Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01113/11
Data do Acordão:02/08/2012
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JORGE DE SOUSA
Descritores:EXECUÇÃO DE JULGADO
PAGAMENTO INSUFICIENTE
PAGAMENTO PARCIAL
Sumário:O regime de imputação de pagamentos previsto no art. 40.º, n.º 4, da Lei Geral Tributária é aplicável às dívidas da administração tributária para com os contribuintes, pagas em execução de julgado.
Nº Convencional:JSTA00067404
Nº do Documento:SA22012020801113
Data de Entrada:12/05/2011
Recorrente:A..., S.A.
Recorrido 1:DIRGER DOS IMPOSTOS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF LEIRIA PER SALTUM
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC JULGADO
Legislação Nacional:LGT98 ART30 N1 ART40 N4 ART43 N5 ART44 ART102 N2 NA REDACÇÃO DA L 64-B/2011 DE 2011/12/30
CCIV66 ART9 N3 ART785 N2
L 41/98 DE 1998/08/04 ART2 N19
CPC96 ART729 N3 ART730 N3
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC447/07 DE 2007/10/17
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1 – A……, S.A., requereu no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria execução da sentença do mesmo Tribunal, de 26-10-2009, que julgou procedente uma impugnação judicial de uma liquidação de IRC relativa ao ano de 1998.
Por sentença de 4-6-2010, proferida no presente processo de execução daquela sentença, aquele Tribunal condenou a executada Fazenda Pública a pagar à exequente o seguinte:
1. o montante de 500.758,58 €, a título de restituição do imposto indevidamente pago;
2. Juros indemnizatórios, calculados sobre o capital reclamado, no montante referido na alínea antecedente, à taxa de 7% ao ano, no período compreendido entre 30/12/2002 e 01/05/2003, e à taxa de 4% ao ano, quanto ao período compreendido entre 01/05/2003 e 14/12/2009;
3. Juros de mora sobre o capital reclamado, referido em 1. supra, calculados à taxa de 4% ao ano, desde 15/12/2009 até integral pagamento.
A Exequente pediu esclarecimento da sentença, sobre quem deve efectuar o pagamento, que requerera que fosse efectuado por dotação orçamental do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (fls. 140-145).
Aquele Tribunal esclareceu que o pagamento através da referida dotação apenas deveria ser efectuado se a Administração Fiscal não efectuasse o pagamento no prazo de 30 dias (fls. 148).
A Administração Fiscal efectuou a restituição à Exequente da quantia de 500.758,58 €, relativa ao do imposto indevidamente pago, mas a Exequente defendeu que tal pagamento deve ser imputado, em primeiro lugar, aos juros indemnizatórios e juros de mora e só depois à dívida de imposto (que será o capital) (fls. 161-163 e 170-172).
A Administração Fiscal efectuou outros pagamentos, mas a Exequente entende que ainda estão em dívida quantias relativas ao imposto em causa e juros de mora (fls. 223 e seguintes).
A Fazenda Pública, no entanto, entendeu que a sentença está completamente executada.
Por despacho de 14-7-2011, o Meritíssimo Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria julgou a obrigação da Fazenda Pública integralmente cumprida e improcedente o pedido da Exequente de pagamento de outras quantias.
É deste despacho que a Exequente interpôs o presente recurso jurisdicional, em que apresentou alegações com as seguintes conclusões:
1. Em 24.12.2010 foi instaurado o PEF nº 1775201001058460 para cobrança coerciva de dívida relativa ao IRC de 2007, na quantia exequenda de € 6.3 02,44, vencida em 02.12.2010;
2. A oponente intentou neste TAF os processos de impugnação que identifica no art.º 7º da p.i. junta aos autos e que aqui se da por integralmente reproduzido;
3. Pela devedora não foi efectuado qualquer pagamento no referido processo;
4. e em que, no seu n.º 3, se referem expressamente pagamentos efectuados por "contribuintes e terceiras”; ressalvando, pois, a aplicação do n.º 3 a estes casos – algo que os restantes números, como é bom de ver, não fazem.
5. Não se poderá concluir, assim, senão que o legislador fiscal não pretendeu consagrar tal limitação ao n.º 4, ora em análise.
6. Não o tendo feito, não o poderá fazer, também, o intérprete ou aplicados da lei.
7. Do ponto de vista teleológico, a aplicação indistinta (i.e., a pagamentos a efectuar quer pelo contribuinte, quer pela Administração fiscal) deste preceito resulta (também) por demais evidente.
8. Com efeito, uma limitação como aquela que o Tribunal a quo entendeu existir contenderia com o Estado de Direito democrático, não se compaginando, designadamente, com o princípio constitucional da igualdade.
9. Pois que, em face de uma mesma obrigação tributária (no mesmo montante, claro está), ver-se-ia a Administração fiscal habilitada a contabilizar juros enquanto tal obrigação não se mostrasse integralmente liquidada pelo contribuinte; enquanto que este teria apenas direito a receber os juros que se mostrassem já devidos aquando da prolação da sentença que os tornou devidos em primeiro lugar,
10. e independentemente do momento em que estes viessem, afinal, a ser pagos (2, 5 10 ou mais anos)!
