Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01113/08
Data do Acordão:04/15/2009
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:MIRANDA DE PACHECO
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO FISCAL
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CÚMULO JURÍDICO
Sumário: De harmonia com o disposto no artigo 25.º do RGIT [redacção introduzida pelo artigo 113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, (Orçamento Geral do Estado)] a prática de várias infracções fiscais é punida com uma única coima.
Nº Convencional:JSTA000P10354
Nº do Documento:SA22009041501113
Recorrente:A...
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1 – A…, inconformada com a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou improcedente o recurso que interpôs do despacho do Director de Finanças de Lisboa que lhe aplicou uma coima no valor de € 10.706.00, por ter entregue a declaração de IVA referente ao mês de Março de 2001, no prazo legal mas desacompanhada do respectivo meio de pagamento, dela vem interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
1. No presente processo, a Recorrente foi acusada da prática de uma contra-ordenação por ter apresentado a declaração periódica de IVA no prazo legal embora não acompanhada do respectivo meio de pagamento.
2. A mesma infracção (relativamente a outros períodos) realizada pela ora Recorrente foi-lhe imputada noutros processos de contra-ordenação referentes ao período entre o início de 2003 e o final de 2005.
3. Por isso, à Recorrente não deverá ser imputada a prática de uma contra-ordenação isolada, mas sim de uma contra-ordenação continuada, porquanto se verificam, in casu, todos os pressupostos legais do art. 30º, n.º 2 do Código Penal, aplicável por força do art. 3° b) e 19° RGIT e art. 32° RGCO.
4. Tal como o crime continuado, a contra-ordenação continuada é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação.
5. Tendo a Administração Tributária instaurado um processo de contra-ordenação por cada um dos períodos em relação aos quais não foi pago o imposto, aplicando uma coima por cada um dos comportamentos omissivos, violou as normas respeitantes à previsão e punição das infracções continuadas, nomeadamente, o art. 19. ° do RGCO, 20°, n.º 2 e 79.° do Código Penal, aplicáveis subsidiariamente em matéria de contra-ordenações fiscais por força dos arts. 3°, alínea b) do RGIT e 32.° do RGCO.
6. Assim, o presente processo de contra-ordenação é ilegal, devendo ser arquivado e, em seu lugar, ser instaurado um único processo de contra-ordenação por todos os comportamentos omissivos da Recorrente ao qual deverá ser aplicável a coima prevista no art. 114°, n.º 2 do RGIT, com o agravamento previsto no art. 26°, n.º 4 do mesmo código, sendo os respectivos intervalos determinados pela mais elevada prestação tributária em falta.
2 – Contra-alegou o Ministério Público, tendo formulado as seguintes conclusões:
1.ª.Está imputada à arguida recorrente a prática da contra-ordenação p.p. nos artigos 40.°/1/a) e 26.°/1 do CIVA e 1 14.°/2 e 26.°/4 do RGIT.
2.ªPorquanto estando registada em IVA no regime normal de periodicidade mensal, fez a entrega, em 12/3/2001, da declaração periódica do IVA relativa ao período de Janeiro de 2001, sem a prestação tributária necessária para satisfazer o imposto exigível, no montante de € 49.562,66.
3.ª O comportamento de que a arguida vem acusada nestes autos repetiu-se ao longo do intervalo de tempo compreendido entre o início de 2003 e finais de 2005.
4.ªComo justificação desse comportamento a arguida vem alegar dificuldades económicas resultantes de uma acentuada diminuição das vendas.
5.ªPara que se verifique uma contra-ordenação continuada necessário se torna que se verifiquem os seguintes pressupostos:
A-Realização plúrima do mesmo tipo de infracção (ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico;
B-Homogeneidade da forma de execução;
C-Unidade de dolo; as diversas resoluções devem conservar-se dentro de uma linha psicológica continuada;
D-Lesão do mesmo bem jurídico;
E-Persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente.
6.ªOra, no caso em análise é manifesto que não ocorre o pressuposto referido na alínea E da anterior conclusão.
7ª.Efectivamente o pagamento do imposto em causa (IVA) não é suportado pela arguida, antes tendo cobrado o mesmo dos seus clientes para o entregar nos cofres do Estado.
8.ªAssim se não fez entrega desse mesmo imposto ao Estado é porque deu outro destino (indevido) ao respectivo montante, o qual se encontrava à sua guarda.
9.ªportanto, as alegadas dificuldades económicas, nem sequer levemente, diminuem a culpa da arguida.
10ª.Não ocorre, pois, uma situação de contra-ordenação na forma continuada.
11 .-A douta sentença recorrida fez uma correcta interpretação e aplicação da lei, não tendo violado quaisquer normativos, nomeadamente, os constantes dos artigos 19.° do RGCO e 30.°12 e 79.° do Código Penal.
