Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01678/13
Data do Acordão:10/01/2015
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA BENEDITA URBANO
Descritores:DISCIPLINAR
ADVOGADO
REVISOR OFICIAL DE CONTAS
INCOMPATIBILIDADE DE FUNÇÕES
SUSPENSÃO DE INSCRIÇÃO
Sumário:I - O impulso no sentido de promover a verificação de uma situação de incompatibilidade, com as devidas consequências legais, deverá caber ao advogado, logo no acto de inscrição na OA, ou, tratando-se de incompatibilidade superveniente, a partir do momento em que passe a exercer funções incompatíveis, devendo o advogado “Suspender imediatamente o exercício da profissão e requerer, no prazo máximo de 30 dias, a suspensão da inscrição na Ordem dos Advogados quando ocorrer incompatibilidade superveniente”.
II - Este dever que impende sobre o advogado tornou-se óbvio e claríssimo a partir da entrada em vigor da Lei n.º 15/05, que, no seu artigo 77.º, n.º 1, al. n), expressamente prevê a incompatibilidade da actividade de advocacia com a de revisor oficial de contas (ROC).
Nº Convencional:JSTA00069358
Nº do Documento:SA12015100101678
Data de Entrada:01/31/2014
Recorrente:OA
Recorrido 1:A...
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Meio Processual:REC REVISTA EXCEPC
Objecto:AC TCAN
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR ADM GER - FUNÇÃO PUBL DISCIPLINAR
Legislação Nacional:DL 24/84 ART3.
LEI 15/05 ART86 ART77 N1 N ART83 ART81.
DL 226/08 DE 2008/11/20.
LEI 12/10 DE 2010/06/25.
DL 84/84 ART79 ART68 ART69 ART70 ART76 ART54 ART48-C.
LEI 35/2014 ART183.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – Relatório

1. A Ordem dos Advogados, devidamente identificada nos autos, recorreu para este Supremo Tribunal do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN), de 17.05.13 (fls 304-345), que concedeu provimento ao recurso jurisdicional aí interposto e revogou o acórdão do TAF do Porto, de 24.01.12. Invoca para o efeito o n.º 1 do artigo 150.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).

1.1. A Recorrente apresentou alegações, concluindo, no essencial, do seguinte modo (fls 356 e ss):

“a) Vem a presente revista interposta do acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte, não só porquanto se trata de questão que, pela sua relevância jurídica se reveste de importância fundamental, mas também por forma a garantir uma melhor aplicação do direito, preenchendo-se, desta forma, os requisitos constantes do artigo 150º/1 do CPTA.

b) Efectivamente, a questão suscitada pelos fundamentos com base nos quais o Tribunal Central Administrativo Norte extraiu o acórdão recorrido e também pela conclusão a que aí chegou é, “pela sua relevância jurídica (…) de importância fundamental”, e o seu esclarecimento “claramente necessário para uma melhor aplicação do direito”.

c) Assim, a correcta e devida exegese da norma contida no referido art. 86º, alínea d) do E.O.A. afigura-se de importância fundamental, tanto mais que a matéria relacionada com as incompatibilidades assume cariz de absoluta relevância no que respeita ao exercício isento, independente e digno da profissão de advogado.

d) No caso em apreço, consideraram os MM Juízes Desembargadores que, a partir do momento em que o Conselho Superior da Ordem, por acórdão de 25/11/2005, anulou a deliberação de 07/01/05 do referido Conselho Distrital do Porto de suspensão da sua inscrição, não se impunha ao recorrido que suspendesse o exercício da profissão de advogado. Ou seja, “não existindo qualquer declaração do Conselho Distrital ou até do Conselho Distrital já no âmbito da Lei 15/2005 não está verificada qualquer concreta incompatibilidade cuja desobediência pudesse integrar infracção disciplinar”.

e) Tal interpretação da norma contida no artigo 86º, alínea d) do E.O.A., no sentido de que o dever aí contido encontra-se dependente da verificação prévia da situação concreta de incompatibilidade, salvo devido respeito, não se mostra consentânea com a sua letra e ratio.

f) Na verdade, nem a letra, nem a ratio do referido preceito legal permitem que se extraia a conclusão de que o dever dentológico aí previsto se mostra dependente do apuramento em concreto da verificação de determinada incompatibilidade, bastando que da mesma seja consciente o advogado em questão.

g) A ser interpretada a norma em questão no sentido propugnado pelos MM Juízes Desembargadores tal redundaria numa verdadeira interpretação ab rogante.

h) Ora, no caso em apreço, o aqui Recorrido não poderia deixar de ser consciente da situação de incompatibilidade, uma vez que foi notificado, em 13/04/2005, da aplicação da pena de censura no processo disciplinar n.º …./2003 do Conselho de Dentologia do Porto, por incompatibilidade entre o exercício da advocacia e as funções de Revisor Oficial de Contas.

i) Tal como bem se refere no douto acórdão proferido pelo Tribunal a quo “(…) verifica-se que a Ordem declarou, em 2005, de forma expressa e indubitável, a existência da incompatibilidade”.

j) Acresce que não é negado (mas antes afirmado) pelo Recorrido que exerce em simultâneo a profissão de Advogado e de ROC, pelo que, claro se mostra que se encontra objetivamente numa situação de incompatibilidade, situação essa que o deveria ter levado a requerer a sua suspensão ao abrigo do disposto no art. 86º, alínea d) do E.O.A., o que, comprovadamente, não fez.

k) Termos em que se impõe concluir que o douto acórdão posto em crise procedeu a uma errada interpretação e aplicação do disposto no art. 86º, alínea d) do E.O.A.

