Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0988/12
Data do Acordão:02/06/2013
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FERNANDA MAÇÃS
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO FISCAL
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO
APLICAÇÃO DA LEI MAIS FAVORÁVEL
Sumário:I - Estando em causa a aplicação de uma contra-ordenação por infracção a normas do Código do IRC e do IVA, o regime aplicável ao prazo de prescrição não é o das dívidas tributárias, mas sim o das contra-ordenações, constante do RGIT.
II - Embora o regime do RGIT não estivesse em vigor à data da prática das infracções, em matéria de direito sancionatório, vale o princípio constitucional da aplicação do regime globalmente mais favorável ao infractor que, embora apenas previsto expressamente para as infracções criminais (art. 29º, nº 4, da CRP), é de aplicar analogicamente aos demais direitos sancionatórios.
Nº Convencional:JSTA00068100
Nº do Documento:SA2201302060988
Data de Entrada:09/25/2012
Recorrente:A..., LDA
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF LEIRIA
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR FISC - CONTRA ORDENAÇÃO TRIB
Legislação Nacional:RFGIFNA90 ART33 N1 ART33 N3
DL433/82 DE 1982/10/27 ART28 N1 ART55 N1 C
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC01017/06 DE 2004/11/30
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo


I-RELATÓRIO

1. A……., S.A., identificada nos autos, deduziu impugnação judicial da decisão da Autoridade Administrativa, que a condenou em coima, nos termos dos artigos 84º, 71º-6, 26º, 20º-1-a) do CIVA, 17º, 18º, 20º, 23º, 34º e 35º do CIRC, 98º e 99º do CIRS, 34º e 29º do RGIFNA e 114º e 119º do RGIT e custas, no TAF de Leiria, que foi julgada improcedente.

2. Não se conformando com a decisão, a arguida veio interpor recurso para este STA, formulando as seguintes conclusões das suas alegações:
“1. De acordo com o vertido no processo de contra ordenação em apreço, a recorrente terá praticado as alegadas infracções, durante o ano de 2000.
2. Por esta via, ao caso é aplicável o regime de prescrição das dívidas tributárias — art.°s 48.° e 49.°da LGT (regime anterior).
3. A recorrente deduziu impugnação judicial em 2005, tendo o referido processo estado parado por mais de um ano.
4. A paragem do processo por período superior a um ano por facto não imputável ao sujeito passivo faz cessar a interrupção, somando-se, neste caso, o tempo que decorrer após esse período ao que tiver decorrido até à data da autuação.
5. Entre a prática do facto tributário sujeito a imposto, e a notificação ao arguido da presente contra ordenação, decorreram já mais de oito anos, pelo que resulta evidente que ocorreu a prescrição do presente procedimento, motivo pelo qual deverá a coima estabelecida ser revogada.
Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente, concluindo-se pela anulação da douta sentença proferida pelo Meritíssimo Juiz a quo e, em consequência, absolvendo-se a recorrente do processo de contra ordenação em crise, anulando-se a coima fixada, fazendo-se assim Justiça!”