3 – O Exmº Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer suscitando a questão prévia da incompetência em razão da hierarquia deste Supremo Tribunal Administrativo para conhecer do recurso uma vez que “ Nas conclusões 2 e 5, a recorrente alega factos que a Mmª Juiz não estabeleceu no probatório nem levou em consideração na decisão recorrida.”
4- Desta questão prévia, foram notificadas as partes (cfr. artº 704º do CPC) tendo respondido, apenas a recorrente nos termos que constam de fls. 111 a 116, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais e em que, após considerar que “ …apesar de não constar dos factos assentes na sentença recorrida, facto é que na decisão de direito, a M.ma Juiz os apreciou, considerando como factos provados e assente aqueles que servem de base às alegações de direito que nesta sede se pretendem ver discutidas” conclui que “…a recorrente apenas pretende ver discutida esta questão de direito, não fazendo sequer referência a qualquer matéria de facto controvertida, tanto mais que tal controvérsia factual não existe no recurso interposto.”
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
5-A decisão recorrida fixou a seguinte matéria de facto:
1. Aos 07/08/01, na Direcção de Serviços de Cobrança do IVA, quando se encontrava no exercício das suas funções, o Director de Serviços …, verificou pessoal e directamente que a Sociedade “A…”, com sede em Lisboa, enquadrada em sede de IVA no regime normal com periodicidade mensal, não entregou dentro do prazo fixado para o efeito a declaração periódica acompanhada pelo respectivo meio de pagamento do imposto, previamente liquidado nos termos da lei, relativamente ao mês de Julho de 2005, sendo o valor do imposto em falta no montante global de Esc.: 9.936.421$00 (cfr. doc. junto a fls. 2 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);
2. O auto de noticia identificado no ponto 1 deu origem ao presente processo de contra-ordenação fiscal nº 310720056015280, cuja parte administrativa correu termos no Serviço de Finanças de Lisboa 8 e foi autuado em 08/07/05 (cfr. capa do processo);
3. A arguida notificada para apresentar a sua defesa ou pagar voluntariamente a coima (cfr. doc. junto a fls. 5 dos autos);
4. Por despacho de 17/01/06, que aqui se dá por integralmente reproduzido foi aplicada a coima à arguida no montante de € 10.706,00 (cfr. doc. junto a fls. 25 e 26 dos autos);
5. A arguida foi notificada da decisão descrita no ponto anterior do probatório em 10/05/2006 (cfr. doc. junto a fls. 11 e 12 dos autos);
6. Em 30/05/06, a arguida deduziu a impugnação judicial do referido despacho (cfr. carimbo aposto a fls. 13 e segs. dos autos);
7. Da conduta da arguida resultou efectivo prejuízo para a Fazenda Nacional, expresso no montante de imposto liquidado e não entregue nos cofres do Estado no tempo devido;
6- Questão Prévia.
Importa começar por enfrentar a questão prévia suscitada pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto relativa à incompetência deste Supremo Tribunal para o conhecimento do recurso, uma vez que não versaria exclusivamente matéria de direito.
Para tanto, sustenta que nas “conclusões 2 e 5, a recorrente alega factos que a M.ma Juiz não estabeleceu no probatório, nem levou em consideração na decisão recorrida”.
Por sua parte, a recorrente alega que só pretende ver discutida matéria de direito e que os factos em causa, embora não tenham sido fixados em sede de matéria de facto, foram apreciados na decisão recorrida e considerados provados.
Vejamos.
É indiscutível que, designadamente, a factualidade levada à conclusão 2. (A mesma infracção (relativamente a outros períodos) realizada pela ora recorrente foi-lhe imputada noutros processos de contra-ordenação referentes ao período entre o início de 2003 e o final de 2005) não foi dada por assente na decisão recorrida.
Não obstante, o certo é que a decisão sob recurso assenta a sua fundamentação jurídica na realidade desse quadro factual, o que também se encontra pacificamente aceite por todos os intervenientes processuais (cfr. conclusão 3.ª da contra-alegação do Ministério Público).
Neste contexto, impõe-se concluir que tais factos constituem uma realidade processualmente adquirida e, como tal, deverá ser relevada para efeito da apreciação da questão jurídica controvertida no presente recurso jurisdicional.
Versa o recurso, assim, em exclusivo matéria de direito, daí resultando a competência deste Supremo Tribunal, em razão da hierarquia, para o seu conhecimento (artigo 26.º, alínea b) do ETAF), em consequência do que se indefere a suscitada questão prévia.
7-Mérito do Recurso
A questão jurídica controvertida no presente recurso foi em data bem recente apreciada e decidida neste Supremo Tribunal em processo com a mesma recorrente, bem como se apresentam idênticas as conclusões produzidas na respectiva alegação de recurso.
