Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:094/06.5BEMDL 01270/17
Data do Acordão:04/04/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:FONSECA DA PAZ
Descritores:PENA DE INACTIVIDADE
DEVER DE IMPARCIALIDADE
EXERCÍCIO DAS FUNÇÕES
Sumário:I – A quebra do dever de imparcialidade subsumível no art.º 25.º, n.º 2, al. c), do ED aprovado pelo DL n.º 24/84, de 16/1, implica que o funcionário, com culpa grave ou dolo, tenha adoptado um comportamento concreto discriminador no exercício de funções que atente gravemente contra a sua dignidade e prestígio ou das funções que exerce.
II – Um comportamento privado é insusceptível de ser subsumido no aludido normativo, o qual não é aplicável aos actos pessoais ou praticados por funcionários fora do exercício das suas funções.
III – Ainda que a conduta da recorrente seja censurável, não é de lhe atribuir relevância para efeitos do citado art.º 25.º, n.º 2, al. c), se não afectar de forma especialmente grave a sua imagem ou a da Administração, considerando a natureza e a importância das funções exercidas e o que a sociedade exige a quem as ocupa.
Nº Convencional:JSTA000P24413
Nº do Documento:SA120190404094/06
Data de Entrada:12/20/2017
Recorrente:A.........
Recorrido 1:MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:



RELATÓRIO


A……… intentou, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Mirandela, acção administrativa especial, contra o Ministério da Administração Interna, para impugnação do despacho, do Secretário de Estado da Administração Interna, que, concedendo parcial provimento ao recurso hierárquico que interpusera do despacho do Director-Geral de Viação de 2005.04.26, fixou em 1 ano a pena disciplinar de inactividade que lhe fora aplicada.

O TAF, por acórdão de 27/1/2014, julgou a acção procedente e, em consequência, anulou o acto impugnado.

Desta decisão a Entidade Demandada interpôs recurso para o TCA Norte, ao qual veio a ser concedido provimento, por acórdão datado de 11 de Maio de 2017.

Deste acórdão, a A. interpôs recurso de revista para este STA, tendo, na respectiva alegação, formulado as seguintes conclusões:

