Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0122/20.1BALSB
Data do Acordão:10/31/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA DO CÉU NEVES
Descritores:INTIMAÇÃO PARA PROTECÇÃO DE DIREITOS LIBERDADES E GARANTIAS
RESOLUÇÃO DO CONSELHO DE MINISTROS
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P26662
Nº do Documento:SA1202010310122/20
Data de Entrada:10/29/2020
Recorrente:A..........
Recorrido 1:ESTADO PORTUGUÊS E OUTROS
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:

1. RELATÓRIO

A…………, devidamente identificada nos autos, intentou neste Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do disposto no artº 109º e segs. do CPTA, intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias contra o ESTADO PORTUGUÊS e a PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DE MINISTROS formulando os seguintes pedidos:
Ser o Estado Português intimado a respeitar o direito fundamental da requerente à livre circulação e locomoção no território nacional no período compreendido entre as 00,00h do dia 30.10.2020 e as 06,00h do dia 03.11.2020 e, em consequência, o requerido abster-se de qualquer acto que, por si ou através das forças de segurança e de fiscalização, a impeça de exercer plenamente este direito no quadro da Resolução do Conselho de Ministros nº 89-A/2020 de 26 de Outubro”.
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Por despacho proferido nos autos em 29.10.2020, foi julgada a procedência da ilegitimidade passiva do Estado Português, com a consequente absolvição da instância e determinada a citação do Conselho de Ministros, para responder à presente intimação.
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A requerente, alega, em síntese:
A Resolução do Conselho de Ministros nº 89-A/2020 que determina a limitação de circulação entre diferentes concelhos do território continental no período entre as 00,00h de 30 de Outubro e as 06,00 do dia 3 de Novembro de 2020, viola diversas disposições constitucionais, a saber, os artºs 18º, 19º, 44º, nº 1, 12º, nº 1, 13º e 41º da CRP, pondo em causa o direito à livre deslocação, ou à liberdade de locomoção, direitos que se inserem no conjunto de direitos, liberdades e garantias, aplicáveis e vinculativos a todas as instituições públicas e privadas, que só podem ser restringidos por lei directamente emanada da Assembleia da República e unicamente nos casos expressamente previstos na CRP, devendo as restrições limitar-se ao necessário para a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (nº 2 do artº 18º da CRP).
Mais alega que os órgãos de soberania não podem suspender os direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência declarados na CRP (artº 19º), o que não se verifica em concreto, pese embora, haver sido declarada a situação pandémica fruto da doença Covid-19.
Pese embora, a situação epidemiológica, Portugal enquanto Estado de Direito, tem de salvaguardar a garantia efectiva dos direitos, liberdades fundamentais e fazê-lo ao abrigo do princípio da separação de poderes.
O Estado Português, através do governo, não pode, pois, restringir a liberdade de circulação dos cidadãos portugueses através de mera Resolução do Conselho de Ministros, sob pena de violação do disposto nos artºs 18º, 19º e 44º da CRP, sendo por isso tal restrição absolutamente inconstitucional.
E nem tal restrição está justificada pelo DL nº 10-A/2020, de 13.03, uma vez que o mesmo apenas visou estabelecer medidas excepcionais temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus – e da doença Covid 19 – e os seus artºs 12º e 13º impõem tão só restrições de acesso a estabelecimentos e a serviços e edifícios públicos, nada restringindo quanto à liberdade de circulação dos cidadãos no território nacional;
Nem tão pouco, a Lei nº 1-A/2020, de 19.03 [que veio estabelecer medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-COV-2 e da doença COVID 19, regulamentando o estado de emergência declarado, sendo que o seu artº 2º veio apenas ratificar o DL nº 10-A/2020, de 13 de Março] conferiu ao Governo poderes para, sozinho, limitar ou suspender direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
E nem mesmo a Lei nº 81/2009, de 21.08 [que instituiu o sistema de vigilância em saúde pública, prevendo o seu artº 17º um poder regulamentar excepcional do membro do governo responsável pela área da saúde], habilita o governo a suspender direitos, liberdades e garantias, como o direito de livre locomoção e deslocação em território nacional, prevendo inclusive o nº 3 daquele preceito que “as medidas previstas nos números anteriores devem ser aplicadas com critérios de proporcionalidade que respeitem os direitos, liberdades e garantias fundamentais, nos termos da Constituição e da lei”.
Também a Lei nº 27/2006 de 03.07 [Lei de Bases da Protecção Civil] apenas se refere a situação de alerta e de contingência – artº 8º, nº 6 – e não de calamidade e apenas determina que a competência para a declaração de situação de calamidade é do Conselho de Ministros – artº 19º.
Igualmente a al. g) da CRP apenas dispõe que compete ao Governo, no exercício de funções administrativas “praticar todos os actos e tomar todas as providências necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades colectivas”.
Porém, nenhuma destas normas ou qualquer outra, habilita o governo a, sozinho e por sua exclusiva vontade, através de resolução do Conselho de Ministros, suspender durante 5 dias o direito à livre deslocação e circulação dos cidadãos portugueses.
E nem a situação de declaração de situação e calamidade prevista nos artºs 19º e seguintes da LBPC (artº 21º, nº 2, al. b)) permite tal possibilidade, sob pena de subversão absoluta desta lei e da própria CRPa ratio legis desta norma é evitar o acesso de pessoas a determinado local onde se verifique a ocorrência de um acidente grave ou catástrofe, tal como definidos pelo disposto no artº 3º da própria LBPC e não de forma generalizada e sem um risco concreto, limitar em absoluto a circulação dos cidadãos, prendendo-os a uma área geográfica restrita por mera resolução do Conselho de Ministros, sem a fiscalização dos demais órgãos de soberania, como é o caso presente.
Ou seja, esta limitação não é constitucionalmente admissível por o Governo carecer deste poder e, por outro lado, tratando-se de uma limitação ou suspensão de um direito fundamental absolutamente desproporcional, porquanto não pode, sequer, prever-se que produza qualquer efeito a nível de controlo da pandemia.
Trata-se de uma medida populista e oportunista que, aliás, também limita o direito à liberdade de consciência, de religião e de culto previsto no artº 41º da CRP, impedindo milhões de portugueses de praticar plenamente o culto religioso.
Esta prática religiosa não implica a violação de quaisquer regras de segurança, salubridade ou de qualquer cuidado recomendado em face da pandemia actual e não é a proibição de deslocação para fora do concelho da sua área de residência nesse período de 5 dias que impedirá que os cidadãos que não se pretendam conformar com as recomendações de segurança para a sua saúde o passem a fazer, pois, estes continuam a reunir-se com a família e amigos seja em que período for.
Mas impede que cidadãos responsáveis que propugnam pelo cuidado com a sua saúde e a dos outros, mas também pela manutenção do Estado de Direito, sejam impedidos de circular livremente entre concelhos.
Tal resolução viola ainda os princípios da universalidade e da igualdade previstos nos artºs 18º e 19º da CRP, porquanto permite que cidadãos que residam no mesmo concelho dos seus familiares possam continuar a reunir-se entre si neste período, mas outros cidadãos apenas por residirem no concelho limítrofe ao dos seus familiares, já não o possam fazer, designadamente não podendo prestar os deveres de assistência entre os membros da mesma família.
Conclui que a lesão dos seus direitos fundamentais são iminentes e irreversíveis e qualquer decisão posterior a este período perderá efeito útil, encontrando-se demonstrada a possibilidade de lesão iminente e irreversível do direito à livre circulação e locomoção em território nacional da requerente.
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O Conselho de Ministros veio apresentar a sua defesa, por excepção [ilegitimidade passiva da Presidência do Conselho de Ministros e impropriedade do meio] e no mais impugnando o alegado pela requerente, concluindo no sentido da improcedência do pedido.
Dada a natureza urgente dos presentes autos e a decisão de fundo que irá ser proferida, não se dará cumprimento ao direito ao contraditório que assistiria à requerente, sob pena da presente intimação perder qualquer efeito útil que possa ser produzido.
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Sem vistos, cumpre decidir.
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2. FUNDAMENTAÇÃO