3. O Exmo. Magistrado do Ministério Público, junto deste Supremo Tribunal, remeteu parecer para o já emitido pelo Ministério Público junto do TAF de Leiria, que apresentou a sua resposta, conforme o que se segue:
“A arguida A…… Lda. veio recorrer da douta sentença que confirmou a decisão administrativa que a condenou na coima de 5.904,69€ alegando, unicamente que ocorreu a prescrição das contra-ordenações pelas quais foi condenado, pelo facto de a interrupção da contagem do prazo de prescrição ter terminado por o processo de impugnação da matéria tributária de base ter estado parado por mais de um ano, razão pela qual, por aplicação dos arts. 48° e 49° da LGT, o prazo máximo da prescrição, de 8 anos, já decorreu.
Não parece ter razão.
Por um lado, porque o prazo de prescrição das contra-ordenações não era de 8 anos à data dos factos, em 2000, mas sim de 5 anos, de acordo com o art. 119° da LGT, então em vigor (entre o fim da legislação anterior a esse respeito, o art. 35° no 1 do CPT, em 1999, e o início de vigência do art. 33° n° 1 do RGIT, em 2001). Por outro, porque o art. 35° do CPT não foi revogado pelo Dec. Lei n° 398/98 de 17/12 que introduziu a LGT, vide o seu art. 2° n° 1. Finalmente porque aqui se trata de um caso de suspensão, vide n°2 do art. 35º referido, e não de interrupção da contagem do prazo de prescrição.
E certo que o n° 1 do art. 35° do CPT citado, foi tacitamente revogado pelo também já referido art. 119° da LGT, que manteve o prazo de prescrição das contra-ordenações em 5 anos, mas o n° 2 não o foi, nem expressa nem tacitamente, pelo se manteve (até à entrada em vigor do RGIT).
Ora, de acordo com essa norma, semelhante à do art. 33° n°3 do RGIT posterior, actualmente em vigor, a instauração de “processo judicial”, a impugnação deste caso, suspende a contagem do prazo de prescrição do procedimento contra-ordenacional (ou até, como se defende na douta sentença dos autos, tal resultará da aplicação do art. 27°-A n° 1 al. a) do RGCO).
Ora, não se toma necessário efectuar novas contas, de acordo com estes elementos, para calcular a contagem do prazo de prescrição, pois as mesmas já foram feitas, de uma forma correcta pelo Mm° Juiz “a quo”. Muito sinteticamente, o prazo de prescrição encontrou-se suspenso entre 22/11/2004 e 9/5/2011 pelas razões expostas e, não se contando tal prazo nesse período, respeitando as infracções ao ano de 2000, é manifesto que se não encontram prescritas.
Conclui-se pois, como na douta sentença recorrida, que não se verifica, no caso dos autos a pretendida prescrição das contra-ordenações devendo, pois, improceder o recurso apresentado”.

4. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II-FUNDAMENTOS

1-DE FACTO
A sentença recorrida fixou a seguinte matéria de facto:
“1) Em 25/10/2004, a Administração Tributária (AT) lavrou o auto de notícia de fls. 2-19, contra a arguida, relativamente a factos relativos a IVA de 2000 [2000/03T -4.108.89€; 2000/06T-4.208.78€; 2000/09T -4.000.38€; e 2000/12T -13.481.30€], IRC de 2000 [29.446.40€] e IRS de 2000 [JANEIRO a DEZEMBRO];
2) Em 02/11/004, a AA instaurou o presente processo de contra-ordenação (CO) —fls.1;
3) Em 29/04/005, a arguida interpôs recursos de impugnação das liquidações que tomou o n° 458/05.1BELRA — fls. 82, 37-38, 57/ss [não constando se foram instaurados outros processo de CO e eventual conexão nem a decisão da Impugnação 457/05.1 BELRA] e cuja sentença da impugnação 458/05.1BELRA transitou em julgado em 09/05/011 —fls. 65;