“1ª - O presente recurso de revista vem interposto do douto acórdão do TCAN proferido em 2017.05.11. que concedeu provimento ao recurso interposto da sentença proferida pelo TAF de Mirandela que julgou procedente o pedido de anulação do despacho do Sr. Director - Geral de Viação de 2005.04.26, mediante o qual foi aplicada à ora Recte. a pena disciplinar de inactividade pelo período de um ano:
2ª - Como se extrai quer do Relatório Final subjacente à decisão punitiva, quer do ponto 11 dos Factos Provados no douto Acórdão sob escrutínio, assentou aquela no facto de se considerar que, com a sua conduta, a ora Recte. violou os deveres de imparcialidade, de isenção, de obediência e de lealdade, previstos no artº 3º n°s 3, 4, als. a), c) e d), 5, 7 e 8, do Estatuto Disciplinar na altura em vigor;
3ª - A esse propósito, no douto acórdão refere-se “Acresce que que se trata de uma situação reprovável, não só do prisma da imparcialidade, mas também dos deveres de isenção e de zelo sendo certo que, conforme é jurisprudência segura, “as infracções disciplinares não são estanques e exclusivas de cada linha de actuação do funcionário; podem assumir diferentes dimensões, razão pela qual a um só comportamento pode corresponder a violação de vários deveres gerais” (...) “.
4ª - O Tribunal a quo não se pronunciou, assim, sobre dois dos pressupostos em que assentou a decisão punitiva - a violação por parte da Recte. dos deveres de lealdade e de obediência -, e pronunciou-se pela verificação, in casu, da violação por parte da Recte. do dever de zelo, não alegado, nem considerado em lado algum para efeitos da pena aplicada;
5ª - Verifica-se, assim, que o tribunal ao quo, ao mesmo tempo, omitiu pronúncia sobre questão sobre a qual deveria pronunciar-se, e pronunciou-se sobre questão sobre a qual não deveria ter-se pronunciado.
6ª - Ocorre, assim, nulidade do Acórdão, face ao disposto nos art°s 674°, n° 1, al. c), 66°, n° 1, e 615°, n° 1, al. d) do CPC, aplicáveis, ex vi dos art°s 1º e 155° do CPTA;
7ª - Resulta do Relatório Final, e da prova documental constante do PA, que as impugnações judiciais deram entrada no Governo Civil de Vila Real no dia 12 de Junho de 2000;
8ª - Extrai-se ainda dos loc. cit. que a ora Recte. esteve de baixa por doença no período decorrido entre 31 de Maio e 31 de Agosto de 2000;
9ª - Segundo a melhor jurisprudência, o zelo ou a falta dele parecem surgir “in actu exercito”, cabendo inferir da sua existência ou detetá-lo à luz ou por referência com aquilo em que consiste a atividade funcional desempenhada pelo funcionário/trabalhador, determinando e apurando se naquele desempenho o mesmo revelou desconhecer e aplicar as normas legais, regulamentares, ordens e instruções dos seus superiores hierárquicos, bem como exercer as funções em desacordo com os objectivos que haviam sido fixados ou mobilizando meios desadequados á consecução desses fins;
10ª - Revertendo ao caso em análise, resulta assente que, à data dos factos, a Recorrente não se encontrava no exercício das suas funções, nem no seu local de trabalho, nem no seu horário de trabalho, pelo que não pode senão concluir-se não ter violado o dever de zelo;
11ª - Por outro lado, as “impugnações” em causa não visavam de alguma forma atacar ou sequer contrariar as decisões proferidas nos respectivos processos de contra-ordenação, mas antes a substituição das respectivas sanções acessórias de inibição de conduzir pela prestação de caução de boa conduta, sendo o único meio para atingir tal desiderato;
12ª - Tais “impugnações” não consubstanciavam senão um mero requerimento, onde os interessados invocavam prejuízos pessoais decorrentes da cassação da carta de condução, que justificariam a substituição de tal sanção por um outro sacrifício, este de natureza económica, acompanhado da obrigação de assunção de um comportamento inibitório durante um determinado período;
13ª- Acresce que, contrariamente ao alegado no douto acórdão, as impugnações judiciais em apreço não foram dirigidas ao serviço onde a Recorrente estava integrada, ou seja, à Delegação de Vila Real da Direcção-Geral de Viação, mas sim ao Governo Civil de Vila Real;
14ª - Tratando-se de impugnações judiciais, foram dirigidas - como não poderiam deixar de ser -, ao Juiz de Direito do Tribunal de Vila Real, sendo este quem detinha competência para decidir, em última instância, sobre tais pedidos;
15ª - Ora, o dever de imparcialidade impede-os (os funcionários ou agentes) é de terem qualquer intervenção nos procedimentos em que sejam parte ou em que alguém da sua esfera de relacionamentos privados seja parte;
16ª - Sucede que, no caso dos autos, i) não sendo a Recorrente funcionária ao serviço do Governo Civil de Vila Real, onde as impugnações foram entregues ii) nem funcionária do Tribunal de Vila Real, destino das mesmas, cristalino se torna que a Recorrente iii) nenhuma intervenção teve na tramitação de tais impugnações, sendo certo que dos autos também não resulta, por nem sequer alegado, que a mesma tivesse tido qualquer intervenção na tramitação de tais processos “a montante” das impugnações, ou seja, enquanto tramitados na Delegação de Vila Real da DGV;
17ª - De qualquer modo, como se refere no douto Acórdão a págs, 19, a Recte. agiu na prossecução de interesse particular de terceiro sem a sua veste de funcionária;
18ª - Resulta provado nos autos que a ora Recte. não actuou directamente a solicitação dos infractores, mas antes a pedido de um terceiro, com quem se relacionava pessoalmente, logo, não é verdade que a Recte. tenha ajudado os arguidos por motivo de amizade;
19ª - Assentando a alegada violação do dever de isenção na relação de amizade da Recte. com os arguidos, inexistindo esta, como demonstrado, e não resultando minimamente dos autos que a primeira tivesse retirado qualquer vantagem directa, pecuniária ou outra, dos factos que lhe são imputados, manifesta é a total falência da alegada violação do dever de isenção;
20ª - O mesmo sucede com a alegada violação do dever de obediência, porquanto a Recte. não recebeu, nem poderia ter recebido, qualquer ordem superior para elaborar impugnações judiciais em defesa de arguidos e, assim sendo, não poderia contrariar, ou seja, desobedecer a tais não-ordens, porquanto simplesmente não se encontrava, à data dos factos, em efectividade de funções.
21ª - Também a actuação da ora Recte. não permite concluir pela violação do dever de lealdade, porquanto, “ao assinar as impugnações judiciais atuou contra o interesse do serviço”;
22ª - Além de tal alegada deslealdade não colher o mínimo de demonstração nos autos, é impensável que a administração directa ou indirecta do Estado age, ou conforma a sua actuação, por forma a evitar que a sua actividade possa escapar ao controle da legalidade;
23ª - Por isso, a impugnação dos seus actos não pode ser vista como um obstáculo à sua acção, antes pelo contrário, deve ser vista como um reforço, ou a confirmação, da lisura dos seus actos e procedimentos, por conformes à le;
24ª - Uma impugnação judicial não pode, assim, ser vista nem como um acto contra o respectivo serviço, bem pelo contrário, já que a confirmação da legalidade do acto servirá para reforçar a legalidade dos procedimentos, e a declaração de ilegalidade dos mesmos actos servirá para corrigir procedimentos futuros;
25ª - Reitera-se, no entanto, que as ditas “impugnações judiciais” em causa mais não consubstanciavam senão meros requerimentos a solicitar a substituição da pena de inibição de conduzir pela prestação de caução de boa conduta;
26ª - Quanto à adequação da pena aplicada em função da gravidade da actuação da Recte., deverá ter-se em conta que o acórdão sob escrutínio alude a “favoritismo na resolução de (...) pretensões”, ou então à “proibição de favoritismos (como sendo) um dos corolários do princípio da imparcialidade;
27ª - Ora, a “dispensa de tratamento de favor a determinada pessoa, empresa ou organização” consubstancia infracção disciplinar sancionada com pena de suspensão, nos termos do n° 1, al. f) do E.D. em vigor à data dos factos;
28ª - Tal seria, em última análise, a subsunção possível dos factos praticados pela ora Recte., pois que, como abundantemente referido acima e reconhecido no douto acórdão recorrido, a arguida, ora Recte., agiu despida da sua veste de funcionária, assinando duas petições de conteúdo perfeitamente inócuo relativamente aos fins pretendidos, a pedido de um terceiro que não os interessados directos em tais documentos, e perante uma entidade, ou serviço público que não era o seu, sem ter obtido qualquer beneficio da sua actuação nem ter intervindo, de alguma forma nos procedimentos contraordenacionais subjacentes às impugnações em causa;
29ª - Tanto basta para demonstrado ficar que, como reconhecido ab initio, a conduta da ora Recte. não reveste dignidade disciplinar mas, mesmo que assim se não entenda, nunca atentaria contra a dignidade e prestígio da própria ou da sua f nunca essa conduta se revestiu de gravidade tal que justificasse a aplicação de pena disciplinar tão grave como é a pena de inactividade pelo período de um ano, ou seja, a pena de escalão imediatamente a seguir à pena expulsiva;
30ª- Decidindo como se decidiu, o douto Acórdão incorreu em erro de julgamento, por errada interpretação e aplicação dos art°s 3°, n°s 1, 3, 4, als, a), c) e d), 5,7, 8, 11°, n°1, al d), 12°, n°5, 24° e 25°, todos do E.D. e 44° a 51° e 266°, n°s 2 e 6 do CPA”.

