Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01402/03
Data do Acordão:08/27/2003
Tribunal:3 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:MADEIRA DOS SANTOS
Descritores:ACÇÃO POPULAR.
RECURSO CONTENCIOSO.
CITAÇÃO.
INTERESSADO.
ÓNUS DE ALEGAÇÃO DE FACTOS.
EFEITO SUSPENSIVO.
PREJUÍZO DE DIFÍCIL REPARAÇÃO.
JUNÇÃO DE DOCUMENTOS.
Sumário:I - As citações dos eventuais titulares dos interesses que estejam em causa na acção popular exercida ao abrigo da Lei n.º 83/95, de 31/8, visam, a título principal, permitir a circunscrição do âmbito dos poderes representativos que o autor da acção, enquanto tal, detém «ex vi legis».
II - Secundariamente, tais citações inclinam-se a que os citandos possam intervir no processo, «aceitando-o na fase em que se encontrar», pelo que a previsão das citações não serve um qualquer litisconsórcio necessário activo nem implica a suspensão da lide, ou de algum meio que lhe seja acessório, até que o prazo da intervenção se esgote.
III - Assim, o TCA nenhuma nulidade cometeu ao decidir do efeito atribuível ao recurso contencioso exercido no âmbito de acção popular antes de haver decorrido o prazo para que nos autos interviessem outros interessados possíveis.
IV - A alegação de factos mediante a junção de documentos que acompanhem a peça processual em que aqueles deveriam constar não pode prescindir de uma qualquer remissão que dos factos se aproprie nem da índole explícita e inequívoca dos factos que se pretendam alegados.
V - Não podem ter-se por alegados na petição de recurso os factos integradores de um dano ambiental cuja possibilidade o acto impugnado, junto com aquela peça, provisoriamente admitira, se, para além de faltar uma apropriação «per remissionem» dessa precisa matéria, o percurso discursivo do acto veio a concluir que tal dano era, afinal, evitável.
VI - Omitida a alegação de quaisquer factos que consubstanciassem a ocorrência de um dano irreparável ou de difícil reparação, impunha-se indeferir a pretensão de que, por via de um dano daquela espécie, se atribuísse ao recurso o efeito suspensivo a que alude o art. 18º da Lei n.º 83/95, de 31/8.
Nº Convencional:JSTA00059693
Nº do Documento:SA12003082701402
Data de Entrada:08/06/2003
Recorrente:A...
Recorrido 1:SREG DO AMBIENTE DO GRA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO JURISDICIONAL.
Objecto:AC TCA.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - ACTO.
Legislação Nacional:L 83/95 DE 1995/08/31 ART14 ART15 N1 N2 N3 N4 ART18.
CPC96 ART664.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:
A..., identificado nos autos, interpôs recurso jurisdicional do acórdão do TCA que indeferiu o requerimento de atribuição de efeito suspensivo a um recurso contencioso por ele interposto no exercício da acção popular, recurso esse dirigido contra a declaração de impacto ambiental proferida em 17/12/02 pelo Secretário Regional do Ambiente do Governo Regional dos Açores e concernente à construção da via rápida Lagoa – Ribeira Grande.
O recorrente terminou a sua alegação de recurso formulando as conclusões seguintes:
1 – Nos termos do disposto no art. 15º da Lei n.º 83/95, de 31/8 (LAP), é assegurado um direito de auto-exclusão por parte de titulares dos direitos ou interesses em causa (cfr. o art. 14º da LAP).
2 – A acção popular representa um meio de alargamento da legitimidade processual activa a todas as pessoas singulares ou colectivas num determinado universo, independentemente de terem um interesse específico na causa (art. 2º da LAP).
3 – A LAP consagra uma legitimidade activa difusa, da qual as pessoas singulares ou colectivas podem prescindir através do mecanismo de auto-exclusão previsto no art. 14º da LAP.
4 – A atribuição do efeito suspensivo ao acto administrativo recorrido foi requerida nos termos do art. 18º da LAP, no próprio recurso contencioso de anulação – isto é, o meio processual acessório é dependência da acção procedimental.
5 – Deste modo, a legitimidade activa exigida ou exigível para o meio processual principal é também exigível para o meio processual acessório.
6 – Tal conclusão impõe-se necessariamente, como exigência das disposições conjugadas dos artigos 14º e 15º da LAP.
7 – Isto é, estas disposições impõem um litisconsórcio necessário.