RESOLUÇÃO DO CONSELHO DE MINISTROS Nº 89-A/2020 (DR nº 208/2020, 1º Suplemento, I série de 2020.10.26)
«Face à situação excecional que se vive em Portugal e no mundo, e de modo a evitar a proliferação de casos registados de contágio de COVID-19 e um retrocesso na contenção da transmissão do vírus e da expansão da doença COVID-19 que as medidas adotadas permitiram, importa considerar, no âmbito da situação de calamidade, a limitação das deslocações das pessoas no período entre 30 de outubro e 3 de novembro de 2020.
Esta limitação, imposta com o intuito de conter a transmissão do vírus e a expansão da doença, visa evitar que a circulação de cidadãos para fora do concelho de residência habitual que poderia verificar-se em função do feriado de todos os Santos e do dia dos finados, contribua como foco de transmissão da doença.
Nesse sentido, permitem-se apenas deslocações para fora dos concelhos em casos muito específicos.
Assim:
Nos termos dos artigos 12.º e 13.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na sua redação atual, por força do disposto no artigo 2.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na sua redação atual, do artigo 17.º da Lei n.º 81/2009, de 21 de agosto, do n.º 6 do artigo 8.º e do artigo 19.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, na sua redação atual, e da alínea g) do artigo 199.º da Constituição, o Conselho de Ministros resolve:
1 - Alterar a Resolução do Conselho de Ministros n.º 88-A/2020, de 14 de outubro, alterada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 88-B/2020, de 22 de outubro, nos seguintes termos:
«1 - Declarar, na sequência da situação epidemiológica da COVID-19, até às 23:59h do dia 3 de novembro de 2020, a situação de calamidade em todo o território nacional continental.
[...]
15 - Determinar que os cidadãos não podem circular para fora do concelho de residência habitual no período compreendido entre as 00:00h do dia 30 de outubro de 2020 e as 06:00h do dia 3 de novembro de 2020, salvo por motivos de saúde ou por outros motivos de urgência imperiosa.
16 - Determinar que a restrição prevista no número anterior não se aplica:
a) Aos profissionais de saúde e outros trabalhadores de instituições de saúde e de apoio social, bem como ao pessoal docente e não docente dos estabelecimentos escolares;
b) Aos agentes de proteção civil, às forças e serviços de segurança, militares, militarizados e pessoal civil das Forças Armadas e aos inspetores da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica;
c) Aos titulares de cargos políticos, magistrados e dirigentes dos parceiros sociais e dos partidos políticos representados na Assembleia da República;
d) Aos ministros de culto, mediante credenciação pelos órgãos competentes da respetiva igreja ou comunidade religiosa, nos termos do n.º 2 do artigo 15.º da Lei n.º 16/2001, de 22 de junho, na sua redação atual;
e) Ao pessoal de apoio dos órgãos de soberania e dos partidos com representação parlamentar, desde que comprovado o respetivo vínculo profissional através de cartão de trabalhador ou outro documento idóneo;
f) Às deslocações para efeitos de atividades profissionais ou equiparadas, desde que:
i) Prestem declaração, sob compromisso de honra, se a deslocação se realizar entre concelhos limítrofes ao da residência habitual ou na mesma Área Metropolitana; ou
ii) Estejam munidos de uma declaração da entidade empregadora, se a deslocação não se circunscrever às áreas definidas na subalínea anterior.
g) Às deslocações de menores e seus acompanhantes para estabelecimentos escolares, creches e atividades de tempos livres, bem como às deslocações de estudantes para instituições de ensino superior ou outros estabelecimentos escolares;
h) Às deslocações dos utentes e seus acompanhantes para Centros de Atividades Ocupacionais e Centros de Dia;
i) Às deslocações para a frequência de formação e realização de provas e exames, bem como de inspeções;
j) Às deslocações para participação em atos processuais junto das entidades judiciárias ou em atos da competência de notários, advogados, solicitadores, conservadores e oficiais de registos, bem como para atendimento em serviços públicos, desde que munidos de um comprovativo do respetivo agendamento;
k) Às deslocações necessárias para saída de território nacional continental;
l) Às deslocações de cidadãos não residentes para locais de permanência comprovada;
m) Às deslocações para assistir a espetáculos culturais, se a deslocação se realizar entre concelhos limítrofes ao da residência habitual ou na mesma Área Metropolitana e desde que munidos do respetivo bilhete;
n) Ao retorno à residência habitual.
17 - Determinar que a restrição prevista no nº 15 não obsta à circulação entre as parcelas dos concelhos em que haja descontinuidade territorial.
18 - Determinar que o disposto no n.º 16 se aplica, com as devidas adaptações, à circulação de cidadãos não residentes em território nacional continental.
19 - (Anterior n.º 15.)
20 - (Anterior n.º 16.)
21 - (Anterior n.º 17.)
22 - (Anterior n.º 18.)
23 - (Anterior n.º 19.)»
2 - Determinar que a presente resolução produz efeitos a partir das 00:00h do dia 30 de outubro de 2020.
(…)» negritos nossos.
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2.2. O DIREITO
DAS EXCEPÇÕES:
(I) DA ILEGITIMIDADE PASSIVA DA PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DE MINISTROS
Alega a requerida, em síntese, que tendo o Estado Português, por despacho da relatora, sido absolvido da instância, por ilegitimidade passiva, e dado que os pedidos formulados em concreto pela requerente se dirigem ao Estado Português [que seria o titular do interesse em conflito], a presente intimação deixou de ter sujeitos passivos, uma vez que a Presidência do Conselho de Ministros também é parte ilegítima, por não ser titular da relação material controvertida.
Não lhe assiste contudo razão, como aliás tem vindo a ser decidido neste Tribunal, no que toca a esta excepção.
Com efeito, no âmbito do Proc. nº 088/20.8BALSB, proferido em 10.09.2020, esta excepção foi decidida com base nos seguintes argumentos, que aqui se reiteram:
«Porém, importa não esquecer, uma vez mais, que estamos no âmbito de um processo urgente de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, em que os poderes de direcção processual do juiz (7.º-A do CPTA) surgem especialmente reforçados (artigos 110.º e 110.º-A do CPTA), tendo em vista assegurar o efeito útil da decisão (artigo 111.º) – afinal este é o processo urgente por excelência, que cumpre, no âmbito do sistema jurídico-processual nacional, uma função instrumental de amparo constitucional para os lesados nos seus direitos, liberdades e garantias, o que impõe o escrutínio dos pressupostos processuais cum grano salis, o mesmo é dizer que com a devida ponderação dos princípios do favorecimento do processo, da colaboração do juiz e da justiça material, atenta a especial (reforçada) efectivação do princípio da tutela jurisdicional efectiva que aqui está em causa ex vi da conjugação dos artigos 18.º, 22.º, n.º 5 e 268.º, n.ºs 4 e 5 da CRP.
