Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0791/10
Data do Acordão:03/22/2011
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANTÓNIO CALHAU
Descritores:IRC
TAXA
REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES
COMISSÃO EUROPEIA
LIQUIDAÇÃO ADICIONAL
JUROS COMPENSATÓRIOS
INSTITUIÇÃO FINANCEIRA
Sumário: I - A questão da eventual retroactividade fiscal decorrente da decisão da Comissão Europeia de recuperar os auxílios concretizados nas reduções de taxas previstas no artigo 5.º do Decreto Legislativo Regional n.º 2/99/A, de 20/11 deveria ter sido ser suscitada - como foi - em sede de sindicância judicial dessa decisão da Comissão.
II - Tendo o TJUE decidido que a Comissão das Comunidades Europeias, ao declarar incompatível com o mercado comum a parte do regime de auxílios referida no n.º 1, na medida em que se aplica às empresas que exercem actividades financeiras, não cometeu um erro manifesto de apreciação, quer quanto aos factos, quer quanto ao direito, a liquidação impugnada nos autos limitou-se a dar cumprimento à decisão da Comissão, pelo que, não lhe sendo assacados vícios próprios, não é susceptível de anulação.
III - Não são devidos juros compensatórios se o contribuinte, ao proceder à autoliquidação de IRC, se limitou a respeitar o enquadramento legal vigente na altura e de acordo com o qual aplicou taxa reduzida constante do artigo 5.º do Decreto Legislativo Regional n.º 2/99/A de 20 de Janeiro, a qual só mais tarde veio a ser considerada pela Comissão das Comunidades Europeias como incompatível com o mercado comum (Decisão de 11 de Dezembro de 2002).
Nº Convencional:JSTA00066883
Nº do Documento:SA2201103220791
Data de Entrada:10/14/2010
Recorrente:A...
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF PONTA DELGADA PER SALTUM.
Decisão:PROVIMENTO PARCIAL.
Área Temática 1:DIR FISC - IRC.
Área Temática 2:DIR COMUN.
Legislação Nacional:CPA91 ART151 N3 N4.
CONST76 ART2 ART103 N3.
DLR 2/99-A DE 1999/01/20 ART5.
Legislação Comunitária:REG CONS CEE 659/1999 DE 1999/03/22 ART1 ART2 ART3 ART14.
TCE ART225 ART230.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC1091/05 DE 2006/05/24.; AC STA PROC576/08 DE 2008/11/19.; AC STA PROC911/10 DE 2011/03/02.
Jurisprudência Internacional:AC TRIJ PROC C-88/03 DE 2006/09/06.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
I – A…, com sede em Ponta Delgada, não se conformando com a decisão do Mmo. Juiz do TAF de Ponta Delgada que julgou improcedente a impugnação judicial por si deduzida contra os actos de liquidação adicional de IRC relativos aos anos de 2003 a 2005, dela vem interpor recurso para este Tribunal, formulando as seguintes conclusões:
a) O presente recurso vem interposto da decisão proferida no processo à margem referenciado, que julgou improcedente a impugnação judicial de três actos tributários, relativos a IRC;
b) O ora Recorrente não se conforma com a sentença recorrida, porquanto a execução da Decisão da Comissão Europeia implica a prática de actos que violam os princípios fundamentais do Estado de direito democrático, como são o princípio da legalidade fiscal, incluindo o sub-princípio da não retroactividade das leis fiscais, bem como os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança legítima dos cidadãos;
c) Desde logo, as liquidações adicionais de IRC emitidas em execução da Decisão da Comissão implicam a cobrança retroactiva de impostos relativamente a situações tributárias já cumpridas e validadas pela Administração tributária de acordo com a lei em vigor;
d) Atente-se que, nas datas em que o ora Recorrente liquidou os seus impostos, o sistema informático da Administração Fiscal não permitia liquidá-los a outra taxa que não a taxa reduzida imposta pelo artigo 5.º do Decreto Legislativo Regional n.º 2/99/A, de 20 de Janeiro;
e) Pelo que, a aplicação posterior de nova taxa (não prevista na lei) é uma intolerável cobrança retroactiva de impostos, manifestamente violadora do disposto no artigo 103.º, n.º 3 da CRP;
f) Tais actos de liquidação são igualmente violadores do princípio da legalidade fiscal, que nas palavras dos Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira: «O n.º 2 garante o princípio da legalidade fiscal, um dos elementos essenciais do Estado de direito constitucional» - (Coimbra Editora) Constituição da República Portuguesa Anotada, Artigos 1.º a 107.º, 4.ª Edição, pág. n.º 1090 (sublinhado nosso);