8 – O efeito do julgado em sede de acção popular – quer seja no âmbito da acção principal, quer seja no âmbito de meio processual acessório – estende-se a terceiros que não exerceram o direito de auto-exclusão (cfr. o art. 19º, n.º 1, da LAP, quando dispõe que as sentenças transitadas em julgado têm “eficácia geral, não abrangendo, contudo, os titulares dos direitos ou interesses que tiverem o direito de se auto-excluírem”, na consagração da eficácia «ultra partes, secundum eventum litis».
9 – Nos presentes autos, o douto acórdão recorrido foi proferido estando ainda a decorrer o prazo para o exercício do direito de auto-exclusão (cfr. os artigos 14º e 15º da LAP), já que os anúncios citando os interessados foram publicados nas edições de 15 e 16 de Maio de 2003, como resulta dos autos, e a douta decisão foi proferida em 29/5/03.
10 – Destinando-se a citação prevista no art. 15º da LAP ao exercício do referido direito de auto-exclusão, a prolação da decisão sem que tivesse sido realizada a citação dos interessados configura uma falta de citação dos interessados, ocorrendo uma situação equivalente à falta absoluta de citação, com a consequente nulidade de todo o processo a seguir à petição inicial (cfr. os artigos 194º, al. a), 195º, 197º, al. a), 202º e 494º, al. b), do CPC, «ex vi» dos artigos 1º e 110º, al. b), da LPTA).
11 – Tal nulidade é conhecida e declarada ao abrigo do disposto no art. 110º, al. b), da LPTA.
12 – Devendo, em consequência, ser anulado o douto acórdão recorrido, já que a citação dos interessados ainda está a decorrer neste momento.
13 – Já quanto aos fundamentos da douta decisão recorrida, esta estriba-se no facto de o recorrente não ter cumprido o ónus de alegar e provar os prejuízos invocados e de não ter demonstrado o eventual dano ambiental.
14 – O ambiente é um bem merecedor de tutela jurídica, impondo a CRP como tarefas fundamentais do Estado a promoção e efectivação dos direitos ambientais e a defesa da natureza e do ambiente – art. 9º, als. d) e e).
15 – O direito ao ambiente é um direito subjectivo fundamental (art. 66º da CRP) que, nos termos do art. 17º, goza do mesmo regime dos direitos, liberdades e garantias.
16 – Muito embora a CRP não defina o que deva entender-se por ambiente, traça, porém, os princípios fundamentais de uma política de ambiente – cfr. os artigos 9º, al. e), 66º, n.º 2, 81º, als. a) e l), 90º e 93º, al. d).
17 – De entre os princípios constitucionais de direito ambiental, destaca-se o princípio da prevenção – verdadeiramente matricial – segundo o qual, como diz o nosso povo, «mais vale prevenir que remediar»
18 – É a Lei de Bases do Ambiente (Lei n.º 11/87, de 7/4) que, no seu art. 5º, n.º 2, al. a), define o ambiente.
19 – Estabelecendo o seu art. 6º, como seus componentes fundamentais, o ar, a luz, a água, o solo vivo e o subsolo, a flora e a fauna.
20 – A fauna, no âmbito da protecção do direito do ambiente, é objecto de protecção pela Convenção Relativa à Conservação da Vida Selvagem e dos Habitats Naturais da Europa (Convenção de Berna), assinada pelos países membros do Conselho da Europa e aprovada por ratificação operada pelo DL n.º 95/81, de 23/7.
21 – No caso «sub judice», o direito que o recorrente pretende proteger e acautelar é o direito ao ambiente, direito subjectivo e autónomo. O que está em causa é a protecção da fauna: o pombo torcaz («columba palumbus azorica»).
22 – Espécie classificada como espécie prioritária, nos termos do Anexo I ao DL n.º 140/99, de 24/4. Isto é, uma espécie protegida a nível nacional e comunitário.
23 – O DL n.º 75/91, de 14/2, alterado pelo DL n.º 224/93, de 18/6, veio estabelecer um conjunto de medidas com vista à conservação das espécies de aves que vivam em estado selvagem em Portugal.
24 – O pombo torcaz dos Açores («columba palumbus azorica») é uma ave que vive em estado bravio, na zona abrangida pelo procedimento de AIA.