Assim, não obstante ter razão a Requerida quando alega que o autor da resolução é o Conselho de Ministros, a verdade é que: i) não só se atenta na íntima relação intersubjectiva institucional existente entre a Presidência do Conselho de Ministros e o Conselho de Ministros; ii) como se compreende a intencionalidade do Requerente em “superar a dificuldade” que poderia decorrer da imputação a uma única entidade, escrutinável perante o mesmo Tribunal, do pedido que pretendia formular (já veremos se correctamente ou não) para assegurar a tutela jurisdicional efectiva do direito fundamental que alega estar lesado; iii) como ainda se leva em consideração que a urgência em assegurar o efeito útil da decisão não se compaginaria com a notificação do Requerente para correcção da petição, que, para este efeito, redundaria numa diligência processual puramente dilatória, quando não frustradora da pretensão primeira do Requerente que é obter a tutela judicial relativamente ao seu pedido, o qual, é perfeitamente perceptível pela partes (a comprová-lo a completa e exaustiva, mas certeira, contestação apresentada pela Requerida) e pelo Tribunal.
É, de resto, este “espirito de simplificação processual” e “aprofundamento da tutela jurisdicional efectiva” que informa o regime jurídico actual deste meio processual urgente e que vem presidindo às modificações legislativas de que tem sido objecto, como resulta, de forma expressa, da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 331/XIII, que deu lugar à Lei n.º 100/2015, de autorização do Governo para a revisão do CPTA, onde se pode ler o seguinte: “[…] O sexto aspeto, como reflexo da necessidade de garantir uma tutela jurisdicional plena, diz respeito à proposta de permitir a substituição de petições de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias por requerimentos cautelares, quando não se preencham os exigentes pressupostos de que depende a admissibilidade dos primeiros[…]”
Em suma, a especificidade do processo justifica a primazia da decisão material e que, por esse efeito, se considere não verificada a excepção de ilegitimidade passiva»
E com base nestes fundamentos a que aderimos na íntegra, julga-se improcedente a excepção suscitada.
II. DA IMPROPRIEDADE DO MEIO PROCESSUAL
No que a este aspecto concerne, alega a requerida que a requerente não podia lançar mão da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias com o intuito de obter a declaração de ilegalidade da norma com efeitos pessoais, uma vez que a intimação apenas pode ter como “resultado” uma sentença condenatória e não pode ser utilizado como “meio impugnatório”.
Porem, também aqui não tem razão a requerida.
E mais uma vez se faz apelo ao decidido no processo supra identificado, onde a este propósito consignou:
«Porém, não tem razão a Requerida, pois como resulta claro desde o primeiro momento (designadamente da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 92/VIII, que deu origem à Lei n.º 15/2002, que aprovou o CPTA), a intencionalidade do legislador com a introdução entre nós deste meio processual foi “a de dar cumprimento à determinação contida no artigo 20.º, n.º 5, da Constituição” e para o efeito concebeu um “instrumento que se procurou desenhar com uma grande elasticidade”, para assegurar em tempo útil, com uma decisão de mérito, os direitos dos lesados que não ficassem devidamente protegidos com um meio cautelar ou quando o uso destes meios seja desprovido de sentido, como sucede neste caso, em que um meio cautelar poderia dar origem a um “excesso de tutela”, permitindo ao alegado lesado obter com maior facilidade, por via da tutela cautelar, uma protecção que mais tarde se concluísse que era infundada à luz do julgamento do mérito da questão.
E por isso este é o meio adequado para obter a tutela urgente perante a alegada lesão de direitos, liberdades e garantias que não possam ser garantidos pela via da tutela cautelar, redundando sempre a decisão na imposição à Administração da adopção de uma conduta, positiva ou negativa, mesmo que essa decisão, como sucede aqui, seja funcionalmente equivalente à desaplicação de uma norma imediatamente operativa (Veja-se que neste caso, por se tratar de um pedido “funcionalmente coincidente” com a impugnação da ilegalidade de uma norma geral com efeito circunscrito ao caso concreto, não se suscita sequer o problema que a doutrina vem colocando a respeito do uso deste processo urgente para obter a imposição da abstenção da conduta que se traduza na “desaplicação de um acto administrativo” em que, por se tratar de uma actuação da administração que não tem outro destinatário que não seja o requerente (referimo-nos, claro, a um acto individual e contrato), colocar-se-ia o problema de saber o que é que sucederia com esse acto, no sentido de saber se poderia ser também anulado no âmbito do processo urgente (como defende uma parte dos autores) ou não (como defendem outros).). Contrariamente ao que alega a Requerida, a tutela que o Requerente pretende obter não seria alcançável através da cumulação de um pedido de impugnação de normas, com uma providência cautelar, porquanto, atendendo à vigência temporal limitada do regime normativo em causa, apenas uma decisão de fundo sobre a questão se revela juridicamente adequada à sua solução.
Na verdade, a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias acaba por se mostrar um expediente processual tipificado no que respeita aos seus pressupostos especiais, mas extremamente dúctil quanto ao conteúdo da pretensão e, até, aos efeitos da decisão, sempre que a mesma acautele de modo efectivo a lesão (ou ameaça de lesão) do direito fundamental e se cinja ao necessário para esse efeito.
Assim, tal como vem configurado o pedido pelo Requerente ― textualmente enunciado como um pedido de declaração de ilegalidade com efeitos pessoais, mas que substancialmente se configura como a condenação do Estado a não lhe aplicar a regra da proibição de ajuntamentos de mais de 10 ou 20 pessoas em espaço público, regra que ele identifica com o “direito de reunião com amigos e família, jantares, tertúlias, sessões lúdicas ou piqueniques” ― o uso da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, não se revela um meio processual impróprio.
Poderia dizer-se que a formulação mais correcta a adoptar no pedido seria a de pedir a imposição à Administração da abstenção de proibir ajuntamentos ou reuniões “convocadas” pelo Requerente ou em que ele participasse, o que constitui um equivalente funcional da desaplicação da norma que contempla aquela proibição relativamente a si, pelo que, atenta a já mencionada especial simplificação com que devem ser analisados os pressupostos processuais relativamente a este meio processual, impõe-se a interpretação do pedido com este sentido (…)».
Improcede, pois, atentos os fundamentos expostos que valem para a presente intimação, a excepção suscitada.
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DO MÉRITO:
Estamos no domínio de um meio processual legalmente conformado como via de concretização do n.º 5 do artigo 20.º da CRP, que impõe a este Tribunal uma resposta efectiva e em tempo útil (urgente) contra ameaças de violação de direitos, liberdades e garantias pessoais, como o que vem alegado pela autora no artigo 9.º da p. i. (direito à livre deslocação) pelo que importa analisar e decidir, de forma sumária, se existe efectiva lesão ou ameaça de lesão.