11. Este mesmo entendimento, de resto, foi já professado pelo douto Supremo Tribunal Administrativo, que concluiu, em Acórdão proferido em Outubro de 2007 (do qual foi Relator o Venerando Juiz Conselheiro Lúcio BARBOSA) que "no caso de o montante pago [pela Administração fiscal] ser inferior ao detida, a imputação do pagamento, faz-se nos termos do artigo 40.º, n.º 4, da LGT".
12. Pelo que, salvo o devido respeito, a decisão proferida além de não se compaginar com os mais elementares princípios do Estado de Direito democrático, viola o disposto no artigo 40.º, n.º 4 da LGT.
TERMOS EM SE DEVE DAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, ANULANDO-E A DECISÃO RECORRIDA, COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, ASSIM SE FAZENDO INTEIRA JUSTIÇA.
A Fazenda Pública contra-alegou, sem apresentar conclusões, defendendo, em suma, que o recurso não deve ser provido e deve ser mantida a sentença recorrida.
O Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público não emitiu parecer, no prazo legal.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – No despacho recorrido fazem-se referências às posições assumidas pelas partes no processo, mas não se dá especificamente como provado que os pagamentos que a Fazenda Pública diz ter efectuado o tenham sido.
De qualquer modo, resulta inequivocamente da sentença recorrida que as partes estão de acordo quanto ao ponto de não ter sido efectuado de uma só vez o pagamento que a administração tributária deveria fazer em execução de julgado, o que basta para identificar a questão que é objecto do recurso, embora no caso de a decisão vir a ser favorável à Recorrente seja necessária a fixação dos factos relevantes para aplicar o direito, que não pode ser efectuada por este Supremo Tribunal Administrativo, que tem poderes de cognição limitados a matéria de direito (art. 12.º, n.º 5, do ETAF).
3 – A questão que se coloca no presente recurso jurisdicional é a de saber qual a ordem por que devem ser imputados pagamentos efectuados pela administração tributária, em execução do julgado anulatório, que não foram suficientes para o pagamento de todas as quantias que essa execução implicava.
Na sentença recorrida entendeu-se que não era aplicável o regime previsto no art. 785.º, n.º 2, do Código Civil, por ele apenas ter aplicação em caso de pagamento voluntário e não nos de execução coerciva.
Entendeu-se ainda na sentença recorrida que o art. 40.º, n.º 4, da LGT também não é aplicável, por visar situações em que o contribuinte tem de efectuar pagamentos à administração tributária e não pagamentos desta em relação ao contribuinte.
No presente recurso jurisdicional, a Recorrente censura à sentença recorrida apenas o decidido quanto à não aplicação, o que tem ínsito que aceitou o entendimento adoptado nela quanto à não aplicação do regime do art. 785.º, n.º 2, do Código Civil.
4 – O art. 40.º, n.º 4, da LGT estabelece o seguinte:
4. Em caso de o montante a pagar ser inferior ao devido, o pagamento é sucessivamente imputado pela seguinte ordem, a:
a) Juros moratórios;
b) Outros encargos legais;
c) Dívida tributária, incluindo juros compensatórios;
d) Coimas.
Não resulta explicitamente do texto desta norma se o regime nele previsto se aplica apenas às dívidas de que são credoras entidades públicas ou também às dívidas de que estas entidades são devedoras em relação a particulares.
A referência que nesta norma se faz a juros de mora não permite qualquer ilação num sentido ou noutro, pois tanto pode ser credor desse tipo de juros a administração tributária como o contribuinte (arts. 44.º e 102.º, n.º 2, da LGT e, actualmente, também o n.º 5 do art. 43.º, na redacção da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro).
Por outro lado, embora naquele n.º 4 do art. 40.º se faça referência a juros compensatórios, de que só pode ser credora a administração tributária (art. 35.º da LGT), e não também a juros indemnizatórios, de que só podem ser credores os contribuintes (art. 43.º da LGT), não pode daí retirar-se qualquer conclusão no sentido de legislativamente se ter em mente a aplicação da norma apenas a créditos da administração tributária sobre os contribuintes, pois os juros indemnizatórios podem englobar-se, por mera interpretação declarativa, na referência a «outros encargos legais», que consta da alínea b).
Desta perspectiva, a referência explícita aos juros compensatórios e não também aos juros indemnizatórios, pode ser explicada pelo facto de aos juros compensatórios, ao contrário do que sucede com os juros indemnizatórios, não ser reconhecida autonomia, por eles se integrarem «na própria dívida do imposto, com a qual são conjuntamente liquidados». Isto é, a referência explícita na alínea c) aos juros compensatórios, terá o alcance de clarificar que, para efeitos de imputação dos pagamentos, eles são tratados como a dívida tributária e não como encargos autónomos.
Por isso, não pode com base no teor literal do n.º 4 do art. 40.º da LGT, afastar-se a sua aplicação às dívidas da administração tributária para com os contribuintes.