4) Em 22/11/004, a AA proferiu despacho de fls. 22, pelo qual determinou a suspensão do processo CO, nos termos do artigo 55, do RGIT;
5) Em 22/11/004, a AA remeteu ao conhecimento da arguida a comunicação de fls. 23, para conhecimento do despacho acabado de referir e de que o processo CO com base naquele auto de notícia, ficou suspenso, e de que seria comunicado o prosseguimento, cujo A/R, a fls. 23vº, foi assinado com a data de 29/11/004;
6) Em 03/08/005, a AA proferiu o despacho de fls. 31 [não consta referência a qualquer termo da ou das impugnações] a mandar notificar a arguida para exercer a defesa ou pagar voluntariamente;
7) Em 03/08/005, a AA remeteu ao conhecimento da arguida a comunicação do oficio 3147, de fls. 34, para exercer a defesa ou pagar voluntariamente, cujo A/R, a fls. 23vº, foi assinado com a data de «4/08/05») [devendo ler-se 04/08/005) (Sendo que, até 2031, tanto se pode ler o dia como ano, como o ano como dia; e o não uso de 3 dígitos na casa dos milhares lança confusão, escusada e eventualmente dispendiosa, evitando-se a mesma com os 3 dígitos.);
8) Em 13/10/005, a AA proferiu o despacho, de fls. 42, pelo qual determinou, de novo, a suspensão do processo CO, nos termos do artigo 55, do RGIT, referindo o 458/05.1BELRA;
9) Em 19/10/005, a AA remeteu ao conhecimento da arguida a comunicação do ofício 5471, de fls. 43, para conhecimento do despacho acabado de referir e de que o processo CO ficou suspenso, e de que seria comunicado o prosseguimento, cujo A/R, a fls. 43vº, foi assinado com a data de 20/10/05 (20/10/005);
10) Em 17/10/005, a AA proferiu a decisão condenatória de fls. 44 a 51, fixando as coimas de fls. 48 a 51, em sede de IVA e IRS;
11) Em 18/10/005, a AA remeteu ao conhecimento da arguida a comunicação do ofício 5472, de fls. 52, da decisão condenatória acabada de referir, para pagamento da coima ou impugnação da decisão, cujo A/R, a fls. 52vº foi assinado com data de 20/10/05 (20/10/005);
12) Em 22/12/005, a AA ordenou a extracção de “certidão de dívida” para cobrança coerciva — fls. 53 e 54;
13) Em 28/05/2007, a solicitou pelo ofício 2032, ao ERFP, diligência sobre o estado do processo de impugnação 458/05.1 BELRA — fls.55 a 81;
14) Em 24/10/011, o processo de CO foi remetido ao Director de Finanças — fls. 82;
15) Em 28/10/011, a AA proferiu a decisão condenatória, ora recorrida, de fls. 85 a 94, fixando a coima «descrita» de 5.904.69€, «como sendo mais benéfica ao sujeito passivo, por comparação entre o RJIFNA e o RGIT» e dizendo, entre o mais, «Conforme artigo 25 do RGIT, as contra ordenações em concurso, são cumuladas materialmente.»;
16) Em 11/11/011, a AA remeteu ao conhecimento da arguida a comunicação do ofício 4035, de fls. 95, da decisão condenatória acabada de referir, para pagamento da coima ou impugnação, cujo registo «RM238571303PT», fls. 95, tem carimbo de 11/11/011;
17) Em 05/12/011, a arguida apresentou o presente recurso — cfr “fax” fls. 106 e 126/ss;
18) Em 05/01/012, após análise da prescrição, a AA manteve a decisão —fls. 117 a 121.
Não há outros factos relevantes. Estes factos provados resultam dos documentos referidos, sendo que o auto de notícia faz fé juris tantum apenas quanto aos factos presenciados, das decisões e informações dos autos, criticamente apreciados, cuja autenticidade não é impugnada ou questionada [artigos 127, 164 e 169, 368/ss e 374, todos do CPP, 341/ss e 262/ss, estes do CO, e 32 e 41, 64, 66, 71, 72 todos do RGCO]”.


