Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:026/09.9BECTB 0250/18
Data do Acordão:07/02/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:ABASTECIMENTO DE ÁGUA
EMBARGO
Sumário:I - O direito de acesso físico e económico ao serviço de abastecimento de água é um direito individual que, mesmo consubstanciando uma dimensão do direito fundamental à qualidade de vida, carece de mediação legislativa para a sua efectivação, seja por razões de segurança da rede de abastecimento, seja para definição das condições em que pode ou deve existir um apoio económico-financeiro no respectivo custeio.
II - A interrupção do fornecimento de água que seja consequência directa do embargo (artigo 103.º, n.º 3 do RJUE) não se esgota na tutela da legalidade urbanística (em evitar a produção de resultados lesivos para os interesses urbanísticos), ela projecta os seus efeitos para lá desta refracção do interesse público, passando, ipso iure, a tutelar outras dimensões do interesse público (designadamente a segurança do funcionamento do serviço em rede) acolhidas no Decreto-Lei n.º 207/94.
III - Sendo o embargo declarado nulo por impossibilidade do objecto (com o fundamento de as obras já se encontrarem concluídas), não pode o restabelecimento do serviço ser judicialmente ordenado sem que a operação urbanística seja legalizada.
Nº Convencional:JSTA000P26174
Nº do Documento:SA120200702026/09
Data de Entrada:04/26/2018
Recorrente:A............
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE ALMEIDA
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – Relatório

1 – A………… interpôs recurso de revista para este Supremo Tribunal Administrativo do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul confirmativo do segmento da sentença do TAF de Castelo Branco que - após julgar procedente a acção por si intentada contra o Município de Almeida na parte em que a Autora pedia que se declarasse nulo o embargo camarário de uma obra que promovera numa casa de sua propriedade - absolveu o Réu dos pedidos condenatórios de restabelecimento do fornecimento de água a essa casa e do pagamento à Autora de uma indemnização.

2 – Por acórdão de 22 de Março de 2018, foi a presente revista admitida quanto à questão da interrupção do fornecimento de água, considerando este Supremo Tribunal que as instâncias não haviam sido persuasivas na fundamentação das razões pelas quais o Município não era condenado a restabelecer o fornecimento daquele serviço público essencial, apesar de ter ficado provado que a casa dispunha de fornecimento público de água antes da obra, que o corte desse fornecimento ocorreu nos termos do disposto no artigo 103.º , n.º 3, do RJUE (i. e., por efeito do embargo) e que o embargo foi declarado nulo.

3 – A Autora, e aqui Recorrente, apresentou alegações que concluiu da seguinte forma:
1. DA ADMISSIBILIDADE DO RECURSO: diante do artigo 150.° do CPTA, o caso dos autos reconduz-se ao Direito à Vida, -a Administrada, ora Recorrente, fez na sua casa de habitação obras sem licença e perante este ilícito a Câmara Municipal, automaticamente, corta-lhe a água; a questão dos Autos é a de saber se o Direito aceita que das obras sem licenças pode derivar automaticamente a "desidratação estatal" do cidadão infractor;

2. Pois, no caso, cumprem-se as exigências ou requisitos do citado artigo 150.°, justificando-se o excepcional recurso de revista para este Supremo Tribunal Administrativo;

3. O presente recurso tem por fundamento a violação do Direito à Vida e da Dignidade da Pessoa — artigos 1.° e 24.° da CRP.

4. O caso dos presentes autos pode sintetizar-se assim: a Recorrente tem uma casa de habitação na qual tinha água da rede pública (cf. facto provado 1.° da Decisão de Facto); em 2003 fez nesta casa de habitação obras sem licença (cf. facto provado 4.° e 5.° da Decisão de Facto); a Recorrente residia nesta casa de habitação (cf. facto provado 2.° e 11.° da Decisão de Facto), mas perante o ilícito, traduzido na falta de licença das obras, a Câmara Municipal corta-lhe a água automaticamente sem lhe dar qualquer prazo para legalizar (cf., entre o mais, facto provado 11.º da Decisão de Facto).

5. "Dá-me o facto, dar-te-ei o Direito": o corte da água, neste caso, configura um barbarismo que não representa sequer o progresso introduzido pelo instituto talião. Figure-se o seguinte: um cidadão tem uma cas [sic] de habitação na qual reside e um dia faz nesta obras sem licença. Perante isto como deve reagir a Administração? Pode aplicar-lhe uma coima e até intimá-lo a legalizar as obras (até mandando demolir). Não pode, ou seguramente, não deve "despejar automaticamente" o cidadão da sua casa a Recorrente residia nesta casa de habitação (cf. facto provado 2.º e 11.º da Decisão de Facto),

6. Sejamos claros: a Administração com o corte da água deixou a Recorrente "na rua"! como seria com a generalidade dos cidadãos, seria necessário, adequado ou justo que ficassem "na rua" durante o tempo que sempre demora a "papelada" da legalização de obras feitas sem licença?

7. O Direito não aceita, atentos, desde logo, a DIGNIDADE DA PESSOA e o PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE, que, de forma automática, como sucedeu in casu, se prive da água da rede pública, se "despeje", o cidadão que faz obras sem licença administrativa na sua casa de habitação. O corte da água e o seu não restablelecimento [sic] ocorreu sem qualquer acto jurídico que o justificasse ou legitimasse.

8. Invoca-se. para os legais efeitos, a inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo 103º do RJUE, do citado DL de 94, bem como de qualquer solução legal, quando interpretados no sentido de permitir de forma automática o corte de água em casa de habitação, na qual se procedeu a obras sem licença administrativa, por desrespeito da Dignidade da Pessoa e o da proporcionalidade.