25 – É uma espécie protegida pelos diplomas acima identificados (Anexo I ao DL n.º 224/93, de 18/6 – na posição n.º 122).
26 – Tanto basta para que, em sede deste meio processual acessório, no confronto com o que consta do parecer final da Comissão de Avaliação do AIA, se dar por satisfeita a demonstração dos prejuízos para o ambiente e dos danos ambientais provocados pelo acto administrativo cuja suspensão se requer.
27 – Na verdade, é a própria autoridade recorrida que admite (e citemos): «em termos de espécies ameaçadas, foi identificada a utilização daquele território pela espécie columba palumbus azorica (pombo torcaz dos Açores) para reprodução (...). Em relação ao impacte da fase de construção sobre a fauna, nomeadamente sobre o habitat de columba palumbus azorica, espécie vulnerável, este é negativo, directo, permanente e muito significativo, no caso da flora e da fauna, respectivamente» – a pág. 17, como resulta dos autos e do documento junto com a p.i.
28 – O prejuízo ambiental é expressamente admitido pela autoridade recorrida como sendo permanente, irreversível e muito significativo sobre o habitat do pombo torcaz dos Açores, já que o seu habitat natural é cruzado por uma via de comunicação.
29 – A destruição do habitat do pombo torcaz dos Açores é um dano irreversível, como o senso comum desde logo nos diz.
30 – A identificação deste prejuízo de difícil reparação – porque permanente e irreversível, como admite a autoridade recorrida – está feita na p.i. por remissão para o Relatório da Comissão de Avaliação, junto como documento da p.i.
31 – Ao não aceitar o tribunal a confissão dos prejuízos feita pela autoridade recorrida, tal significaria que o recorrente teria, ele próprio, de realizar um estudo de impacte ambiental para confirmar ou infirmar as conclusões vertidas na declaração de impacte ambiental emitida pela ora recorrida.
32 – O que seria absurdo ou mesmo kafkiano.
33 – Nem se pode argumentar que o pombo torcaz pode sempre nidificar noutros locais; se os particulares seguirem o mau exemplo do Estado, rapidamente não restará uma única destas aves.
34 – Pelo que a difícil reparação dos prejuízos e a irreversibilidade dos danos estão bem identificadas na p.i., por remissão para o referido relatório, não se circunscrevendo a piedosas invocações gerais, como pretende, apressadamente, o douto acórdão recorrido.
35 – Nestes termos, deverá ser dado provimento ao presente recurso jurisdicional e o acórdão recorrido ser substituído por outro.
O Secretário Regional do Ambiente do Governo Regional dos Açores contra-alegou, formulando as conclusões seguintes:
a) Não se encontra violado o direito de auto-exclusão previsto no art. 15º da Lei 83/95, de 31/8 (LAP), uma vez que o acórdão recorrido apenas decidiu quanto ao efeito suspensivo do recurso requerido pelo recorrente.
b) Em face da ausência de factos concretos, alegados pelo recorrente, que traduzam dano irreparável ou de difícil reparação, é insusceptível de aplicação o disposto no art. 18º da LAP.
O Ex.º Magistrado do MºPº junto deste STA emitiu douto parecer no sentido do não provimento do recurso.
Cumpre decidir, para o que importa começar pela determinação dos dados essenciais das questões a resolver, tal como transparecem dos presentes autos:
O aqui recorrente interpôs no TCA recurso contencioso de um acto praticado pela autoridade recorrida em 17/12/02, acto esse consistente na declaração de impacte ambiental que concluíra pela viabilidade da execução do projecto de construção da Via Rápida Lagoa – Ribeira Grande, nos Açores.
Tal recurso foi interposto no exercício da acção popular e, nele, o recorrente pediu que o tribunal lhe atribuísse efeito suspensivo para evitar dano irreparável ou de difícil reparação para a espécie «columba palombus azorica» (pombo torcaz dos Açores) e o respectivo ambiente.
Recebida a petição de recurso, o TCA mandou citar os eventuais titulares de interesses em causa na acção popular e não intervenientes nela, dado o que se dispõe no art. 15º da Lei n.º 83/95, de 31/8.
Através do acórdão ora «sub censura», o TCA indeferiu a requerida atribuição de efeito suspensivo ao recurso contencioso.
Aquando da prolação deste acórdão, ainda não decorrera o prazo para aqueles eventuais interessados virem aos autos exercer os direitos processuais aludidos no art. 15º da Lei n.º 83/95, de 31/8.