g) Isto porque, a taxa aplicada retroactivamente ao ora Recorrente não é a taxa constante da lei aplicável às empresas sediadas na Região Autónoma dos Açores;
h) E não se pode considerar como constitucionalmente admissível a possibilidade das autoridades fiscais fixarem, por mero acto de execução de uma decisão comunitária e ao arrepio da legislação nacional vigente e aplicável, as taxas de determinados impostos;
i) Só a lei da Assembleia da República, ou outra desde que devidamente autorizada por esta, é que poderá definir os impostos a pagar pelos cidadãos;
j) Em conformidade, a Assembleia da República definiu no artigo 37.º da Lei n.º 13/98, de 24 de Fevereiro (em vigor à data dos factos), e a Assembleia Legislativa Regional dos Açores no Decreto Legislativo Regional n.º 2/99/A, as modalidades de adaptação do sistema fiscal nacional às especificidades regionais e fixou uma redução de 30% nas taxas nacionais de IRC em vigor em cada ano;
k) Ora, não pode a Administração Fiscal através de uma decisão da Comissão Europeia cobrar aos contribuintes residentes nos Açores outra taxa de imposto que não a definida na lei nos termos exigidos pela CRP;
l) Pelo que, os actos de liquidação aqui em apreço violam manifestamente o princípio da legalidade imposto pelo n.º 2 do artigo 103.º da CRP;
m) Por outro lado, admitirem-se como válidos os actos de liquidação em apreço, significaria o fim dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos no nosso ordenamento jurídico;
n) A fundamentação apresentada pelo Tribunal a quo para refutar a violação dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos é, salvo o devido respeito, insustentável, na medida em que defende que os cidadãos para poderem depositar confiança nas leis emanadas dos seus órgãos de soberania deverão certificar-se que estes cumpriram a obrigação de notificação prévia à Comissão Europeia;
o) Ora, com que fundamento é que se defende que os cidadãos têm de fiscalizar o cumprimento dos procedimentos impostos aos Estados-Membros no âmbito do direito comunitário, sob pena de não lhes ser reconhecida a protecção da sua legítima confiança, nem lhes ser conferida qualquer segurança jurídica;
p) Este entendimento deturpa manifestamente estes princípios retirando-lhe qualquer alcance e sentido;
q) Como bem ilustra Karl Larenz: “Uma coexistência pacífica das pessoas sob leis jurídicas que assegurem a cada um «o que é seu» só é possível quando está garantida a confiança indispensável. Uma desconfiança total e de todos conduz à eliminação total de todos ou ao domínio do mais forte, quer dizer, ao oposto de um «estado jurídico»” (Metodologia da Ciência do Direito, 5.ª Edição, Fundação Calouste Gulbenkian, pág. 679);
r) Concluindo de seguida o mesmo autor, que “Possibilitar a confiança e proteger a confiança justificada é, portanto, um dos preceitos fundamentais que deve cumprir o ordenamento jurídico” (Obra citada, pág. 679);
s) Nestes termos, os despachos de indeferimento em crise e as liquidações de IRC e de juros referentes aos exercícios de 2003, 2004 e 2005 são totalmente inconstitucionais e ilegais, por violação dos artigos 103.º, n.º 2, e 2.º da CRP, dos artigos 5.º, n.º 2, 55.º e 59.º da LGT e do artigo 5.º do Decreto Legislativo Regional n.º 2/99/A, pelo que a sentença ora recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que aplique correctamente a Lei e salvaguarde os princípios fundamentais do Estado de direito democrático, determinando, em consequência, a revogação dos actos de liquidação em causa;
t) Por outro lado, as liquidações de juros compensatórios dependem, nos termos da lei, sempre de verificação de culpa do contribuinte no atraso verificado no pagamento dos tributos;
u) No caso em apreço, o ora Recorrente liquidou atempadamente todos os impostos que lhe eram devidos por lei, nomeadamente pelo Decreto Legislativo Regional n.º 2/99/A;
v) Mesmo que quisesse, não poderia ter pago a uma taxa mais alta do que a prevista no Decreto Legislativo Regional n.º 2/99/A, porquanto o sistema informático da Administração Fiscal não o permitia às empresas sediadas na Região Autónoma dos Açores;