9. A Administração deve prosseguir o interesse público pelo meio que acarrete menor sacrifício para os Direitos dos Administrados (artigos 18.º e 266.º da CRP, consonante CPA);

10. No procedimento administrativo vertente, salvo o devido respeito, fez-se aplicação cega do artigo 103º/3 do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, pois, desconsiderou-se o princípio da proporcionalidade, destarte, o comportamento do Município de Almeida é enquadrável como abuso de direito;
11. Da responsabilidade civil: A ilicitude podemos divisa-la [sic], desde logo, na patente ilegalidade do corte da água. Em consequência, a Recorrente ficou impossibilitada de utilizar a casa de habitação dos autos, privada do uso desta, que usava como residência [cf. 2º) facto provado da], única entidade que, monopolisticamente, pode fazer o dito fornecimento na área geográfica da casa de habitação em apreço, é, como era, o Réu. a prova da inobservância de leis (violação do Direito à Vida) faz presumir a culpa na produção de danos. A factualidade referida configura um dano patrimonial e moral, deverá o Réu ser condenado a pagar à Autora a quantia total de €18000 (dezoito mil euros).

Nestes termos e nos mais de Direito, com douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao recurso, e, consequentemente, julgada totalmente procedente a acção, assim se fazendo JUSTIÇA!».



4 – O Município de Almeida contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:
A) O caso em apreço nos presentes autos configura - sem margem para dúvidas - uma questão que tem uma natureza casuística, com contornos particulares no contexto factual e jurídico do caso concreto, reconduzindo-se a matérias que não revelam especial complexidade do ponto de vista intelectual e jurídico, sem impacto ou interesse comunitário significativo, e também não se antevê a necessidade de intervenção do Colendo Supremo Tribunal Administrativo para uma melhor aplicação do direito porque não se visiona na apreciação feita pelo tribunal recorrido qualquer erro grosseiro ou decisão descabidamente ilógica, ostensivamente errada ou juridicamente insustentável;
B) Consequentemente, com o mais que Vossas Excelências se dignarão doutamente suprir, deve o recurso interposto pela recorrente ser indeferido nos termos do disposto no art.° 145.° n.º 2 al. a) do CPTA por não estarem preenchidos os pressupostos do recurso de revista excepcional previstos no n.º 1 do artigo 150. º do CPTA.

C) Sem prescindir e para o caso de não ser doutamente decidido conforme supra se deixa exposto, sempre se deverá concluir que, salvo o devido respeito, razão alguma assiste à recorrente, já que o douto Acórdão recorrido decidiu de acordo com o Direito.

D) Ademais a recorrente, nas suas alegações e Conclusões de recurso, não assaca ao douto Acórdão recorrido qualquer violação à Lei, sendo ininteligível alguma referência directa ao doutamente decidido no mesmo, cuja revogação nem sequer é peticionada pela recorrente.

E) Ainda assim sempre se dirá que o douto Acórdão recorrido, quer na sua fundamentação, quer na douta Decisão não comete qualquer violação ao direito à vida nem à dignidade da pessoa, e, por isso, não viola o disposto no n.º 1 do art.º 24.º da CRP.

F) Em consequência, julgando-se o douto Acórdão recorrido conforme à Lei e ao Direito deve o mesmo ser confirmado negando-se provimento ao presente recurso.

Assim se fará JUSTIÇA!».


5 - O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, pronunciou-se no sentido do não provimento do recurso por se tratar de uma recusa de fornecimento de água a uma construção que ainda está por legalizar por culpa da Autora. Notificada deste parecer a Autora veio sublinhar que foi notificada do acto de aprovação dos projectos de arquitectura e especialidades (despacho de 27 de Março de 2002), embora não tenha procedido à obtenção do alvará respectivo e tenha realizado as obras sem esse título.

6 - Colhidos os vistos legais, cabe decidir.

II – Fundamentação

1. De facto
Remete-se para a matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido, a qual aqui se dá por integralmente reproduzida, nos termos do artigo 663.º, n.º 6, do CPC.

2. Questão a decidir
Saber se a decisão de não restabelecer o fornecimento de água consubstancia a violação de normas ou princípios constitucionais e se a mesma enferma de alguma ilegalidade.


3. De direito
3.1. Com relevância para as questões a decidir na presente revista resulta da matéria de facto assente o seguinte: i) que a Autora procedeu a obras de reabilitação na casa de habitação de que é proprietária; ii) que apesar de a mesma ter submetido o pedido de licenciamento e de ter sido notificada da aprovação dos projectos de arquitectura e especialidades (despacho de 27/03/2002), nunca requereu o respectivo alvará de licenciamento; iii) que as obras realizadas revelam alterações em relação aos projectos aprovados; iv) que a obra foi embargada por despacho da Vice-Presidente da Câmara Municipal de Almeida de 2/10/2003, tendo sido lavrado auto de embargo e suspensão de obra em 12/11/2003; v) que foi no seguimento desse embargo e com fundamento no n.º 3 do artigo 103.º do RJUE que se procedeu à interrupção do fornecimento de água à referida habitação; e vi) que a Autora foi notificada da necessidade de proceder à legalização das obras realizadas e que, nessa sequência, a mesma deu entrada ao projecto de arquitectura na Câmara Municipal de Almeida em 8/5/2009.