Termos em que se requer seja admitido o presente recurso de revista e julgado o mesmo procedente, revogando-se o acórdão recorrido proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte, em 17/05/2013”.

1.2. O recorrido contra-alegou (fls 385 e ss), e, quanto ao mérito da causa, concluiu, no essencial, assim:

“V. A questão que a recorrente coloca no presente recurso é distinta da que anteriormente colocou em todo o processo, sendo que esta alega o que pretende ser uma nova razão da punição aplicada.

VI. Antes o recorrido, Advogado e Revisor Oficial de Contas, desde respetivamente 1987 e 1989, teria sido punido por exercer em simultâneo ambas as profissões desde tais datas, sempre em distintos clientes e nunca em simultâneo perante um qualquer (por ausência de alegação e prova em contrário) (fl. 386).

VII. Ora face ao alegado no presente recurso, parecerá que afinal a punição acontece por não se ter auto suspendido nos trinta dias que se seguiriam à data em que teve conhecimento ou consciência de que o exercício das duas profissões era incompatível.

VIII. Ora nunca o recorrido entendeu que o afete qualquer incompatibilidade e que portanto lhe é lícito o exercício de ambas as profissões, quer no domínio do DL 84/84, anterior estatuto da Ordem dos Advogados, quer no âmbito e vigência da Lei 15/2005 atual estatuto.

IX. Uma vez que sempre entendeu e entende ainda que também no seu caso se aplica o estatuído no atual artigo 81.º do EOA, de que os impedimentos e incompatibilidades não se aplicam a quem no regime anterior adquiriu o direito a exercer sem que se encontrasse ferido pela incompatibilidade e impedimento. Estabelecendo assim que as incompatibilidades e impedimentos não são absolutos.

X. Sendo que tal entendimento é também o da própria Recorrente, como no recente caso tornado público pela própria, em que se apreciou a situação de exercício cumulativo das profissões de advogado e liquidatário e intervenção num mesmo processo em tais duas qualidades. Tendo em tal caso decidiu que «O artigo 81.º da EOA, na versão atual, determina que as incompatibilidades e impedimentos criados pela Lei n.º 15/2005, de 26 de janeiro não prejudicam os direitos legalmente adquiridos ao abrigo da legislação anterior». Acórdão que por entender mais do que relevante para a apreciação do presente recurso, o Recorrido junta e pede a sua junção aos autos.

XI. Tendo a Recorrente justificado tal acórdão de um dos seus órgãos disciplinares, de igual ordem daquele cujo ato se recorreu judicialmente, dizendo que: «À data da nomeação (como liquidatário) vigorava o Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 84/84, de 16 de março o qual não previa qualquer incompatibilidade entre o exercício da advocacia e o das funções de liquidatário judicial. Tal incompatibilidade foi introduzida pelo artigo 77.º, n.º 1, alínea o) do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de janeiro».” (fl. 387)

XII. Em tal acórdão a própria recorrente entra em total contradição com o que alegou nos presentes autos: considera como taxativas as incompatibilidades do artigo 68.º do EOA, pugna pela não introdução de novas incompatibilidades no âmbito da legislação anterior, e concluindo também pela existência de direitos adquiridos a quem antes dos atuais estatutos desenvolvia profissões que posteriormente foram declaradas incompatíveis. Tudo, repete-se, por um órgão de idêntica competência, com as únicas diferenças de que um é do Norte e o outro é do Sul, e distintos são os advogados.

XIII. E efetivamente quer no atual Estatuto quer no anterior, as incompatibilidades não são absolutas, já que sempre se admitirá a não existência de incompatibilidade em relação a quem já anteriormente exercia além da profissão de advogado uma ou mais das que depois foram consideradas incompatíveis. A incompatibilidade absoluta não admitindo exceções.

XIV. No âmbito do diploma anterior, DL 84/84 qualquer uma nova profissão cujo exercício fosse considerado incompatível com o exercício da advocacia e que não constasse do elenco constante do artigo 69º tinha de ser declarada expressamente, ‘em concreto’ e pelo órgão competente da ordem dos advogados, nos termos do artigo 79º do DL 84/84, ao Conselho Geral da OA.

XV. Competindo igualmente só e apenas a tal órgão da Ordem dos Advogados, o Conselho Geral, a declaração de incompatibilidade em concreto em relação a qualquer advogado individualizado, e, diga-se após processo adequado a que fosse analisada da existência ou não de direitos adquiridos.

XVI. Sendo que a consequência de que a declaração de qualquer de tais incompatibilidades quer em termos genéricos, aliás não contemplada sequer, quer em termos concretos a cada advogado em potencial situação de incompatibilidade, por qualquer outro órgão da Ordem dos Advogados ser nula e de nenhum efeito.

XVII. Ora no presente recurso o que pretende a Recorrente é que bastaria a consciência do advogado de que o exercício de outra profissão incompatível com a de advogado para que se tivesse por verificada qualquer incompatibilidade e surgisse a obrigação de se autossuspender.

XVIII. Facto é que o recorrido não tinha, não tem ainda a consciência de que esteja numa situação de incompatibilidade, pelo contrário acredita que é seu direito adquirido que pode exercer as duas profissões em simultâneo. Pelo que o requisito da punibilidade que a recorrente entenderia suficiente para a existência de infração disciplinar, nem o é, nem se verificou nem se verifica ainda.