Passemos ao direito.
O aresto recorrido apenas se pronunciou sobre o pedido, formulado pelo recorrente, de atribuição de efeito suspensivo ao recurso contencioso dos autos. A decisão «a quo» começou por afastar a possibilidade de a atribuição daquele efeito se restringir aos recursos jurisdicionais, caso em que não abrangeria os recursos contenciosos; e, assente que o pedido em apreço era formalmente admissível, o TCA passou a conhecê-lo, tendo-o indeferido por considerar que o recorrente não cumprira «o ónus de invocação e demonstração dos prejuízos» nem alegara a «dificuldade de reparação» dos danos ambientais, antes se tendo limitado «a indicações vagas, genéricas e hipotéticas sobre um eventual dano ambiental, não concretizado nem demonstrado».
Como se depreende das conclusões da alegação, que delimitam o âmbito do recurso, são duas as questões jurídicas que o recorrente suscita com vista a acometer o aresto do TCA – uma de natureza formal e outra de índole material. Assim, e por um lado, o acórdão teria sido proferido prematuramente, por estar ainda a decorrer o prazo legalmente subsequente à citação de outros interessados no pleito; de modo que estaríamos perante uma hipótese configurável como falta de citação, mostrando-se essa nulidade principal consumada e acobertada pelo próprio acórdão em crise. Por outro lado, o aresto, ao dizer que a petição não continha factos integradores de um dano irrreparável ou de difícil reparação que devesse ser evitado através da atribuição de efeito suspensivo ao recurso, teria desprezado o conteúdo dos documentos que acompanharam aquela peça; assim, o próprio despacho da autoridade recorrida, junto com a petição de recurso, conteria afirmações sobre os severos prejuízos que, para o pombo torcaz dos Açores, advirão da execução da obra a que respeita a declaração de impacte ambiental – o que seria demonstrativo de que o recorrente, afinal, alegara os factos que o TCA considerou silenciados.
Comecemos por aquele problema de ordem formal. Já dissemos que o recurso contencioso dos autos foi interposto no âmbito da denominada acção popular, de acordo com a previsão constante da Lei n.º 83/95, de 31/8. Neste tipo de processos, e como se estatui no art. 14º do diploma, «o autor representa por iniciativa própria, com dispensa de mandato ou autorização expressa, todos os demais titulares dos direitos ou interesses em causa que não tenham exercido o direito de auto-exclusão previsto no artigo seguinte». No n.º 1 do art. 15º (cuja epígrafe consiste no «direito de exclusão por parte de titulares dos interesses em causa»), dispõe-se que, «recebida petição de acção popular, serão citados os titulares dos interesses em causa na acção de que se trate, e não intervenientes nela, para o efeito de, no prazo fixado pelo juiz, passarem a intervir no processo a título principal, querendo, aceitando-o na fase em que se encontrar, e para declararem nos autos se aceitam ou não ser representados pelo autor ou se, pelo contrário, se excluem dessa representação, nomeadamente para o efeito de lhes não serem aplicáveis as decisões proferidas, sob pena de a sua passividade valer como aceitação, sem prejuízo do disposto no n.º 4». Os ns.º 2 e 3 do mesmo art. 15º regem sobre o modo de realização das citações. E o n.º 4 do artigo estabelece que «a representação referida no n.º 1 é ainda susceptível de recusa pelo representado até ao termo da produção de prova ou fase equivalente, por declaração expressa nos autos». Convém ainda mencionar o conteúdo do art. 19º da mesma Lei, que atribui efeitos «erga omnes» ao caso julgado proferido nos processos instaurados ao abrigo da acção popular, mas ressalvando dessa eficácia subjectiva os «titulares dos direitos ou interesses que tiverem exercido o direito de se auto-excluírem da representação».
Das disposições anteriormente referidas, alcança-se que as citações previstas no art. 15º têm por básica finalidade permitir aos eventuais interessados nas questões que no processo se discutam desvincularem-se dessa discussão e do seu resultado; se eles não se excluírem da representação ficcionada no art. 14º do diploma, mantendo-se inertes e silenciosos, haver-se-ão por representados por quem tomou a iniciativa de exercer a acção popular. Assim, as citações dos interessados, aludidas naquele art. 15º, não se destinam a assegurar a legitimidade do autor da acção, como se este, por via de um litisconsórcio necessário, só pudesse litigar acompanhado de outrem. Muito mais modestamente, tais citações visam, a título principal, permitir a circunscrição do âmbito dos poderes representativos que o autor da acção popular, «qua tale», detém «ex vi legis».