3.2. Com base na matéria de facto dada como provada, o TAF de Castelo Branco declarou a nulidade do embargo da obra por considerar que o mesmo correspondia a um “acto de objecto impossível”, uma vez que na data em que foi decretado já a obra estava concluída, não sendo possível, por isso, que o mesmo produzisse qualquer efeito útil.
Porém, considerou que não havia que condenar o Município a restabelecer o fornecimento de água à habitação, uma vez que o restabelecimento daquele serviço estaria dependente da aprovação do licenciamento da obra; aprovação que, para este efeito, requeria, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 207/94, de 6 de Agosto, a emissão prévia de parecer sobre os projectos dos sistemas prediais de distribuição de água e de drenagem de águas residuais, por parte da entidade gestora (exigência legal para os casos em que a mesma não seja a Câmara Municipal). Ora, o licenciamento que havia sido aprovado em Março de 2002 caducou decorrido um ano da notificação daquele acto à Autora em consequência de não ter sido requerida a emissão do respectivo alvará (artigo 71.º, n.º 2 do RJUE, na redacção em vigor à data). Com base neste pressuposto, o TAF de Castelo Branco considerou que seria necessária a prévia “legalização das obras” e a correspondente verificação da conformidade legal dos sistemas prediais de distribuição de águas e de drenagem de águas residuais, para que a Autora pudesse ver reconhecido e efectivado o seu direito ao restabelecimento do serviço de fornecimento de água.

3.3. No recurso que interpôs para o TCA Sul, a Autora contestou esta decisão, afirmando que a emissão do alvará não afecta a validade do licenciamento, sendo apenas um acto integrativo da eficácia do primeiro, e que o não restabelecimento do serviço de abastecimento de água consubstanciava a violação do direito fundamental à vida e do direito humano à água.
O TCA Sul não concedeu provimento ao recurso, sustentando que não se verificavam as alegadas violações de direitos fundamentais e humanos e que o facto de as obras terem sido efectuadas sem licença de construção válida (porque caducada), aliado à consequente inexistência de licença de utilização da habitação, explicavam a “legalidade” da interrupção do fornecimento do serviço de abastecimento de água até à “legalização” da operação urbanística. Apesar disso, a latere, expressou alguma censura relativamente à actuação do Município, por o mesmo ter promovido a interrupção abrupta do serviço em vez de ter favorecido a regularização da situação, o que, em seu entender, poderia ter contribuído para a paz social.

3.4. No âmbito da presente revista entende o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão que a admite, que é necessário escrutinar melhor a existência ou não de violação do direito fundamental, bem como a legalidade da actuação, in casu, do Município.

3.4.1. Comecemos pela verificação da existência ou não de violação do direito fundamental e humano à água.
A Autora defende nas suas alegações que a interrupção do fornecimento de água a um cidadão que efectua obras numa casa, sem a devida licença administrativa, consubstancia a violação dos direitos fundamentais à habitação e à vida, bem como dos princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade. Mas não tem, como veremos, razão.
Com efeito, o que está aqui em causa é a prestação de um serviço público essencial, o qual não integra qualquer dimensão do “direito fundamental à vida” entendido como direito, liberdade e garantia, ou seja, como dimensão normativa imediatamente operativa (artigo 18.º, n.º 1 da CRP) do artigo 24.º da CRP, materializada na diferenciação e singularidade da pessoa humana (princípio fundante da dignidade da pessoa humana), capaz de afastar a aplicação das regras legais em matéria de aptidão e segurança das condições materiais de prestação de um serviço público essencial, como aquelas que o mencionado Decreto-Lei n.º 207/94 pretende acautelar com a regulação dos sistemas prediais de distribuição e drenagem de águas residuais.
Em outras palavras, mesmo que o direito de acesso ao serviço público de abastecimento de água pudesse ser qualificado como um serviço essencial à vida humana e não apenas como um serviço que assegura a qualidade de vida (direito ao bem-estar e condições dignas de existência), ainda assim tal não seria suficiente para “afastar” (derrogar) a necessidade de cumprimento das regras que garantem a segurança do funcionamento deste serviço. Importa não esquecer que estamos perante um serviço público em rede, ou seja, em que todos os utilizadores estão ligados a uma infra-estrutura comum, pelo que as condições de segurança e correcto funcionamento dessa infra-estrutura constituem não só um interesse público geral, mas também um interesse da comunidade dos utentes desse serviço, que a entidade gestora está legalmente obrigada a tutelar através da actividade de fiscalização e controlo, seja no âmbito do licenciamento das obras (seja pela emissão do parecer no âmbito do procedimento de licenciamento da operação urbanística quando a entidade gestora do serviço não seja a Câmara Municipal), seja posteriormente através da fiscalização das operações realizadas.
Estamos, pois, perante um direito individual que, mesmo consubstanciando uma dimensão do direito fundamental à qualidade de vida, carece de mediação legislativa para a sua efectivação, cabendo ao julgador verificar se essa mediação legislativa se revela desproporcionada ou desrazoável.