XIX. Porque mesmo depois da Lei 25/2005 é necessário, para que exista a incompatibilidade que se não verifique a existência de direito adquirido ao abrigo da legislação anterior.

XX. Nunca antes de 2005 foi declarada pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados, única entidade competente, a incompatibilidade da profissão de advogado e revisor por parte do recorrido.

Pelo que muito bem andou o acórdão recorrido, aliás em desperdício até face à posição diametralmente divergente da própria recorrente em casos em tudo semelhantes, quando corretamente deliberou pela revogação da sentença proferida em primeira instância e anulando o ato administrativo da AO de aplicação de multa ao recorrido. Deliberação que em boa justiça deve ser confirmada”.

2. Por acórdão deste Supremo Tribunal [na sua formação de apreciação preliminar prevista no n.º 1 do artigo 150.º do CPTA], de 09.01.14, veio a ser admitida a revista, nos seguintes termos:

2.3. O presente litígio versa matéria disciplinar, tendo o autor, ora recorrido, sido punido por não requerer a suspensão da inscrição na Ordem dos Advogados, apesar de incompatibilidade superveniente.
Está em discussão a compatibilidade entre o exercício da advocacia e as funções de revisor oficial de contas.
O fundamento para a anulação da punição por parte do acórdão recorrido foi o facto de não existir nenhuma deliberação prévia da Ordem suspendendo o interessado das funções de advogado, pelo que o exercício das duas profissões não constituía infracção disciplinar perante a Ordem dos Advogados.
Deve notar-se que a deliberação punitiva não se sustentou na preexistência de qualquer deliberação de suspensão do interessado por incompatibilidade.
Diversamente, na deliberação punitiva observou-se, mesmo, que «já devia ter acontecido» o cancelamento da inscrição do arguido, ou seja, que ainda não havia acontecido (embora já tivesse havido uma censura).
Ora, a recorrente vem precisamente considerar que a «interpretação da norma contida no artigo 86.º, alínea d) do EOA, no sentido de que o dever aí contido encontra-se dependente da verificação prévia da situação concreta de incompatibilidade, salvo o devido respeito, não se mostra consentânea com a sua letra e ratio».
Independentemente da bondade da tese da recorrente, ela não pode considerar-se desprovida de pertinência, atenta a redacção do preceito:
«Artigo 86.º
Deveres para com a Ordem dos Advogados
Constituem deveres do advogado para com a Ordem dos Advogados:
a) […]
d) Suspender imediatamente o exercício da profissão e requerer, no prazo máximo de 30 dias, a suspensão da inscrição na Ordem dos Advogados quando ocorrer incompatibilidade superveniente».

Como se viu, as instâncias divergiram na resolução do caso.
Não é aqui de relevo o montante específico da sanção. O que é relevante é o problema em si da interpretação a que acabou por chegar o acórdão: a necessidade de prévia deliberação de suspensão para que pudesse configurar-se a previsão daquele artigo 86.º, d).
Esse problema, respeitante, portanto, a deveres correlacionando os advogados e a sua Ordem, adquire importância fundamental, importância que a própria divergência das instâncias revela e que prevenção de futura litigiosidade aconselha ser tratado em revista, de modo a permitir uma sinalização jurisprudencial por parte deste Supremo Tribunal” (cfr. fls 422-3).

3. Devidamente notificado para se pronunciar, querendo, sobre o mérito do recurso (art. 146.º, n.º 1, do CPTA), o Digno Magistrado do MP pronunciou-se no sentido do provimento do recurso (fls 434-6).

4. Notificadas as partes para se pronunciarem sobre o douto parecer do MP, veio o Recorrido repudiar o sentido do mesmo, renovando os argumentos favoráveis à sua pretensão (cfr. fls 440-3).

5. Colhidos os vistos legais, vêm os autos à conferência, para decisão.

II – Fundamentação

1. De facto:

Resulta como assente da decisão recorrida e da análise dos autos o seguinte quadro factual (cfr. fls 318 e ss):

(i) O A. da acção, ora Recorrido, encontra-se inscrito, como advogado, na OA, desde 22.07.87, e está inscrito, como ROC, na Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, desde o primeiro trimestre de 1989.

(ii) O A. exerce desde 1989, em simultâneo e de modo ininterrupto, as actividades de advocacia e de ROC. A sua inscrição na Ordem dos Revisores Oficiais de Contas foi publicada no DR, III.ª Série, de 24.04.89.

(iii) Em 28.04.98, o A. apresentou, junto do Conselho Distrital do Porto, um requerimento a solicitar a dispensa de sigilo profissional com vista a poder depor como testemunha no processo n.º …., que corria termos no Tribunal Judicial de Vila Franca de Xira.

(iv) Em 06.05.98, o Conselho Distrital do Porto decidiu deferir o pedido de dispensa do segredo profissional acima referido.

(v) Em 30.05.03, o Conselho de Deontologia do Porto da OA deliberou instaurar um processo disciplinar contra o A., que correu termos sob o n.º …./2003, motivado por participação subscrita por um técnico oficial de contas, com fundamento no exercício simultâneo das actividades de advocacia, de ROC e de gestor e liquidatário judicial.

(vi) Em 05.01.05, no âmbito do processo disciplinar em apreço, foi proferido um parecer pelo Conselho Distrital do Porto, nos termos do qual concluiu o mesmo que “o exercício da advocacia é incompatível com o exercício das actividades de Revisor Oficial de Contas”.