5 – O art. 40.º da LGT vem incluído no Capítulo referente à «Extinção da relação jurídica tributária» e na sua Secção I, relativa ao «pagamento da prestação tributária».
A «relação jurídica tributária» abrange, inequivocamente, não só as dívidas do contribuinte para com a administração tributária como as desta para com os contribuintes, como resulta do texto do n.º 1 do art. 30.º da LGT, em que se indicam créditos e dívidas e juros a favor da administração tributária e a favor do contribuintes:
Integram a relação jurídica tributária:
a) O crédito e a dívida tributários;
b) O direito a prestações acessórias de qualquer natureza e o correspondente dever ou sujeição;
c) O direito à dedução, reembolso ou restituição do imposto;
d) O direito a juros compensatórios;
e) O direito a juros indemnizatórios.
Por outro lado, é também inequívoco que a referida Secção I, relativa ao «pagamento da prestação tributária», não se aplica apenas às dívidas dos contribuintes para com a administração tributária, pois o art. 43.º da LGT, englobado nesta Secção, reporta-se exclusivamente a dívidas da administração tributária para com os contribuintes.
Assim, também não pode com base no elemento sistemático retirar-se qualquer conclusão no sentido da não aplicação do regime do referido n.º 4 do art. 40.º da LGT às dívidas da administração tributária para com os contribuintes.
6 – Neste contexto, resta fazer apelo ao elemento racional e teleológico que aponta no sentido de aquela norma ser aplicável, na falta de qualquer outra, às dívidas da administração tributária para com os contribuintes.
Na verdade, sendo relevante a ordem de imputação dos pagamentos para determinar os direitos dos contribuintes (como evidencia o montante considerável que atinge a discordância entre a administração tributária e o contribuinte no presente processo), não será aceitável uma interpretação no sentido de que os pagamentos insuficientes que a administração tributária efectuar são imputáveis nos créditos do contribuinte pela forma que a administração tributária entender.
Por outro lado, não seria compreensível uma solução deste tipo, num contexto de um diploma, como é a LGT, que visou promover «uma maior justiça fiscal entre a Administração e os contribuintes», particularmente em matéria do regime de juros a favor da administração tributária e dos contribuintes [como se conclui da alínea 19) do art. 2.º da Lei n.º 41/98, de 4 de Agosto, que autorizou o Governo a aprovar a LGT].
Assim, a solução mais razoável, que se tem de presumir ter sido legislativamente adoptada (art. 9.º, n.º 3, do Código Civil), é a de que naquele n.º 4 do art. 40.º da LGT se regulou, de forma igualitária e justa, o regime de imputação de pagamentos insuficientes tanto das dívidas do contribuinte para com a administração tributária como as desta para com os contribuintes.
De resto, a entender-se que o regime das dívidas da administração tributária para com os contribuintes não está abrangido neste n.º 4 do art. 40.º, estar-se-ia perante uma lacuna de regulamentação, pois, como se referiu, não é indiferente a forma como é efectuado o pagamento e, por isso, se trata de um ponto das relações entre a administração tributária e os contribuintes carente de regulamentação.
O preenchimento dessa hipotética lacuna não poderia deixar de ser efectuado com aplicação analógica da referida norma do art. 40.º, n.º 4, da LGT, tendo em mente a referida intenção legislativa de consagrar «uma maior justiça fiscal entre a Administração e os contribuintes».
Por isso, é de entender, como já decidiu este Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 17-10-2007, proferido no processo n.º 447/07, e o referido art. 40.º, n.º 4, da LGT ser aplicável às dívidas da administração tributária para com os contribuintes.
7 – Como se referiu, a situação fáctica em que assentou a decisão recorrida está suficientemente definida para ser identificada a questão de direito a apreciar, mas não o está quanto à quantificação das quantias pagas e cálculo das quantias a pagar, designadamente porque até haverá que atender a um elemento normativo novo, que é o n.º 5 do art. 43.º da LGT, aditado pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, que tem aplicação imediata às decisões judiciais transitadas em julgado, cuja execução se encontre pendente à data da entrada em vigor desta Lei, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do seu art. 151.º.
Por isso, impõe-se que os autos baixam ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, a fim de ser ampliada a matéria de facto com fixação de todos os factos relevantes, em conformidade com os arts. 729.º, n.º 3, e 730.º, n.º 1, do CPC, subsidiariamente aplicáveis por força do disposto nos arts. 281.º do CPPT e 4.º, n.º 1, alínea b), do DL n.º 303/2007, de 24 de Agosto, factos esses a que deverá fazer aplicação do regime jurídico definido no presente acórdão.
Termos em que acordam em conceder provimento ao recurso jurisdicional, em revogar a decisão recorrida e em ordenar que os autos baixem ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria a fim de ser proferida nova decisão com ampliação da matéria de facto e aplicação do regime legal aqui definido.
Custas pela Fazenda Pública, que contra-alegou, com procuradoria de 1/8.
Lisboa, 8 de Fevereiro de 2012. – Jorge de Sousa (relator) – Francisco Rothes Fernanda Maçãs.