3.4.1.1. Não se ignora que o recente movimento internacional que veio reconhecer o direito à água como direito humano (‘Human Right to Water and Sanitation’) - referimo-nos à Resolução 64/292 das Nações Unidas, de 28 de Julho de 2010 (Esta Resolução teve como sequência, primeiro, a Resolução A/HRC/RES18/1, de 28 de Setembro de 2011, relativa à necessidade de os Estados assegurarem financiamento suficiente para os serviços de abastecimento de água e de recolha de águas residuais poderem cumprir a sua missão, designadamente, a garantia da qualidade da água para o consumo humano, e, mais tarde, na Agenda 2030 como objectivo fundamental do milénio, centrado no acesso de todos a água potável e eficiência e governança no uso do recurso.), emitida na sequência do ‘General Comment’ N.º 15 do Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, de Novembro de 2002, no qual se tinha definido o direito humano à água como o direito de cada ser humano a dispor, para uso pessoal e doméstico, de água em quantidade suficiente, com qualidade (segurança) para consumo humano (beber), em condições aceitáveis para uso doméstico, bem como física e economicamente acessível - enfatiza, precisamente, a dimensão económica deste direito no quadro do desenvolvimento de políticas públicas de efectivação dos ‘objectivos de desenvolvimento do milénio’.
Uma orientação política que teria transposição para o direito europeu através de diversos documentos, de entre os quais destacamos a Directiva-Quadro da Água (Cf. Directiva 2000/60/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Outubro de 2000, na sua redacção actualizada.) e a Directiva sobre a qualidade da água (Cf. Directiva 98/83/CE do Conselho, de 3 de Novembro de 1998, alterada pela Directiva (UE) n.º 2015/1787 da Comissão, de 6 de Outubro de 2015.), transpostas entre nós, respectivamente, pela Lei n.º 58/2005, de 29 de Dezembro (entretanto alterada e republicada pelo Decreto-Lei n.º 130/2012, de 22 de Junho) e pelo Decreto-Lei n.º 306/2007, de 27 de Agosto (alterado pelo Decreto -Lei n.º 92/2010, de 26 de Julho).
Em todos estes documentos e diplomas normativos encontramos, essencialmente, o direito económico à água e a sua relação com a saúde pública.

3.4.1.2. Com efeito, a garantia fundamental do direito à água inscreve-se no quadro dos direitos económicos e sociais da saúde (artigo 64.º da CRP), da habitação (artigo 65.º da CRP) e do ambiente e qualidade de vida (66.º da CRP), como o Tribunal Constitucional já teve oportunidade de sublinhar no acórdão n.º 685/2004. Decisão que é, de resto, acompanhada de declarações de voto que não consideram que o acesso a este serviço possa, sequer, considerar-se fundamental na acepção de derrogar as normas respeitantes à sua onerosidade e, em último termo, sustentabilidade financeira.
Trata-se de um serviço cuja prestação tem de ser garantida pelo Estado, mas essa garantia em nada contende com a regulação legislativa do modo como esse direito deve ser assegurado, seja técnica, seja sanitária, seja economicamente. Pelo contrário, a efectivação dos direitos fundamentais ao qual o serviço de abastecimento de água e saneamento surge ligado depende, precisamente, da existência e do cumprimento de um quadro legislativo e regulamentar que assegure a sua efectivação na prática, seja na dimensão do acesso económico – em especial no âmbito da Lei dos Serviços Público (Lei n.º 23/96, de 26 de Julho), que cria no ordenamento jurídico alguns mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais – seja na dimensão do acesso físico ao mesmo – disciplinando as regras a que devem obedecer os sistemas públicos e prediais de distribuição de água e drenagem de águas residuais (Decreto-Lei n.º 207/94) – seja ainda no quadro das políticas e dos objectivos de saúde pública.

3.4.1.3. Mais, se compulsarmos a jurisprudência comparada, veremos, no plano europeu, que as decisões que mobilizaram o direito individual de acesso à água e saneamento como direito humano e fundamental tiveram, maioritariamente, como questões centrais, ou o problema do acesso físico ao serviço em contextos especiais, como prisões e centros de detenção (Neste sentido, v., por exemplo, a decisão do High Court of Ireland, no caso Kinsella v Governor of Mountjoy Prison, de 12 de Junho de 2011 e as decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem nos casos Fedotov v Russia, de 25 de Outubro de 2005, Riad and Idiab v Belgium, de 24 de Janeiro de 2008 e Tadevosyan v Armenia, de 2 de Dezembro de 2008 – disponível em The human rights to water and sanitation in courts worldwide, 2014.), acomodação de trabalhadores agrícolas sazonais (Neste sentido v., por exemplo, a decisão da Cour de Cassation (proc. 09-48012), de 16 de Fevereiro de 2010, segundo a qual o alojamento de trabalhadores agrícolas sazonais deve fazer-se em condições adequadas e condignas, que envolvem o acesso a água e saneamento – disponível em The human rights to water and sanitation in courts worldwide, 2014. e habitações sociais (Neste sentido v., por exemplo, a decisão da Cour de Cassation (proc. 02-20614), de 15 de Dezembro de 2004, na qual se estipulou que o pagamento de uma renda de valor baixo numa habitação social não pode ser fundamento para que as entidades proprietárias desses imóveis não assegurem uma ligação individualizada da habitação a água e saneamento – disponível em The human rights to water and sanitation in courts worldwide, 2014.), ou o acesso económico, no sentido de “impedir” a interrupção do fornecimento serviço por falta de condições económicas do utente (V. a decisão do Juge de Paix Fontaine-l’Evêque Belga, de 15 de Outubro de 2009, a decisão do Cour Administrative d’Appel (Nancy), França, de 11 de Junho de 2009 e a decisão do Gerechtshof (’s-Hertogenbosch) Holandês, de 2 de Março de 2010 – disponível em The human rights to water and sanitation in courts worldwide, 2014.).
Talvez o caso mais singular no contexto comparado seja o Madame Sandra A c/ Commune de Gouvernes, do Conseil d’État, de 15 de Dezembro de 2010, no qual se discutiu o direito de acesso a água potável da proprietária de um terreno que decidiu residir no mesmo com a respectiva família (o companheiro e cinco filhos) em duas autocaravanas. Instada a assegurar o fornecimento de água potável, a “Comuna de Gouvernes” alegou a violação das disposições do artigo R.449-9 do Code de l'urbanisme para recusar a instalação daquele fornecimento, tendo o Conseil d’État concluído, com base nas disposições conjugadas do artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (direito ao respeito pela vida privada e familiar) com o artigo L-111-6 do Code de l'urbanisme, que a recusa da entidade administrativa teria de ser motivada por razões de segurança das infra-estruturas ou de correcto funcionamento do serviço e não por uma ingerência quanto às opções de modo de vida da requerente. Em outras palavras, o Conseil d’État, salvaguardando os necessários actos de controlo administrativo em matéria de cumprimento das regras urbanísticas respeitantes à construção de infra-estruturas de rede, deu à razão à requerente na medida em que aquela recusa pudesse consubstanciar uma ingerência da entidade pública nas opções de vida privada e familiar.