2- DE DIREITO

2.1. Vem o presente recurso interposto da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, em 14 de Maio de 2012, que julgou o recurso intentado pela ora recorrente contra a decisão de aplicação da coima referente ao processo de contra-ordenação nº 194504/600905, no valor de €5. 904, 69, acrescido das respectivas custas, por infracção dos arts. 84º, nº 1, 26º, nº 6, 71º, alínea a), nº 1 do art. 20º, do CIVA, e arts. 98º e 99º do CIRS, improcedente, por considerar não verificada a prescrição do respectivo procedimento.
Para tanto ponderou, entre o mais, o Mmº Juiz “a quo”:
· “(…) O regime aplicável é o do RGIT e, subsidiariamente (artigo 3º do RGIT), o RGCO, que remete (artigos 32 e 41) para o CP e o CPP (Código Penal e Código de Processo Penal.). O paradigma é, portanto, o do direito penal. A decisão impugnada não constitui decisão de tipo administrativo, mas antes “penal” e jurisdicional (…).
· “(…) O DL 15/2001, de 05/06 (RGIT), revogou expressamente a matéria CO e criminal que constava do seu Capítulo V [artigo 106/ss, a LGT], expurgando desta lei geral tributária a matéria de natureza penal, que ali se encontrava impropriamente arrumada.(…) A LGT não tem, assim, qualquer aplicação à prescrição CO.”
· “O procedimento por contra-ordenação extingue-se, por efeito da prescrição, logo que sobre a prática do facto decorram 5 anos [artigo 33-1, (idem 21-1) do RGIT]. Constando as datas referidas no probatório, referentes a 2000; 2000/03; 2000/06; 2000/09; 2000/12, Janeiro a Dezembro/2000, a consumação tem-se por verificada nas mesmas.
· “O prazo de prescrição interrompe-se e suspende-se nos termos estabelecidos na “lei geral”, mas a suspensão da prescrição verifica-se também por efeito da suspensão do processo, nos termos previstos no n° 2 do artigo 42, no artigo 47 e no artigo 74, e ainda no caso de pedido de pagamento da coima antes de instaurado o processo de contra-ordenação desde a apresentação do pedido até à notificação para o pagamento [artigo 33-3, (idem 21-4) do RGIT].
· “A suspensão e interrupção previstas na “lei geral”, na expressão do artigo 33 do RGIT, são as do RGCO, em particular dos artigos 27-A (suspensão) e 28 (interrupção da prescrição).
· “(…) Nos termos do artigo 55, do RGIT, só é legalmente possível proferir uma decisão se os factos sobre que a mesma se apoia forem seguros. Antes de os factos, que a decisão pressupõe, serem dados como certos e seguros, é contra-natura proferir decisão, pois também ela será incerta e insegura.
· “(…) Concluindo, o processo esteve suspenso entre 22/11/004 e 09/05/011 [trânsito em julgado].
· “Por sua vez, resulta do artigo 28, do RGCO, que a prescrição do procedimento por contra-ordenação se interrompe (a) com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomados ou com qualquer notificação; (b) com a realização de quaisquer diligências de prova, designadamente exames e buscas, ou com o pedido de auxílio às autoridades policiais ou a qualquer autoridade administrativa; (c) com a notificação ao arguido para exercício do direito de audição ou com as declarações por ele prestadas no exercício desse direito; (d) com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima. (…).
· “(…) Contado o prazo normal de 5 anos, desde 11/10/2000 tal prazo atingia-se em 11/10/005. Mas enquanto não foi proferida decisão judicial transitada no processo de recurso de impugnação referido, a AA estava legalmente impossibilitada de continuar o procedimento, o que, nos termos do citado artigo 27-A, do RGCO, é também causa de suspensão «durante o tempo em que o procedimento (a) não puder legalmente iniciar-se ou continuar».
· “Entre 22/11/004 e 09/05/011 [feitas contas: 6A+6M÷17 dias] o prazo esteve suspenso. Este prazo tem de ser subtraído (ou somado, consoante a perspectiva) para efeitos de prescrição nos termos do artigo 28-3, (e 27-A, n°1, corpo), do RGCO. Assim, se somarmos 6A+6M+17 dias ao prazo normal de 5A, conclui-se com segurança que não ocorreu a prescrição do procedimento. Se somarmos os mesmos 6A+6M÷17 dias ao prazo de 7A+ 6M do prazo imperativo, como a suspensão nele não entra e antes se desconta, chegamos à mesma conclusão de que não ocorreu, e falta muito tempo, a alegada prescrição.
· “Acresce ainda que qualquer uma das notificações à arguida interrompeu o prazo da prescrição, tal como a decisão de condenação. E, como se viu, a interrupção apaga o prazo decorrido, começando com cada facto interruptivo novo prazo de 5 anos”.
Contra este entendimento se insurge a recorrida, argumentando, em síntese, que, sendo aplicável “o regime da prescrição das dívidas tributárias — art.°s 48.° e 49.° da LGT (regime anterior)”, o procedimento se deve considerar prescrito.
Em face das conclusões, que delimitam o âmbito e o objecto do presente recurso, nos termos das disposições constantes dos arts. 684º, nº 3, e 685º-A/1, do CPC, a questão a dirimir no presente recurso jurisdicional traduz-se em averiguar se a decisão recorrida fez correcta interpretação da lei ao considerar aplicável, desde logo, o Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), e o prazo prescricional previsto no seu nº 1 do art. 33º, e se, dessa forma, incorreu em erro ao julgar que não ocorreu a prescrição do procedimento instaurado contra a arguida ora recorrente.


