Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:060/12
Data do Acordão:03/14/2012
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FERNANDA MAÇÃS
Descritores:EXECUÇÃO FISCAL
EMBARGOS DE TERCEIRO
PRAZO
VENDA
DIREITO A TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA
BOA-FÉ
PRINCÍPIO DA PROTECÇÃO DA CONFIANÇA
Sumário:I - O direito a um processo justo e equitativo consagrado no art. 20º, nºs 1 e 4, da CRP não impede o legislador de estabelecer prazos de caducidade para levar as questões a tribunal, ponto é que tais prazos não sejam arbitrariamente curtos ou arbitrariamente desadequados, dificultando irrazoavelmente a acção judicial.
II - A restrição da possibilidade de deduzir embargos de terceiro após a venda consagrada no nº 3 do art. 237º do CPPT afigura-se materialmente fundada e adequada e proporcional à protecção de outros bens constitucionalmente protegidos, tais como o interesse público na protecção da estabilidade das vendas em execução, que incrementa a segurança dos compradores, fomentando o aparecimento de um maior número de interessados e a obtenção de melhores preços, bem como a necessidade de proteger a boa-fé e a confiança dos adquirentes de bens em hasta pública, pelo que o referido preceito não viola o disposto no art. 20º, nºs 1 e 4, da CRP.
III - Tendo os embargos sido deduzidos depois da venda dos bens, não obstante a embargante alegar só ter tido conhecimento da ofensa do seu alegado direito depois de tal venda, são os mesmos manifestamente intempestivos.
Nº Convencional:JSTA00067473
Nº do Documento:SA220120314060
Data de Entrada:01/24/2012
Recorrente:C...
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF AVEIRO PER SALTUM
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL
Área Temática 2:DIR CONST - DIR FUND
Legislação Nacional:CPPTRIB99 ART237 N1 N3
L 109-B/2001 DE 2001/12/27 ART50
CPC96 ART353 N2
CPTRIB91 ART319 N2
CONST76 ART20 N1 N4
CCIV66 ART1057
Jurisprudência Nacional:AC TC PROC191/01 DE 2001/10/24; AC TC PROC192/01 DE 2001/10/24
Referência a Doutrina:JORGE DE SOUSA CÓDIGO DE PROCEDIMENTO E DE PROCESSO TRIBUTÁRIO ANOTADO E COMENTADO 6ED PAG157
GOMES CANOTILHO E OUTRO CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA ANOTADA 4ED PAG408 PAG415
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
I-RELATÓRIO
1. Após a venda judicial, no âmbito do processo de execução fiscal, que correu termos contra A…… e mulher, foi determinada a entrega de prédio urbano a B……, que o adquiriu, tendo sido emitido título de compra e venda, em 20 de Janeiro de 2011.
2.C……, devidamente identificada nos autos, veio deduzir Embargos de Terceiro, com fundamento no facto de os executados lhes terem dado de arrendamento o referido prédio, em 1/6/2008.
3.O Mmº Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro indeferiu liminarmente os embargos, por intempestivos, absolvendo a Fazenda Pública da instância.
4. Não se conformando com tal sentença, C…… interpôs recurso, ao abrigo do artigo 280.º, n.º1, do CPPT para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, apresentou as suas Alegações, formulando as seguintes Conclusões:
“A) A recorrente apresentou no dia 28 de Fevereiro de 2011 depois do imóvel ser vendido os embargos indeferidos liminarmente por extemporâneos.
B) A aqui recorrente só tomou conhecimento do douto despacho a ordenar a entrega do prédio dos presentes autos a 16 de Fevereiro de 2011 depois do prédio ter sido vendido.
C) Desde 1 de Junho de 2008 - cfr. documento junto aos autos - que a recorrente é inquilina do dito prédio e em momento algum foi chamada ao processo para poder fazer valer os seus direitos em juízo.
D) Sem nunca ter tido a possibilidade de se defender a recorrente vê-se na iminência de perder a sua casa de morada família por factos a ela inimputáveis.