(vii) O Relatório Final relativo ao processo disciplinar n.º …./2003, que aqui se dá por integralmente reproduzido, refere que “«As funções e actividades de ROC e de TOC são manifestamente incompatíveis com o exercício da advocacia, incompatibilidade essa que resulta não só da diferença, que é manifesta, da regulamentação dos regimes do segredo profissional…, mas decorre, sobretudo, da obrigação imposta a estes profissionais de denunciarem ao Ministério Público os factos de que tenham conhecimento no exercício das suas profissões e que constituam crimes públicos, mesmo que praticados pelos seus clientes (…). Atento o exposto, entendo que o arguido violou o art. 68.º do EOA e incumpriu com o dever deontológico previsto na al. e) do art. 79.º do mesmo diploma legal, a que corresponde, em abstracto, a pena disciplinar de suspensão…(…). Por outro lado, também como circunstância atenuante, considera-se que o Sr. Advogado arguido não tem nenhuma infracção disciplinar averbada no respectivo registo. Assim sendo, proponho a aplicação da sanção de censura…»”.

(viii) Em 07.01.05, o Conselho Distrital do Porto deliberou suspender a inscrição do Recorrido na OA, com base no parecer mencionado em (vi), na sequência do que o A. da AAE recorreu para o Conselho Superior, o qual, por acórdão de 25.11.05, anulou aquela deliberação, aderindo ao parecer do mesmo Conselho Superior, de 23.11.05, nos termos do qual, “«A falta de audiência prévia gera nulidade e prejudica o conhecimento da questão essencial que é a apreciação da incompatibilidade»”.

(ix) Em 01.04.05, o Conselho de Deontologia do Porto da OA proferiu acórdão que determinou a aplicação de pena de censura ao ora Recorrido.

(x) A Direcção da B…………….., CRL - ………… apresentou participação, datada de 29.04.08, junto do Conselho Distrital do Porto, comunicando o exercício simultâneo das actividades de advocacia e de ROC pelo A, ora Recorrido.

(xi) Em 09.05.08, na sequência de dita participação, o Conselho de Deontologia do Porto deliberou instaurar o processo disciplinar ao ora Recorrido, que correu termos sob o n.º ………...

(xii) Do Relatório Final do processo disciplinar n.º ………., que aqui se dá como reproduzido, consta o seguinte: “«(…) O Sr. Advogado arguido violou o art.º 76.º, n.º 2, e o art.º 77º, n.º 1, n), e incumpriu com o dever deontológio previsto no art.º 86.º d) do EOA do mesmo diploma legal, a que corresponde, em abstracto, a pena disciplinar de suspensão, ao não requerer a suspensão da sua inscrição, após ter sido notificado em 13.04.2005, da aplicação da pena de censura, no processo disciplinar n.º …../2003 do Conselho de Deontologia do Porto, por incompatibilidade entre o exercício da advocacia e as funções de Revisor Oficial de Contas e de Técnico Oficial de Contas. …O acórdão do Conselho de Deontologia do Porto, proferido em 1.04.2005 constitui caso resolvido, uma vez que nenhum recurso dele foi interposto, tendo-se consolidado na esfera jurídica do Sr. Advogado arguido. A partir do momento em que Sr. Advogado arguido foi notificado de tal acórdão – o que se verificou em 1.04.2005 – tinha o dever e cuidado acrescidos de requerer a suspensão imediata da sua inscrição, uma vez que, já anteriormente sabia que se encontrava numa situação de incompatibilidade. Com efeito, a partir desta data, sabia não só que se encontrava numa situação de incompatibilidade com o exercício da advocacia – o que já era do seu conhecimento desde a data da sua inscrição –, mas também que, mercê dessa incompatibilidade, foi punido com a pena de censura. Não obstante ter sido sancionado com essa pena de censura, o Sr. Advogado arguido persistiu em não requerer a suspensão da sua inscrição. (…) Verifica-se, desde logo, a ocorrência de dolo intenso (art. 128.º- a)). Com efeito, o Sr. Advogado arguido bem sabia que se encontrava em situação de incompatibilidade. Do mesmo modo, bem sabia que por esse motivo lhe fora aplicada a pena disciplinar de censura. Continuou a estar inscrito na Ordem dos Advogados e a não requerer, voluntária e pensadamente, a suspensão da sua inscrição nesta associação pública, com o objectivo de perpetuar esta situação de incompatibilidade. Assim, este dolo intenso configura premeditação (art. 128º - b) EOA). Na verdade, o Sr. Advogado arguido viu ser-lhe aplicada a pena de censura e persistiu voluntariamente na sua conduta anterior. Assim sendo, proponho a aplicação da sanção de suspensão por um ano…»”.

(xiii) Da acta de Audiência Pública de Julgamento consta o seguinte: “«(…) Pena a aplicar. Vem proposta pelo Sr. Relator a pena de suspensão. Exercendo a Ordem dos Advogados em uníssono as suas competências – cada órgão de per si – então é forçoso (como já devia ter acontecido) que a inscrição do arguido seja cancelada. Ora, aplicar-se uma suspensão a uma inscrição cancelada equivale a uma ‘não pena’, posto que os efeitos da suspensão estão afectados pelo seu cancelamento. A conduta em causa, pela sua gravidade, reiteração, intenção (…) não se compadece com a ineficácia de uma sanção disciplinar. Por isso, deve antes ser aplicada ao arguido a pena de multa. Isto não equivale a nenhum desvalor da censura em face do que se propôs no relatório. A multa, na sua graduação, importa que reflicta a gravidade do comportamento, com todas as agravantes invocadas no relatório. Assim, aplica-se ao arguido a pena de multa de € 10.000,00»”.