w) Pelo que, estas liquidações acarretam uma enorme injustiça e assim, violando a letra e o espírito do artigo 102.º do Código do IRC e do artigo 35.º da LGT, devendo também, relativamente a este aspecto, a sentença recorrida ser revogada e, em consequência, serem anulados os próprios actos de liquidação de juros;
x) Por fim, e porque os actos impugnados foram praticados em execução de uma Decisão da Comissão Europeia, importa salientar que, não obstante reconhecer primado do direito comunitário sobre o direito interno dos Estados-Membros, este sofre uma limitação/derrogação sempre que a sua aplicação interna ponha em causa os princípios fundamentais do Estado de direito democrático, de acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 8.º da CRP;
y) E a execução desta decisão, conforme já demonstrámos, atenta de forma violenta contra princípios fundamentais do Estado de direito democrático, como seja, os princípios da legalidade fiscal e os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos;
z) Pelo que, nos termos do disposto no artigo 204.º da CRP, a referida Decisão da Comissão deverá ser declarada inconstitucional e, nessa medida, determinar-se a sua inaplicabilidade na nossa ordem interna;
aa) Está em causa uma situação de uma gritante injustiça, em que estão em causa princípios fundamentais do Estado de direito, e só nos resta confiar nos Tribunais e esperar que os Juízes não se esqueçam, como bem refere Miguel Galvão Teles, que a sua relação com o sistema jurídico “é uma relação de fidelidade” e “Em matéria de fidelidade, porém, o juiz nacional não pode esquecer que foi o sistema jurídico português que o constituiu e investiu” (Obra citada, pág. 330):
Contra-alegando, veio o Representante da Fazenda Pública dizer que:
a) A sentença recorrida faz uma correcta qualificação dos factos e da matéria de direito em apreciação;
b) De facto, os actos originados na execução da Decisão da Comissão Europeia não violam os princípios do Estado de direito democrático, da legalidade, incluindo o da não retroactividade das leis fiscais, da segurança jurídica e da confiança legítima;
c) Está consagrado um princípio do primado das normas comunitárias sobre o direito interno, desde que não sejam violados os princípios fundamentais intrínsecos ao Estado de direito democrático, que, como se viu, não são, no caso em apreço;
d) O que está aqui em causa é um “auxílio” tal como está definido em normas e tratados comunitários e não um novo imposto ou uma nova taxa de imposto criada em consequência de decisão comunitária;
e) Sendo um “auxílio” é condição para a sua execução uma autorização da Comissão Europeia;
f) Na recuperação de um “auxílio” de Estado estamos perante uma eliminação de uma vantagem concorrencial ilegítima e não numa cobrança retroactiva de um imposto.
O Exmo. Magistrado do MP junto deste Tribunal, tendo vista, não emitiu parecer.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II – Mostram-se provados os seguintes factos:
- A impugnante é uma instituição de crédito que integrou por fusão o …, que tinha sede nos Açores e desenvolvia a sua actividade exclusivamente no mencionado arquipélago, e, em função dos resultados dessa actividade, era tributada em sede de IRC.
- Em 20 de Janeiro de 1999, foi publicado, em Diário da República, o Decreto Legislativo Regional n.º 2/99/A, aprovado pela Assembleia Legislativa dos Açores.
- Este diploma estabelece as modalidades de adaptação do sistema fiscal nacional às especificidades da Região Autónoma dos Açores, em conformidade com o disposto na CRP - maxime artigos 225.º e 227.º - e na Lei de Finanças das Regiões Autónomas – Lei n.º 13/98, de 24 de Fevereiro – aprovada pela Assembleia da República e em vigor à data dos factos, tendo sido posteriormente substituída pela Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de Fevereiro.
- Nos termos do regime de autonomia financeira aplicável às Regiões Autónomas, os impostos sobre o rendimento constituem receitas das Regiões Autónomas, podendo as Assembleias Legislativas Regionais, de acordo com o artigo 37.º da mencionada Lei n.º 13/98, diminuir as taxas de imposto até ao limite de 30% das taxas previstas pela legislação nacional.
