Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0198/15
Data do Acordão:10/04/2017
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CARLOS CARVALHO
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO
REGISTO PREDIAL
ILICITUDE
CULPA
NEXO DE CAUSALIDADE
Sumário:I - Tem-se como ilícita e culposa, à luz dos arts. 22.º da CRP, 04.º e 06.º do DL n.º 48051 conjugados com os arts. 483.º e 486.º do CC, 01.º, 04.º, 09.º, 10.º, 79.º, 81.º e 86.º do Código de Registo Predial na redação à data vigente, a conduta do R. que, através dos seus serviços, não cumpriu, cabalmente, os deveres que lhe competiam e se lhe impunham no âmbito do sistema público de registo [no caso, do registo predial] quanto a uma atempada sinalização e inutilização de descrição predial duplicada com vista a garantir a segurança no comércio imobiliário, assegurando aos interessados que, sobre os bens a que aquele instituto se aplica, não existiam outros direitos senão aqueles que o registo documenta e publicita.
II - Mostra-se ainda verificado in casuo necessário nexo de causalidade relativamente aos danos sofridos pelos AA. dado a uma conduta do R. de manutenção de duplicação de descrições registais que perdurou no tempo se haver aliado ainda uma outra do mesmo R. de errada certificação/informação da descrição predial que, induzindo em erro os então compradores, ora AA., permitiu a celebração de escritura de compra e venda de imóvel inexistente, quando sem a apresentação daquela certidão a celebração daquele negócio jurídico não teria tido lugar porquanto os AA. não teriam avançado para a sua outorga se o teor da certidão os alertasse para a duplicação ou possível duplicação de descrições registais.
Nº Convencional:JSTA00070335
Nº do Documento:SA1201710040198
Data de Entrada:02/23/2015
Recorrente:ESTADO PORTUGUÊS
Recorrido 1:A... E MULHER
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAC LISBOA
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR ADM CONT - ACÇÃO ADM COMUM.
Legislação Nacional:CONST76 ART22.
DL 48051 DE 1967/11/21 ART2 N1 ART4 ART6.
CCIV66 ART483 ART562 ART566 ART496 ART494 ART563 ART486 ART497.
CRP84 ART1 ART4 ART9 ART10 ART79 ART81 ART86 N1 N2 ART7.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC0812/13 DE 2014/09/10.; AC STA PROC0264/08 DE 2008/10/23.; AC STJ PROC74/1999.P1.S1. DE 2012/01/12.; AC STJ PROC1373/06.7TBFLG.G1.S1-A DE 2016/02/23.; AC STJ PROC555/2002.E2.S1 DE 2014/03/27.; AC STA PROC0219/16 DE 2016/06/30.; AC STAPLENO PROC0576/10 DE 2016/05/19.
Referência a Doutrina:MOUTEIRA GUERREIRO PUBLICIDADE E PRINCÍPIOS DO REGISTO IN TEMAS DE REGISTO E NOTARIADO 2010 PAGS18/20.
RUI JANUÁRIO E ANTÓNIO GAMEIRO DIREITO REGISTRAL PREDIAL 2016 PAG222/223.
PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA CC ANOTADO VOLI 4ED PAG499.
ANTUNES VARELA DAS OBRIGAÇÕES EM GERAL 10ED PAG894.
Aditamento:
Texto Integral:

Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

1. RELATÓRIO
1.1. A……………………… e B…………….....…., [doravante «AA.»], devidamente identificados nos autos, instauraram no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa [TAC/L] a presente ação declarativa de condenação com processo comum, forma ordinária, nos termos dos arts. 71.º e ss. da LPTA, contra o “ESTADO PORTUGUÊS” [doravante «R.»], peticionando, pelos fundamentos aduzidos no articulado inicial de fls. 02/09 dos autos [mormente, não ter sido eliminada, inutilizada ou cancelada a descrição 00126/030686 da freguesia de Foros de Salvaterra de Magos, da Conservatória do Registo Predial de Salvaterra de Magos”, a condenação do R. no pagamento de uma indemnização aos AA. no montante global de 156.213,55 € “a título de danos patrimoniais e de danos morais, acrescido de juros, calculados à taxa legal desde a data da citação e até integral pagamento”.

1.2. Na sua contestação o R. apresentou defesa [por exceção (ineptidão da petição inicial, inadequação do meio processual) e por impugnação], pugnando pela sua absolvição da instância ou do pedido [cfr. fls. 120 e segs.].

1.3. Foi proferido despacho saneador que improcedeu as exceções dilatórias invocadas e fixou matéria de facto assente e base instrutória, determinando o prosseguimento dos autos [cfr. fls. 184 e segs.], decisão essa que não foi alvo de qualquer impugnação.

1.4. Realizada a instrução e julgamento de facto através da decisão de fls. 295/298 dos autos, veio a ser proferida a sentença recorrida [cfr. fls. 309 e segs.], datada de 26.09.2014, a julgar a presente ação parcialmente procedente, condenando o R. no pagamento aos AA. das quantias de 78.114,50 € e de 5.000,00 €, a título, respetivamente, de danos patrimoniais e de danos não patrimoniais, quantias essas acrescidas de juros de mora devidos desde a citação e até integral pagamento.