(xiv) Em 09.01.09, o Conselho de Deontologia do Porto da OA proferiu acórdão condenando o ora Recorrido em pena disciplinar de multa, no valor de € 10.000,00, por violação dos deveres constantes nos artigos 76º, nº 2, 77º, nº 1, alínea n) e 86º, alínea d), todos do EOA.

(xv) O ora Recorrido interpôs recurso hierárquico do acórdão punitivo para o Conselho Superior da Ordem dos Advogados, tendo este órgão, por acórdão de 05.03.10, negado provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

(xvi) Por acórdão do TAF do Porto, de 24.01.12, foi julgada improcedente a acção administrativa especial (AAE) intentada por A……………. contra a Ordem dos Advogados com vista à declaração de nulidade do acórdão do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, de 05.03.10; este último julgou improcedente o recurso hierárquico interposto do acórdão do Conselho de Deontologia do Porto da OA, datado de 09.01.09, que condenou o A. da AAE numa pena de multa de € 10.000,00.

(xvii) Por acórdão do TCAN, de 17.05.13, foi concedido provimento ao recurso, revogado o acórdão recorrido e anulada a deliberação de 05.03.10 que julgou improcedente o recurso hierárquico interposto do acórdão do Conselho de Deontologia do Porto da OA, datado de 09.01.09, que condenou o A. da AAE numa pena de multa de € 10.000,00.

(xviii) O recurso de revista excepcional foi admitido (fls 421-3) por acórdão de 09.01.2014.

2. De direito:

2.1. Nos presentes autos vem impugnada a decisão do TCAN que veio anular a decisão do TAF do Porto, a qual, por sua vez, havia rejeitado o pedido de anulação da deliberação do Conselho Superior da Ordem dos Advogados (CSOA) que julgou improcedente o recurso hierárquico interposto do acórdão do Conselho de Deontologia do Porto da OA, datado de 09.01.09, que condenou o A., ora Recorrido, numa pena de multa de € 10.000,00.

É dito, no acórdão recorrido, sob a epígrafe “INEXISTÊNCIA DA INFRAÇÃO DISCIPLINAR”, o seguinte (cfr. fls 344-5): “Alega o recorrente que ao não existir qualquer declaração válida de incompatibilidade a que se deva obediência, o exercício das duas profissões não constituiu infracção disciplinar.
E assim o referiu também nos artigos 37º e 41º da petição inicial.
Efetivamente o aqui recorrente foi alvo de um processo disciplinar no âmbito do qual em 05/01/2005, foi proferido um parecer pelo Conselho Distrital do Porto, nos termos do qual concluiu que «…o exercício da advocacia é incompatível com o exercício das actividades de Revisor Oficial de Contas…» (…).
E, em 01/04/2005, foi proferido, pelo Conselho de Deontologia do Porto, acórdão que lhe aplicou a pena de censura e do qual o mesmo não recorreu (…).
Por sua vez, em 07/01/2005, o referido Conselho Distrital do Porto deliberou suspender a inscrição do aqui recorrente com base no parecer de 1/4/05.
O recorrente recorreu para o Conselho Superior da Ordem que, por acórdão de 25/11/2005, anulou aquela deliberação de 7/1/05, aderindo ao parecer do Conselho Superior de 23/11/2005, nos termos do qual “11 – A deliberação recorrida foi proferida pelo Conselho Distrital do Porto. A declaração de incompatibilidade de determinada atividade profissional com o exercício da advocacia e a consequente suspensão da inscrição de advogado são matéria da competência do Conselho Geral – artigo 42º nº 1 alínea c) do EOA…art. 45º nº 1 alínea d), artigo 76º nº 5…12 – Mostram os autos preterição de formalidade essencial….A falta de audiência prévia gera nulidade e prejudica o conhecimento da questão essencial que é a apreciação da incompatibilidade…16 – Sou de parecer a) que se anule a deliberação…que declarou a suspensão da inscrição…b) que se remeta o processo ao Conselho Geral para verificação e deliberação sobre a alegada incompatibilidade…c)…».
A deliberação de 25/11/05 tem, por sua vez, o seguinte conteúdo: «…anulam a deliberação do Conselho Distrital de 7/1/2005, determinam a remessa do processo ao Conselho Geral para verificação e deliberação sobre a alegada incompatibilidade…».
Nos termos do art. 3º nº 1 do ED (DL 24/84 de 16/1) «Considera-se infração disciplinar o facto, ainda que meramente culposo, praticado pelo funcionário ou agente com violação de alguns deveres gerais ou especiais decorrentes da função que exerce”.
Ora, não nos parece que o aqui recorrente tenha praticado qualquer facto culposo a partir do momento em que foi anulada a deliberação do Conselho Distrital da Ordem que determinara a sua suspensão entre os quais o fundamento de que a matéria de incompatibilidade pertence ao Conselho Geral para onde remete o processo para verificação e deliberação sobre a alegada incompatibilidade.
Pelo que, não obstante a pena disciplinar de censura que lhe foi anteriormente aplicada e da qual não recorreu e independentemente de a quem efetivamente compete aferir da referida incompatibilidade, face àquela deliberação do Conselho Superior da Ordem de 25/11/05 não existia qualquer obrigação de o recorrente suspender a sua inscrição.
Pelo que, não havendo infração não lhe podia ser aplicada qualquer pena”.