- Esta prerrogativa das Assembleias Legislativas Regionais manteve-se na actual Lei de Finanças das Regiões Autónomas – Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de Fevereiro – nomeadamente no artigo 56.º da referida Lei.
- Foi em conformidade com tal habilitação legal que a Assembleia Legislativa Regional dos Açores aprovou o Decreto Legislativo Regional n.º 2/99/A, de 20 de Janeiro, estabelecendo as modalidades de adaptação do sistema fiscal nacional às especificidades regionais.
- O referido Decreto Legislativo Regional consagrou uma redução de 30% às taxas nacionais de IRC, em vigor em cada ano, relativamente ao imposto devido por pessoas colectivas que tenham sede, direcção efectiva ou estabelecimento estável nos Açores – artigo 5.º do Decreto Legislativo Regional n.º 2/99/A, sendo que esta redução de taxas foi automaticamente aplicável a todos os agentes económicos.
- O artigo 5.º do Decreto Legislativo Regional n.º 2/99/A mantém-se em vigor no nosso ordenamento jurídico desde a data da sua publicação, não tendo sido objecto de qualquer alteração, limitação ou revogação.
- Em 11 de Dezembro de 2002, a Comissão Europeia adoptou a Decisão «Auxílio Estatal C 35/2002 (EX NN 10/2000) – Portugal» relativa à parte do regime que adapta o sistema fiscal nacional às especificidades da Região Autónoma dos Açores referente à vertente das reduções das taxas do imposto sobre o rendimento, declarando-o incompatível com o mercado comum quando aplicável a empresas que exerçam as actividades previstas na secção J, códigos 65, 66 e 67 da nomenclatura estatística das actividades económicas na comunidade europeia.
- Em execução daquela Decisão da Comissão, a impugnante foi sujeita a uma inspecção tributária, tendo sido notificada para exercer o direito de audição prévia relativamente aos projectos de relatório de conclusões que propôs a correcção das liquidações de IRC referentes aos exercícios de 2003, 2004 e 2005, resultante de um acréscimo no valor das respectivas colectas mas também da tributação autónoma e respectiva derrama, aos quais seriam acrescidos ainda juros indemnizatórios.
- As liquidações em apreço apresentaram os seguintes valores:

2003
2004
2005
Montante da correcção€ 1.104.793,30€ 665.275,23€ 257.590,05
Juros compensatórios€ 198.174,28€ 90.441,52€ 23.666,75
Total€ 1.302.967,58€ 755.716,75€ 281.256,80

- Em 12 de Novembro de 2007, a impugnante exerceu o respectivo direito de audição prévia, tendo contestado a legalidade e constitucionalidade das liquidações adicionais de IRC então propostas pela Administração Fiscal.
- Os Serviços da Inspecção Tributária converteram os projectos de relatório em relatórios finais de conclusões, dando origem às correcções e emissão da nota de liquidação adicional de IRC e de juros compensatórios, respeitantes aos anos de 2003, 2004 e 2005.
- Notificada das referidas liquidações adicionais, apresentou a impugnante as competentes reclamações graciosas, que foram indeferidas.
- A impugnante interpôs três recursos hierárquicos, cujos indeferimentos lhe foram notificados através de ofícios datados de 26-01-2010.
III – Vem o presente recurso interposto da decisão do Mmo. Juiz do TAF de Ponta Delgada que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida pelo ora recorrente contra a liquidação de IRC dos anos de 2003 a 2005, e respectivos juros compensatórios, efectuada em execução de uma Decisão da Comissão Europeia que declarou incompatível com o mercado comum a parte do regime fiscal que adaptando o sistema fiscal nacional às especificidades da Região Autónoma dos Açores reduziu as taxas do imposto sobre o rendimento.
Alega o recorrente que a execução de tal Decisão implicou a prática por parte da AF de actos que violam os princípios fundamentais do Estado de direito democrático, como são os princípios da legalidade fiscal, da não retroactividade das leis fiscais, da segurança jurídica e da protecção da confiança legítima dos cidadãos, na medida que implicam a cobrança retroactiva de impostos relativamente a situações tributárias já cumpridas e validadas pela AF de acordo com a lei em vigor.
Por outro lado, também a exigência de juros compensatórios numa situação em que não se verificou culpa do contribuinte no atraso do pagamento dos tributos acarreta uma enorme injustiça.