3.4.1.4. Ora, nenhuma das dimensões respeitantes ao direito humano ou fundamental à água e ao saneamento está em causa no âmbito do presente recurso, a Autora e aqui Recorrente não viu negada a sua pretensão quanto ao restabelecimento do fornecimento daquele serviço por insuficiência de meios económicos, nem está em causa qualquer situação de especial vulnerabilidade da sua parte no acesso físico ao serviço ou sequer de interferência das autoridades administrativas quanto ao seu modo de vida.
A Recorrente promoveu a reconstrução de uma habitação e é nela que pretende ver restabelecido o fornecimento de água e saneamento. O problema reside apenas na circunstância de as obras terem sido realizadas sem um acto licenciador válido (uma vez que a licença, como vimos anteriormente, estava caducada em razão de não ter sido requerida a emissão do alvará) e, como tal, os serviços não poderem proceder à ligação à rede sem que esteja legalizada a intervenção urbanística em crise.
Em suma, a questão aqui em apreço reconduz-se, exclusivamente, a um problema jurídico-administrativo de legalidade da actuação administrativa (interpretação e aplicação das normas legais) e não, como foi já afirmado pelo TCA Sul, a uma violação de direitos ou princípios fundamentais. É, pois, no quadro das regras e dos princípios legais que importa apurar se é correcta a decisão de não promover o restabelecimento do fornecimento, bem como se a mesma se conforma com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

3.4.2. No plano jurídico-legal, como veremos, também não encontramos motivos para censurar a decisão administrativa de não proceder ao restabelecimento do serviço até que a operação urbanística (a reconstrução da habitação) esteja legalizada e seja emitida a licença de habitabilidade.
Como foi correctamente explicado nas decisões judiciais do TAF de Castelo Branco e do TCA Sul, o restabelecimento da ligação do serviço depende da aprovação da licença de construção, que a Autora terá de obter relativamente às obras já realizadas e cujo procedimento, conforme consta do ponto 13.º da matéria de facto dada como provada, foi iniciado em 2009. Só mediante essa aprovação é que haverá a garantia de que as obras realizadas cumprem as já anteriormente mencionadas regras legais e regulamentares em matéria de sistemas prediais de distribuição de água e drenagem de águas residuais (Decreto-Lei n.º 207/94) e, por isso, o restabelecimento do serviço pode ser efectuado sem risco para os utentes (incluindo a aqui Recorrente) e para o correcto funcionamento do serviço. Trata-se, por conseguinte, de assegurar, in casu, o cumprimento do disposto não só do referido Decreto-Lei n.º 207/94, mas também no RJUE.