O recorrido contra-alegou, tendo concluído que o recurso deveria ser rejeitado por carência dos pressupostos exigidos no artigo 150.º, n.º 1, do CPTA ou, se assim não se entendesse, deveria ser julgado improcedente.

O Exm.º Magistrado do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal Administrativo, emitiu parecer, onde concluiu que seria de conceder provimento ao recurso, revogando-se o acórdão recorrido e julgando-se a acção procedente.

Pela formação de apreciação preliminar a que alude o art.º 150.º, do CPTA, foi proferido acórdão a admitir a revista.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência para julgamento

FUNDAMENTAÇÃO

I. MATÉRIA DE FACTO
O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
“1) A autora é funcionária da Direção Geral de Viação, com a categoria de Assistente Administrativa Especialista, a desempenhar funções na Delegação de Viação de Vila Real (fls. 347 do P.A.);
2) Por Ofício n.º 001008 de 06.02.2001, sob o assunto «Recursos de impugnação judicial dos autos de contra-ordenação nºs. 210839384 e 209184973», o Delegado de Viação de Vila Real comunicou ao Diretor Regional de Viação do Norte, o seguinte (fls. 125 e 126 do P.A.):
1) O arguido no processo supra referenciado, não se conformando com a decisão administrativa, proferida pelo Governo Civil de Vila Real, apresentou recurso de impugnação judicial, em 06/06/2000;
2) No recurso, o arguido, solicita a substituição da sanção acessória de inibição de conduzir, pela suspensão da sua execução mediante prestação de caução de boa conduta, nos termos do n.° 2, do art.° 142, do Código da Estrada;
3) Acontece que, no caso vertente, o recurso de impugnação foi apresentado por parte ilegítima no processo, uma vez que do mesmo não consta qualquer mandato ou procuração atribuído à pessoa que assina o referido recurso;
4) A pessoa em questão, atenta a assinatura aposta no recurso, afigura-se-nos que seja uma funcionária da Delegação de Viação de Vila Real e, como tal, não poderia ser mandatada para representar o arguido;
5) Essa funcionária parece tratar-se de A…….., uma vez que a assinatura constante do recurso de impugnação é idêntica à usada pela referida funcionária em vários documentos, conhecidos destes Serviços;
6) A funcionária em questão encontra-se há cerca de um ano de atestado médico, pelo que, as eventuais medidas a tomar poderão estar prejudicadas pelo quadro clínico da mesma;
7) O dever de isenção, definido no Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central Regional ou Local, impõe que o funcionário ou agente, não retire vantagens, directas ou indirectas, pecuniárias ou outras, das funções que exerce, devendo actuar com independência em relação aos interesses e pressões particulares de qualquer índole, respeitando sempre a igualdade dos cidadãos; e
8) Embora não tenhamos qualquer prova de que houve benefício pecuniário, este expediente poderá configurar um desvio ao dever de isenção.