Sustenta a FP que, estando aqui em causa um “auxílio” e não um novo imposto ou uma nova taxa de imposto criada em consequência de decisão comunitária, estamos perante uma eliminação de uma vantagem concorrencial ilegítima e não numa cobrança retroactiva de um imposto, pelo que as liquidações impugnadas não violam os princípios do Estado de direito democrático, estando consagrado o princípio do primado das normas comunitárias sobre o direito interno.
Vejamos. Este Tribunal decidiu já questões idênticas às dos presentes autos relacionadas com a Decisão da Comissão, de 11 de Dezembro de 2002, relativa à parte do regime que adapta o sistema fiscal nacional às especificidades da Região Autónoma dos Açores, no que respeita às reduções das taxas do imposto sobre o rendimento.
Assim, no acórdão de 24.05.2006, proferido no recurso n.º 01091/05, escreveu-se e decidiu-se o seguinte:
«3. Como vimos supra, a recorrente defende que o acto tributário sob recurso enferma de vícios de violação de lei.
Desde logo de lei constitucional.
Concretamente, viola, na sua óptica, os princípios da segurança jurídica e da confiança, vertidos no art.º 2.º da Constituição, bem como o princípio da retroactividade da lei fiscal, consagrado no art.º 103.º, 2, da Constituição.
A questão a dirimir também já está suficientemente recortada.
Diz ela respeito à decisão da Comissão Europeia (de 11/12/2002) que se pronunciou sobre a redução de 30% sobre o IRC, prevista no art.º 5.º do Decreto Regional n.º 2/99/A, de 20/1.
Na verdade, o corpo do citado ar.tº 5.º dispunha que "as taxas nacionais do imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas, em vigor em cada ano, é aplicada uma redução de 30% ....".
Apreciando este normativo, a Comissão começou por dizer o seguinte:
"Por carta n. 18, de 5 de Janeiro de 2000, da Representação Permanente de Portugal, registada na Comissão em 10 de Janeiro de 2000, as Autoridades Portuguesas notificaram à Comissão um regime que adapta o sistema fiscal nacional às especificidades da Região Autónoma dos Açores. Uma vez que a notificação foi efectuada tardiamente, em resposta a um pedido de informações dos serviços da Comissão constante da carta D/65111, de 7 de Dezembro de 1999, dirigida à Representação Permanente de Portugal, feito na sequência dos artigos que surgiram na imprensa, e que o regime em questão teria entrado em vigor antes de ser autorizado pela Comissão, o mesmo foi inscrito no registo dos auxílios não notificados".
Anotamos pois, e desde já, que a notificação feita pelo Governo Português foi-o tardiamente e que o regime entrou em vigor antes de ser autorizado pela Comissão, como esta expressamente o refere.
E depois de considerar que "os referidos auxílios foram postos ilegalmente em vigor e que não existe qualquer princípio de direito comunitário que se oponha a isso, os benefícios fiscais de que já terão beneficiado as empresas que operam no sector financeiro, bem como as que relevam das actividades do tipo "serviços intragrupo" (e relativos aos anos de 1999, 2000 e 2001) devem ser recuperados pelas Autoridades portuguesas".
E seguidamente a conclusão:
"A Comissão verifica que Portugal pôs em execução ilegalmente a parte do regime que adapta o sistema fiscal nacional às especificidades da Região Autónoma dos Açores, a que se refere a vertente relativa às reduções das taxas do imposto sobre o rendimento, em violação do disposto no n.º 3 do art.º 88.º do Tratado. Contudo, ... e após ter examinado tal regime à luz das orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional, a Comissão considera que os auxílios acima referidos satisfazem as condições para poderem ser considerados compatíveis com o mercado comum ... com excepção dos auxílios atribuídos a favor das empresas que exerçam actividades financeiras ou do tipo "serviços intragrupo...".
E depois a decisão, destacando-se o art.º 3.º, do seguinte teor:
"1. Portugal deve adoptar as medidas necessárias para recuperar, junto das empresas que exercem as actividades mencionadas no artigo 2º, os auxílios pagos a título da parte do regime de auxílios referido no artigo 1º.