1.5. O R., inconformado, interpôs recurso jurisdicional, concluindo nos termos de síntese conclusiva que se reproduz [cfr. fls. 331 e fls. 336 e segs.]:
...
1. Decorre da informação prestada pela Conservadora da Conservatória do Registo Predial de Salvaterra de Magos e retira-se do extrato da descrição do prédio n.º 00126/030686 que ao prédio rústico composto de vinha e semeadura, inscrito na matriz sob o art. 576, foi anexado o prédio n.º 9882, passando a ter a seguinte composição: «Prédio Misto - Lentisqueira-terra de semeadura e vinha e casa que serve de adega e celeiro - norte, ……………………; sul, e nascente, carril público e poente, estrada - arts. rústicos 577 e parte do 576 e urbano 1701 (Doc. n.º 27, junto com a p.i.). (destaque nosso).
2. Porém, na escritura de divisão que serviu de base às desanexações que individualizaram os prédios n.º 232 e 128, identifica-se o prédio mãe como prédio rústico, sito na Lentisqueira dos Foros de Salvaterra, freguesia e concelho de Salvaterra de Magos, inscrito na matriz cadastral da freguesia de Salvaterra de Magos sob o artigo número quinze da Secção BG (Doc. n.º 6-A).
3. Da mesma escritura pública consta que o prédio objeto de divisão pertencia em comum a C…………….. e mulher D………………….. e a E……………. e mulher F……………., na proporção de três quintos indivisos aos primeiros e dois quintos indivisos aos segundos, constando ainda da escritura que não lhes convindo permanecer na indivisão do referido imóvel, o dividiam em duas parcelas distintas e independentes, destinadas à cultura hortícola, a primeira com a área de 16.255,68 m2, ficando a pertencer aos outorgantes C………… e mulher e a segunda, com a área de 10.837,12 m2, ficando a pertencer a E………………. e mulher.
4. O prédio descrito sob o n.º 00126/030686 na Conservatória do Registo Predial de Salvaterra de Magos estava descrito sob o n.º 5037 na Conservatória de Benavente, tendo as desanexações dado origem às descrições n.º 14230 e n.º 14780 da Conservatória de Benavente e nº 232 e nº 128, da Conservatória de Salvaterra de Magos.
5. A referida escritura pública de divisão celebrada em 13 de maio de 1981, no Cartório Notarial de Salvaterra de Magos, veio a ser retificada por escritura de retificação e ampliação de crédito de 30 de setembro de 1983, no sentido de ficar a constar que a área da primeira parcela que ficou a pertencer a C……………. e mulher tinha a área de 14.842,8 m2 e não de 16.255,68 m2, explicitando ainda que o prédio rústico a dividir, inscrito na matriz cadastral da freguesia de Salvaterra de Magos sob o artigo número 15 da secção BG, tinha a área de 25.680 m2.
6. Não se encontrando os serviços registrais dotados de mecanismos de verificação in loco e não se incluindo no elenco das menções gerais da descrição predial o elemento área do prédio como elemento essencial à luz dos códigos de registo predial anteriores ao Código do Registo Predial aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224/84, de 6 de julho, a área apenas era mencionada na descrição predial quando indicada nos respetivos títulos.
7. Revestindo-se de particular importância na recolha dos elementos necessários à correta identificação física dos prédios a harmonização do registo com a matriz.
8. Daí que, o facto de não se ter mencionado na escritura de divisão a existência da parte urbana que compunha o prédio misto descrito sob o n.º 00126 e de a área das duas parcelas decorrentes da divisão operada pela primeira escritura somar 27.092,80 m2, confinando a retificação efetuada a área dividida à correspondente ao artigo 15 da secção BG, permitiu concluir que as desanexações operadas não teriam esgotado a área inicial.
9. O prédio n.º 232 veio a ser desanexado em 22 de junho de 1982 e o prédio n.º 128 em 06 de julho de 1983, a coberto da Ap. 11, pela Conservatória do Registo Predial de Benavente.
10. A atualização da descrição n.º 00126 ocorrida em 1993, realçada na sentença recorrida, através da qual foi indicada a área total do prédio misto (correspondendo ao artigo 15, Secção BG a parte rústica) e indicada a área da parte urbana, foi efetuada pelo Averbamento 4, na dependência da Ap. 05 de 13 de julho de 1993, em que é apresentante o outorgante como vendedor na escritura de compra e venda em apreço nos presentes autos, E………………
11. Na apresentação pede-se o registo de hipoteca voluntária a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Benavente, na ficha 00126, instruída com certidão matricial e duplicado matricial.
12. Em declarações complementares, nessa apresentação, E…………… e G…………., também outorgante no contrato de compra e venda, declaram que «A parte urbana do prédio tem a seguinte composição: casa de r/c, com 2 divisões que servem de adega, 1 dependência que serve de palheiro e logradouro-área coberta: 73,90 m2, descoberta: 1.126,10. Omisso. V.V. 500.000$00» - fls. 3, 7 e 8 do Doc. n.º 2, junto com a p.i..
13. Do teor da descrição 00126 resulta que para além da atualização referida, em 30 de janeiro de 1989, a coberto da Ap. 2, para inscrição de penhora, foi averbado o artigo 15, da secção BG e em 12 de junho de 1990, pela Ap. 09, para conversão de inscrição de penhora foi averbada outra alteração à parte urbana do prédio - fls. 14 e 20 do Doc. n.º 2.
14. Apesar de ter sido efetuada e comunicada uma divisão fundiária em 1981 o Serviço de Finanças de Salvaterra de Magos não eliminou o artigo 15 da secção BG, o que determinou que se tivesse feito integrar no registo a totalidade do artigo 15 da secção BG no prédio 00126 mediante apresentação de uma certidão matricial emitida pela Repartição de Finanças.
15. Refira-se que a penhora acima referida inscrita a coberto da Ap. de 30 de janeiro de 1989, foi efetuada em execução movida contra C…………… e mulher, tendo G……………. em arrematação em hasta pública decorrente da execução, adquirido a fração de 3/5 do prédio.
16. A penhora inscrita a coberto da Ap. de 12 de junho de 1990, foi efetuada em execução movida contra E……………… sobre 2/5 do mesmo prédio - fls. 14 do Doc. n.º 2.
17. Verifica-se que o registo da penhora de 2/5 do mesmo prédio, efetuada em 25 de setembro de 1989, em que era Exequente o Banco Borges & Irmão foi lavrado provisório por dúvidas por haver divergências entre a área da caderneta rústica (1.200 m2) e a área constante da caderneta urbana (73,90 m2) - fls. 9 do Doc. n.º 2.
18. As penhoras sobre 3/5 e 2/5 do prédio 00126, por se tratar de penhora de direitos foram efetuadas mediante notificação dos comproprietários, nos termos do art. 862.º, do C.P. Civil, pelo que aos contitulares cabia fazer as declarações que entendessem quanto ao direito do executado.
19. No que respeita à execução que correu termos no 14.º Juízo Cível de Lisboa em que era executado E…………… (Ap. de 12 de junho de 1990, acima referida) resulta de fls. 19 do Doc. 2, que os comproprietários identificados no requerimento de nomeação à penhora, C…………….. e mulher (fls. 18 do Doc. 2), foram notificados em 25 de setembro de 1989, data em que se considerou realizada a penhora.
20. Ora, nem na qualidade de executados nem como comproprietários, E……………. e C……………… vieram declarar, na sequência das notificações feitas nos processos de execução, que tinham posto fim à indivisão, não podendo, por isso, as penhoras incidir sobre direitos, mas sobre os prédios individualizados.
21. Acresce que, ainda que E…………….. e G…………….., ambos filhos de C……………. constituíram sobre o prédio n.º 00126 hipoteca voluntária a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Benavente, cujo registo foi peticionado pela Ap. n.º 5, de 23 de julho de 1993, tendo a coberto da Ap. 04 de 24 de junho de 1994 sido inscrita a ampliação da hipoteca.
22. Em suma, foram as declarações prestadas em diversos títulos sujeitos a registo que acabaram decisivamente por contribuir para a duplicação judicialmente declarada e para que reentrassem na área do prédio descrito no artigo 00126, áreas que dele tinham saído por desanexação.
23. Pressupõe o pedido de indemnização formulado a existência de acção ou omissão ilícita e culposa o dano e o nexo de causalidade entre este e aquela, nos termos dos artigos 483.º, n.º 1, 562.º e 563.º do Código Civil.
24. Resulta de todo o exposto não ser possível qualificar de ilícita e culposa a atuação da Conservatória do Registo Predial de Salvaterra de Magos.
25. Na verdade, a ação ilícita e culposa foi praticada pelos outorgantes vendedores ao alienarem frações prediais como se fossem da sua titularidade, quando já não eram e a realidade física negociada correspondia a prédios tabularmente distintos.
26. Por outro lado, não existe nexo de causalidade entre a atuação da Conservatória do Registo Predial e os prejuízos invocados, já que, a causa dos prejuízos sofridos pelos AA. está no contrato de compra e venda celebrado e na atitude enganosa dos vendedores E………….. e mulher F……………… e G……………. e cônjuge que venderam um prédio que não lhes pertencia e não em qualquer desconformidade registral com a realidade substancial ou jurídica.
27. Com efeito, como se referiu, G……………. e marido haviam arrematado 3/5 do prédio 00126, no processo de execução em que foram executados C………….. e mulher, execução que deveria ter recaído sobre o prédio individualizado pela escritura de divisão outorgada pelos comproprietários do prédio misto, C……………… e E………….. descrito sob o n.º 128, de que era titular C………………..
28. A parte que ficou a pertencer a E…………….., correspondente à ficha 232 foi arrematada em hasta pública pela Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Salvaterra de Magos no Proc. de Execução Fiscal, n.º 10/83, em que foi Exequente a Fazenda Nacional em representação da Caixa Geral de Depósitos - Doc. junto com a contestação.
29. Pelo que, bem sabiam E…………… e mulher F……………. que já não eram titulares do prédio que lhes coube por força da divisão efetuada e que por força da mesma divisão deixaram de ser titulares do direito a 2/5 do mesmo prédio.
30. Acresce que, para garantia de contrato de abertura de crédito E…………. e mulher hipotecaram à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Benavente, dois quintos indivisos do prédio misto descrito sob o n.º 126 e G…………….. e marido os três quintos indivisos do mesmo prédio (Doc. 2), frações que viriam a vender aos Autores, os quais pagaram o valor garantido pelas mencionadas hipotecas e ainda a quantia em dívida na execução pendente movida pelo Banco Borges & Irmão contra E……………….. (Doc. 2).
31. Refira-se, por último, que sobre o prédio n.º 128 se mantém a hipoteca a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Salvaterra de Magos, constituída pela escritura que procedeu à retificação da área do prédio que coube por divisão a C……………, divisão que criou duas realidades jurídicas tabularmente distintas.
32. Aos outorgantes no contrato dado sem efeito na acção judicial que, sob o n.º 251/99, correu termos pelo 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Vila Franca de Xira, cabe restituir o preço do imóvel incluindo o valor das hipotecas e da dívida exequenda que originou a penhora registada, bem como ressarcir os Autores dos prejuízos sofridos.
33. Assim, inexistindo obrigação de indemnizar não tem razão o Tribunal ao considerar o Estado Português responsável por metade dos prejuízos patrimoniais sofridos pelos Autores.
34. Para além de que, sendo apenas indemnizáveis os danos morais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, o que não é o caso face à matéria de facto assente, não pode o Estado ser condenado no pagamento de qualquer montante a título de danos não patrimoniais.
35. Pelo exposto, a decisão recorrida não subsumiu corretamente os factos ao Direito, violando o disposto no artigo 6.º, n.º 1, do D.L. n.º 48051, de 21 de novembro de 1967, bem como o disposto nos artigos 483.º, n.º 1, 496.º, 562.º e 563.º do Código Civil.
36. Pelo que deve ser revogada e substituída por outra, que julgue improcedente a acção.
37. Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente, absolvendo-se o Estado Português do pedido ...”.