E) Apesar do que se lê artigo 237º n.º 3 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, ao rejeitar liminarmente os embargos, precludiu o Direito à Defesa e a um Processo Equitativo Constitucionalmente inscritos no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa de acordo com a doutrina e jurisprudência citada nas alegações.”
5. Não foram apresentadas Contra-alegações.
6. O Ministério Público, junto do Supremo Tribunal Administrativo emitiu douto Parecer, argumentando, em síntese:
“A recorrente sustenta a inconstitucionalidade do normativo do artigo 237.°/3 do CPPT, no segmento em que estatui que os embargos de terceiro nunca podem ser deduzidos mesmo nos casos em que o interessado só tem conhecimento da ofensa ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou âmbito da diligência depois da venda, por violação do direito à defesa e a um processo equitativo, nos termos do estatuído no artigo 20.° da CRP. (…)
“A nosso ver e ressalvado melhor juízo o recurso não merece provimento”, porquanto “o estatuído no artigo 237.°/3, in fine, não viola o direito à defesa e a um processo equitativo consagrados no artigo 20.° da CRP.
Termos em que deve ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional, mantendo-se a decisão recorrida na ordem jurídica.”
7. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II-FUNDAMENTOS
Vem o presente recurso da sentença proferida pelo Mmº Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro que decidiu indeferir liminarmente os embargos deduzidos pela ora recorrente, com os fundamentos seguintes:
·“C……, ….. , deduziu os presentes embargos de terceiro tendo alegado que, em 23/2/2011, foi proferido despacho a determinar a entrega do prédio urbano sito no Lugar ……, Romariz, Santa Maria da Feira, inscrito na respectiva matriz predial urbana da freguesia de Romariz sob o artigo 582°, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o n° 1190 daquela freguesia, a B……, que o adquiriu por escritura de 11 de Janeiro de 2011.
· Mais alegou que, em 1/6/2008, os executados A…… e D……, lhe deram de arrendamento o referido prédio, pela renda mensal de €100,00.
· Os embargos são tempestivos visto que só tomou conhecimento do despacho que determinou a entrega do prédio em 16/2/2011.
· Concluiu pedindo se reconheça a embargante como locatária do prédio em causa.
· Conforme decorre do próprio articulado da embargante o prédio em questão foi vendido à adquirente, B……, tendo sido emitido título de compra e venda em 20 de Janeiro de 2011.
· Ora, os presentes embargos foram apresentados em 28 de Fevereiro de 2011, depois do imóvel ter sido vendido no correspondente processo de execução fiscal.
· Assim sendo, é inequívoco que os presentes autos são manifestamente extemporâneos, por terem sido instaurados depois de efectuada a venda do prédio em questão, como estatuído no artigo 237°, n° 3, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, pelo que se impõe a sua rejeição.
· Destarte, por intempestivos, não se recebem os presentes embargos, e consequentemente absolve-se a Fazenda Pública da instância, nos termos do disposto no artigo 493°, n° 2, do Código de Processo Civil, “ex vi” artigo 2°, alínea e), do Código de Procedimento e de Processo Tributário.”
Contra este entendimento se insurge a recorrente alegando, em síntese, que só tendo tomado conhecimento do despacho a ordenar a entrega do prédio dos presentes autos depois de vendido, o indeferimento liminar dos embargos, ao abrigo do art. 237º, nº 3, do CPPT, precludiu o seu direito à defesa e a um processo equitativo constitucionalmente prescrito no art. 20º, nºs 1 e 4, da CRP.
Vejamos.
Refere o artigo 237º, n° 1, do CPPT: “Quando o arresto, a penhora ou qualquer outro acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular um terceiro, pode este fazê-lo valer por meio de embargos de terceiro.”
E no seu nº 3, na redacção conferida pela Lei n° 109-B/2001, de 27 de Dezembro, acrescenta-se :“O prazo para dedução de embargos de terceiro é de 30 dias contados desde o dia em que foi praticado o acto ofensivo da posse ou direito ou daquele em que o embargante teve conhecimento da ofensa, mas nunca depois de os respectivos bens terem sido vendidos.”
