impugnante se tratar de uma cooperativa e, como tal, se reger por estatutos e diplomas próprios/específicos, entre outros e com interesses para a boa decisão da causa, os normativos atrás referidos isto não obstante ter julgado como provado que a impugnante era uma cooperativa.I) Desconsiderou que: - Atenta a natureza/personalidade jurídica da impugnante o resultado positivo do exercício da cooperativa não é lucro propriamente dito, antes a importância que os cooperantes entregaram a mais ao a utilizarem, e que depois lhes é devolvida na proporção dessa mesma utilização. - É por esta razão que esse retorno não configura rendimento de capitais. - As cooperativas não têm, perante a concepção e terminologia de “capitais” que integram o leque de rendimentos sujeitos a IRS pela Categoria E (rendimentos de capitais), o mesmo tratamento que as sociedades comerciais ou civis sob a forma comercial. - As cooperativas visam a entreajuda dos seus membros através da sua cooperação, pretendem unicamente a satisfação, sem fins lucrativos, das suas necessidades económicas. - As cooperativas não geram lucros, antes excedentes líquidos, cuja raiz e matriz são absolutamente distintas. J) Tudo como resulta não só dos princípios antes enunciados, quanto do art.º 2.º do Código Cooperativo, o qual foi, por isso violado. Acresce que; L) O excedente líquido será o acréscimo patrimonial que se verifica entre o início do exercício social e o respectivo encerramento, no que tange ao balanço entre as receitas, e os custos e despesas registadas M) - Uma percentagem desse excedente líquido reverterá para a reserva legal e para a reserva para educação e formação cooperativa, bem como para o eventual pagamento de juros pelos títulos de capital, juros estes que, sim, verdadeiros rendimentos de capitais, subsumidos naturalmente às regras do IRS enquanto rendimentos da Categoria E. N) Só o valor remanescente estará sujeito à aplicação do princípio do retorno, isto é, à devolução dos excedentes aos associados na proporção do trabalho que cada cooperador forneceu à cooperativa, no caso, de produção agrícola. O) Logo não subsumível nem tributável em IRS, por força da Categoria E de rendimentos do IRS – art.º 5.º do CIRS. P) Esses rendimentos serão subsumíveis à Categoria A de rendimentos para efeitos de IRS, tudo por decorrência da própria natureza, origem ou fonte donde emanam. Q) E não sendo os controvertidos rendimentos sujeitos a IRS pela Categoria E, não pode a AF querer subsumi-los, por parte da impugnante, à sujeição a uma retenção na fonte de IRS, com natureza liberatória, à taxa de 20% ou a qualquer outra, com enquadramento no art.º 71.º n.º 3 al. c) do CIRS (na versão ao tempo, dada pela Lei 6-A/2007 de 31.12), porquanto tais rendimentos configuram a natureza de rendimentos de trabalho dependente e como tais subsumidos às regras destes – rendimentos da Categoria A de IRS – Termos em que a sentença recorrida violou a legislação supra referida o que a torna ilegal. R) Porque os rendimentos sub judice não se enquadram, como rendimentos de capitais, na previsão constante do art.º 5.º do CIRS, não podem os mesmos ser sujeitos a retenção na fonte nos termos e moldes reclamados pela Autoridade Tributária, isto é, a título de rendimentos de capitais (Categoria E) para efeitos da sua submissão a IRS naquela sede. S) Ao invés do vertido no relatório inspectivo sancionado pelo Director de Finanças de Évora e que esteve na origem da liquidação ora sob sindicância e de que derivou o apuramento da quantia de 165.885,76 € a pretender imputar à impugnante/recorrente, não há lugar a qualquer retenção na fonte sobre rendimentos enquadráveis como de capitais, nem à taxa de 15% tão pouco de 20% como agora a AT pretende. ii T) Tem a impugnante como assente, salvo naturalmente opinião mais avisada, do direito que lhe assiste a reagir contra liquidações que ofendam a legalidade, ainda e mesmo daquelas que, originariamente, o inicial enquadramento tenha sido de sua autoria, ou seja, daquelas que se mostrem desconformes com o direito. U) Se há erro, seja de que natureza for, se estiver em tempo só há que agir em ordem a repor a legalidade. V) O facto da Recorrente ter, inicialmente, enquadrado os rendimentos como se de rendimentos de capitais se tratasse, Categoria E, se o não forem, não existe impedimento a que desse enquadramento se reaga [sic], mormente