1.6. Os AA., devidamente notificados, não vieram produzir contra-alegações [cfr. fls. 334 e 351 e segs.].

1.7. Colhidos os vistos legais cumpre apreciar e decidir em Conferência.


2. DAS QUESTÕES A DECIDIR
Presentes os termos do recurso jurisdicional que se mostra interposto nos autos importa que se aprecie do alegado erro de julgamento assacado à sentença por infração ao preceituado nos arts. 06.º, n.º 1, do DL n.º 48051, de 21.11.1967, 483.º, n.º 1, 496.º, 562.º e 563.º todos do CC [cfr. alegações e demais conclusões supra reproduzidas].


3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. DE FACTO
Resulta como assente na decisão judicial recorrida o seguinte quadro factual:
I) Em 02.06.1998, A………………… e mulher B………………, ora AA., compraram a E……………. e mulher F…………….. e a G…………………. e seu marido H……………….., por escritura pública outorgada pelo Cartório Notarial de Salvaterra de Magos, o prédio misto, sito na Lentisqueira, freguesia de Salvaterra, concelho de Salvaterra de Magos, inscrito na Matriz Cadastral da freguesia de Salvaterra de Magos, sob o artigo 15 da secção BG, e descrito na CRP Salvaterra sob o n.º 126 da freguesia de Foros de Salvaterra, com a área de 25.680 m2, tendo a parte rústica o valor de 32.421,86 € [6.500.000$00] e a parte urbana o valor de 47.385,80 € [9.500.000$00], no total de 79.807,66 € [16.000.000$00] [cfr. doc. n.º 01 de fls. 12 a 16 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido].
II) A compra que antecede foi registada na Conservatória do Registo Predial de Salvaterra de Magos pela inscrição G-6 [cfr. doc. n.º 02 de fls. 17 a 37 idem].
III) Em meados de 1999, os ora AA. foram confrontados com a ocupação do referido prédio por uma máquina retroescavadora determinada pela Caixa de Crédito Agrícola de Salvaterra de Magos.
IV) Em 20.09.1999 os ora AA. intentaram ação de reivindicação de propriedade, que correu termos pelo 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Benavente, sob o n.º 251/99 [cfr. doc. n.º 03 de fls. 38 a 47 ibidem].
V) No âmbito da ação que antecede, os ora AA. tomaram conhecimento, pela informação prestada pela CRP Salvaterra [cfr. doc. n.º 04 de fls. 48 a 51, cujo teor se reproduz a seguir] que:
5.1. (…) O prédio referido no ponto 1. encontra-se descrito sob o n.º 00126/030686 da freguesia de Foros de Salvaterra, inicialmente transcrito no prédio descrito sob o n.º 5.037 a fls. 70 vº do Livro B-13 da Conservatória de Benavente (de onde a atual Conservatória do Registo Predial de Salvaterra de Magos foi desanexada);
5.2. [T]endo o mesmo sido objeto de desanexação em 1946, (Av. 1 à descrição 126) de uma parcela de terreno de 5.180 m2 (ficha 00811/130988 de Salvaterra de Matos);
5.3. [A]o que posteriormente, em 1971, se lhe seguiu uma anexação ao nº 9.882 (Av. 2 à referida inscrição) passando o prédio a ser misto, correspondendo-lhe os artigos 1701 urbano e 577 e 576 (parte) rústicos, passando a ter esta composição a quando da feitura do registo constante da inscrição G-1 à referida descrição;
5.4. Já na década de 1980, o referido prédio foi objeto de três desanexações a que correspondem atualmente as descrições 00232, 00128 e 00129, todas da freguesia de Foros, que se encontram, respetivamente, registadas a favor: da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Salvaterra de Magos, por arrematação em hasta pública (descrição 00232), desde dezembro de 1990; de C……………., por divisão (descrição 00128), desde 1983; encontrando-se a ficha 00129 aberta por efeito do registo provisório da penhora (Ap. 03/230586) do qual já foi verificada a caducidade;
5.5. Pela análise das descrições 00232 e 00128 verifica-se que, a cada uma delas, corresponde respetivamente a área de 10.837,12 m2 e de 14.842,88 m2, e artigo 15 da Secção BG (parte em cada uma das descrições), áreas cuja soma perfaz 25.680 m2;
5.6. Verificou-se também que o artigo 15 da secção BG da freguesia de Foros de Salvaterra tem uma área total de 25.680 m2 (coincidente com a soma daquelas duas, antes desanexadas - descrições 00232 e 00128) do qual consta um urbano (parcela 3) com a área de 1.200 m2, tudo coincidindo com o que consta da descrição predial da ficha 00126 atualizada através da Ap. 05/930713;
5.7. De tudo se conclui poder haver uma duplicação efetiva do prédio, dado que, efetuadas as desanexações por divisão correspondentes às descrições 00232 e 00128, com a área total de 25.680 m2, ter-se-ia esgotado a área do artigo 15 da Secção BG da freguesia de Foros de Salvaterra;
5.8. As desanexações resultaram da divisão do prédio (em 1983) efetuada entre os então titulares inscritos C……………. e mulher D…………….. (proprietários de 9/15 avos - inscrição G-1 e G-2) e E…………… e mulher F……………. (proprietários de 6/15 avos - inscrição G-4), tendo ficado a pertencer a C……………. e mulher a propriedade da descrição n.º 00128 com 14.842,88 m2 e a E……………… e mulher a propriedade da descrição n.º 00232 com 10.837,12 m2;
5.9. À data das desanexações não foi feita inutilização da descrição (por total desanexação da área do prédio) sendo que, ao ser pedido registo de penhora sobre o prédio 00126 - inscrição F-2 Ap. 02/300189 sobre 3/5, contra C……………. e mulher D………….. (inscrição F-2 mencionada supra) é registada a inscrição G-5 (aquisição de 3/5) a favor de G…………….., quando, mais uma vez, esta inscrição deveria ter incidido sobre o prédio descrito sob o n.º 00128, o qual continuou sem ser afetado na sua titularidade apesar da arrematação em hasta pública;
5.10. Por sua vez os titulares em 1983 de 2/5 - inscrição G-4 à descrição 00126, E……………… e mulher F……………., apesar da divisão e daí ter resultado a abertura da ficha 00232, a qual veio a ser adquirida também por arrematação em hasta pública pela Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Salvaterra de Magos (inscrição G-2 à descrição 00232), esquecendo tal facto, venderam conjuntamente com G………………., c.c. H…………….., os primeiros como proprietários de 2/5 (inscrição G-4) e a segunda como proprietária de 3/5 (inscrição G-5), a A………………, por escritura outorgada em 2 de junho de 1998 no Cartório Notarial de Salvaterra de Magos, o prédio descrito sob o n.º 00126 quando o mesmo já havia sido dividido e desanexada a totalidade da sua área (em função da divisão) para as descrições 00232 - à data já propriedade da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Salvaterra de Magos, por arrematação em hasta pública - e para a descrição 00128 à data ainda na titularidade de C……………… (a qual se mantém)”.
VI) Na acção referida no ponto IV) foi proferida sentença [cfr. doc. n.º 07 de fls. 59 a 72, cujo teor se dá por reproduzido].
VII) O prédio descrito sob o n.º 00128 da CRP Salvaterra é proveniente do número 14.780 da CRP Benavente [fls. 105 B-40] e o prédio descrito sob o n.º 232 da CRP Salvaterra é proveniente do número 14.230 da CRP Benavente [cfr. doc. n.º 08 de fls. 74 a 79 ibidem].
VIII) Na data da outorga da escritura de compra e venda do imóvel identificado no ponto I) dos factos assentes, os ora AA. pagaram duas hipotecas a favor da Caixa de Crédito no valor de 56.298,57 € [11.286.850$00] e uma penhora a favor do Banco Borges & Irmão, no valor de 15.872,89 € [3.182.228$00] [resposta ao facto 01) da Base instrutória].
IX) Perfazendo, com o preço contratado no valor de 79.807,66 € [16.000.000$00], o total de 151.979,12 € [30.469.078$00] [resposta ao facto 02) da Base instrutória].
X) Os ora AA. pagaram ainda:
- Registos do prédio 00126/030686 Foros de Salvaterra, no valor total de 529,79 € [106.213$00] e outros à CRP Salvaterra, no valor de 35,67 € [7.150$00] [resposta ao facto 03.1) da Base instrutória];
- Vedações - 452,54 € [resposta ao facto 03.2) da Base instrutória];
- Seguros - 370,16 € [74.210$00] [resposta ao facto 03.3) da Base instrutória];
- Licenças camarárias - 217,38 € [43.580$00] [resposta ao facto 03.4) da Base instrutória];
- Contribuição autárquica - 290,46 € [resposta ao facto 03.5) da Base instrutória];
- Imposto de Sisa - 2.593,75 € [520.000$00] [resposta ao facto 03.6) da Base instrutória];
- Instituto de Estradas de Portugal - 110,73 € [2.200$00] [resposta ao facto 03.7) da Base instrutória];
- Escrituras e certidões diversas - 979,94 € [196.460$00] [resposta ao facto 03.8) da Base instrutória];
- Custas judiciais para levantamento de penhora 710,78 € [142.500$00] [resposta ao facto 03.9) da Base instrutória];
Perfazendo a quantia de 6.320,74 € [resposta ao facto 03.10) da Base instrutória];
XI) Os AA. perderam a alegria de viver [resposta ao facto 06) da Base instrutória];
XII) E vivem em permanente angústia o que é reconhecido pelos seus amigos e familiares [resposta ao facto 07) da Base instrutória];
XIII) Incidindo a controvérsia sobre o direito de propriedade que foi objeto da ação de reivindicação identificada no ponto IV) dos factos assentes, sobre 10.837,12 m2, ou seja, sobre o prédio que, tendo sido desanexado do prédio adquirido pelos ora AA. descrito sobre o n.º 00126/030686 da CRP Salvaterra, que se encontra descrito na mesma Conservatória sob o n.º 00232, a sentença proferida nessa ação condenou os aqui AA. a reconhecer, em suma, que com as descrições n.ºs 232 e 128 da freguesia de Foros de Salvaterra de Magos, o artigo 15 da Secção BG ficou sem qualquer conteúdo, reduzido a nada, e determinou o cancelamento da inscrição G-6 da descrição n.º 00126/030686, por considerar que depois das divisões efetuadas, a mesma ficou sem conteúdo, reduzida a nada [resposta ao facto 08) da Base instrutória];
XIV) O preço do imóvel foi pago sem recurso ao crédito bancário [resposta ao facto 13) da Base instrutória].