3) O referido ofício foi acompanhado dos processos de contraordenação referidos no assunto, onde constam as impugnações aí apresentadas (fls. 128 e ss. do P.A.);
4) A 08.02.2001 o Diretor Regional de Viação do Norte determinou que se ouvisse a funcionária e que se propusesse solução jurídica para o assunto (fls. 125 do P.A.);
5) Após terem sido efetuadas várias diligências, entre as quais a audição da autora, foi proferido relatório a 12.12.2002, onde se propunha o seguinte «Face ao exposto e não se apurando a existência de matéria disciplinar, propõe-se o arquivamento do processo de averiguações» (fls. 95 do P.A.);
6) O Diretor Regional de Viação do Norte determinou que o assunto fosse analisado pelo G.J.C., o que ocorreu por via o ofício n.º 3075, de 20.12.2002 (fls. 91 e 89 do P.A.);
7) A 12.02.2003 foi proposto ao Diretor-Geral de Viação que se instaurasse processo de averiguações, o que foi determinado por despacho deste de 03.03.2003 (fls. 10 e ss. do P.A.);
8) Foi instaurado processo de averiguações que correu termos entre 13.03.2003 e 26.03.2003 e onde se propôs a final a instauração de processo disciplinar à autora por violação dos deveres de isenção, zelo, obediência, lealdade e correção (fls. 18 e ss. do P.A.);
9) Por Despacho de 24.04.2003 do Diretor-Geral de Viação, exarado na informação de 24.04.2003, foi mandado instaurar processo disciplinar à autora (fls. 2 do P.A.);
10) A 12.05.2003 foi autuado processo disciplinar contra a autora (fls. 220 do P.A.);
11) Foi deduzida acusação, nos termos da qual, em síntese, se imputa à autora a prática de ilícito disciplinar, consubstanciado na alegada elaboração e assinatura de duas impugnações judicias referentes aos autos de contraordenação nºs. 209184973 e 210839384 que correram termos na Delegação de Vila Real da Direção Geral de Viação, por violação dos deveres de imparcialidade, isenção, obediência e lealdade, previstos e punidos nos termos das disposições conjugadas dos artigos 3.º, n.ºs 1, 3, 4, als. a) e d), 5, 7 e 8, 11.º, n.º 1, al. d), 12.º, n.º 5 e 25.º, al. c) do Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de janeiro (doc. 1 junto com o r.i. no processo cautelar 27/06.9BEMDL; fls. 194 do P.A.);
12) A autora apresentou defesa por escrito invocando a prescrição e negando a prática dos factos, requerendo ainda diligências de prova (doc. 2 junto com o r.i. no processo cautelar 27/06.9BEMDL fls. 201 do P.A.);
13) Foi elaborado relatório final no qual se propunha a aplicação à autora de pena disciplinar de inatividade pelo período de um ano (doc. 3 junto com o r.i. no processo cautelar 27/06.9BEMDL; fls. 213 do P.A.);
14) Sobre o relatório referido recaiu despacho do Diretor-Geral de Viação que, discordado da pena proposta, face à gravidade da infração, decidiu pela aplicação à autora de uma pena de inatividade pelo período de um ano e dez meses (doc. 3 junto com o r.i. no processo cautelar 27/06.9BEMDL; fls. 226 do P.A.);
15) A autora interpôs recurso hierárquico para o Secretário de Estado da Administração Interna, reiterando a invocação da prescrição do procedimento disciplinar e afirmando a inexistência de infração disciplinar, por carência de prova bastante que a suporte, e ainda o errado enquadramento jurídico dos factos e o desvio de poder na aplicação da sanção (doc. n° 4 junto com o r.i. no processo cautelar 27/06.9BEMDL; fls. 258 do P.A.);
16) Por despacho do Secretário de Estado da Administração Interna de 24.03.2004, aposto sobre o parecer n.º 186-LM/2004 de 16.03.2004, foi revogado o despacho referido em 6), e ordenada a reabertura da instrução para realização de novas diligências probatórias, designadamente uma peritagem grafológica (doc. 5 junto com o r.i. no processo cautelar 27/06.9BEMDL; fls. 265 do P.A.);
17) Realizadas as diligências de prova ordenadas, o instrutor do processo extraiu nova nota de culpa, datada de 23.02.2005, repetindo as imputações feitas na anterior nota de culpa (doc. 6 junto com o r.i. no processo cautelar 27/06.9BEMDL; fls. 268 e ss. e 306 do P.A.);
18) A autora apresentou nova defesa, onde nega a prática dos factos, designadamente a assinatura e entrega das impugnações em causa no Governo Civil, invoca a prescrição do procedimento disciplinar, e requer a realização de várias diligências de prova (doc. 7 junto com o r.i. no processo cautelar 27/06.9BEMDL; fls. 310 do P.A.);
19) A 12.04.2005 o instrutor do processo emitiu novo Relatório Final, no qual, mais uma vez, deu como assentes todos os factos constantes da acusação, propondo, a final, a aplicação à autora da pena de inatividade por um ano, e do qual resulta, entre o mais, o seguinte (doc. 8 junto com o r.i. no processo cautelar 27/06.9BEMDL; fls. 334 do P.A.):