impugnando essas liquidações (ou quaisquer outras ainda que adicionais), quando as entenda como legalmente viciadas/inquinadas. X) É verdade que inicialmente a impugnante tratou a questão como se de rendimentos de capital se tratasse, erro que já não pôde reparar por já não estar em tempo, mas que não o quer ver repetido através da liquidação impugnada. Z) E quando da sentença se faz constar “entendeu-os desde o início como rendimentos de capital, ou seja, como vantagem económica obtida pelo funcionamento da cooperativa”, esta está a lograr num erro. AA) Os rendimentos de capital no seio das cooperativas serão, por exemplo, os que derivam dos juros que os eventuais títulos dos cooperantes possam gerar, estes sim, rendimentos de capitais subsumíveis à categoria E. AB) Mas isto é outra questão que nada tem o ver com os excedentes líquidos gerados pela cooperativa e que são redistribuídos pelos associados/cooperantes imputados a título de contrapartida pelo seu labor em benefício da cooperativa e do propósito pelo qual foi a mesma constituída. AC) Estes revestindo a natureza de rendimentos de trabalho e como tal sujeitos a tributação e disciplina da Categoria A do IRS. AD) Uma realidade é a obtenção duma vantagem económica obtida pela cooperativa, ou seja, o resultado positivo dos exercícios, outra bem diferente a sua redistribuição pelos cooperantes imputada a título de contrapartida pelo seu labor em benefício da cooperativa. Como tal e em face do exposto o Tribunal recorrido errou na aplicação da lei e violou o disposto nos artigos artigos [sic] 2.º do Código Cooperativo e 16.º do Estatuto Fiscal Cooperativo (em vigor em 2008), 71.º n.º 3, al. c) do CIRS (na versão da Lei 6-A/2007 de 31.12), 2.º, 5.º, e 101.º n.º 1 al. a) do CIRS e 59.º da LGT. iii. AE) A impugnante, nos presentes autos, agiu e actuou sempre de boa fé e com verdeiro espírito de colaboração processual. AF) Devidamente estudado o assunto e colhidos elementos, ensinamentos, teses, doutrina, etc. foi formada uma convicção sobre a questão base da liquidação com que a impugnante se confrontava. AG) Tese que reitera integralmente, revendo-se totalmente no que fez constar da p.i., o que aqui dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos. AH) O facto da ora impugnante ter inicialmente seguido uma interpretação legal incorrecta, não pode impedir que qualquer reação contra liquidação posterior que seguiu idêntico caminho se veja afastada da sua sindicância pelas instâncias judiciais competentes, tão pouco que possa constituir qualquer violação dos princípios da boa fé ou da colaboração. AI) É antes o exercício legítimo e facultado por lei de um direito de defesa que os administrados/ contribuintes usufruem. AJ) Diga-se, além do mais, que a impugnante não atacou as liquidações decorrentes da entrega voluntária de IRS pela Categoria E de rendimentos à taxa de 15%; esclareça-se que somente porquanto já não se encontrava em tempo (as ditas feitas voluntariamente). AL) O que foi atacado foi a liquidação adicional levada a cabo pela AT na decorrência de acto inspectivo que entende que tais rendimentos seriam sujeitos à taxa de 20% que não de 15% como a impugnante liquidou e entregou. AM) E que a impugnante defende que tais rendimentos não são sujeitos nem a uma taxa nem a outra porquanto os rendimentos são de trabalho dependente e não de rendimentos de capitais. AN) Ao negar-se a defesa de tais direitos à Impugnante tal como o fez da decisão recorrida o TAF de Beja violou, para além dos referidos normativos, o disposto no artigo 2.º n.ºs 1 e 2 do C.P.C., já que a interpretação judicial de que se recorre impede a Impugnante de fazer valer os seus direitos, ainda por cima através da reposição da legalidade. O que constitui nulidade da sentença. Termos em que deverá o presente Recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida substituindo-a por outra que declare a anulação da liquidação adicional em apreço e objecto dos presentes autos, fazendo-se assim a tão costumada JUSTIÇA !!!». 2 - Não foram apresentadas contra-alegações. 3 - O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso, revogada a sentença por “não ocorrer o invocado abuso do direito na vertente venire contra factum proprium” e ordenada a baixa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja para que conheça da alegada ilegalidade da liquidação adicional.