3.4.2.1. A Autora questiona o facto de a interrupção do serviço ter sido decidida ao abrigo do artigo 103.º, n.º 3 do RJUE, ou seja, como efeito do embargo, o qual, entretanto, foi declarado nulo, dando a entender que a reposição da legalidade, no caso, determinaria o restabelecimento do serviço. Mas não tem razão, pois, como se explica nas decisões judiciais precedentes, o embargo foi declarado nulo por ter um objecto impossível. Em outras palavras, o embargo é uma medida de tutela da legalidade urbanística que se destina a impedir a execução de obras em violação daquela, mas se a obra já está concluída, como ficou provado nos autos, então nada há a embargar (por isso o embargo foi declarado nulo); mas daí não decorre que não exista violação da legalidade urbanística, decorre apenas que aquele não é o instrumento normativo adequado à sua tutela. No caso, como vimos, o instrumento adequado é a legalização (actualmente prevista no artigo 102.º-A do RJUE, mas, à data, pressuposta na iniciação de um novo procedimento de licenciamento por parte do operador urbanístico), entretanto já iniciada.
Quanto à interrupção do fornecimento de água, ela surge como consequência directa do embargo (artigo 103.º, n.º 3 do RJUE) para evitar a produção de resultados lesivos, bem como meio instrumental de efectivar a proibição de execução dos trabalhos urbanísticos (artigo 103.º, n.º 1 do RJUE), mas não se esgota na tutela da legalidade urbanística (em evitar a produção de resultados lesivos para os interesses urbanísticos). No fundo, pelas razões antes aduzidas sobre a caracterização do serviço de abastecimento de água, podemos dizer que a interrupção do serviço é necessária à efectivação do embargo, e nesta medida é instrumento secundário da tutela urbanística, mas projecta os seus efeitos para lá desta refracção do interesse público, passando ipso iure também a tutelar outras dimensões do interesse público (designadamente a segurança do funcionamento do serviço em rede) tuteladas no âmbito do já mencionado Decreto-Lei n.º 207/94.
Neste caso, estando os trabalhos já concluídos, aquela interrupção não é apta a produzir os efeitos respeitantes à tutela da legalidade urbanística, pois não havendo trabalhos em execução, por estarem já todos executados, não se verifica (igualmente por impossibilidade) o efeito de suster a execução, mas é apta a evitar prejuízos para o funcionamento da rede e do sistema predial de água e saneamento decorrentes da obra realizada sem a devida licença (lembramos que a licença caducou nos termos do n.º 2 do artigo 71.º do RJUE por não ter sido requerida a emissão do alvará) até que a mesma venha a ser legalizada, razão pela qual não tem razão a Recorrente ao pretender que o restabelecimento da ligação seja uma consequência directa da declaração de nulidade do embargo, pois os efeitos projectados por aquela medida no âmbito da segurança da rede do serviço e do sistema predial de distribuição de água perduram.
Em resumo, a ligação do serviço de abastecimento de água e saneamento carece da verificação da conformidade legal e regulamentar da instalação predial da rede, a qual tem lugar com o licenciamento das operações urbanísticas dos prédios para os quais a mesma é requerida. Da nulidade do embargo por impossibilidade de objecto (obras já finalizadas) não resulta a legalização da operação urbanística (i. e. um título que ateste que as obras realizadas respeitam as regras urbanísticas e, menos ainda, que aquelas obras respeitam as normas relativas à segurança dos sistemas de abastecimento, in casu, de água e saneamento) e por isso não estão acautelados os interesses a que o corte do abastecimento do serviço, por efeito do embargo, deu protecção e que estão acolhidos no Decreto-Lei n.º 207/94.
E a autonomização dos efeitos da interrupção do abastecimento de água face ao embargo é também visível no âmbito da legalização da operação urbanística entretanto efectuada em que podem ser mobilizados fundamentos que permitam suportar juridicamente a obra apesar da lesão que dela possa resultar para a tutela dos interesses urbanísticos, mas é inadmissível a legalização se forem desrespeitadas as normas técnicas acolhidas na legislação que tutela a segurança dos sistemas prediais de abastecimento de água e saneamento (o Decreto-Lei n.º 207/94). Quanto a este ponto, apenas a legalização das operações urbanísticas realizadas permite restabelecer o serviço.
Pode ainda questionar-se se o Município, após a declaração de nulidade do embargo, não teria de emitir um novo acto, ordenando de forma autónoma a interrupção do fornecimento de água com fundamento na ilegalidade da intervenção urbanística realizada no edifício e, por isso, na violação do disposto no Decreto-Lei n.º 207/94. Entendemos, porém, que tal não é necessário na medida em que o fundamento jurídico daquela interrupção do serviço se mantém, apesar da nulidade do embargo, pelas razões supra indicadas, pois o embargo é, necessariamente, um expediente provisório de reposição da legalidade urbanística e a sua finalidade é, como dissemos, parar uma operação em curso para evitar que as lesões se produzam, e mesmo quando o embargo é decretado, segue-se a necessária legalização da operação urbanística para definir a sua situação jurídica com carácter definitivo, o que não pode deixar de ocorrer sem a colaboração do promotor. Assim, neste caso, o que decorre da nulidade do embargo é que o mesmo se tem por inútil para acautelar a legalidade urbanística violada, pelo que há-de proceder-se, acto imediato, à legalização da operação urbanística (como de resto a própria Recorrente fez) e só depois disso será possível restabelecer o serviço.
Por essa razão, e apesar da declaração de nulidade do embargo, o restabelecimento do serviço não pode ser exigido ou determinado sem que se mostre devidamente licenciada a obra (legalizada a obra quanto ao sistema de abastecimento predial de água e saneamento). O contrário, ordenar a reposição imediata do serviço sem a prévia legalização da operação urbanística teria como efeito potencial a lesão dos interesses que o licenciamento do sistema predial de águas visa acautelar e como consequência prática a “legalização” material por via judicial do ilícito urbanístico.

3.4.2.2. A Recorrente alega ainda que não se trata de uma ligação ex novo do serviço, mas tão só do restabelecimento de uma ligação previamente existente (ponto aditado à matéria de facto pelo acórdão do TCA Sul), ou seja, o prédio em questão já dispunha de ligação ao serviço antes do embargo e, por essa razão, deve o mesmo ser restabelecido. Porém, também não tem razão quanto a este ponto, pois, como resulta da matéria de facto dada como provada, não se trata de restabelecer o serviço ao mesmo prédio, leia-se, nas condições em que o mesmo estava a ser prestado. É que ficou provado que o prédio foi objecto de reconstrução, o que significa que não está demonstrado que o concreto sistema predial de distribuição de água e de recolha de águas residuais seja aquele que existia desde finais de 1988. Mais, ficou também provado que a intervenção realizada apresenta alterações relativamente ao projecto aprovado (licença que, entretanto, caducou) (v. ponto 6.º da matéria de facto), pelo que, para efeito de restabelecimento da ligação ao sistema de abastecimento de água deve ser tratado como uma ligação ex novo, que apenas deve ser realizada quando se comprovar a conformidade dos sistemas prediais “pós reconstrução” com as normas legais e regulamentares.