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3.2. DE DIREITO
Presente o quadro factual antecedente passemos, então, à apreciação do recurso jurisdicional e questões que no mesmo se mostram postas.

I. Insurge-se o R. contra o que se mostra julgado na sentença no segmento em que na mesma se considerou estarem reunidos os requisitos da responsabilidade civil extracontratual relativos à ilicitude/culpa, ao nexo de causalidade e, bem assim, ao dano [quando se fixou o quantum indemnizatório arbitrado aos AA. a título de danos não patrimoniais], já que entende que in casu não estão preenchidos ou verificados tais requisitos.

II. Mercê do assim julgado importa, então, centrar nossa análise na aferição, desde já, do preenchimento dos pressupostos de responsabilidade civil do R. relativo à ilicitude e à culpa presente o quadro factual apurado e aquilo que à data do mesmo constituía o regime normativo vigente.

III. Assim, decorre do disposto no art. 22.º da CRP que “[o] Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por ações ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”.

IV. Temos, por outro lado, que a disciplina em sede de lei ordinária do regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas públicas no domínio do que então se denominava dos “atos de gestão pública” regia-se, à data dos factos em discussão, pelo DL n.º 48.051, de 21.11.1967 [cfr. arts. 12.º CC, 05.º e 06.º da Lei n.º 67/07, de 31.12, e 07.º e segs. do Regime Responsabilidade Civil Extracontratual Estado (doravante RCEE)], não sendo, nessa medida, aplicável este novo «RCEE»], sendo que a apreciação e efetivação da mesma responsabilidade decorrente de “atos de gestão privada” estava prevista nos arts. 500.º e 501.º do CC.

V. E nesse âmbito derivava do n.º 1 do art. 02.º do referido DL que “[o] Estado e demais pessoas coletivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de atos ilícitos culposamente praticados pelos respetivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício …” e do art. 04.º que “[a] culpa dos titulares do órgão ou dos agentes é apreciada nos termos do artigo 487.º do Código Civil”, sendo que “[s]e houver pluralidade de responsáveis, é aplicável o disposto no artigo 497.º do Código Civil”, resultando ainda do seu art. 06.º que consideravam-se como ilícitos “… os atos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os atos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração …”.

VI. Cientes deste quadro normativo temos que um facto é ilícito quando o ato/omissão se traduz numa negação dos valores tutelados pela ordem jurídica de que adveio a violação de direitos de outrem e/ou de disposições legais emitidas com vista à proteção de interesses alheios.

VII. Mas não basta a verificação de uma qualquer ilegalidade para haver ilicitude já que para o seu preenchimento exige-se, pelo menos, que o fim das normas violadas seja também o da defesa do lesado, que haja violação de direitos subjetivos e outras posições jurídicas subjetivas que justifiquem o pagamento duma indemnização.

VIII. E, tal como vem sendo sustentado por este Supremo, o conceito de “ilicitude” que se mostra acolhido no art. 06.º do citado DL é mais abrangente que o estabelecido no art. 483.º do CC visto que neste o dever de indemnizar só nasce se o facto ilícito decorrer de uma violação, com dolo ou mera culpa, de uma disposição legal destinada a proteger os interesses de terceiros, ao passo que naquele se considera ilícito não só o ato/conduta que viole estas disposições legais, mas também aquele que viole as normas regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e, bem assim, as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração [cfr., entre outros, os Acs. deste STA de 23.10.2008 - Proc. n.º 0264/08, de 04.11.2008 - Proc. n.º 0104/08, de 15.03.2012 - Proc. n.º 0215/10, de 26.04.2012 - Proc. n.º 0738/10, de 26.04.2012 - Proc. n.º 094/12, de 26.09.2013 - Proc. n.º 09/12, de 10.09.2014 - Proc. n.º 0812/13 in: «www.dgsi.pt/jsta» - sítio a que se reportarão todas as demais citações de acórdãos deste Tribunal sem expressa referência em contrário].

IX. Para além disso a conduta do agente geradora do dano tanto pode consistir num comportamento positivo como numa omissão [cfr. art. 486.º CC], pelo que os citados preceitos abrangem não só os atos materiais e omissões que ofendam direitos de terceiros ou disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, como, ainda, os atos ou omissões que ofendam as “regras técnicas e de prudência comum” ou o dever geral de cuidado que devam ser tidos em consideração.

X. Daí que, desde que exista o dever legal de atuar, a omissão dos atos devidos é suscetível de determinar a obrigação de reparar o dano causado.

XI. Discute-se nos autos a existência de comportamento omissivo por parte dos serviços da Conservatória do Registo Predial [CªRP] de Salvaterra de Magos ao não haverem atentado na duplicação havida na descrição predial, mantendo a descrição n.º 00126/030686 correspondente a prédio que já não tinha existência física, comportamento esse que, contendendo ou pondo em causa aquilo que são princípios, papel e função do registo predial, terá permitido que a venda aos AA., aqui recorridos, se pudesse ter concretizado e produzido danos aos mesmos cuja reparação aqueles reclamam.