4 - Colhidos os vistos legais, cabe decidir. “(…) Na análise prévia efetuada verificou-se que: - No exercício de 2008 foi aplicada, incorretamente, a taxa de retenção na fonte de 15% (art. 101º do CIRS) aos lucros distribuídos em vez da taxa liberatória de 20% conforme consta do artigo 71º, nº 3, al. c) do Código do IRS (..) Com referência às retenções na fonte de IRS efetuadas e pagas em 200 verifica-se que foi submetida uma declaração em 2008-07-17 referente a rendimentos de capitais no montante de € 26.070,84. (…)
E uma declaração submetida em 2008-12-15 que também é referente a imposto de capitais, no montante de €471.586,46.
As referidas retenções na fonte de IRS incidiram sobre os rendimentos de capitais, ou seja, sobre os lucros colocados à disposição dos associados em 2007, no montante de € 173.805,55 e em 2008 no montante de € 3.143,909,75, tendo sido efetuada uma retenção na fonte de IRS por aplicação da taxa de 15% prevista no art. 101º, nº 1, alínea a) do Cód. IRS. (…) No entanto, com a entrada em vigor da nova redação dada à alínea c) do nº 3 do art. 71º do CIRS, pelo Decreto-Lei nº 192/2005, de 7 de novembro, a distribuição de lucros passou a estar sujeita a retenção na fonte de IRS à taxa de 20 % (…). Esta retenção na fonte de IRS tem natureza liberatória podendo os titulares destes rendimentos optar pelo respetivo englobamento para efeitos de tributação, nos termos previstos no nº 6, alínea c) do art. 71º do CIRS com a redação dada pelo Decreto-Lei nº 192/2005, de 7 de novembro. (…) Pelo exposto propõe-se uma correção no montante total de €165.885,76 (…) nas retenções na fonte de IRS do exercício de 2008. J) O projeto de relatório de procedimento de inspeção foi notificado à Impugnante para exercício do direito de audição; K) A Impugnante exerceu o direito de audição relativamente das diversas matérias objeto de apreciação no relatório à exceção das correções mencionadas na alínea I); L) As conclusões, e correções assim descritas, mereceram despacho de concordância do Diretor de Finanças de Évora; M) Em consequência foi emitida em 04/10/2011 a liquidação nº 20116410001404 referente a retenções na fonte de IRS que apurou imposto a pagar no montante de € 165.885,76 e juros compensatórios a pagar no montante de € 18.507,72, totalizando € 184.393,47; N) Não se conformando com a sobredita liquidação apresentou em 11/02/2012 petição inicial que deu origem à presente impugnação.
3 – Do direito
Resulta assim claro que a sentença recorrida se pronunciou sobre a questão formulada pela Impugnante (ora Recorrente) quanto à qualificação dos rendimentos, não no sentido de corroborar que estamos perante rendimentos de capitais, mas sim no sentido de que a qualificação daqueles rendimentos não poderia ser questionada pelo sujeito passivo no âmbito da impugnação judicial deduzida do acto de liquidação adicional. Não sendo a resposta pretendida pelo sujeito passivo relativamente à questão que vinha suscitada, é, porém, a resposta à questão suscitada, pois, independentemente de incorrer ou não em erro de julgamento (por errada interpretação do direito ou dos pressupostos em que se baseie), apresenta uma solução integral para a questão, uma vez que expõe o fundamento pelo qual a pretensão do impugnante não poderia, juridicamente, ser atendida. Ora, resulta assim evidente que a sentença recorrida padece do alegado erro de julgamento, na medida em que os actos procedimentais e processuais das partes são neste âmbito regulados pelo princípio da legalidade e nenhum obstáculo legal existe a que o sujeito passivo que tenha procedido a um determinado enquadramento dos seus rendimentos no âmbito das declarações de rendimentos entregues venha, posteriormente, pugnar por um outro enquadramento legal daqueles rendimentos, seja por expedientes procedimentais – como a reclamação graciosa (ou mesmo a revisão do acto tributário), no âmbito da qual se inclui, também, a reclamação graciosa obrigatória para os casos de erro na autoliquidação (artigo 131.º do CPPT) – seja por expedientes processuais, como é o caso da impugnação judicial da liquidação. * Lisboa, 6 de Maio de 2020. - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (relatora) – Aníbal Augusto Ruivo Ferraz – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes. |