3.4.2.3. Uma última nota para ajuizar da proporcionalidade e da razoabilidade da decisão administrativa aqui sindicada. Diremos que, em sede de juízo de proporcionalidade não só a medida de não restabelecer o serviço se afigura adequada a assegurar a tutela da legalidade urbanística, assim como os interesses em presença (o interesse público no correcto funcionamento do serviço, os interesses dos utentes na segurança e bom funcionamento da rede e até o interesse do utente do serviço em não sofrer danos em decorrência de eventuais defeitos ou irregularidades do sistema predial do imóvel) como necessária, na medida em que a alternativa menos onerosa que existia dependia da actuação do interessado, que, como se destaca no acórdão do TCA Sul, optou por recorrer à via judicial em vez de solicitar a emissão do alvará ou até de iniciar, após a caducidade da licença, um novo procedimento de legalização da operação urbanística. Consequentemente, um juízo global de razoabilidade revela que a decisão administrativa assenta em razões atendíveis e válidas na realização da legalidade urbanística e dos interesses em presença, pelo que, se afigura conforme ao direito.

Por esta razão, não merece censura a decisão da Recorrida em manter a situação de não restabelecimento do serviço de abastecimento de água e saneamento até que venha a ser legalizada a obra.

III – Decisão


Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em negar provimento à presente revista.

Custas pela Recorrente.


*

Lisboa, 2 de Julho de 2020. - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (relatora) – Maria Cristina Gallego dos Santos (com declaração de voto) – José Augusto Araújo Veloso.


REC. Nº 26/09.9BECTB

Voto de vencido:

Salvo o devido respeito, não acompanho o entendimento que faz vencimento quanto à improcedência do pedido de condenação do Município Recorrido a restabelecer o fornecimento de água no imóvel de residência da Recorrente, pelas razões que em termos breves se alinham em declaração de voto.

Tomando em conta as datas do acto de licenciamento da operação urbanística (27.03.2002), do despacho de embargo (02.10.2003) a efectivação do auto de embargo (12.11.2003) e despacho de ratificação do embargo e de corte de fornecimento de água (18.11.2003) - vd. pontos 6, 7, 8 e 10 do probatório - trata-se de actos praticados ao abrigo do RJUE (DL 555/99), na redacção introduzida pelo DL 177/2001, de modo que os pressupostos legais da medida cautelar de tutela da legalidade urbanística devem verificar-se no momento da emissão do acto que o ordena e, também, aquando da respectiva execução mediante o respectivo auto lavrado pelo funcionário.

Dada a informação técnica de 18.09.2003 e o ofício de 27.10.2003 do Município Recorrido dirigido à Recorrente, o despacho de embargo (02.10.2003) tem por fundamento a caducidade da licença face à inobservância do ónus da Recorrente, traduzida no esgotamento do prazo de um ano sobre a notificação do licenciamento de 27.03.2002, termo ad quem em 06.04.2003, sem que tivesse requerido a emissão do alvará, título cuja emissão é condição de eficácia do acto de licenciamento (artºs 71º nº 2 e 74º nºs. 1 e 2 RJUE) - vd. pontos 5, 6 e 7 do probatório.

Ou seja o embargo, acto que substancia os poderes de autotutela declarativa e executiva em matéria de legalidade urbanística, foi ordenado pelo Município Recorrido com fundamento em ilegalidade meramente formal: a falta de licença por caducidade derivada do decurso do prazo para requerer o alvará, sendo estes os termos da notificação do despacho de 02.10.2003 que determinou o embargo - vd. ponto 7 do probatório.

Constituindo a licença um acto com eficácia diferida, tratando-se de um licenciamento válido quanto à conformidade legal das obras no tocante à operação urbanística pretendida, v.g. conforme projecto de arquitectura aprovado - vd. ponto 3 do probatório - e estando a produção dos respectivos efeitos dependente da emissão do alvará, cabe concluir que a inobservância do ónus de requerer o alvará no prazo legal (obrigação de facere sob pena de perda de vantagem) fez incorrer a Recorrente na perda da posição jurídica de vantagem definitivamente definida e em que estava investida pelo acto de licenciamento de 27.03.2002, restando-lhe requerer novo licenciamento que seguiria as regras em vigor à data do novo procedimento urbanístico.

Sucede que apenas na redacção introduzida pelo DL 26/2010 foi aditado o n° 5 ao art° 71º RJUE no sentido de esta caducidade da licença dever ser declarada em sede de procedimento com audiência do interessado para todas as causas de caducidade, embora a doutrina da especialidade defendesse que a caducidade da licença não operava automaticamente, isto é, ex lege por força do decurso do prazo do ano sobre a notificação do licenciamento, carecendo, antes de ser declarada em todas as situações e não só no caso especificamente previsto de obras não concluídas no prazo fixado na licença ou na autorização (artº 71º nº 3 d) e nº 5 RJUE/DL 177/2001).

O embargo, que consiste na paralisação imediata e temporária dos trabalhos de execução da obra, artº 103º nº 1 RJUE, tem como finalidade a reintegração da ordem administrativa violada; no que importa ao caso trazido a recurso, tem como objecto a situação de facto evidenciada pelas obras em curso de execução mas sem a necessária licença – artº 102º nº 1 a) RJUE - dele devendo constar, entre o mais, o "estado da obra" – artº 102º nº 3 RJUE.

Todavia, a situação de facto existente à data do auto, lavrado em 12.11.2003 e consignada expressamente, é que “Os trabalhos encontram-se concluídos… e o exterior também está concluído...” - vd. ponto 8 do probatório - o que acarreta a nulidade do embargo porque quer o objecto constante da hipótese legal do artº 102º nº 1 RJUE, ou seja, a actividade de construção, quer o efeito jurídico estatuído no artº 103° n° 1 RJUE, que é a suspensão das obras, não existem – artº 133º nº 2 c) CPA/1991.