"2. A recuperação deve efectuar-se imediatamente e segundo as formalidades do direito nacional, desde que estas permitam a execução imediata e efectiva da presente decisão. Os auxílios a recuperar incluem juros a partir da data em que foram colocados à disposição dos beneficiários e até ao momento da sua recuperação. Os juros são calculados com base na taxa de referência utilizada para o cálculo do equivalente-subvenção no âmbito dos auxílios com finalidade regional".
Anote-se que a impugnante é uma empresa abrangida pelo art.º 2.º da decisão em análise.
Concretamente, e como vimos, a Comissão considerou que o diploma regional violou uma norma comunitária (no tocante a empresas como a impugnante), ordenando a entrega das quantias que seriam devidas se não houvesse tal incentivo e juros calculados do modo aí referido.
E a AF limitou-se a cumprir o assim decidido.
Porém, como vimos, a impugnante defende que "enferma a decisão da Comissão Europeia que motivou as correcções efectuadas de manifesta inconstitucionalidade, razão pela qual não pode a mesma ser aplicada", pelo que a liquidação, nela baseada é manifestamente ilegal "por violação dos princípios jurídicos previstos nos art.ºs 2.º e 103.º, n.º 3, da CRP".
Ou seja: o que está imediatamente em causa é a decisão comunitária, sendo que a liquidação, operada com base em tal decisão, só mediatamente é que enferma de ilegalidade.
Anote-se desde já que a decisão da Comissão Europeia foi tomada de acordo com uma Directiva comunitária, concretamente o Regulamento (CE) n.º 659/1999, do Conselho de 22/3/99, onde, depois de se definir o que é um "auxílio" (art.º 1.º), diz-se que a Comissão deve ser notificada a tempo pelo Estado-membro dos projectos de concessão de novos "auxílios" (art.º 2.º) e refere-se que os "auxílios a notificar não serão executados antes de a Comissão ter tomado, ou de se poder considerar que tomou, uma decisão que os autorize" (art.º 3.º).
Depois, o art.º 14.º, sob a epígrafe "recuperação do auxílio", determina no seu n.º 2, que "o auxílio a recuperar mediante uma decisão de recuperação incluirá juros a uma taxa adequada fixada pela Comissão. Os juros são devidos a partir da data em que o auxílio ilegal foi colocado à disposição do beneficiário e até ao momento da sua recuperação".
Pois bem.
Foi na sequência deste normativo comunitário que a Comissão agiu.
Ou seja, o que está em causa é a decisão da Comissão Europeia.
E esta não é sindicável pelos tribunais portugueses. É sim sindicável pelos tribunais comunitários, seja pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (art.º 230.º do Tratado de Roma), seja pelo Tribunal de 1ª Instância da UE (art.º 225.º do Tratado de Roma), não importando aqui precisar qual o órgão jurisdicional concretamente competente.
É certo que, como é óbvio, a pretensão do recorrente visa o acto de liquidação, porque é esse que o afecta directamente.
Mas o recorrente não assaca a esse acto de liquidação vícios próprios.
O que o recorrente defende é que o acto da Comissão Europeia, que está na base do acto de liquidação, é ilegal, violando normas constitucionais portuguesas.
Ou seja: a recorrente não vem dizer que o acto de liquidação impugnado contenha vícios próprios.
No caso concreto, o acto de liquidação não é mais do que um acto de execução da determinação comunitária.
É um acto de execução de uma decisão da Comissão Europeia.
Que não foi objecto de recurso perante os tribunais comunitários.
Assim, e porque o acto de liquidação não foi atacado por vícios próprios (sendo, como vimos, e na hipótese concreta, um acto executivo), e não excede a determinação comunitária, poderá fazer-se apelo à doutrina do art.º 151.º, n.ºs 3 e 4, do CPA), defendendo-se aqui a irrecorribilidade do acto de liquidação. Acto ao qual não vêm assacados vícios próprios, antes se limitando tal acto a executar uma decisão comunitária definitiva e executória, contendo-se nos precisos termos e limites dessa decisão.
No caso concreto, e limitando-se a dar execução a uma decisão comunitária, e não mais do que isso, não enfermando de vícios próprios, poderemos dizer que o acto de liquidação não é mais do que um acto de execução dessa decisão.
Ora, os actos de execução que se limitam a pôr em prática o já decidido no acto exequendo são, em regra irrecorríveis, por serem meramente confirmativos, não assumindo autonomamente a natureza de actos lesivos ou interesses legalmente protegidos, lesão essa que, a existir, deriva do acto que anteriormente definiu a situação do interessado (Jorge de Sousa, CPPT Anotado, 4ª Edição, pág. 488, e jurisprudência aí citada.).