2.2. A esta interpretação que foi feita pelo acórdão recorrido opõe-se a Recorrente, pelos motivos expostos nas conclusões do seu recurso. E com ela, como se verá de seguida, também não pode concordar este STA.
A questão a decidir neste recurso tem que ver directamente com a deliberação do Conselho de Deontologia do Porto da OA, de 09.01.09, que decidiu a aplicação ao Recorrido de uma pena de multa de € 10.000,00, a qual seria confirmada pela deliberação do CGOA, de 05.03.10, que, por sua vez, seria objecto da AAE que está na origem destes autos. Para a sua solução deverá aplicar-se a Lei n.º 15/2005, de 26.01 (Estatuto da Ordem dos Advogados – EOA – com as sucessivas alterações), sem embargo de o regime anterior ter também alguma pertinência na solução a dar ao caso dos autos. Vejamos.
À luz das alíneas c) e d) do artigo 86.º (Deveres para com a Ordem dos Advogados), constitui dever do advogado “c) Declarar, ao requerer a inscrição, para efeito de verificação de incompatibilidade, qualquer cargo ou actividade profissional que exerça; d) Suspender imediatamente o exercício da profissão e requerer, no prazo máximo de 30 dias, a suspensão da inscrição na Ordem dos Advogados quando ocorrer incompatibilidade superveniente”. Estes deveres tornaram-se óbvios e claríssimos a partir da entrada em vigor da Lei n.º 15/2005, que, no seu artigo 77.º, n.º 1, al. n), expressamente prevê a incompatibilidade da actividade de advocacia com a de revisor oficial de contas (ROC) – incompatibilidade que se manteve nas versões subsequentes do EOA (DL n.º 226/2008, 20.11, e Lei n.º 12/2010, de 25.06). Dever reforçado pelo n.º 1 do artigo 83.º (Integridade), que refere que “O advogado é indispensável à administração da justiça e, como tal, deve ter um comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidades da função, cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres consignados no presente Estatuto e todos aqueles que a lei, os usos, costumes e tradições profissionais lhe impõem” (itálico nosso).
Não obstante a clareza do texto do EOA, nas suas três últimas versões, que dizer da situação do ora Recorrido, que já exercia as funções de advogado e de ROC antes da entrada em vigor da Lei n.º 15/2005?
Registe-se, antes de mais, que já do Estatuto anterior (EOA/84) resultavam os deveres acima assinalados, estando os mesmos previstos no artigo 79.º, als d) e e), nos mesmos exactos termos. No âmbito do anterior EOA não estava, porém, expressamente individualizada a incompatibilidade resultante do exercício simultâneo da advocacia e da actividade de revisor oficial de contas (ROC). Porém, isto não significa necessariamente que ela não poderia existir. Ilação perfeitamente razoável tendo em consideração, por um lado, a cláusula geral contida no artigo 68.º (Âmbito das incompatibilidades): “O exercício da advocacia é incompatível com qualquer actividade ou função que diminua a independência e a dignidade da profissão”. E, por outro lado, tendo em conta a conclusão a que desde cedo chegou este Supremo Tribunal, perfeitamente cabível no quadro normativo então existente, de que a lista de incompatibilidades constante do artigo 69.º não era taxativa. Ou seja, à luz do anterior EOA seriam incompatíveis com a advocacia todas as actividades que o legislador expressamente individualizou no artigo 69.º e ainda aquelas que a OA entendesse deverem existir, naqueles casos em que o exercício simultâneo da advocacia e de uma outra função, actividade ou profissão não exemplificada na lista constante do artigo 69.º fosse de molde a diminuir a independência e a dignidade da profissão de advogado.
Dito isto, cumpre agora analisar o argumento invocado pelo ora Recorrido de que teria um direito adquirido a exercer as funções incompatíveis – de advogado e ROC – em virtude de essa incompatibilidade nunca ter sido declarada no âmbito do anterior EOA. O dito direito estaria protegido pelo artigo 81.º (Aplicação no tempo das incompatibilidades e impedimentos) do actual EOA – “As incompatibilidades e impedimentos criados pelo presente Estatuto não prejudicam os direitos legalmente adquiridos ao abrigo de legislação anterior”. Vejamos.
Do preceito em análise decorre que a existência ou não de um direito adquirido com esse alcance (direito a exercer em simultâneo a advocacia e a actividade de ROC) depende de um título legal constante de lei anterior. Um tal direito não nasce, portanto, da anulação pelo Conselho Superior da OA de uma deliberação do Conselho Distrital do Porto da OA (ainda para mais, fundada na inobservância do direito de audiência), antes tem que resultar da lei, desde logo, do EOA/84. Ora, o que sucede é que, se por um lado, o artigo 69.º do EOA/84 não previa a incompatibilidade entre a advocacia e a actividade de ROC, por outro, o carácter meramente exemplificativo da lista das incompatibilidades, a par com a cláusula geral do artigo 68.º – que permitia que a OA, perante uma situação concreta, pudesse pronunciar-se no sentido da verificação dessa incompatibilidade – não consente a conclusão de que o ora Recorrido tinha um direito líquido e certo a exercer em simultâneo a advocacia e a actividade de ROC. E, há que não esquecer, o Recorrido já tinha sido punido com pena de censura – da qual não recorreu –, no âmbito de um anterior processo disciplinar, precisamente por exercer em simultâneo as funções de advogado e ROC. Esta circunstância foi ainda devidamente assinalada no Relatório Final do processo disciplinar n.º …………, já citado (cfr. xii, II, 1.), aí se afirmando que o agora Recorrido “Continuou a estar inscrito na Ordem dos Advogados e a não requerer, voluntária e pensadamente, a suspensão da sua inscrição nesta associação pública, com o objectivo de perpetuar esta situação de incompatibilidade. Assim, este dolo intenso configura premeditação (art. 128º - b) EOA). Na verdade, o Sr. Advogado arguido viu ser-lhe aplicada a pena de censura e persistiu voluntariamente na sua conduta anterior”. Quanto ao argumento de que a deliberação do Conselho Distrital do Porto que lhe impôs a pena de suspensão foi anulada pelo Conselho Superior da OA, ele não é susceptível de contrariar ou esvaziar a pena de censura que lhe foi aplicada, uma vez que o fundamento da decisão daquele órgão máximo da OA apoiou-se no não cumprimento do dever de audiência. Por sua vez, o outro argumento de que em 28.04.98 apresentou, junto do Conselho Distrital do Porto, um requerimento a solicitar a dispensa de sigilo profissional com vista a poder depor como testemunha no processo n.º ….., que corria termos no Tribunal Judicial de Vila Franca de Xira – pelo que a OA desde cedo sabia que ele exercia as duas funções – também não esvazia ou neutraliza a pena de censura que mais adiante, na sequência de uma primeira participação apresentada contra ele, lhe foi aplicada. Ainda no que concerne a este argumento, pode ler-se no Relatório Final relativo ao Proc. n.º …………, o seguinte: “V – Como é óbvio e resulta dos factos provados, o Sr Advogado arguido não logrou fazer prova dessa factualidade que alegou na sua defesa, tal como se constata do elenco dos factos provados”. Mais ainda, “No que se refere ao processo de dispensa de segredo profissional que em [06.05.1998], foi decidido pelo Conselho Distrital do Porto, a solicitação deste Sr advogado, verifica-se que, do mesmo, não consta qualquer referência à actividade de revisor oficial de contas do Sr advogado arguido. Contra o que este alega na defesa, o Sr advogado arguido ao requerer a dispensa de segredo profissional enquanto advogado, fundamenta tal pedido no facto de ter tido conhecimento dos factos objecto do levantamento de segredo, não enquanto advogado do cliente, mas enquanto ‘consultor’ do mesmo. Mas, a verdade é que apenas dos documentos juntos a esse pedido de dispensa de sigilo, se pode encontrar uma referência à sua qualidade de revisor oficial de contas numa peça processual judicial que foi junta (entre muitos outros documentos a título de meio de prova)”.
Em síntese, poderá concluir-se que a existência de um alegado direito adquirido a exercer em simultâneo a advocacia e a actividade de ROC está dependente da existência de um título legal em que o mesmo se funde. Mas, como se viu, o ora Recorrido não demonstrou qual seria esse título legal, tendo-se limitado a invocar o preceito que dispõe que os direitos adquiridos à luz da legislação anterior serão respeitados.
Assim sendo, na sequência da entrada em vigor do EOA/05, o Recorrido deveria ter suspendido imediatamente as suas funções e requerido a suspensão da inscrição na OA, ou, pelo menos, e por precaução e diligência, deveria ter levantado a questão junto do Conselho Distrital do Porto, questionando se a actividade de ROC punha ou não em causa a independência ou a dignidade da função de advogado e/ou se ele era titular de um direito adquirido a exercer cumulativamente as duas – junto do Conselho Distrital, pois é ele o órgão indicado para apreciar e verificar a existência das situações de incompatibilidade (art. 76.º, n.º 5; art. 70.º, n.º 1, do EOA/84). Junto do Conselho Distrital do Porto, uma vez que nos termos do mesmo artigo 76.º, n.º 5, conjugado com o artigo 54.º, igualmente do EOA, as incompatibilidades são declaradas e aplicadas pelo “conselho distrital que for o competente”. Ora, como resulta dos autos, nunca o Recorrido cumpriu esse dever; tanto é que, das duas vezes que foi objecto de um processo disciplinar movido pelo Conselho de Deontologia do Porto da OA, na base desses processos estiveram participações de terceiros. Este comportamento, além do mais, não se coaduna nada com o princípio de integridade consagrado no já mencionado artigo 83.º do EOA/05 (um dos princípios gerais de dentologia profissional), cujo n.º 2 agora se reproduz: “A honestidade, probidade, rectidão, lealdade, cortesia e sinceridade são obrigações profissionais”.
O não cumprimento do dever estatutário contido no artigo 86.º do EOA (Deveres para com a Ordem dos Advogados), como, em geral, o incumprimento dos deveres funcionais, gerais ou especiais, pode dar origem a um processo disciplinar, o qual pode redundar na aplicação de uma pena disciplinar. Foi o que sucedeu com o ora Recorrido, que viu ser-lhe aplicada uma pena de censura pelo Conselho de Deontologia do Porto da OA, determinada por deliberação de 01.04.05. Nesta matéria disciplinar são competentes, em primeira instância, precisamente, os conselhos de deontologia de cada conselho distrital da OA (art. 54.º, al. a); art. 48.º-C, al. a) do EOA/84).