Antes da redacção introduzida pela Lei nº 109-B/2001, ao contrário do que sucedia no Código do Processo Civil (art. 353º, nº 2) e no Código de Processo Tributário (art. 319º, nº 2), não se previa no nº 3 do art. 237º do CPPT a possibilidade de contagem do prazo para deduzir embargos a partir da data em que o embargante teve conhecimento da ofensa.
Ora, como bem observa JORGE de SOUSA (Cfr. Código de Procedimento e de Processo Tributário, 6ª ed., Áreas Editora, Lisboa, 2011, anotação ao art. 167º do CPPT, p.157.), “ao não se admitir, na redacção inicial do nº 3 do art. 237º, que, antes da venda dos bens, o interessado que tivesse conhecimento da ofensa do seu direito há menos de trinta dias pudesse deduzir embargos de terceiro, estava a restringir-se, desnecessária e injustificadamente, o direito fundamental de acesso aos tribunais para defesa de um direito análogo a um direito fundamental, lesado por um acto da administração tributária, o que era incompaginável com o preceituado nos arts. 17º, 18º, nº 2, 20º, nº 1, e 268º, nº4, da CRP”.
Neste sentido, veio o Tribunal Constitucional nos Acórdãos nº 468/01 e 469/01, de 24-10-2001, proferidos nos recursos nºs 191/01 e 192/01, considerar que o art. 237º, nº3, do CPPT “ao impor o início da contagem do prazo para dedução dos embargos de terceiro da data da prática do acto lesivo (no caso uma penhora), sem atender ao momento em que o terceiro toma conhecimento da lesão do seu direito, vedaria a possibilidade de impugnar judicialmente a penhora a quem só toma conhecimento da sua realização depois de decorridos os referidos trinta dias (…).
Assim, a norma em questão, nesta interpretação, viola o direito de acesso aos tribunais, consagrado no art. 20º da CRP.”
Nesta sequência, veio o legislador, com a referida Lei nº 109-B/2001 prever a possibilidade de dedução de embargos nos trinta dias a contar também da data em que o “embargante teve conhecimento da ofensa”. Note-se, porém, que se manteve o inciso em que se refere que os embargos nunca poderem ser deduzidos, em qualquer caso, depois de os respectivos bens terem sido vendidos.
As situações visadas pelo Tribunal Constitucional tinham subjacente casos em que o terceiro não teve a possibilidade de tomar conhecimento da realização da penhora no prazo de 30 dias, mas deduziu os embargos de executado antes da venda do bem penhorado e imediatamente após ter tomado conhecimento da penhora.
No caso dos autos, pelo contrário, estamos perante uma situação em que a embargante alega só ter tido conhecimento do despacho a ordenar a entrega do prédio depois de o mesmo já ter sido vendido.
Por conseguinte, o que está agora em causa, nos presentes autos, é a questão de saber se o art. 237º, nº3, do CPPT, na parte em que nega em qualquer situação a dedução de embargos depois da venda, viola ou não o art. 20º da CRP.
Nas palavras de GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA (Cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 408.), o direito de acesso ao direito e aos tribunais e à tutela judicial efectiva, consagrado no art. 20º, nº1, da CRP, “é, ele mesmo, um direito fundamental constituindo uma garantia imprescindível da protecção de direitos fundamentais, sendo, por isso, inerente à ideia de Estado de direito”.
Mais adiante, os mesmos autores, referindo-se ao direito a um processo equitativo (20º, nº4, da CRP), ponderam que o significado básico da exigência de um processo equitativo é o da conformação do processo de forma materialmente adequada a uma tutela judicial efectiva, sendo que na sua densificação se compreendem vários princípios, entre os quais: a) “direito à igualdade de armas ou direito à igualdade de posições no processo, com proibição de todas as discriminações ou diferenças de tratamento arbitrárias; b) o direito de defesa e direito ao contraditório (…); direito a prazos razoáveis de acção ou de recurso, proibindo-se prazos de caducidade exíguos do direito de acção ou recurso (…)” (IBIDEM.).