A partir daqui, a meu ver, suscita-se o problema da insubsistência do despacho de ratificação da Vice-Presidente da Câmara Municipal de Almeida de 18.11.2003 exarado na informação de 13.11.2003 dos serviços do Município Recorrido cujo conteúdo, na parte que importa, é o seguinte: “(..) 3 - É de proceder ao corte de fornecimento de água, bem como de energia eléctrica em conformidade com o previsto no nº 3 do artº 103º do diploma já citado. Para efeitos de energia eléctrica deverá ser comunicado à EDP (...)” - vd. pontos 9 e 10 do probatório.

Não sofre dúvidas que a informação de 13.11.2003 dos serviços do Município Recorrido constitui a fundamentação por declaração de concordância expressa exarada no despacho de 18.11.2003 de ratificação do auto de embargo, emitido pela Vice-Presidente da Câmara Municipal de Almeida, cujo teor é: “Ratifique-se e proceda-se de acordo com a informação dos serviços técnicos” – artºs 124º nº 1 a) e 125º nº 1 CPA/1991.

Por consequência, a génese, no sentido de causa jurídica, do corte de fornecimento da água pelos serviços do Município Recorrido na decorrência do disposto no artº 103º nº 3 RJUE - ponto 11 do probatório - assenta no embargo ordenado em 02.10.2003 tendo por fundamento expresso a caducidade da licença por incumprimento do ónus de requerer o alvará no prazo de um ano sobre a notificação do licenciamento, embargo executado mediante auto lavrado em 12.11.2003.

O que significa que sendo nulo o embargo porque as obras estavam concluídas, o corte do fornecimento de água perdeu o fundamento jurídico legalmente previsto para a sua execução (artº 103º nº 3 RJUE), passando a interrupção do fornecimento de água a constituir uma operação material ilegal e lesiva da esfera jurídica da Recorrente, ou seja, passou a constituir um acto ilícito.

Toda a argumentação trazida ao processo por parte do Município Recorrido no domínio do DL 207/94, 06.08 diploma que rege os sistemas prediais de distribuição e drenagem de águas residuais, configura uma fundamentação a posteriori do embargo ordenado em 02.10.2003 e ratificado em 18.11.2003 e, por isso, destituída de base legal.

De facto, em momento algum, seja no auto de embargo lavrado em 12.11.2003 seja na informação de 13.11.2003 dos serviços do Município Recorrido que constitui a fundamentação da ratificação do embargo e ordem de corte do fornecimento de água por despacho de 18.11.2003, é mencionado o regime dos sistemas prediais de distribuição e drenagem de águas residuais do DL 207/94 como ilícito evidenciado na execução dos trabalhos de edificação da operação urbanística licenciada, aquando do embargo.

Aliás, conforme ofício de 27.10.2003 do Município Recorrido dirigido à Recorrente, a única ilegalidade pressuposta no acto que ordena o embargo (despacho de 02.10.2003) é a falta de licença para a execução de obras na moradia, não sendo feita qualquer menção de desconformidade substancial dessas obras com o projecto de arquitectura e projectos de especialidades aprovados - vd. ponto 7 do probatório.

Acresce que o corte de fornecimento de água fundado no embargo ordenado em 02.10.2003, levado a auto de 12.11.2003, corte ordenado aquando da ratificação por despacho de 18.11.2003, foi executado pelo Município Recorrido na casa de habitação da Recorrente em que residia desde Maio/2003.

O que significa que, no exercício dos poderes de execução coactiva dos efeitos jurídicos emanados do despacho de embargo, traduzidos na operação material de corte de fornecimento de água, poderes conferidos pelo artº 103º nº 3 RJUE, incumbia ao Município Recorrido observar o regime da Lei 23/96 de 26.07 (Lei dos Serviços Públicos) que no artº 1º nº 1 define como objecto da citada lei a “consagra[ção de] regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à protecção do utente”, definindo no elenco tipificado de serviços públicos constante do artº 1º nº 2 a), o serviço de fornecimento de água.

Relativamente ao serviço público de fornecimento de água a Lei 23/96 no artº 5º sob a epígrafe suspensão do fornecimento do serviço público, determina como segue: “1. A prestação do serviço não pode ser suspensa sem pré-aviso adequado, salvo caso fortuito ou de força maior", sendo de aplicar quanto ao prazo de pré-aviso, analogicamente, o disposto no artº 5º n° 2 ou seja, o corte da água “só pode ocorrer após o utente ter sido advertido, por escrito, com a antecedência mínima de 20 dias relativamente à data em que ela venha a ter lugar”.

Por outro lado, o mencionado prazo de 20 dias (artº 5º/2 Lei 26/07) deve ser fixado pela entidade administrativa competente, no caso o Município Recorrido, aquando da emissão e notificação do despacho que ordena o embargo e a medida coactiva de suspensão do fornecimento de água, posto que, no tocante à suspensão dos serviços públicos, estes 20 dias do artº 5º/2 Lei 26/07 mais não são do que o “prazo razoável” para efeitos da decisão de proceder à execução determinado no artº 177º nº 3 CPA vigente, implícito no anterior artº 152º nº 1 CPA/91.

Neste enquadramento, julgaria o recurso parcialmente procedente, revogando o acórdão recorrido e ordenando o restabelecimento do serviço público de fornecimento de água no imóvel da Recorrente no prazo de 48 horas contado do trânsito em julgado do presente acórdão.

Lisboa, 02.07.2020

Cristina dos Santos