APURAMENTO DOS FACTOS
Os factos apurados resultam basicamente da prova que constituem as assinaturas que constam nas impugnações judiciais relativas aos autos de contra-ordenação n. os 108393384 e 209184973 e suas semelhanças com outras assinaturas da arguida apostas em diversos documentos, constituindo eles próprios outros meios de prova, desde logo através da sua comparação e, bem assim, as declarações do infractor no auto de contra-ordenação n.° 209184973, B…….., e da funcionária da Delegação de Viação de Vila Real C……...
Também as declarações proferidas entretanto pela testemunha D……., a fls. 302.
Igualmente se revelou importante a prova que constitui o relatório pericial de fls. 288 e segs.
Com efeito, quanto às assinaturas resultam desde logo uma certeza e outra evidência. Isto é, ninguém viu a arguida assinar as peças processuais - nem seria suposto ver mas também é verdade que só muito dificilmente se poderá afirmar que a assinatura constante nas impugnações judiciais não tenha sido feita pela arguida. Mais difícil só mesmo perceber como tal pôde suceder...
E este facto torna-se tão mais evidente quanto se tenta comparar as diferentes assinaturas da arguida constantes nos autos. Por duas razões: pelos nomes usados e pelo desenho das letras.
Quanto aos nomes usados, poder-se-ia dizer que não foi a arguida quem assinou as peças processuais por nelas apenas constar «A……. », facto que, contudo, nem é referenciado ou posto em crise pela arguida. No entanto, dos autos e perante inscrições que não poderá pôr em causa resulta que a assinatura é feita com diferentes nomes, indistintamente. É assim que a fls. 37 assinou «A……. ». A fls. 97, 102, 127 e no aviso de recepção que acompanha a fl. 179 assinou o nome completo. A fls. 190 e 204 já o nome «A…… » é antecedido de «dos». No aviso de recepção que acompanha a fl. 171 só aparece «A…….. » e no aviso de recepção assinado em 22/07/2003 só parece «A…… ». Daqui resulta que a arguida usa indistintamente o nome completo, abreviado ou com uns ou outros nomes, sendo certo que o nome «A……. » não foi repetido após a assinatura das peças processuais.
Quanto ao desenho das letras, as assinaturas apostas nas impugnações judiciais são exactamente iguais às que figuram a fls. 97, 102, 127 e no aviso de recepção que acompanha a fl. 179. As fls. 190 já as letras «T» de «A…… » e «S» de A…… aparecem melhor desenhadas, sendo que o «T», por exemplo, já não tem semelhança com o desenhado na procuração. Ora, aqui a arguida não poderá alegar que não se trata de assinatura sua, sendo que o normal é a assinatura ser feita menos desenhada quando não se trata de documentos importantes, o que parece ser o caso. Sendo que aqui sempre se poderá alegar que a tendência é tentar disfarçar uma assinatura susceptível de, no caso, fazer incorrer a arguida em responsabilidade disciplinar, como aliás fez. Depois há ainda que ter presente que uma assinatura nunca é rigorosamente igual à outra.
Vem ainda a arguida alegar, e bem, que tem de ser a Direcção-Geral de Viação a demonstrar que a assinatura é e foi feita pela arguida, sendo que tal nem sequer está indiciado uma vez que só a Polícia Judiciária, por ser quem dispõe dos meios necessários, poderia determinar, não a «garantia de autenticidade» da assinatura, mas a maior ou menor correspondência daquela rubrica com a sua assinatura.
Só que as provas, apreciadas à luz do princípio da sua livre apreciação, isto é, segundo as regras da experiência e a livre apreciação da entidade competente, denunciam que a assinatura não só é da arguida como é da sua lavra. E depois, como a própria arguida afirma, o recurso a prova pericial nunca seria susceptível de confirmar em absoluto a autenticidade da assinatura. Seria, isso sim, susceptível de indiciar uma maior ou menor probabilidade de autenticidade. E com tal se tentaria criar e arrastar a dúvida, o que manifestamente, como já suficientemente demonstrado, não é o caso, e faria depender o processo disciplinar do criminal, o que também não tem necessariamente de acontecer dada a independência entre processos, tal como resulta do art.° 7.° do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 24/84, de 16 de Janeiro.
No entanto, essas diligências constam agora dos autos. E essa prova ao admitir como «provável» que a escrita suspeita das assinaturas A……. sejam da autoria de A……. veio reforçar os elementos de prova que já constavam do processo.
Depois há ainda o invocar da não entrega e elaboração das impugnações judiciais. Este é, contudo, um facto que se afigura de menor importância porque o que está suficientemente demonstrado é que foi a arguida quem assinou as peças e que elas foram anexadas aos processos, acabando por chegar, por qualquer via, à Delegação de Viação de Vila Real.
Da mesma forma que pouco importa que a funcionária tenha estado ausente por doença entre 31 de Maio e 31 de Agosto de 2000, tal como é alegado e está demonstrado nos autos, porque o que é facto é que assinou as peças processuais e que quem as assinou é funcionária da Direcção-Geral de Viação, sendo que esse acto decorreu da sua qualidade de funcionária e resultou da actividade desempenhada e conhecimentos adquiridos na Delegação de Viação de Vila Real.
Acresce que, mesmo tomando como boas as datas de 31 de Maio de 2000, dia em que a arguida entrou de licença por doença, e a do mês de Maio, altura em que, segundo declarações do Senhor Delegado de Viação de Vila Real, foram retiradas à funcionária as tarefas relativas ao fundo de maneio, fecho de caixa, elaboração de mapas de assiduidade, operações informáticas, ainda assim se tem de concordar que esses factos não são susceptíveis de afastar a prova já feita. Em primeiro, lugar porque podem ter ocorrido antes do dia 31 de Maio, mas seguramente após a data de pagamento da coima relativa ao processo n.° 209184973 — 28-03-2000 (cf. fls. 298 e 333) e, em segundo lugar, porque os factos praticados não estão necessariamente ligados ao normal exercício de uma ou outra tarefa - o que se trata é da prática do facto ilícito, disciplinarmente sancionável, tal como resulta do art.° 3.° do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 24/84, de 16 de Janeiro.
Mas, e se dúvidas subsistissem, elas também seriam dissipadas pelas declarações do infractor no processo de contra-ordenação n.° 209184973, B……., que declara e prova, através do fax de fls. 57, que enviou o triplicado do auto de contra-ordenação a D………, seu amigo, porque este lhe prometera que «não se preocupasse» porquanto «ele conhecia uma funcionária da Delegação de Viação de Vila Real de nome A……… e que esta o iria ajudar». Não uma funcionária de entre várias, mas uma de nome A…….. Mais declarou saber que a arguida «se relacionava pessoalmente com o seu amigo, até porque também era amigo da esposa do D……. e sabia por conhecimento pessoal que o casal passou por um período de desentendimento», concluindo que «nunca tinha visto até ao presente momento o recurso de impugnação judicial que ora lhe foi mostrado».
Depois, o amigo do arguido B……, D……… vem confessar o encontro com A……. a quem entregou um cheque de B…….. para pagar a coima e que foi paga, tal como resulta de fls. 333.
Acresce que ainda há as declarações da funcionária C…………. que não teve dúvidas em denunciar a assinatura aposta nas impugnações judiciais por ser «semelhante à da funcionária» A………
Por último, há que ter presente que o comportamento da arguida ficou facilitado pelo deficiente funcionamento e incorrecto processamento das contra-ordenações, tal como se afirma a fls. 34 e 43 e a própria denuncia na sua defesa a fls. 331 e que, inclusive, determinou que a forma como foram processadas as contra-ordenações no Governo Civil de Vila Real fosse denunciada a Sua Excelência o Secretário de Estado da Administração Interna, a fls. 9.
É claro que a arguida nega os factos, mas tal mais não constitui nenhuma excepcionalidade, aliás em oposição às provas carreadas para o processo, sendo que no resto a arguida sempre se mostrou pouco colaborante com a descoberta da verdade, pese embora os motivos de saúde invocados e provados, mas que já não serviram de fundamento para que não se pudesse deslocar à Delegação de Viação de Viseu para consultar o processo, como de facto se deslocou.