Secundariamente, as citações previstas no art. 15º servem o propósito de possibilitar aos citandos a intervenção nos autos. Nessa medida, o n.º 1 do artigo, para além do fim de auto-exclusão que o preceito primacialmente serve, também lhes permite virem ao processo e aí intervirem «a título principal» – ainda que esta intervenção só opere «in cursu litis», já que pressupõe a aceitação do processo «na fase em que se encontrar». Ora, como essa possível intervenção supõe a aceitação do processo «na fase em que se encontrar», depreende-se que a marcha processual não tem de se suspender até que as citações se façam e o prazo («fixado pelo juiz») da hipotética intervenção se esgote; pois, se essa suspensão devesse ter obrigatoriamente lugar, nunca haveria o leque variado de possibilidades (quanto à fase em que o processo se encontrasse no momento da intervenção do citado) que a expressão legal («na fase em que se encontrar») manifestamente abarca.
Portanto, o dinamismo do recurso contencioso não deveria sofrer qualquer paralisia por causa das diligências feitas para citar os eventuais interessados nele não intervenientes «ab initio». E, se isso era assim quanto às questões que no recurso principalmente se discutiam, era-o também, por igualdade ou maioria de razão, quanto ao problema acessório e cautelar do efeito a atribuir-lhe. Dado que este assunto se traduzia, afinal, na pretensão de que se suspendesse de imediato a eficácia do acto contenciosamente recorrido, o TCA encontrava-se perante um pedido típico de um meio preventivo que requeria uma decisão urgente; e, assim sendo, impunha-se que esse pedido fosse alvo de uma decisão rápida, que se não compadecia com o tempo necessário para que os anúncios e os editais corressem e os prazos subsequentes para intervenção se esgotassem. Até porque os citandos, se acaso quisessem intervir nos autos, haveriam de aceitar o processo tal como o encontrassem, o que incluía a aceitação do que, a propósito do efeito do recurso contencioso, tivesse sido entretanto decidido.
Nesta conformidade, a circunstância de o TCA ter proferido o acórdão recorrido antes de esgotadas as formalidades para citação de outros interessados possíveis ou o prazo fixado para eles intervirem não constituiu qualquer anomalia causal de nulidade – fosse ela simplesmente secundária ou a falta de citação que o recorrente temerariamente invoca. E, não havendo, nesta sede, uma nulidade processual coberta pelo aresto «sub judicio», a sua denúncia mostra-se inapta para afrontar o decidido. Assim, são improcedentes ou irrelevantes as doze primeiras conclusões da alegação de recurso.
Passemos agora às conclusões restantes, em que o recorrente acomete o fundo da decisão. A questão a resolver reporta-se ao art. 18º da Lei n.º 83/95, em que se dispõe que, «mesmo que determinado recurso não tenha efeito suspensivo, nos termos gerais, pode o julgador, em acção popular, conferir-lhe esse efeito, para evitar dano irreparável ou de difícil reparação». Dissemos «supra» que o TCA indeferiu a pretensão de se atribuir efeito suspensivo ao recurso por a respectiva petição não conter os factos que poderiam consubstanciar aquele «dano irreparável ou de difícil reparação». Ora, o aqui recorrente não nega que a petição de recurso carecesse da alegação desses factos; mas contrapõe que eles eram detectáveis em documento que simultaneamente juntou (o teor do acto recorrido, como se depreende, «maxime», das conclusões 27.ª e 28.ª), pelo que o tribunal teria a obrigação de os tomar como premissas do juízo que, quanto à gravidade e às consequências do dano invocado, lhe competia emitir.