1. Qualificação da medida como uma “norma-medida” restritiva do direito ou liberdade de circulação
A. acciona a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias por entender que o disposto na Resolução do Conselho de Ministros n.º 89-A/2020, de 26 de Outubro, consubstancia uma restrição/suspensão do seu direito à liberdade de deslocação e de fixação em qualquer parte do território nacional, protegido pelo artigo 44.º, n.º 1 da CRP.
Porém, se atentarmos no conteúdo da medida, e não obstante a mesma se enunciar como uma proibição – “os cidadãos não podem circular” –, a verdade é que os amplos termos em que vem enunciada a excepção – “salvo por motivos de urgência imperiosa” –, a que se soma um alargado e generoso leque de situações de não incidência da proibição e ainda a ausência de sanções expressas para o caso de incumprimento, pode questionar-se se estamos, efectivamente, ante uma medida proibitiva e restritiva daquele direito/liberdade ou antes perante uma norma imperfeita, que acolhe, em forma de recomendação agravada, o dever de permanência no concelho durante aquele período de tempo.
Um dúvida que, por certo, se torna patente na dificuldade que a. encontrou em identificar relativamente a si e ao seu quotidiano expressões do que seria efectiva e realmente a restrição daquele direito-liberdade e que pudessem traduzir processualmente o seu interesse em agir, para além do mero “sentimento de restrição da liberdade”.
Por outras palavras, resulta do teor da p.i. que mais do que a tutela de uma concreta expressão da liberdade de circulação em que a. se vê tolhida, busca, através dela, a tutela do seu sentimento de liberdade face a uma ingerência regulatória do Governo no contexto das medidas de combate à pandemia da COVID19.
Porém, não tendo a tutela em abstracto da liberdade pessoal quaisquer restrições no plano da legitimidade processual e do interesse em agir no âmbito deste específico meio processual, porquanto a restrição do direito/liberdade resulta da mera necessidade de motivação perante as autoridades públicas do seu exercício, não existem motivos para não apreciar a questão que vem suscitada.
Daí que, ainda que a medida consubstancie apenas, na sua implementação prática, um dever de não sair do concelho durante aquele período de tempo e que o seu desrespeito não venha a traduzir-se em desobediência juridicamente punível, ainda assim, existirá uma restrição do direito que se caracteriza pela inerente arbitrariedade do seu exercício, que importa, por isso, analisar.
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2. A questão da violação da reserva de lei parlamentar habilitante da restrição da liberdade de circulação (artigos 29.º a 36.º da p. i.)
Assim, considerando que estamos ante uma medida restritiva da liberdade de circulação, ou seja, de uma medida cuja intencionalidade directa é restringir o direito individual de circular (e não de uma medida à qual se possa reconhecer um conteúdo apenas regulador-limitador dessa liberdade) e que, como tal, cabe no âmbito dos artigos 18.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1 al. b) da CRP, carecendo de uma lei habilitante, cabe avaliar se essa habilitação, não provindo de uma lei parlamentar específica, pode considerar-se resultante de uma cadeia de legitimação que tem no seu topo uma lei parlamentar, ou seja, a restrição que resulta da norma medida aqui em apreço tem de encontrar em preceitos legais do Parlamento ou em decretos-lei autorizados uma expressão textual que contemple a restrição.
Vejamos se assim acontece.
A medida em apreço foi aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros nº 89-A/2020, de 26 de Outubro, e contempla como “lei habilitante” os artigos 12.º e 13.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março (diploma ratificado pelo artigo 2.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março), o artigo 17.º da Lei nº 81/2009, de 21 de Agosto (Lei do sistema de vigilância em saúde pública) e os artigos 8.º, n.º 6 e 19.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de Julho (Lei de Bases da Protecção Civil), todos nas suas redacções actualizadas.
Ora, para verificar se este acervo legislativo parlamentar consubstancia uma efectiva base habilitante da medida, ou seja, o esteio da cadeia de legitimação que a sustente, cabe verificar se a medida adoptada – “proibição de circular para fora do concelho de residência habitual no período entre as 00.00h do dia 30 de Outubro e as 6.00h do dia 3 de Novembro de 2020”, excepto nos casos aí salvaguardados – encontra naquelas normas legais uma fonte normativa adequada.
E consideramos que encontra, não obstante estarmos perante normas legais que não foram aprovadas para dar cobertura legal a esta concreta medida, mas sim para fazer face a hipotéticas situações de emergência sanitária e de prevenção de riscos colectivos inerentes a situações de acidente grave ou de catástrofe ou de atenuação dos respectivos efeitos (i. e. protecção civil), a que esta medida não deixa também de se reconduzir.
Vejamos, o nº 2 do artigo 17.º da Lei nº 81/09 (Lei do sistema de vigilância em saúde pública) dispõe que “O membro do Governo responsável pela área da saúde, sob proposta do director-geral da Saúde, como autoridade de saúde nacional, pode emitir orientações e normas regulamentares no exercício dos poderes de autoridade, com força executiva imediata, no âmbito das situações de emergência em saúde pública com a finalidade de tornar exequíveis as normas de contingência para as epidemias ou de outras medidas consideradas indispensáveis cuja eficácia dependa da celeridade na sua implementação”.
E é verdadeiramente isso que temos aqui: (i) primeiro, uma orientação ou norma regulamentar cujo conteúdo se aproxima mais de uma “recomendação agravada” do que uma proibição; (ii) segundo, emitida no âmbito de uma situação de emergência em saúde pública, situação que é hoje um facto público e notório; e (iii) terceiro, uma norma de contingência para uma situação de epidemia. A norma do n.º 2 do artigo 17.º consubstancia uma base habilitante mínima para a medida, tendo em conta que a medida é uma proibição imprecisa ou porosa e que a norma habilitante tem a densidade possível para uma norma habilitante de medidas urgentes (indispensáveis e cuja eficácia dependa de celeridade) adoptadas em situação de emergência sanitária.