XII. Resulta da análise da factualidade apurada [cfr. n.ºs I), II), III), IV), V), VI), VII), e XIII)] e toda a documentação junta aos autos que:
- o prédio objeto da descrição em questão [n.º 00126/030686 da CªRP Salvaterra de Magos], da freguesia dos Foros de Salvaterra de Magos, foi inicialmente transcrito do prédio descrito sob o art. 5037 da CªRP de Benavente [donde a CªRP de Salvaterra de Magos foi desanexada] e inscrito na matriz sob o art. 15º da Secção BG, com a área de 25.680 m2;
- o mesmo prédio, por escritura pública de 13.05.1981 [objeto de escritura de retificação em 30.09.1983], foi objeto de divisão em dois prédios distintos, um com a área de 14.842,88 m2 [que ficou a pertencer a C…………… e esposa] e o outro com a área de 10.837,12 m2 [que passou a pertencer a E………. e esposa], sendo que estes prédios foram descritos na CªRP de Benavente sob os n.ºs 14.780 e 14.230 e deram origem, respetivamente, às descrições n.ºs 00128/060686 e 00232/160986 da CªRP de Salvaterra de Magos, descrições estas que correspondiam na matriz ao mesmo art. 15.º da Secção BG;
- aquando da divisão e desanexação não foi feita a inutilização da descrição n.º 5.037 da CªRP de Benavente por total desanexação da área do prédio e foi criada a descrição n.º 00126 pela CªRP de Salvaterra de Magos com base em certidão passada em 24.03.1986 pela CªRP de Benavente, sendo que de ambas as descrições dos prédios com os n.ºs 00128 e 00232, realizadas já no ano de 1986 pela CªRP de Salvaterra de Magos, consta que faziam parte do art. 15.º da Secção BG da matriz e que foram desanexados daquele n.º 5.037;
- a descrição n.º 00126 em questão foi, ainda, objeto de sucessivas apresentações e averbamentos, derivando, mormente dos realizados em 1989, 1990, 1993, que o prédio alvo da mesma fazia parte da matriz do art. 15.º da Secção BG e passando a “MISTO - Lentrisqueira - 25.680 m2, em parte do qual se encontra edificada uma casa de rés-do-chão …”;
- os AA., em 02.06.1998 e através de escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Salvaterra de Magos, compraram o prédio que se mostrava descrito sob o n.º 00126 da CªRP de Salvaterra de Magos, com a área de 25.680 m2 e inscrito na matriz sob o art. 15.º da Secção BG, para o efeito tendo sido exibida “certidão expedida pela Conservatória do Registo Predial deste concelho em 14 de maio do corrente ano, comprovativa da descrição e inscrições atrás citadas” e “caderneta cadastral, expedida pela Repartição de Finanças de Salvaterra de Magos em 25 de maio do corrente ano, comprovativa da situação matricial da parte rústica do prédio”, aquisição essa que foi objeto de registo pela inscrição G-6, mediante ap. 02/980702.

XIII. A pretensão dos AA. radica na imputação ao R. [no caso, aos seus serviços de registo predial em referência] de conduta atentatória da função publicitária do registo e que os terá induzido em erro na formação da decisão de aquisição de bem imóvel cuja inscrição registal ou tabular não constava qualquer indicação ou advertência de duplicação de descrição.

XIV. A necessidade pública de ser conhecida a situação jurídica dos prédios e, assim, potenciar maiores níveis de segurança e de confiança nas transações levadas a cabo no âmbito do trato/comércio jurídico que os tenham por objeto gerou a necessidade de criação e de implementação de registos jurídicos públicos.

XV. Como sustenta J.A. Mouteira Guerreiro “[o]s registos surgem-nos … como ferramentas não só concebidas, mas verdadeiramente aptas e idóneas para tornar públicos e salvaguardar os direitos, identificar as situações jurídicas e permitir que o público em geral tenha acesso à informação que deles consta, presumindo-se legalmente que ela é válida e verdadeira. (…) A publicidade que os registos públicos conferem não é, pois, uma publicidade qualquer, apenas geradora da notícia da existência dos direitos ou também das «razões de ciência» que os baseiam. É sim uma publicidade que gera efeitos quanto à cognoscibilidade da existência desses direitos. (…) Os registos destinam-se, portanto, a tornar públicas as situações jurídicas - «objeto da publicidade registal são as situações jurídicas» - e de modo a que tal publicitação possa ser geradora de efeitos de direito. Contribuem assim para alcançar, de um modo que vem sendo progressivamente aperfeiçoado, um dos valores fundamentais da ordem jurídica, qual seja o do conhecimento, da certeza e ainda, em certos casos, da inquestionabilidade das situações que realmente vão sendo constituídas”, sendo que, no que concretamente diz respeito ao registo predial, “a certeza jurídica que pode conferir é sobretudo importante para a realização das transações imobiliárias - sua fiabilidade, estabilidade e segurança - bem como para o crédito hipotecário, que poderá ser tanto mais facilitado, eficiente e «barato» quão mais aperfeiçoado e garantido for o sistema de registo” [em: “Publicidade e princípios do registo”, in: “Temas de Registo e Notariado”, 2010, págs. 18/20].

XVI. Assim, o registo predial, destinando-se a fornecer em termos gerais informação ao público, deve ser e mostrar-se organizado em moldes que permitam a obtenção de conhecimento fiável, assegurando, dessa forma e tal como deriva do art. 01.º do Código Registo Predial [CdRP] [aprovado pelo DL n.º 224/84, de 06.07, vigente desde 01.10.1984 e, assim, disciplinador em grande medida e no que releva da situação vertente - cfr. seus arts. 01.º, 04.º, 09.º e 10.º], a “publicidade à situação jurídica dos prédios” e “tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário” [cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 12.01.2012 (Proc. n.º 74/1999.P1.S1) e de 23.02.2016 (n.º 1/2017 - Unif. Jurisprudência - Proc. n.º 1373/06.7TBFLG.G1.S1-A, publicado in: DR I Série, n.º 38, de 22.02.2017) e doutrina nos mesmos citada, acórdãos estes disponíveis ambos in: «www.dgsi.pt/jstj» - sítio a que se reportarão todas as demais citações de acórdãos daquele Tribunal sem expressa referência em contrário], porquanto “a finalidade primária da publicidade registal parece consistir na proteção do tráfego e na agilização e facilitação das transações imobiliárias «ao suprir com a garantia dada pela consulta de um registo público, as complexas indagações sobre a titularidade dos direitos que, de outro modo, seria necessário levar a cabo»”, presente que a segurança registal, mais do que mera segurança estática, assume-se muito como uma segurança dinâmica, na medida em que o registo visa a certeza do tráfico jurídico [cfr. Isabel Pereira Mendes, in: “Estudos sobre Registo Predial”, págs. 47 e 48].

XVII. A fé pública do registo estriba-se ou radica na conformidade daquele com a situação jurídica substantiva do imóvel, a ponto de a desconformidade entre tais realidades lesar ou afetar a dita fé pública do registo, o que terá lugar sempre que exista uma situação de inexatidão, ocorrência que nos convoca para a necessidade de análise do conteúdo do registo.

XVIII. Ora presente que o registo predial é um registo de base real, já que assente na realidade do prédio, na anotação de todos os factos respeitantes ao mesmo e de que decorram situações jurídicas, importa que tenhamos em atenção que a descrição predial, regulada nos arts. 79.º e segs. do CdRP, tem por fim a identificação física, económica e fiscal de cada prédio, mediante a elaboração duma distinta descrição para cada um, e na qual se recolhem dados de facto relativos ao prédio objeto de descrição tal qual o mesmo é.

XIX. Como afirmam a este propósito Rui Januário e António Gameiro “a descrição de um prédio nunca se repete”, sendo que a mesma “não deve repetir-se, e deve concentrar toda a história jurídica do prédio” [in: “Direito Registral Predial”, «Quid juris» 2016, pág. 222].

XX. É, aliás, com cada descrição que se inicia a história tabular de cada prédio ou bem imobiliário, observando-se, assim, princípio basilar do sistema de registo correspondente à máxima “a cada prédio sua descrição” [vide n.º 2 do citado art. 79.º e mesmo nas situações de descrição subordinada, previstas no art. 81.º (propriedade horizontal e direito de habitação periódica), em que existe uma descrição genérica do prédio ou do empreendimento turístico, é feita uma descrição distinta para cada fração autónoma ou unidade de alojamento ou apartamento], visto cada bem imobiliário constituir uma unidade registal e o elemento básico sobre o qual se centram todos os direitos suscetíveis de serem inscritos.

XXI. Devendo a descrição reproduzir o prédio ou o imóvel em correspondência com aquilo que é a sua efetiva realidade e existência temos que se ocorrer situação de duplicação de descrições conducente, mormente à inexistência do prédio, de tal realidade também deve dar-se conta ao público, alertando-o, de molde a que a confiança e segurança do comércio jurídico não saiam ainda mais beliscadas.