FACTO PROVADOS
Face aos elementos recolhidos e prova produzida, consideram-se provados os seguintes factos com relevância para a matéria em análise:
a) Em dia e hora não apurados do ano de 2000, mas depois de 28 de Março e antes de seis de Junho, deram entrada no Governo Civil de Vila Real duas impugnações judiciais.
b) As referidas impugnações judicias referiam-se aos autos de contra-ordenação n.os 209184973 e 210839384.
c) Ambas as peças processuais foram assinadas por A……., funcionária da Direcção-Geral de Viação, com a categoria de Assistente Administrativa Especialista, a desempenhar funções na Delegação de Viação de Vila Real.
d) A assinatura aposta nas impugnações e consequente assunção do seu conteúdo decorreu por força da qualidade de funcionária da Direcção-Geral de Viação e resultou directamente da actividade desempenhada e conhecimentos adquiridos na Delegação de Viação de Vila Real.
e) No dia 3 de Março de 2000, às 12h48, o infractor B……. enviou, via fax, a D…… o triplicado do auto de contra-ordenação n.° 209184973 para que este seu amigo o ajudasse a não ficar inibido de conduzir, uma vez que lhe tinha prometido que não se preocupasse porque conhecia uma funcionária da Delegação de Viação de Vila Real de nome A…….. que o iria ajudar.
f) Em dia e hora não apurados, mas antes de 28 de Março de 2000, a arguida e D…….. encontraram-se no Pinhão a quem este entregou um cheque de B……. para pagamento da coima relativa ao auto de contra-ordenação n.° 209184973, coima que foi efectivamente paga em 28-03-2000, conforme fls. 333.
g) A funcionária A……, à data dos factos, relacionava-se pessoalmente com D……...
h) As impugnações judicias foram recebidas no dia 12 de Junho de 2000 na Delegação de Viação de Vila Real.

RESPONSABILIDADE DISCIPLINAR
Assim, afigura-se que a arguida, pelo facto de assinar duas impugnações judiciais e, consequentemente, impugnar as respectivas decisões administrativas que a sua própria Delegação de Viação tem o dever legal de promover, teve um comportamento que viola os deveres que devem nortear a conduta de um funcionário, tal como previsto no Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 24/84, de 16 de Janeiro.
Com tais condutas incorreu a arguida em responsabilidade disciplinar, pois violou o dever especial decorrente da natureza particular e específica da actividade desenvolvida na Delegação de Viação de Vila Real que a proibia de apresentar impugnações judiciais, uma vez que o conteúdo funcional das funções desempenhadas se deveriam circunscrever à realização das tarefas, legal e superiormente definidas, no âmbito da instrução e tramitação de processos de contra-ordenação - realizar actos e operações tendentes a levar a cabo o procedimento instaurado precisamente contra os dois arguidos sendo inclusive que, além de não ter qualificações académicas para elaborar impugnações judiciais, mesmo tendo presente que a lei não exige nestes casos a intervenção de advogado, bastaria a sua própria qualidade de funcionária, ao serviço exclusivo do interesse público, para a impedir de actuar ao abrigo de qualquer outro mandato, e ainda os deveres gerais de actuar no sentido de criar no público confiança na acção da administração, em especial no que à imparcialidade diz respeito, de isenção, de obediência e de lealdade, previstos nos artigos 3.°, n.os 1,3,4, als. a) c) e d), 5, 7 e 8, 11.°, n.° 1, al. d), 12.° n.° 5, todas do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 24/84, de 16 de Janeiro.
Por seu turno, o art.° 25.°, al. c) do mesmo diploma legal sanciona com a pena de inactividade os funcionários que, com culpa grave ou dolo, violarem o dever de imparcialidade no exercício das suas funções.
Em face do exposto, e tendo presente os critérios elencados nos artigos 28.°, 29.°, alínea a) (circunstância atenuante), 31.°, n.° 1, al. g) (circunstância agravante), bem como o disposto no art.° 12.°, n.° 5 e 25.°, al. c), todos do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 24/84, de 16 de Janeiro, propõe-se que à arguida seja aplicada a pena de inactividade, fixando-se o seu período em um ano.

20) Sobre o relatório final recaiu despacho de 26.04.2005 do Diretor-Geral de Viação que decidiu pela aplicação à autora da pena de inatividade pelo período de um ano e dez meses (doc. 8 junto com o r.i. no processo cautelar 27/06.9BEMDL; fls. 334 do P.A.);
21) A autora interpôs recurso hierárquico para o Secretário de Estado da Administração Interna, alegando não só a prescrição do procedimento disciplinar, mas também a inexistência da infração disciplinar e a falta de fundamentação da decisão punitiva (doc. 9 junto com o r.i. no processo cautelar 27/06.9BEMDL; P.A. – parte final, não numerada);
22) No âmbito do recurso foi emitido o parecer n° 633-LM/2005 de 07.11.2005, sobre o qual recaiu o despacho de 02.01.2006 do Secretário de Estado da Administração Interna, o qual concedeu provimento parcial ao recurso, revogando o ato mencionado em 12) na parte em que aplicou à autora sanção mais grave do que a proposta no relatório final, fixando à autora sanção disciplinar em um ano de inatividade (doc. 10 junto com o r.i. no processo cautelar 27/06.9BEMDL; P.A. – parte final, não numerada)”.