2.3. Em face de todo o exposto, não há como não concluir que o comportamento do Recorrido, ao não cumprir o dever previsto na al. d) do artigo 86.º do EOA, é censurável do ponto de vista ético-jurídico – possuindo, portanto, relevância disciplinar óbvia –, e que, mais do que isso, o mesmo agiu com culpa. Com efeito, ainda que o ora Recorrido invoque um alegado direito adquirido para não ter suspendido as suas funções de advogado, o certo é que a forma como o EOA dispunha sobre esta matéria das incompatibilidades não era de molde a fazer nascer um direito a exercer em simultâneo a advocacia e a actividade de ROC. Deve-se reter ainda a punição com pena de censura de que foi alvo o ora Recorrido por exercer em simultâneo as funções visadas pela incompatibilidade. Tendo por referência o ‘homem médio’, pode afirmar-se que o Recorrido actuou com dolo, no mínimo, na sua modalidade de dolo eventual. Seja como for, constitui “infração disciplinar o facto, ainda que meramente culposo, praticado pelo funcionário ou agente com violação de alguns deveres gerais ou especiais decorrentes da função que exerce” (art. 3.º, n.º 1, do ED/08, art. 3.º, n.º 1, do ED/84, ambos os diplomas já revogados, o ED/08 tendo sido revogado pela Lei n.º 35/2014, de 20.06, a qual, no seu art. 183.º, define em termos idênticos o que é infracção disciplinar), pelo que, ainda que tivesse sido uma conduta meramente culposa, o que, como se viu, não é o caso relativamente à conduta que esteve na base do segundo processo disciplinar, justifica-se plenamente a aplicação da pena disciplinar.


III – Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam em conferência os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar o acórdão recorrido e manter a decisão proferida na primeira instância.

Custas pelo Recorrido.

Lisboa, 1 de Outubro de 2015. – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano (relatora) – Jorge Artur Madeira dos SantosAlberto Augusto Andrade de Oliveira (vencido conforme declaração que segue).

Voto de vencido

Discordo da tese que prevaleceu, e confirmaria o acórdão recorrido.
Na questão das incompatibilidades há que distinguir entre o exercício de cargos, funções e actividades expressamente enunciadas na lei como incompatíveis, e o exercício daquelas que não estão expressamente enunciadas.
Quanto às primeiras, naturalmente que o advogado tem o dever de desde que as passa a exercer suspender o exercício da profissão de advogado e requerer no prazo máximo de 30 dias a suspensão da sua inscrição.
Quanto às outras será diferente.
Note-se que o Estatuto contempla, quanto ao acto de inscrição, o dever de «Declarar ao requerer a inscrição, para efeito de verificação de incompatibilidade, qualquer cargo ou actividade profissional que exerça». –
Mas o Estatuto não contempla esse dever de declaração para o advogado já inscrito, pelo que não há o dever de actualização das actividades exercidas, que simultaneamente permitiria o controlo em tempo real. Deixa-se, então, ao advogado, já não o dever de actualização de todas as actividades mas, antes, o dever de suspender imediatamente o exercício da profissão e de requerimento de suspensão de inscrição, no caso de incompatibilidade superveniente.
Ora a pergunta é: que fazer perante actividade que, não elencada, entende o advogado nenhuma incompatibilidade suscitar? Será exigível que se auto suspenda contra, afinal, o que pensa ser o direito.
Repare-se que não está prevista qualquer acção para impor à Ordem que decida se a sua actividade é compatível.
Mas diz-nos o Estatuto que as incompatibilidades são declaradas e aplicadas pelo conselho geral ou pelo conselho distrital que for o competente (art.° 76, 5, Estatuto de 2005).
Na circunstância, não há qualquer dúvida que os diversos órgãos da Ordem tinham conhecimento da actividade de ROC do recorrido.
E como resulta da matéria de facto, o conselho distrital, precisamente com base em que o ora recorrido exercia actividade incompatível deliberou suspender a sua inscrição. Todavia, essa deliberação foi por ele impugnada, sendo anulada pelo Conselho Superior. E não é de desprezar que essa anulação foi efectuada já depois que o conselho deontológico censurara o mesmo.
Nos termos dessa anulação foi determinada a remessa ao Conselho Geral para «verificação e deliberação sobre a alegada incompatibilidade».
Ora, os autos não revelam que qualquer deliberação tenha existido, afinal, sobre a alegada incompatibilidade.
Estará, pois, pendente decisão dos órgãos competentes da Ordem e pelo procedimento adequado, de declaração da incompatibilidade da actividade exercida pelo ora recorrido com a profissão de advogado.
Numa circunstância destas não é possível afirmar-se o incumprimento do dever pelo qual foi punido.
Lembre-se que a punição assentou, entre o mais, em que tinha havido caso resolvido quanto à incompatibilidade, por força da não impugnação da decisão de censura. Mas não há caso resolvido com essa extensão. O caso resolvido existe em relação à punição em si – não será já susceptível de impugnação – mas fica-se por aí.
O certo, sim, é que o recorrido impugnou a deliberação de suspensão da sua inscrição e essa impugnação foi procedente.
O entendimento que se deixa expresso não tem que ver com a bondade da própria tese do recorrido de que tem o direito de exercer a actividade de ROC, por ela não estar elencada nas incompatibilidades do Estatuto de 84 e pela salvaguarda de direito legalmente adquirido. Essa é outra questão.
O que aqui está em discussão é, apenas, a infracção disciplinar, por não auto suspensão.
No quadro descrito, creio, tal como entendera o acórdão recorrido, que não houve infracção.
Lisboa, 1 de Outubro de 2015.
Alberto Augusto Andrade de Oliveira