Já quanto aos artigos da Lei de Bases da Protecção Civil, em especial os que respeitam às consequências da declaração da situação de calamidade, verificamos que a mesma pode estabelecer “a fixação, por razões de segurança dos próprios ou das operações, de limites ou condicionamentos à circulação ou permanência de pessoas”.
Não se trata, é evidente, de uma autorização de restrição à liberdade de circulação expressamente prevista para o caso dos autos, porém, não deixa de ser claro que existe uma autorização legislativa parlamentar para a restrição deste direito-liberdade por acto das autoridades administrativas, sempre que seja decretada pelo Governo a situação de calamidade, declaração que resulta, expressamente, do n.º 1 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 89-A/2020.
Em suma, conclui-se do arrazoado legislativo que estão preenchidas as exigências legais para, num contexto (público e notório) de emergência sanitária, reconhecer a habilitação parlamentar do Governo para a emissão desta concreta medida, cujo cunho e eficácia restritiva foram além disso gizados e modo fortemente atenuado e com uma vigência temporal reduzida.
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3. Sobre a conformidade constitucional do conteúdo da medida
A. alega, mas sem qualquer razão, que a medida em causa consubstancia uma suspensão de direitos (artigo 12.º da p. i.) que só poderia ser adoptada com o decretamento do estado de emergência (artigo 19.º da CRP). Com efeito, da medida em apreço não resulta nenhuma suspensão de direitos, nem do direito-liberdade de circulação. A mobilidade da A. não fica suspensa, nem mesmo no âmbito de deslocações para fora do seu concelho, o que decorre da medida é que essas deslocações não devem ser arbitrárias, ou seja, devem ter um propósito derrogador do dever de permanência no concelho. E isto não consubstancia nenhuma suspensão do direito, mas sim uma limitação do mesmo, ou seja, a. deixa de poder livremente circular entre concelhos e passa a ter de o fazer com um fundamento: é este, no essencial, o conteúdo da restrição imposta pela medida, pelo que é esse conteúdo que importa verificar se se revela adequado, necessário e proporcional.
A justificação da medida é enunciada da seguinte forma: “Face à situação excecional que se vive em Portugal e no mundo, e de modo a evitar a proliferação de casos registados de contágio de COVID-19 e um retrocesso na contenção da transmissão do vírus e da expansão da doença COVID-19 que as medidas adotadas permitiram, importa considerar, no âmbito da situação de calamidade, a limitação das deslocações das pessoas no período entre 30 de outubro e 3 de novembro de 2020.
Esta limitação, imposta com o intuito de conter a transmissão do vírus e a expansão da doença, visa evitar que a circulação de cidadãos para fora do concelho de residência habitual que poderia verificar-se em função do feriado de todos os Santos e do dia dos finados, contribua como foco de transmissão da doença.
Nesse sentido, permitem-se apenas deslocações para fora dos concelhos em casos muito específicos”.
O critério da adequação da medida é questionado pela A. com o argumento de que a pandemia estará tão disseminada no território, tendo as autoridades perdido já o controlo sobre a origem dos surtos, que a limitação da circulação imposta pela medida não constitui um meio apto a “conter a transmissão da doença” (artigo 14.º da p. i.).
Mas este argumento não procede, porquanto basta atentar na divulgação dos dados da DGS através do seu site institucional para verificar que os casos confirmados por concelho apresentam índices variados o que, em si, é apto a justificar que a redução da mobilidade inter-concelhos é uma medida adequada a limitar a propagação de um vírus que se transmite (facto público e notório) por contactos interpessoais.
O critério da necessidade da medida é contestado pela A. com o fundamento de que a letalidade da doença é baixa, atinge sobretudo pessoas com idade superior a 70 anos ou com outras co-morbilidades, grupo no qual a não se integra, e por isso no seu caso a doença seria benigna, o que justificaria (parece resultar da sua argumentação), que a medida não deveria atingir toda a população, mas apenas os grupos de risco (artigos 15.º a 20.º). Ora, sem adentrar em juízos que são típicos da actividade administrativa (i. e. ponderação da adopção de medidas alternativas à que foi adoptada), impõe-se lembrar, no controlo desde critério, que no essencial apela à verificação da adopção ou não da medida que corresponda ao meio mais benigno de limitação do direito dentro do leque de medidas adequadas, que a incerteza científica sobre esta nova doença pandémica é ainda significativa (facto público e notório) e que até ao momento o que se tem registado é um aumento significativo do número de contágios, apesar das diversas medidas e recomendações já adoptadas e que se têm ido enraizando nas práticas quotidianas da população a nível nacional e mundial, e que esse número dá lugar a um aumento proporcional do número de casos graves que requerem cuidados hospitalares, cuja capacidade de resposta é limitada. Com base nesses dados e na circunstância de as infecções graves serem também resultantes de cadeias de contágio intergeracional (factos públicos e notórios), a necessidade da medida agora adoptada tem de ser também avaliada no contexto da limitação que impõe de forma universal.
Por outras palavras, a alega que por não estar em grupo de risco, estatisticamente, tem maior probabilidade de sofrer de uma forma mais benigna, pelo que a medida não deveria abrangê-la, mas, quanto muito, ficar limitada aos grupos que estão em maior risco de vir a sofrer daquela forma grave de doença. O que ignora e não toma em linha de consideração que um aumento dos contágios mesmo entre as pessoas dos grupos que estatisticamente têm menores probabilidades de sofrer de formas graves de doença acaba por traduzir-se, por força dos inevitáveis contactos intergeracionais (seja no contexto das relações familiares, seja no contexto das relações de cuidadores), em um maior aumento de casos também entre as pessoas que integram o grupo que tem maior probabilidade de desenvolver a forma grave da doença. Por essa razão, também o critério da necessidade se mostra preenchido.