II. O DIREITO

Conforme resulta da matéria fáctica que ficou descrita, a A., por aplicação do art.º 25.º, n.º 2, al. c), do Estatuto Disciplinar aprovado pelo DL n.º 24/84, de 16/1 (diploma a que pertencem todas as disposições legais que venham a ser citadas sem menção de origem), foi punida com a pena disciplinar de inactividade pelo período de 1 ano, por se ter considerado que, sendo funcionária da Delegação de Vila Real da Direcção-Geral de Viação, violara, com dolo ou culpa grave, o dever de imparcialidade no exercício das suas funções, em virtude de ter subscrito duas impugnações judiciais de decisões condenatórias na medida de inibição de conduzir, apresentadas no Governo Civil de Vila Real, referentes a autos de contra-ordenações que haviam corrido termos naquela Delegação.
O acórdão recorrido, para conceder provimento ao recurso interposto pela Entidade Demandada, revogar o acórdão do TAF e julgar a acção improcedente, ponderou o seguinte:
“(…).
A fundamentação da decisão recorrida surge de certo modo desfocada relativamente ao ponto essencial da questão, como já foi realçado no parecer do MP, nestes termos:
«Não concordamos com a fundamentação exposta, pelo que, em nosso entender o recurso merece provimento.
Na verdade, o verdadeiro cerne da questão não está no facto de a recorrida ter ajudado e esclarecido o infractor dos processos de contra-ordenação, mas sim na circunstância de ter preenchido e assinado as respectivas impugnações, agindo como um verdadeiro mandatário.»
Realmente a decisão recorrida desconcentra-se deste ponto essencial injustificadamente, por exemplo quando deriva para a temática dos casos de impedimento, escusa ou suspeição contemplados nos artigos 44º a 51º, como se aí se esgotasse o potencial do princípio da imparcialidade, quando se trata apenas de afloramentos específicos de um princípio geral que deve informar toda a actividade da Administração por imperativo do artigo 6º do CPA.
Sucede que no processo disciplinar a Autora não foi censurada por nenhuma dessas hipóteses dos artigos 44º a 51º do CPA, pois não estava impedida de ter intervenção funcional (segundo as exigências e ordens de serviço, obviamente) nos procedimentos de contra-ordenação em causa. Pelo contrário, objecto de censura foi a sua intervenção anómala nessa matéria conexionada com o serviço, ao agir na prossecução de interesse particular de terceiro sem a sua veste de funcionária, quando nessa área a sua actuação se deveria “circunscrever à realização das tarefas, legal e superiormente definidas, no âmbito da instrução e tramitação de processos de contra-ordenação”.
A decisão recorrida também extrapola da linha essencial do problema a resolver quando dá relevo à legalidade das impugnações apresentadas e à possibilidade de os funcionários e agentes ajudarem terceiros a elaborar essas impugnações, argumentos que são irrelevantes na medida em que as situações referidas não são verdadeiramente constitutivas da infracção disciplinar pela qual a Autora foi punida.
É certo que os funcionários podem e devem esclarecer os administrados sobre o modo de exercer os seus direitos, pois no fundo o interesse público reside no cumprimento da legalidade e não, perspectivando já o caso concreto, no desfecho das contra-ordenações instauradas.
Mas é essencial que essa ajuda seja feita de forma equânime e universal, isto é, em benefício de todos os particulares dela carentes que acorram aos serviços, sem favoritismos e, muito menos, em função da amizade com A ou com B. Em suma, que seja prestada de forma profissional e sem um empenhamento pessoal do funcionário em certas situações que extravasem as necessidades do regular e prestigioso funcionamento do serviço público.
Ora, no caso, quando a Autora assina, com o seu próprio nome, impugnações judiciais em nome de um particular, em matéria conexionada com o serviço em que presta funções, por solicitação de uma pessoa amiga ou das suas relações pessoais, é claro que se configura uma conduta susceptível de criar no público desconfiança na acção da Administração Pública, no que à imparcialidade diz respeito, gerando-se compreensíveis dúvidas sobre se o particular “patrocinado” por um funcionário do serviço a quem dirige o requerimento não beneficiará de favoritismo na resolução das suas pretensões, relativamente aos cidadãos comuns que não dispõem desse tratamento privilegiado. Imagine-se, por exemplo, a situação paralela de um funcionário judicial que, no interesse de alguma das partes, assine requerimentos que dão entrada em processos pendentes no tribunal onde exerce funções.
E não há qualquer dúvida que a proibição de favoritismos é um dos corolários do princípio da imparcialidade – apud Santos Botelho, Pires Esteves e Cândido de Pinho, CPA Anotado e Comentado, 5ª ed., citando o Prof. Freitas do Amaral).
Acresce que se trata de uma situação reprovável, não só do prisma da imparcialidade, mas também dos deveres de isenção e de zelo, sendo certo que, conforme é jurisprudência segura, “as infracções disciplinares não são estanques e exclusivas de cada linha de actuação do funcionário; podem assumir diferentes dimensões, razão pela qual a um só comportamento pode corresponder a violação de vários deveres gerais” (cf ac. deste TCAN, 1ª Secção, de 03-02-2012, Proc. 00636/09.4BEPRT).
Por outro lado, mesmo quando os funcionários não estão episodicamente em funções (por exemplo, por doença) continuam a impender sobre eles os deveres que Marcello Caetano designava caracterizava como “corporativos, no sentido de que pesam sobre o funcionário pelo facto da sua especial vinculação à Administração Pública e, portanto, têm de ser observados quer estejam em actividade, quer não.” (Manual, II, 9ª ed., pág. 730).
Mais, as assinaturas apostas pela Autora são elementos que ficam indelevelmente gravados nos documentos em causa e, como tal, patenteados no serviço, aos olhos dos seus colegas e superiores hierárquicos, além do público em geral, de uma forma que ultrapassava as contingências episódicas da sua ausência do serviço e que, como tal, não poderiam ser ignorados nem minimizados.