XXII. O fenómeno da duplicação de descrições representa, tal como é afirmado pelo então Conselho Técnico [CT] [atual Conselho Consultivo (CC)] do Instituto dos Registos e do Notariado [«IRN»], “a negação da própria essência do sistema de registo - em vez de instrumento ao serviço da segurança do comércio jurídico imobiliário, é o instituto a funcionar, para o prédio «atingido», como fator de incerteza e perturbação, e é-o tanto mais quanto é certo que quase sempre as descrições concorrentes se tornam em algum momento (quando não desde o princípio) em pólos de desenvolvimento de situações jurídicas conflituantes” [cfr., entre outros o Parecer daquele «CT», datado de 16.11.2011 e objeto de homologação de 02.12.2011, proferido no Proc. n.º RP 87/2011-SJC-CT e acessível para consulta em «www.irn.mj.pt/IRN/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/»] [vide também Parecer do atual «CC/IRN», datado 29.05.2014 e objeto de homologação de 30.05.2014, proferido no Proc. n.º RP 29/2014-STJ-CC e acessível para consulta no mesmo sítio] constituindo “«(…) um mal» e já foi considerada como «o inimigo público n.º 1 do registo», uma «erva daninha» que urge arrancar e mesmo, nas palavras de um autor espanhol, o «cancro» do registo” ou que “mina a pedra angular do registo e compromete inelutavelmente a função da descrição, criando uma aparência contraditória em que o registo profere simultaneamente uma afirmação e o seu contrário” [cfr. o citado Ac. do STJ de 23.02.2016 - Proc. n.º 1373/06.7TBFLG.G1.S1-A], na certeza de que as causas do mesmo fenómeno podem ser as mais diversas, de natureza fortuita ou fraudulenta.

XXIII. A duplicação de descrições, não se mostrando definida pelo legislador, traduz-se na repetição da descrição de prédio, nomeadamente, seja pela abertura de descrição de prédio já descrito [duplicação originária], seja pela atualização de descrição de prédio de tal forma que o mesmo, até aí distinto, passou a corresponder a um prédio já descrito [duplicação superveniente], sendo que a resposta dada pelo CdRP à sua constatação ou verificação mostra-se inserta no seu art. 86.º que tem, aliás, por epígrafe “descrições duplicadas” e que funciona com um “alerta” para a dupla situação jurídica tabular do mesmo prédio.

XXIV. Deriva do preceito que “[q]uando se reconheça a duplicação de descrições, reproduzir-se-ão na ficha de uma delas os registos em vigor nas restantes fichas, cujas descrições se consideram inutilizadas” [n.º 1], sendo que “[n]as descrições inutilizadas e na subsistente far-se-ão as respetivas anotações com remissões recíprocas” [n.º 2].

XXV. Assim, constatada ou havendo suspeita da existência de descrições duplicadas importa “remediar logo que possível” a situação [cfr. J.A. Mouteira Guerreiro in: “Noções de Direito Registral (Predial e Comercial)”, 2.ª Ed., págs. 199/200; Parecer citado do «CC/IRN» de 29.05.2014 - Proc. n.º RP 29/2014-STJ-CC], importando “dar imediato remédio ao erro” de modo a que, logo que seja verificado, o conservador declare “a duplicação por averbamento (oficioso, e gratuito) às descrições duplicadas, as quais ligará, indicando simultaneamente, a data da verificação do facto” e mediante “averbamento de ligação de descrições duplicadas”, o qual “deverá ser redigido, em termos que não conduzam à suposição de tratar-se de um averbamento de anexação“ [cfr. Rui Januário e António Gameiro in: ob. cit., págs. 222/223].

XXVI. Ou, nas palavras do então «CT/IRN», anotando-se “com remissões recíprocas às respetivas descrições e com o devido realce, as semelhanças que sejam detetadas na identificação dos prédios e que possam indiciar tratar-se de descrições total ou parcialmente duplicadas” [cfr. Parecer de 01.07.2003 - Proc. n.º RP 50/2003-DSJ-CT], presente que será através de inutilização da descrição e não do seu cancelamento dado este não ser possível porque “em princípio, nenhum prédio se extingue” e “qualquer prédio tem uma história fáctico-jurídica” [cfr. J.A. Mouteira Guerreiro in: ob. cit., 2.ª Ed., págs. 199/200; José Lorenzo González em “Inutilização da descrição predial devido à caducidade do alvará de loteamento” in: “Lusíada - Direito”, n.º 13 (2015), pág. 124].

XXVII. A anotação da circunstância relativa a eventual duplicação às (preexistentes) descrições “sob suspeita”, com remissões recíprocas, reproduzindo-se na ficha de uma delas os registos em vigor nas restantes, que se inutilizam, justifica-se em nome da transparência da situação jurídico-tabular do prédio, tanto mais que a nível registal o que se pretende “é alertar terceiros da existência de um duplo trato sucessivo ou para a probabilidade dessa existência” [cfr. citado Parecer do «CT/IRN» de 01.07.2003 - Proc. n.º RP 50/2003-DSJ-CT] ou, por apelo a outro discurso fundamentador, que o “aviso” ou “alerta” assim lançado tenha “pelo menos o mérito de assegurar que ninguém seja apanhado de surpresa na hipótese de a anunciada eventualidade afinal se confirmar, com todas as consequências (tabulares e extratabulares) daí emergentes” [cfr. Parecer do «CC/IRN» de 20.06.2013 - Proc. n.º RP 43/2013-SJC-CC consultável também no mesmo sítio; vide, também, Rui Januário e António Gameiro in: ob. cit., pág. 223].

XXVIII. Cientes dos considerandos acabados de desenvolver e que se mostraram necessários ao cabal e adequado enquadramento da situação sub specie temos que no caso, tal como se concluiu com pleno acerto na sentença recorrida, se verificam os requisitos ou pressupostos da ilicitude e da culpa.

XXIX. Com efeito, se é certo que até ao CdRP/84 não existia, na identificação dos prédios descritos, uma obrigatoriedade de indicação da respetiva área temos, todavia, que os elementos descritivos factuais quanto ao prédio em referência [que constavam das descrições tabulares relativas aos arts./n.ºs 5037, 14.230 e 14.780 da CªRP Benavente em conexão com o art. 15.º da Secção BG da matriz da freguesia de Foros de Salvaterra, elementos na posse, mormente da CªRP de Salvaterra de Magos uma vez desanexada da CªRP de Benavente, e com base nos quais, aliás, aquela procedeu às novas descrições prediais e às respetivas e sucessivas atualizações já em plena vigência e aplicação do referido CdRP/84 e que, assim, disciplina a situação], lhe permitiam ter “sinalizado” uma muito possível/provável duplicação de descrições prediais e, assim, obviar à situação que veio a ter lugar e que motivou o eclodir deste litígio.

XXX. Na verdade, ainda que as presunções emergentes do art. 07.º do CdRP não abranjam a descrição ou os fatores descritivos [como, por exemplo, as confrontações, ou as áreas, ou a natureza rústica, urbana ou mista, dos prédios], tal como tem sido jurisprudência consensual [cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 27.01.1993 in: CJ/ASTJ, Ano I, Tomo I, págs. 100 e segs., de 17.06.1997 in: CJ/ASTJ, Ano V, Tomo II, págs. 126 e segs., e de 27.03.2014 - Proc. n.º 555/2002.E2.S1], tanto mais que a geometria dos prédios está ainda dependente, quase exclusivamente, da livre atuação dos particulares e, nessa medida, inexistir “fiabilidade” quanto ao elemento área de cada prédio, temos, não obstante, que o R., através dos seus serviços de registo predial em referência, dispunha ou tinha na sua posse elementos factuais e descritivos que lhe teriam permitido sinalizar tal duplicação uma vez presente a área do art. 15.º da Secção BG da matriz da freguesia de Foros de Salvaterra [no caso 25.680 m2] descrito na CªRP de Benavente sob o n.º 5.037 [e que deu origem à descrição com n.º 126/030686 da CªRP de Salvaterra de Magos] no seu confronto com aquilo que veio a ser a divisão do mesmo prédio operada em 1981 e que gerou a criação das descrições sob os n.ºs 14.230 [com 10.837,12 m2] e 14.780 [com 14.842,88 m2] ambos da CªRP Benavente [e que deram origem, respetivamente, na CªRP de Salvaterra de Magos, às descrições sob os n.ºs 00128/060686 e 00232/160986], já que com aquela divisão se mostrava esgotada totalmente a área do prédio.

XXXI. Aquando da divisão e desanexação realizadas não foi feita a inutilização da descrição n.º 5.037 logo pela CªRP de Benavente por total desanexação da área do prédio e, em 1986, foi criada a descrição n.º 00126/030686 pela CªRP de Salvaterra de Magos, com base em certidão passada em 24.03.1986 pela CªRP de Benavente, sendo que de ambas as descrições dos prédios com os n.ºs 00128/060686 e 00232/160986, realizadas também no ano de 1986 pela CªRP de Salvaterra de Magos, consta que faziam parte do art. 15.º da Secção BG da matriz e que foram desanexados daquele n.º 5.037.