Importa, por último, verificar se não obstante a adequação e a proporcionalidade, a medida se pode considerar, neste caso, proporcional à luz de um juízo de ponderação global (proporcionalidade em sentido restrito). No fundo, saber se, ponderada a concreta restrição imposta ao direito-liberdade de circulação ― que se consubstancia, como supra caracterizámos, na obrigação de justificação atendível para efectuar deslocações para fora do concelho entre as 00.00h do dia 30 de Outubro e as 6.00h do dia 03 de Novembro, e que se traduz no “sentimento da autora de restrição da liberdade de circulação para fora do concelho”, que ela caracteriza como uma “prisão ao ar livre” (artigo 46.º da p. i.) ―, com os objectivos que a medida visa alcançar, e que são “conter a transmissão do vírus e a expansão da doença”, daqui resulta uma restrição intolerável ao direito/liberdade da A..
E afigura-se-nos que não, face ao limitado período de tempo pelo qual a medida é imposta, o seu concreto conteúdo, que é, como dissemos, muito elástico, e a imperiosidade dos fins últimos que se visam alcançar com a adopção da medida (salvaguarda da capacidade resposta dos serviços de saúde para proporcionar a todos, os que venham a padecer de forma grave da doença COVID-19 e dos restantes que precisem de cuidados de saúde hospitalar durante o período da pandemia, com o objectivo de proteger a vida humana em condições dignas), mediante os fins imediatos a prosseguir, que são a contenção da transmissão do vírus e do número de contágios, não se nos afigura que exista em concreto, desproporcionalidade da restrição que é imposta à A..
Para este juízo de não violação do princípio da proporcionalidade em sentido restricto contribui igualmente o facto de se ter de considerar que o núcleo do direito à liberdade de circulação fica salvaguardado pela medida, também na circulação para fora do concelho, seja ao não impedir totalmente as deslocações inter-concelhos, seja ao permitir uma futura análise de eventuais situações concretas em que tenha havido essa violação, seja por erro na aplicação da medida pelas autoridades públicas, seja porque, em concreto, se venha a verificar que a medida se revelou desproporcionada e deva dar lugar a uma condenação do Estado à reparação do direito violado.
Neste juízo derradeiro que supra explicitámos, o Tribunal tomou também em conta que a pretensão da A. (como resulta do artigos 21.º a 28.º da p. i.) é expressão de uma preocupação geral decorrente do prolongamento no tempo da limitação das liberdades pessoais e da autodeterminação individual que vem sendo imposta pelas medidas administrativas de combate à pandemia e do risco que, em abstracto, tais limitações podem representar no estrito plano jurídico-constitucional em que se encontram actualmente conformados, quer as garantias destes direitos, quer os poderes do Governo para, através de actos da sua exclusiva autoria, fundamentados na sua competência genérica de condução de políticas públicas (artigo 199.º/g CRP), adoptar ingerências deste tipo no âmbito daqueles direitos.
Mas também no resultado desta ponderação se concluiu, em linha de resto com as conclusões a respeito da conformidade jurídico-constitucional da medida normativa, que a ausência de um quadro legislativo especial para os poderes de autoridade em contexto de pandemia não pode inviabilizar totalmente, no contexto de um Estado de normalidade constitucional, como o actual, a adopção de medidas necessárias à gestão do risco de propagação da doença, sempre e quando as mesmas encontrem a sua fonte de legitimação parlamentar mediante cadeias normativas e se atenham à proporcionalidade que lhes é exigida. Com consideramos ser o caso aqui.
A Requerente alega também violação do princípio da igualdade, por considerar que da medida resulta um tratamento discriminatório para as famílias que residam em concelhos diferentes ou limítrofes, face a famílias em que todos os membros residam no mesmo concelho (artigo 45.º da p. i.). E tem razão a Requerente quanto à questão de a medida impor um tratamento diferenciado entre as famílias, que, se injustificado, é arbitrário e leva à inconstitucionalidade da medida.
O autor da medida, na contestação, sustenta a racionalidade desta diferença de tratamento na necessidade de reduzir o risco de contágio que decorre, precisamente, das reuniões familiares. E sustenta essa diferença de tratamento na circunstância de as famílias que residem no mesmo concelho, porque os seus membros convivem entre si regularmente, o risco de aumento de contágios entre os seus membros nestes dias é mais reduzido (eles são conviventes), já as famílias que residem em concelhos diferentes, porque teriam neste período uma oportunidade programada para reencontros que acontecem de modo mais espaçado no tempo, apresentam um risco mais elevado de contágio entre os membros dessas famílias. Reside, portanto, no mais elevado ou mais reduzido risco de contágio entre os membros das famílias, a razão de ser da diferença de tratamento instituída pela medida.
Quanto a este argumento, o Tribunal é sensível a muitas fragilidades que a justificação apresentada encerra e à incerteza da evidência científica em que a medida se sustenta. Não obstante, entende que, dada a dificuldade que a actual gestão da situação de contágios apresenta, com um crescimento exponencial e diferenciado de casos no território, com maior incidência dos mesmos em certos concelhos (facto público e notório), a referida justificação se pode aceitar como critério que afaste a inconstitucionalidade da medida.
Uma última nota para referir que a alegação genérica que a faz nos artigos 7.º e 40.º da p. i. à violação da liberdade de consciência, de religião e de culto, prevista no artigo 41.º da CRP, não vem formulada como uma violação do exercício do seu direito, ou seja, não se invoca de que forma a liberdade de culto da Requerente está tolhida (a Requerida não alega que a medida a impede participar em cerimónias religiosas ou sequer de ir ao cemitério) pelo que dela não se conhece.
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DECISÃO
Atento o exposto, acordam os juízes que compõem este Tribunal em julgar improcedente a presente intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, por considerar não verificada qualquer violação de direitos, liberdades e garantias suscitadas pela requerente.
Sem custas.
Lisboa, 31 de Outubro de 2020