Deste modo entende-se que, no essencial, são procedentes as conclusões formuladas pelo Recorrente e que, em consequência o acórdão recorrido incorreu em erro ao julgar procedente a acção”.
Na presente revista, a recorrente, para além de imputar ao acórdão recorrido as nulidade de omissão e de excesso pronúncia, vertidas na al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC – em virtude de nele nada se ter referido sobre a violação dos deveres de lealdade e obediência considerados infringidos pela decisão punitiva e por se ter entendido que a conduta em causa era violadora do dever de zelo que não fora considerado naquela decisão –, contesta que tenha incorrido na violação dos deveres de zelo, imparcialidade, isenção, obediência e lealdade, dado que, à data da prática dos factos, não se encontrava no exercício de funções, estando na situação de “baixa médica” e por as impugnações que apresentou não visarem atacar as decisões proferidas nos processos de contra-ordenações, mas apenas obter a suspensão da medida de inibição de conduzir mediante a prestação de uma caução de boa conduta.
Vejamos se lhe assiste razão, começando por analisar as invocadas nulidades.
A pena disciplinar aplicada à ora recorrente fundou-se apenas no facto de a sua actuação consubstanciar uma violação do dever de imparcialidade no exercício das suas funções.
A apreciação da legalidade dessa decisão implica, assim, tão só averiguar se ocorreu a violação desse dever.
Concluindo pela afirmativa, o acórdão recorrido decidiu a questão que lhe era colocada, não tendo de se pronunciar sobre a infracção de qualquer outro dever funcional.
Aliás, se o acórdão nada referiu quanto aos deveres de lealdade e obediência é porque não os considerou infringidos, o que sempre implicaria que à recorrente não assistisse legitimidade para arguir a pretensa “omissão de pronúncia”, por esta ser insusceptível de a prejudicar.
No que concerne ao “excesso de pronúncia”, é certo que no acórdão se considerou que a conduta da ora recorrente era “reprovável, não só do prisma da imparcialidade, mas também dos deveres de isenção e de zelo”.
Porém, a afirmação que a conduta punida, além de violar o dever de imparcialidade, violava outros deveres, sem que daí retire quaisquer consequências jurídicas, é completamente irrelevante, não consubstanciando a nulidade de excesso de pronúncia.
Ainda que assim se não entendesse, a circunstância de o tribunal ser livre na qualificação jurídica dos factos (cf. art.º 5.º, n.º 3, do CPC) sempre impediria que se considerasse verificada a referida nulidade quando se entende que uma determinada actuação é subsumível na violação de um dever funcional legalmente definido.
Improcedem, pois, as suscitadas nulidades.
Quanto ao enquadramento jurídico-disciplinar da conduta da ora recorrente, importa atentar no que dispunha o art.º 3.º que, após definir infracção disciplinar no seu n.º 1 e consagrar, no n.º 3, como dever geral dos funcionários e agentes, o de “actuar no sentido de criar no público confiança na actuação da Administração Pública, em especial no que à sua imparcialidade diz respeito”, refere, nos nºs. 4 e seguintes, outros deveres gerais que, como resulta da definição que deles é dada, só podem ser violados quando há uma actuação no exercício de funções.
Por sua vez, a pena disciplinar de inactividade – a mais grave das não expulsivas – era aplicável nos casos de procedimento que atentasse gravemente contra a dignidade e o prestígio do funcionário ou agente ou da função, designadamente, quando se verificasse a violação, com culpa grave ou dolo, do “dever de imparcialidade no exercício das suas funções” [cf. art.º 25.º, nºs. 1 e 2, al. c)].
Assim, a quebra do dever de imparcialidade subsumível ao art.º 25.º, n.º 2, al. c), implica que o funcionário, com culpa grave ou dolo, tenha adoptado um comportamento concreto discriminador no exercício das suas funções que atente gravemente contra a sua dignidade e prestígio ou das funções que exerce.
Ora, no caso em apreço, entendemos que a conduta da recorrente, ainda que, como considerou o acórdão recorrido, seja violadora do dever de imparcialidade – por representar um tratamento de favor em relação a determinadas pessoas e a não manutenção de uma situação de equidistância em relação a todos os interesses particulares –, é inidónea para preencher a previsão da al. c) do n.º 2 do art.º 25.º, quer porque não ocorreu no âmbito das funções que ela exercia na Direcção-Geral de Viação, quer porque não tem virtualidade suficiente para atingir de forma grave a sua dignidade e prestígio ou o do serviço.
Efectivamente, está em causa um comportamento privado que, ainda que tenha uma conexão funcional com o serviço, podendo, por isso, violar deveres funcionais, é insusceptível de ser subsumido no aludido normativo que não é aplicável aos actos pessoais ou praticados por funcionário fora do exercício das suas funções. Por outro lado, se é de exigir à Administração Pública em geral a manutenção de respeitabilidade e confiança, só é de atribuir relevância disciplinar para efeitos do art.º 25.º, n.º 2, al. c), a condutas de funcionários que afectem de forma especialmente grave a sua imagem ou a da Administração, considerando a natureza e a importância das funções exercidas e o que a sociedade exige de quem as ocupa ou a publicidade que àquelas foi conferida. Ora, no caso, considerando esses índices, entendemos que o comportamento da recorrente, embora censurável, não é de molde a atentar gravemente contra a sua dignidade e prestígio ou da função.
Nestes termos, é de conceder provimento à presente revista.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão e mantendo a decisão do TAF.
Custas nas instâncias e neste STA pelo ora recorrido.

Lisboa, 4 de Abril de 2019. – José Francisco Fonseca da Paz (relator) – Maria do Céu Dias Rosa das Neves – António Bento São Pedro.