XXXII. Para além disso, a descrição n.º 00126/030686 em questão foi, ainda, objeto de sucessivas apresentações e averbamentos, derivando, mormente dos atos realizados em 1989, 1990, 1993, que o prédio alvo da mesma fazia parte da matriz do art. 15.º da Secção BG e passando a “MISTO - Lentrisqueira - 25.680 m2, em parte do qual se encontra edificada uma casa de rés-do-chão …”, sem que, também nesses momentos, se haja atentado na existência da duplicação de descrições ou na sua possibilidade.

XXXIII. Refira-se que a aquisição por parte dos AA. do prédio descrito sob o referido n.º 00126/030686 da CªRP de Salvaterra de Magos [com a área de 25.680 m2 e inscrito na matriz sob o art. 15.º da Secção BG], operou não em 1993 como sustenta o R., mas antes em 02.06.1998, data da outorga da escritura pública no Cartório Notarial de Salvaterra de Magos, para o efeito tendo os mesmos exibido “certidão expedida pela Conservatória do Registo Predial … em 14 de maio do corrente ano, comprovativa da descrição e inscrições atrás citadas”, e sendo que tal aquisição só foi objeto de registo pela inscrição G-6, mediante ap. 02/980702, e não, como afirma o R., em 1993 pelo av. 4 mediante ap. 05/030713.

XXXIV. Tal comportamento e atuação havidos no âmbito dos serviços do R., mormente, na CªRP de Salvaterra de Magos, omitindo, à luz do art. 86.º do CdRP, a atuação e os procedimentos oficiosos de inutilização devidos em termos de atuação quanto à sinalização da situação de duplicação de descrição respeitante ao prédio descrito sob o referido n.º 00126/030686, revela-se violador das regras de ordem técnica e de prudência comum que tinham obrigação de conhecer e de adotar.
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XXXV. O R., através dos seus funcionários e agentes, não cumpriu, cabalmente, os deveres que lhe competiam em matéria do sistema público de registo [no caso, do registo predial] com vista a garantir a segurança no comércio imobiliário, assegurando aos interessados que, sobre os bens a que aquele instituto se aplica, não existem outros direitos senão aqueles que o registo documenta e publicita, pelo que se tem como ilícita a sua conduta à luz do art. 06.º do DL n.º 48051.

XXXVI. E, perante as circunstâncias do caso concreto, nos termos do art. 04.º do mesmo DL, também aquela atuação/comportamento do R., desenvolvido e que perdurou ao longo do tempo, se mostra censurável por não ter sido usada a diligência devida por parte dos seus funcionários ou agentes típicos [zelosos e respeitadores da lei e dos regulamentos], adotando os procedimentos e os atos que seriam no caso adequados e devidos em termos duma atempada sinalização e da necessária e célere inutilização da situação de descrição duplicada, sinalização e reconhecimento dessa situação que apenas logrou ocorrer já depois da produção do facto danoso, em 01.06.2001, através da informação inserta a fls. 48/51 dos autos e em resposta a exposição que foi dirigida aos serviços.

XXXVII. Note-se que, face à definição ampla de ilicitude que vimos constar do art. 06.º do DL n.º 48051, a jurisprudência tem considerado ser difícil estabelecer uma linha de fronteira entre os requisitos da ilicitude e da culpa, afirmando que, estando em causa a violação do dever de boa administração, a culpa assume o aspeto subjetivo da ilicitude [cfr., entre outros, o Ac. deste Supremo de 09.10.2012 (Proc. n.º 0565/12), bem como demais jurisprudência e doutrina nele convocadas], que se traduz na culpabilidade do agente por ter violado regras jurídicas/técnicas ou de prudência que tinha obrigação de conhecer ou de adotar, na certeza de que, no caso de serviços prestados por entidades/pessoas coletivas, a noção de culpa, por deficiência no seu funcionamento normal, reveste caráter relativo, não dependendo da prova concreta de um comportamento individual censurável.

XXXVIII. A falta de sinalização ou de alerta para a existência de situação de duplicação de descrições e a omissão da adoção dos atos e procedimentos de inutilização da descrição tal como previsto no art. 86.º do CdRP são, pois, imputáveis ao R. [aos seus serviços de registo predial], comportamentos com os quais se inutilizou a função publicitária do registo, contribuindo para a indução em erro dos AA. na aquisição de prédio inexistente dado, certamente, se a duplicação das descrições tivesse sido sinalizada em devido tempo os mesmos teriam obviado à aquisição.

XXXIX. Aliás, de notar que tal como se afirmou no acórdão uniformizador do STJ de 23.02.2016, atrás citado, com apelo também a entendimento doutrinal que ali convoca, “«os registos públicos estão instituídos para dar a conhecer. Logo, a sua existência justifica-se na necessidade de proteger a confiança de terceiros, isto é, do público em geral, o que é claramente sinónimo de interesse público»”, termos em que “quem consulte o registo predial e encontre descrito o prédio que, por hipótese, pretende comprar, e nessa descrição encontre inscrito como proprietário quem nas negociações que, porventura, já iniciou assumiu o papel de potencial vendedor não tem o ónus de consultar todo o registo para verificar se existe ou não uma duplicação da descrição”, já que se deve “poder confiar na aparência criada por este sistema público de registo. E isto é exato, tanto para quem encontre uma das descrições, como para quem se fie na outra descrição do que é, no fim de contas, um mesmo prédio”.

XL. E, mais à frente, refere ainda se “quem consulta o registo e encontra uma ficha e a descrição de um prédio estará para este efeito de boa fé se ignorar a existência de outra descrição” também mesmo que “conheça a existência de outra descrição (ou por já ter sido aplicado o artigo 86.º se aperceba na mesma descrição da existência de dois tratos sucessivos paralelos) pode não ter meio de determinar qual das descrições corresponde à realidade extra tabular” pelo que “[a]figura-se (…) que só estará de má fé quem seja responsável pela criação fraudulenta da situação de duplicação das descrições ou quem tenha, pelo menos, conhecimento dessa fraude”.

XLI. Mostram-se, por conseguinte, preenchidos os requisitos da ilicitude e da culpa tal como se concluiu com acerto na sentença recorrida, não assistindo razão ao R., aqui recorrente, nas críticas que lhe dirige.

XLII. E o mesmo importa concluir quanto ao preenchimento in casu do pressuposto da responsabilidade civil relativo aos danos [cfr. arts. 562.º, 566.º e segs., e 496.º do CC].

XLIII. Para que exista obrigação de indemnizar é condição essencial que o facto ilícito e culposo tenha gerado um prejuízo a alguém, sendo a indemnização deve, sempre que possível, reconstituir a situação que existiria se não tivesse ocorrido o facto danoso (situação hipotética) [cfr. arts. 562.º, 563.º e 566.º do CC].

XLIV. O dever de indemnizar compreende não só os danos patrimoniais, mas também os danos não patrimoniais, importando quanto a estes atender, no plano interno, também ao regime legal que decorre do art. 496.º do CC.

XLV. Decorre deste preceito que na fixação da indemnização deve atender-se aos “danos não patrimoniais” que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito [n.º 1], sendo o montante fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494.º, isto é, tomando em consideração o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso [n.º 3].

XLVI. Resulta, assim, que o julgador nacional, para a decisão a proferir no que respeita à concreta valoração pecuniária dos “danos não patrimoniais” em questão, em cumprimento do normativo legal que o manda julgar e de harmonia com a equidade, deverá atender aos fatores expressamente referidos na lei e, bem assim, a outras circunstâncias que emergem da factualidade provada.

XLVII. Tudo com o objetivo de, após a adequada ponderação, poder concluir a respeito do valor pecuniário que considere justo para, no caso concreto, compensar o lesado ou os lesados pelos danos não patrimoniais sofridos com a lesão do seu direito.

XLVIII. A lei não enuncia ou enumera quais os “danos não patrimoniais” indemnizáveis antes confiando aos tribunais, ao julgador, o encargo ou tal tarefa à luz do que se disciplina no citado art. 496.º, n.º 1, do CC.

XLIX. Tal como constitui entendimento comum, ao nível doutrinal e jurisprudencial, a gravidade do dano, devendo levar em conta as circunstâncias do caso concreto, há-de medir-se por um padrão objetivo e não à luz de fatores subjetivos, ou de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada da pessoa do lesado [cfr., nomeadamente, Pires de Lima e Antunes Varela in: “Código Civil Anotado”, vol. I, 4.ª edição, nota 1, pág. 499; Antunes Varela in: ob. cit., pág. 606; e os Acs. deste STA de 22.04.2005 (Proc. n.º 0197/15), de 31.05.2005 (Proc. n.º 0127/03), de 29.06.2005 (Proc. n.º 0395/05), de 08.11.2007 (Proc. n.º 0643/07), de 14.07.2008 (Proc. n.º 0572/07), de 01.10.2008 (Proc. n.º 063/08), de 12.11.2008 (Proc. n.º 0682/07), de 20.01.2010 (Proc. n.º 01042/09), de 02.11.2011 (Proc. n.º 0953/10), de 12.04.2012 (Proc. n.º 0798/11), de 21.03.2013 (Proc. n.º 01239/12), de 30.06.2016 (Proc. n.º 0219/16)].