A Relatora atesta, nos termos do artº 15-A do Decreto-Lei 10-A/2020, de 13 de Março, o voto de conformidade do Exmº Senhor Conselheiro Cláudio Monteiro
Carlos Carvalho (Vencido)

Vencido, não acompanhando a fundamentação/motivação do juízo de improcedência da presente intimação, votando a decisão de improcedência da exceção de ilegitimidade passiva pese embora não subscreva nem a integralidade a fundamentação expendida, nem a justificação para a ausência de realização do contraditório quanto à defesa por exceção.

1. Não secundo o entendimento que obteve vencimento, porquanto presentes o quadro situacional/circunstancial de normalidade constitucional em que o ato normativo contido no ponto n.º 15 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 89-A/2020 [doravante RCM] [que determina a limitação de circulação entre diferentes concelhos do território continental no período entre as 00h00 de 30 de outubro e as 06h00 de dia 3 de novembro de 2020] foi aprovado e o quadro normativo vigente consideraria que tal ato afronta o disposto nos arts. 18.º, 44º, n.º 1, 112.º e 165.º, n.º 1, al. b), da Constituição da República Portuguesa [CRP] e, nessa medida, deferiria a pretensão de intimação deduzida pela A..

2. Motivando sumariamente a divergência e juízo decisório defendido em sentido oposto cumpre notar que nos termos da al. b) do n.º 1 do art. 165.º da CRP «[É] da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: …b) Direitos, liberdades e garantias», sendo que nesta previsão mostra-se incluída, claramente, a regulamentação de todos os direitos enunciados no Título II da Parte I da CRP e de que a reserva de competência legislativa da Assembleia da República [AR] abarca não apenas as restrições [cfr. art. 18.º], mas também aquilo que respeita à intervenção legislativa em sede de direitos, liberdades e garantias, entendimento este «pacificamente consolidado na jurisprudência constitucional», nas palavras do acórdão do Tribunal Constitucional [TC] n.º 424/2020 e do qual se extrai, veiculando o anteriormente afirmado no acórdão n.º 362/2011 do mesmo Tribunal, que «[T]odo o regime dos direitos, liberdades e garantias está englobado na reserva relativa de competência da Assembleia da República (art. 165.º, n.º 1, al. b), da CRP). Nestes termos, todas as normas disciplinadoras de um qualquer direito desta natureza carecem de uma autorização prévia da Assembleia da República. Esta exigência ganha particular relevância quando estão em causa compressões ou condicionamentos a um direito …».

3. Se na situação vertente não podemos considerar derivar do ato normativo regulamentar em crise uma qualquer suspensão do exercício do direito de deslocação contido no n.º 1 do art. 44.º da CRP, primacialmente invocado pela A. como infringido e no qual estriba a sua pretensão, não podemos deixar de concluir que o mesmo envolve uma clara restrição ao mesmo direito.

4. Decorrendo do preceito constitucional acabado de referir que «[A] todos os cidadãos é garantido o direito de se deslocarem e fixarem livremente em qualquer parte do território nacional», a determinação contida no ponto 15.º da RCM de «que os cidadãos não podem circular para fora do concelho de residência habitual no período compreendido entre as 00:00 h do dia 30 de outubro de 2020 e as 06:00 h do dia 3 de novembro de 2020, salvo por motivos de saúde ou por outros motivos de urgência», ainda que com todas as exceções insertas no ponto 16.º da mesma Resolução, constitui uma inequívoca restrição ao direito em referência dado envolver uma nítida compressão ou condicionamento ao que constitui a liberdade que lhe está subjacente, ou seja, a liberdade de deslocação e de fixação detida por cada cidadão, tendo por referência todo o domínio territorial do Estado português, de nas fronteiras do território nacional se poder movimentar [«direito de ir e vir»] entre as diferentes partes que o compõe, sem carecer de qualquer permissão ou de prévia autorização, ou de para tal o poder fazer ter de se justificar perante uma qualquer autoridade.

5. Nessa medida, estamos, ao invés do que parece ter-se querido relativizar ou minimizar/suavizar no entendimento que obteve vencimento quanto ao efetivo sentido e força do concreto comando posto em causa, ante uma efetiva proibição e de que a mesma não pode ser transformada ou transmutada numa mera «recomendação» ou «conselho».

6. Não estamos em presença de uma determinação que revista ou se possa qualificar como detendo a natureza de simples soft-law, desprovida da instituição de uma obrigação/dever jurídico e da respetiva sujeição aos meios e mecanismos de coação e punição para as situações do seu incumprimento, já que, manifestamente, não podemos sustentar que a normação proibitiva instituída no ato e de que o desrespeito ou a resistência à ordem das autoridades em aplicação da mesma não aporte ou se mostre desprovida de uma qualquer sanção/consequência no plano das liberdades individuais daqueles que não acatem as ordens ou determinações que diretamente lhe sejam dirigidas pelas autoridades em execução da RCM no segmento em crise.