Não é unívoca a aceitação, por parte da jurisprudência, da alegação de factos mediante a simples junção de documentos; o que bem se compreende tendo em conta, sobretudo, o relevo do princípio dispositivo em matéria de processo, a distinção funcional entre alegação e prova e a regra adjectiva geral de que o juiz, ao decidir, «só pode servir-se dos factos articulados pelas partes» (cfr. o art. 664º do CPC). De todo o modo, e tendo em conta a importância que o princípio do inquisitório também alcança no contencioso administrativo, não repugna admitir-se que a alegação de factos possa ocasionalmente fazer-se mediante o oferecimento de documento donde eles constem. Para tanto, não bastará que tal documento simplesmente acompanhe a peça processual a que a alegação dos factos se deva reportar; mas haverá que exigir ainda que a peça remeta minimamente para o documento, por forma a apropriar-se do respectivo teor e, quanto a este, que contenha de modo explícito e inequívoco o facto que se pretende estar alegado. Na ausência destas duas condições, o nexo entre a alegação e o documento mostrar-se-á contingente e acidental, pelo que persistirá sempre a dúvida quanto ao âmbito da alegação feita, afectando-se a possibilidade do contraditório e comunicando-se essa irremediável incerteza ao momento de decidir.
Ora, é absolutamente seguro que o recorrente não pode pretender fundar no próprio acto impugnado uma alegação de factos integradores de danos irreparáveis ou de difícil reparação para a espécie de aves que diz ameaçada, posto que o acto, exactamente ao invés dos propósitos daquela alegação, concluiu que o impacto ambiental causado pela construção da via rápida, embora provisoriamente admitido, não assumia, no fundo, uma gravidade tal que tornasse desaconselhável a execução da obra. O documento junto com a petição de recurso, e que contém o acto impugnado, forma um todo íntegro que tem de ser encarado no seu conjunto, não sendo aceitável que o recorrente dele retire excertos que não são independentes do resto do discurso e, munido desses fragmentos arrancados ao seu contexto, neles divise uma alegação vera – e, sobretudo, uma alegação que nem sequer vem apontada como o alvo de uma remissão feita na petição de recurso.
Portanto, o acórdão do TCA nenhuma censura merece ao haver implicitamente entendido que o pedido de que se atribuísse efeito suspensivo ao recurso contencioso não podia ter-se por alicerçado em factos colhidos de um modo solto na documentação que o recorrente agora invoca. E deve dizer-se que o recorrente não tem qualquer razão quando sugere que estava impossibilitado de agir de outro modo, pois que a única alternativa que lhe restaria para persuadir dos riscos que corre a espécie animal em causa era a de realizar, ele próprio, um estudo de impacto ambiental que se contrapusesse à declaração inserta no acto recorrido. Afinal, é de crer que o recorrente interpôs o recurso contencioso dos autos fundado numa qualquer razão válida, que descortinou – mesmo sem realizar, «motu proprio», o estudo de impacto ambiental; e acredita-se ainda que ele pediu que se conferisse efeito suspensivo ao recurso por motivos que julgou sérios – embora na falta do dito estudo. Ora, a decisão do TCA significa, muito simplesmente, que estes últimos motivos deviam ter sido traduzidos nos respectivos factos, sob pena de o tribunal ficar impossibilitado de emitir um juízo conscencioso acerca da sua existência e da sua seriedade.
Do que antecede, infere-se que a pronúncia decisória do TCA se mostra exacta. Realmente, na ausência de quaisquer factos, insertos na petição de recurso ou insofismavelmente por ela apropriados, que levem a concluir, com certeza ou elevada probabilidade, que a imediata execução do acto contenciosamente recorrido causará um dano irreparável ou de difícil reparação à espécie de aves que se diz em risco e ao ambiente local, temos que essa ameaça de prejuízos, apesar de não ser logicamente impossível, se apresenta, para já, como meramente hipotética ou eventual. Mas, deste grau de contingência, deduz-se que o recorrente não satisfez um requisito de que essencialmente dependia a aplicação do art. 18º da Lei n.º 83/95 – precisamente a prova «prima facie» do «dano irreparável ou de difícil reparação», enquanto consequência adequada da eficácia do acto – justificando-se o indeferimento proferido pelo tribunal «a quo».
Consequentemente, improcedem ou são irrelevantes as conclusões 13.ª a 35.ª da alegação de recurso, impondo-se a confirmação integral do aresto «sub censura».
Nestes termos, acordam em negar provimento ao recurso e em confirmar o acórdão recorrido.
Para a hipótese de o recorrente não vir a beneficiar de isenção prevista no artº 20, nº 2, da Lei nº 83/95, fixam-se as custas do presente recurso, a cargo dele, em:
Taxa de justiça: 150 euros
Procuradoria: 75 euros.
Lisboa, 27 de Agosto de 2003.
Madeira dos Santos – Relator – Jorge de Sousa – António São Pedro