L. Pode ler-se, nomeadamente no acórdão deste Supremo de 31.05.2005 [Proc. n.º 0127/03 supra referido], que a “personalidade física e moral dos indivíduos é protegida por lei contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa ilícita - artigo 70.º do CC. (…) Por isso, em princípio, a dor moral causada por facto ilícito é abrangida pelo n.º 1 do artigo 496.º. (…) Mas pode não acontecer. Suponha-se uma dor insignificante, uma simples maçada ou incómodo, que um cidadão comum retém como inerente às vicissitudes normais da vida em sociedade. Não atingirá, neste caso, a gravidade merecedora da tutela do direito, em sede de atribuição de indemnização por danos não patrimoniais”.

LI. Centrando-nos, no caso vertente, na análise deste requisito importa determinar/apurar da sua existência e para concluir que os factos apurados e julgamento de facto realizado [cfr. n.ºs XI) e XII)], julgamento esse aqui não impugnado/sindicado, permitem fundar um juízo positivo de preenchimento do requisito do dano na vertente dos danos não patrimoniais.

LII. Com efeito, extrai-se da factualidade apurada a produção por parte do facto ilícito da perda da alegria de viver e duma vivência em permanente angústia por parte dos AA. tal como é reconhecido por familiares e amigos, em decorrência de toda a situação que se gerou com a constatação da duplicação de descrições prediais e da perda do prédio que haviam adquirido já firmada por decisão judicial, realidade essa que se configura como dano de natureza não patrimonial e que atingiu o substrato de relevância exigido pelo art. 496.º do CC em termos de gravidade, razão pela qual soçobram as críticas avançadas pelo recorrente, presente que nenhum reparo foi feito pelo mesmo ao quantum debeatur arbitrado a este título.

LIII. Invoca o R./recorrente a inexistência de nexo de causalidade entre o comportamento/atuação do R. e os prejuízos gerados na esfera jurídica dos AA. [cfr. art. 563.º do CC], pelo que sobre o mesmo não recai qualquer obrigação de indemnizar tais prejuízos.

LIV. Deriva daquele normativo, enquanto preceito no qual se estabelece o regime do nexo de causalidade em matéria de obrigação de indemnizar, que a esta “só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.

LV. Consagra-se no referido artigo, tal como tem vindo a ser entendido na doutrina e na jurisprudência, a teoria da causalidade adequada na sua formulação negativa, teoria justificada pela ideia de que o prejuízo deve recair sobre quem, agindo ilicitamente, criou a condição do dano, pelo que o facto ilícito que, no caso concreto, foi efetivamente condição do resultado danoso só deixa de ser causa adequada se, na ordem natural das coisas, for de todo em todo indiferente para a produção do dano [cfr., ente outros, Acs. deste STA de 16.05.2006 (Proc. n.º 0874/05), de 14.10.2009 (Proc. n.º 0155/09), de 08.09.2011 (Proc. n.º 0858/10), de 22.11.2011 (Proc. n.º 0628/11), de 13.03.2012 (Proc. n.º 0477/11), de 24.04.2013 (Proc. n.º 0183/13), de 25.03.2015 (Proc. n.º 01932/13), de 19.05.2016 (Pleno) (Proc. n.º 0576/10), de 22.03.2017 (Proc. n.º 01356/14)].

LVI. Tal como afirma Antunes Varela “só quando para a verificação do prejuízo tenham concorrido decisivamente circunstâncias extraordinárias, fortuitas ou excecionais (que tanto poderiam sobrevir ao facto ilícito como a um outro facto lícito) repugnará considerar o facto (ilícito) imputável ao devedor ou agente como causa adequada do dano” [in: “Das Obrigações em Geral”, 10ª Ed., pág. 894].

LVII. Daí que, nesta vertente, a causalidade adequada não pressupõe a exclusividade do facto condicionante do dano, porquanto como sustenta o Autor acabado de citar “[p]ara que haja causa adequada, não é de modo nenhum necessário que o facto, só por si, sem a colaboração de outros, tenha produzido o dano” visto que “[e]ssencial é que o facto seja condição do dano, mas nada obsta a que, como frequentemente sucede, ele seja apenas uma das condições desse dano” já que “[n]ada impede mesmo que as outras condições do efeito danoso consistam num facto fortuito ou até num ato doloso ou negligente de terceiro”, e sendo que a causalidade adequada “não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu ao dano. (…) É esse processo concreto que há-de … caber aptidão geral ou abstrata do facto para produzir o dano …” [in: ob. cit., págs. 894/895 (nota 1)/896].

LVIII. Frise-se, ainda, que para que um dano seja considerado como efeito adequado de certo facto não é necessário que ele seja previsível para o autor do facto, sendo, todavia, essencial que o facto constitua em relação ao dano uma causa objetivamente adequada.

LIX. Cientes dos considerandos acabados de expender temos que na situação sub specie também este pressuposto se deve ter como verificado.

LX. É certo que a intervenção ilícita e dolosa dos vendedores, mormente no ato jurídico da compra e venda, funcionou como causa próxima produtora dos danos na esfera jurídica dos AA..

LXI. Ocorre, no entanto, que, no caso, aliada a tal realidade causal nos deparamos, por um lado, com a existência de uma conduta geradora da duplicação de descrições registais imputável, como vimos, ao R., em infração e inutilização da função publicitária do registo predial e que permitiu fundar a convicção, mormente dos AA., quanto à existência de um prédio que, na realidade, inexistia, induzindo assim aqueles em erro ou pelo menos o permitindo.

LXII. Conduta esta a que, por outro lado, se adiciona ainda uma outra, desenvolvida no âmbito da atividade de prestação de informação/certificação e corporizada na emissão de certidão a solicitação dos AA. feita pela própria CªRP, previamente à outorga da escritura pública de compra e venda, e na qual se certificou/atestou, de novo erradamente, a existência de prédio inexistente, cientes de que sem a apresentação daquela certidão a celebração daquele negócio jurídico não teria tido lugar e de que também certamente os AA. não teriam avançado para aquela celebração e outorga se o teor da certidão os alertasse para a duplicação ou possível duplicação de descrições registais.

LXIII. Assim, encontrando-se provado que a atuação do R. foi ilícita e culposa e de que a mesma no plano naturalístico tinha, de harmonia com o exposto, aptidão para originar os danos gerados peticionados, isto é, de que foi também sua condição e de que se não provou que tais danos só se produziram em virtude de outras circunstâncias extraordinárias, forçoso é concluir que se verifica o nexo causal entre o comportamento/atuação do R. e as consequências danosas produzidas na esfera jurídica patrimonial e não patrimonial dos AA., estando aquele solidariamente obrigado a indemnizar estes [cfr. arts. 483.º, 486.º, 497.º, 562.º, 566.º do CC], na certeza de que nada resulta demonstrado nos autos que a situação e esfera jurídica dos AA. haja sido objeto de reconstituição em decorrência do julgado na ação judicial que correu termos sob o n.º 251/99 no então 2.º Juízo TJ de Benavente e/ou da atuação dos vendedores.

LXIV. Deste modo, verificando-se o necessário nexo de causalidade entre a conduta ilícita e culposa desenvolvida pelo R. e os prejuízos alegados e provados pelos AA., improcede totalmente o recurso jurisdicional interposto pelo R..

4. DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em negar total provimento ao recurso jurisdicional interposto pelo R., mantendo a sentença recorrida.
Não são devidas custas neste Supremo dada isenção subjetiva de que gozava e ainda goza o R. [cfr. art. 02.º, n.º 1, al. a), do então CCJ (na redação inserta no DL n.º 224-A/96 com a redação dada pelo DL n.º 320-B/2000), então vigente à data da propositura da ação, e art. 08.º, n.º 4, da Lei n.º 7/2012, de 13.02].
D.N.





Lisboa, 04 de Outubro de 2017. – Carlos Luís Medeiros de Carvalho (relator) – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano – Jorge Artur Madeira dos Santos.