7. Toda a estruturação do ato e das medidas/meios de força para a sua implementação, com recurso às autoridades públicas, incluindo forças policiais, de modo a assegurar o seu respeito e observância, não são compatíveis com a qualificação como de simples «recomendação», na certeza de que, de todo em todo, a defesa e a tutela do direito/liberdade em crise não se mostra compaginável, como se acaba por reconhecer, com exigências especiais de concretização ou de específica justificação alegatória, tanto mais que isso acabaria por tolher a essência da liberdade/direito em crise e poderia traduzir-se numa numa «devassa» da vida/esfera individual da pessoa ou da sua reserva intima.

8. É certo que o direito de deslocação e de fixação em qualquer parte do território nacional, como todos os direitos fundamentais quando considerados como um todo, não goza de um valor absoluto, mostrando-se passível de que lhe sejam introduzidos limites ou apostas restrições, nomeadamente num contexto de pandemia como a que vivenciamos [relativa ao surto da COVID-19], exigindo-se, todavia, para tal e desde logo que as medidas observem o disposto nos n.ºs 2 e 3 do art. 18.º da CRP, conjugado com o definido pelo seu art. 165.º, n.º 1, al. b).

9. Ora tendo-se concluído estarmos em face de norma de tipo regulamentar que envolve uma restrição ao direito/liberdade de deslocação inserto no n.º 1 do art. 44.º da CRP e de que a mesma, à luz do quadro convocado, deveria ter sido feita por «lei» - entendida como lei da AR ou decreto-lei autorizado do Governo - importa então aferir da sua conformidade com o nosso ordenamento jurídico-constitucional tendo em conta mostrar-se a mesma inserta numa RCM.

10. Reconhecida a inexistência de observância in casu da competência e da forma determinadas pelos comandos constitucionais convocados para a emissão da norma proibitiva de circulação o entendimento maioritário que obteve vencimento mostra-se sustentado na denominada «cadeia de legitimidade legal» [«cadeia de legitimação que tem no seu topo uma lei parlamentar» nas palavras utilizadas].

11. Importa, todavia, notar que uma tal cadeia de legitimação não pode bastar-se, ou ser entendida/considerada como admitindo a possibilidade de «delegação» aberta e irrestrita de que uma lei da AR ou um decreto-lei autorizado do Governo possam autorizar um ato regulamentar, ou um ato administrativo, a operarem uma restrição, inovadora e autónoma, de um direito, liberdade e garantia, mormente o em causa na ação - liberdade de deslocação -, já que isso envolveria uma inequívoca infração dos referidos arts. 18.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, al. b), da CRP.

12. E essa «cadeia de legitimação» mostra-se alvo de sérias reservas doutrinárias [cfr., entre outros, J.J. Gomes Canotilho, in: «Direito Constitucional e Teoria da Constituição», págs. 1278/1279; J.C. Vieira de Andrade, in: «Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976», 5.ª ed., págs. 224 e 290/291].

13. Apreciada a situação resulta que nem a determinação/proibição constante da RCM restritiva do direito/liberdade de deslocação goza diretamente da exigida cobertura formal e competencial, nem quanto ao mesmo direito/liberdade a mesma resulta ou se pode extrair do quadro normativo nela invocado [in casu os arts. 12.º e 13.º do DL n.º 10-A/2020 («na sua redação atual, por força do disposto no art. 2.º da Lei n.º 1-A/2020 … na sua redação atual), 17.º da Lei n.º 81/2009, 08.º, n.º 6, e 19.º da Lei n.º 27/2006, e 199.º, al. g) da CRP] como justificador ou legitimador da e para a emanação da mesma e determinações ali inscritas.

14. Na verdade, manifestamente a mesma não reside nos arts. 12.º e 13.º do DL n.º 10-A/2020, já que respeitantes à disciplina das restrições de acesso a estabelecimentos privados e a serviços e edifícios públicos.

15. Nem na al. g) do art. 199.º da CRP, dado que, sendo relativa à prática dos atos e à tomada de todas as providências necessárias no exercício da função administrativa destinadas à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades coletivas, não contém, dada a sua generalidade, título legitimador de competência a uma tal restrição.

16. E, de igual modo, não se vislumbra que a mesma radique no art. 17.º da Lei n.º 81/2009, já que não só a Base XX da Lei n.º 48/90 a que nele se faz referência veio a ser revogada [cfr. art. 03.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 95/2019] e não encontra na atual Lei de Bases da Saúde publicada em anexo à referida Lei uma previsão inteiramente correspondente [cfr. n.º 3 da atual Base 34.º], como do que se disciplina no preceito convocado não se extrai uma qualquer legitimação para introdução de restrição à liberdade de deslocação, na certeza de que no seu n.º 3 exige-se, inclusive que as «medidas previstas nos números anteriores devem ser aplicadas com critérios de proporcionalidade que respeitem os direitos, liberdades e garantias fundamentais, nos termos da Constituição e da lei».

17. Falha, por fim, também como base de legitimação a Lei n.º 27/2006 [Lei de Bases da Proteção Civil], mormente os seus arts. 08.º, n.º 6, e 19.º, pois, desde logo, este último preceito limita-se tão-só a conferir competência ao CM para a declaração da situação de calamidade, nada aportando em termos de norma conferidora de autorização de introdução de restrições a qualquer direito, liberdade e garantia.

18. Idêntica conclusão importa extrair do n.º 6 do art. 08.º, porquanto relativo tão-só à atribuição/definição da competência para a declaração da situação de alerta ou da situação de contingência para a totalidade do território nacional ou com o âmbito circunscrito a uma parcela do território nacional, conferindo-a ao Ministro da Administração Interna, sem nada conter em termos do exigido título legitimador em lei para introdução da restrição imposta, na certeza de que, igualmente, se tem como dubitativo que pela previsão, âmbito e objetivos definidos no diploma em referência o mesmo possa ter aplicação e constituir título bastante de legitimação para a medida em crise.

19. Daí que, de harmonia com o exposto e sem necessidade de outros desenvolvimentos quanto a demais fundamentos, teria julgado procedente a pretensão de intimação.

Carlos Luís Medeiros de Carvalho