Sendo assim, por se concordar com o entendimento perfilhado no acórdão de 21/01/09, no processo n.º 928/08, seguiremos de perto a fundamentação jurídica aí aduzida tendo em vista uma interpretação e aplicação uniformes do direito (cfr. artigo 8.º, n.º3 do CC).
Escreveu-se no aresto em causa:
“Sob a epígrafe “Concurso de contra-ordenações”, o artigo 25.° do Regime Geral das Infracções Tributárias, na redacção da Lei n.° 15/2001 de 5 de Junho, preceituava que «As sanções aplicadas às contra-ordenações em concurso são sempre cumuladas materialmente».
No entanto, e por força do artigo 113.° da Lei n.° 64-A/2008 de 31 de Dezembro [Orçamento do Estado para 2009], o mesmo artigo 25.° do Regime Geral das Infracções Tributárias passou a ter a seguinte redacção.
1. Quem tiver praticado várias contra-ordenações é punido com uma coima cujo limite máximo resulta da soma das coimas concretamente aplicadas às infracções em concurso.
2. A coima aplicável não pode exceder o dobro do limite máximo mais elevado das contra-ordenações em concurso.
3. A coima a aplicar não pode ser inferior à mais elevada das coimas concretamente aplicadas às várias contra-ordenações.
Pelo que se vê, o artigo 25.° do Regime Geral das Infracções Tributárias previa o simples cúmulo material das coimas. E, agora, com a Lei do Orçamento para 2009, opera-se a alteração da regra de cúmulo das coimas aplicáveis. Ou seja: a anterior regra de cúmulo material é substituída por uma regra de cúmulo jurídico. Determina-se agora que quem tiver praticado várias contra-ordenações é punido com uma coima única com o valor máximo da soma das coimas aplicadas, desde que este não ultrapasse o dobro do limite máximo mais elevado das contra-ordenações em concurso e o valor mínimo correspondente ao valor da mais elevada das coimas concretamente aplicadas às várias contra-ordenações.
O regime assim introduzido apresenta-se abstractamente mais favorável aos contribuintes.
E, por isso, o regime do (novo) artigo 25.° do Regime Geral das Infracções Tributárias deverá ser aplicado retroactivamente aos processos contra-ordenacionais pendentes, se da sua aplicação ao caso concreto redundar uma sanção mais favorável para o acoimado.
Na verdade, o artigo 29.° da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe “Aplicação da lei criminal”, preceitua, no seu n.° 4, que «Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido».
E o princípio constitucional da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável ao arguido tem expressa consagração no Código Penal — aplicável também às contraordenações fiscais, por força da remissão do artigo 32.° do Regime Geral das ContraOrdenações [Decreto-Lei n.° 433/82, de 27 de Outubro], e do artigo 3.°, alínea b), do Regime Geral das Infracções Tributárias.
Com efeito, o n.° 4 do artigo 2.° do Código Penal estatui que «Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior».
De outra banda, em caso de concurso de contra-ordenações, sendo aplicada uma coima única, recomenda-se que seja organizado pela autoridade competente um único processo e seja proferida uma única decisão de aplicação de coima — cf. a este respeito o n.° 1 do artigo 36.° do Regime Geral das Contra-Ordenações (Decreto-Lei n.° 433/82, de 27 de Outubro), aplicável subsidiariamente às contra-ordenações fiscais por força da alínea b) do artigo 3.° do Regime Geral das Infracções Tributárias; e cf. também Germano Marques da Silva, no Curso de Processo Penal, 1, Verbo, Lisboa, 2000, p. 196.”
Na situação “sub judicio”, a decisão sob recurso concluiu pela improcedência do pedido formulado pela ora recorrente de se lhe aplicar uma pena única, para o efeito argumentando com o facto de “..actualmente, em todos os casos, as coimas aplicadas a várias contra-ordenações, cometidas pelo arguido, serem acumuladas materialmente (artigo 25.º do RGIT))…”.
Ora, como vimos, tal argumentação jurídica perdeu toda a actualidade em face da nova redacção do citado dispositivo legal,
Nesta conformidade, sendo incontroverso que “a mesma infracção (relativamente a outros períodos) realizada pela ora recorrente foi-lhe imputada noutros processos de contra-ordenação referentes ao período entre o início de 2003 e final de 2005”, impõe-se concluir que tendo praticado várias infracções fiscais deve a mesma ser punida com uma coima única, nos termos do artigo 25.º da Regime Geral das Infracções Tributárias [redacção Do artigo 113.º, da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, (Orçamento do Estado para 2009)]
Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida a fim de ser observado o disposto no artigo 25.º da Regime Geral das Infracções Tributárias (nova redacção).
Sem custas.
Lisboa, 15 de Abril de 2009. - Miranda de Pacheco (relator) - Pimenta do Vale - Lúcio Barbosa.