O exposto não impede que, na sua conformação legislativa o legislador não possa estabelecer prazos de caducidade para levar as questões a tribunal, ponto é que tais prazos “não sejam arbitrariamente curtos ou arbitrariamente desadequados, dificultando irrazoavelmente a acção judicial” (GOMES CANOTILHO /VITAL MOREIRA, ob. cit., p. 415.).
Ora, no caso em apreço, a restrição da possibilidade de deduzir embargos de terceiro após a venda dos bens, afigura-se materialmente fundada e adequada e proporcional à salvaguarda de outros bens constitucionalmente protegidos.
Como refere JORGE DE SOUSA (Cfr. ob. cit., p. 157.), “A restrição à possibilidade de deduzir embargos de terceiro após a venda dos bens, essa tem uma justificação evidente, que é a protecção da estabilidade das vendas em execução, que incrementa a segurança dos compradores, fomentando o aparecimento de um maior número de interessados e a obtenção de melhores preços. Trata-se, aqui, de um interesse público, oposto ao que o embargante tem em defender o seu direito, que justifica uma restrição deste, independentemente da formulação de um juízo negativo sobre a diligência do embargante em defender os seus direitos.”
Para além do interesse público relevante emerge também a necessidade de garantir a estabilidade de situações jurídicas consolidadas e, bem assim, a protecção da confiança, da segurança jurídica e da boa-fé dos adquirentes de bens em hasta pública.
Temos, desta forma, que a restrição de puderem ser deduzidos embargos após a venda dos bens não é arbitrária nem desprovida de fundamento material bastante, antes assenta quer na justificação de interesse público evidente e relevante. Por outro lado, ao legítimo interesse do terceiro em deduzir embargos contrapõe-se a necessidade de proteger a boa-fé e a confiança dos adquirentes de bens em hasta pública.
A solução encontrada pelo legislador no sentido de limitar a dedução de embargos de terceiro até à venda judicial emerge, pois, como a solução mais equilibrada dos interesses em jogo e a mais justa porque a menos onerosa.
Acresce que a recorrente, tendo sobretudo em conta a sua qualidade de arrendatária, como bem observa o Ministério Público, no seu douto Parecer, teve possibilidade de saber da venda, uma vez que em execução fiscal “as vendas são devidamente publicitadas através da Internet, com a publicação de anúncios num dos jornais mais lidos no lugar da execução ou no da localização dos bens e com a afixação de editais na porta dos serviços do órgão de execução fiscal, na porta da sede da respectiva Junta de Freguesia e na porta do próprio prédio urbano a vender”.
Finalmente, realce-se que, como também sublinha o Ministério Público no seu Parecer, apenas existe incompatibilidade entre o direito do locatário e a penhora se for penhorado o próprio direito ao arrendamento, pois se a penhora recair sobre o direito de propriedade, como é o caso dos autos, o direito do arrendatário será compatível com a realização da diligência, uma vez que não é por ela afectado (art. 1057.° do CC).
Por tudo o que vai exposto, afigura-se que a norma do art. 237º, nº3, do CPPT, na parte em que impede a dedução de embargos de terceiro depois dos bens terem sido vendidos, não é inconstitucional, por violação do art. 20º, nºs 1 e 4, da CRP.
Assim sendo, tendo os embargos sido deduzidos depois da venda dos bens, não obstante a embargante alegar só ter tido conhecimento da ofensa do seu alegado direito (mera detenção) depois de tal venda, são os mesmos, manifestamente intempestivos, motivo de indeferimento liminar da PI, como muito bem decidiu a sentença recorrida, que por tal razão não merece qualquer reparo.
Nesta sequência, improcede o presente recurso jurisdicional, mantendo-se a sentença recorrida.
III-DECISÃO
Termos em que se acorda em negar provimento ao recurso mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 14 de Março de 2012. - Fernanda Maçãs (relatora) - Casimiro Gonçalves - Lino Ribeiro.