Transportando-nos à hipótese dos autos, logo vemos que o acto de liquidação, balizando-se pela decisão comunitária, não enferma de qualquer vício.
Coisa diversa é saber se a impugnante, aqui recorrente, pode pedir responsabilidades por um diploma que viola norma comunitária e que, revogado por decisão comunitária, lhe causa prejuízos. Mas sobre isto não tem o tribunal que se pronunciar.».
Posteriormente a este acórdão, o Acórdão do TJUE, de 06.09.2006, proferido no Processo n.º C-88/03, instaurado pela República Portuguesa (apoiada pelo Reino de Espanha, pelo Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte) contra a Comissão das Comunidades Europeias, veio decidir que ao declarar incompatível com o mercado comum a parte do regime de auxílios referida no artigo 1º da decisão impugnada na medida em que se aplica às empresas que exercem actividades financeiras, a Comissão não cometeu um erro manifesto de apreciação.
Também no acórdão de 19.11.2008, proferido no recurso n.º 576/08, manteve este STA a doutrina seguida no acórdão supra transcrito, nele tendo ficado exarado que:
«Sendo a invocada ilegalidade do acto de liquidação (violação do princípio constitucional da não retroactividade fiscal), enquanto acto de execução, uma mera consequência da ilegalidade do acto exequendo (decisão da Comissão), o correspectivo vício de violação de lei não é passível de conhecimento na presente impugnação judicial do primeiro daqueles actos (cfr. art.º 154.º, n.º 1 do CPA), o qual nesse segmento decisório não reveste lesividade própria por se ter mantido nos limites da estatuição jurídica constantes desse acto exequendo.».
E, ainda mais recentemente, no acórdão de 2/3/11, proferido no recurso n.º 911/10, se voltou a afirmar que não existem neste momento razões, nem de ordem doutrinal nem legislativa, que imponham, em caso semelhante, a adopção de decisão diversa.
Razão por que quanto a esta questão o recurso deve, pois, improceder.
Todavia, o recorrente veio também impugnar a liquidação dos respectivos juros compensatórios.
Sobre esta questão, pronunciou-se também o Acórdão acima referido de 19.11.2008 nos seguintes termos:
«Mas bem mais decisivo para se concluir pela ilegalidade da liquidação dos juros compensatórios constitui o facto de ser manifesto que à recorrente não pode ser assacada qualquer culpa no retardamento da liquidação realizada, como estatui o artigo 35.º da LGT.
Na realidade, a responsabilidade por juros compensatórios, tendo a natureza de uma reparação civil, depende do nexo de causalidade adequada entre o atraso na liquidação e a actuação do contribuinte e da possibilidade de formular um juízo de censura a título de dolo ou negligência a essa actuação - cfr, entre outros, acórdãos de 3-10-01, 2-10-02, 16-02-05 e 12-07-05, nos processos n.ºs 25.034, 546/02, 1006/04 e 12.649; e Jorge Lopes de Sousa, in “Juros nas relações tributárias”, Problemas fundamentais do Direito tributário, Lisboa, 1999, pag. 145.
Ora, na situação em apreço, a recorrente ao proceder à autoliquidação de IRC limitou-se a respeitar o enquadramento legal vigente na altura e de acordo com o qual aplicou taxa reduzida constante do artigo 5.º do Decreto Legislativo Regional n.º 2/99/A de 20 de Janeiro, a qual só mais tarde veio a ser considerada pela Comissão das Comunidades Europeias como incompatível com o mercado comum (decisão de 11 de Dezembro de 2002).
Deste modo, carecendo de fundamento legal a liquidação de juros compensatórios…».
Subscreve-se também aqui o mesmo entendimento, pelo que o recurso tem de proceder nesta parte.
IV – Termos em que, face ao exposto, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do STA em conceder parcial provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida, e julgando a impugnação procedente quanto aos juros compensatórios que não são devidos, e confirmando-a no demais com a presente fundamentação.
Custas a cargo do recorrente, na proporção do respectivo decaimento.
Lisboa, 22 de Março de 2011. - António Calhau (relator) – Casimiro Gonçalves – Dulce Neto.