2. 2. Da análise do erro de julgamento

A recorrente invoca erro de julgamento por entender ser aplicável o regime previsto na LGT para a prescrição das dívidas tributárias, previsto nos art.s 48º e 49º, mas não lhe assiste qualquer razão.
Vejamos.
No âmbito de uma acção de fiscalização, a ora recorrente foi acusada da prática de várias infracções às normas do Código do IRC e do IVA, o que originou a instauração de um processo de contra-ordenação. Por conseguinte, não está em causa averiguar qual o prazo de prescrição das obrigações tributárias, mas sim qual o prazo de prescrição do procedimento de contra-ordenação instaurado contra a arguida em 22/11/2004, por infracções cuja prática terá ocorrido no ano 2000.
Como bem salienta o Mmº Juiz “a quo” “O regime aplicável é o do RGIT e, subsidiariamente (artigo 3º do RGIT), o RGCO, que remete (artigos 32 e 41) para o CP e o CPP (Código Penal e Código de Processo Penal.). O paradigma é, portanto, o do direito penal. A decisão impugnada não constitui decisão de tipo administrativo, mas antes “penal” e jurisdicional (Assim se defendeu in REFLEXÕES SOBRE O DIREITO CONTRA-ORDENACIONAL, SPB — II Editores, Lda, 1997, pgs, 19, 28/ss, 39 a 42; e in CONTRA-ORDENAÇÕES e COlMAS, Anotado e comentado, Petrony/Dislivro, 2005, pgs. 351 a 358.) --não configurando, pois, qualquer acto administrativo (…) no artigo 120, do CPA-- sendo ainda que o direito contra-ordenacional é direito “para-penal” e integra o direito penal secundário”.
O direito de mera ordenação social aparece consagrado na Constituição da República Portuguesa como um ilícito sancionatório [art. 165º, nº 1, alínea d)], caracterizado pela ausência de ressonância ético social, e cuja justificação deriva da opção do novo Código Penal (de 1982) por uma política equilibrada da descriminalização, que deixou, desta forma, aberto um vasto campo ao direito de mera ordenação social nas áreas em que as condutas apesar de socialmente intoleráveis, não atingem a dignidade penal (Cfr. o preâmbulo do Decreto-Lei nº 232/79, de 24 de Julho, que instituiu o ilícito de mera ordenação social, posteriormente revogado pelo Decreto-Lei nº 433/82, de 23 de Outubro.).
Assim, ao lado do direito penal de justiça apareceu o Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, a dar corpo ao ilícito de mera ordenação social, cuja sanção típica assenta na coima, “«sanção de natureza administrativa, aplicada por autoridades administrativas, com o sentido dissuasor de uma advertência social», traduzindo-se na imposição do pagamento de uma quantia fixada entre os montantes previstos no art. 17º” (JORGE LOPES DE SOUSA E SIMAS SANTOS, ob. cit., p. 48.).
Independentemente da tese que se adopte quanto à natureza jurídica das coimas, a verdade é que ao direito de mera ordenação social são aplicáveis os princípios fundamentais do direito penal, tais como, o da legalidade (lato sensu), da não retroactividade da lei penal, da aplicação da lei retroactiva mais favorável, e da necessidade e da proporcionalidade das sanções, considerados princípios constitucionais básicos em matéria sancionatória (Neste sentido, cfr. GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa, Anotada, 4ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2010, anotação ao art. 29º da CRP, pp. 494 e 498. ).
No que respeita às contra-ordenações em matéria fiscal, JORGE LOPES DE SOUSA e MANUEL SIMAS SANTOS (Cfr. Regime Geral das Infracções Tributárias, 4ª ed., Áreas Editora, 2010, p. 323.) ponderam que “O RJIFNA e o RJIFA não previam prazos especiais de prescrição do procedimento por contra-ordenações fiscais não aduaneiras e aduaneiras, pelo que eram aplicáveis os prazos gerais de um ou dois anos, previstos no art. 27º do RGCO [art. 4º, nº 2, do RJIFNA e 4º, al.b), do RJIFA].”
Entretanto, o art. 35º do CPT veio elevar para cinco anos esse prazo, relativamente a contra-ordenações fiscais não aduaneiras. E, de seguida, a LGT estabeleceu um prazo geral de cinco anos quer para as contra-ordenações fiscais aduaneiras e não aduaneiras de acordo com o estatuído no seu art. 119º, preceito que veio a ser revogado pelo art. 2º, alínea g), da Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, que aprovou o RIGT.
O art. 33º do RGIT veio, desta foram, substituir o art. 119º da LGT mantendo um prazo geral de cinco anos, no seu nº 1, e prevendo um prazo especial idêntico ao prazo de caducidade do direito à liquidação da prestação tributária quando a infracção depender da liquidação.
É o seguinte o conteúdo do referido preceito:
“Artigo 33º
Prescrição do procedimento
1- O procedimento por contra-ordenação extingue-se, por efeito da prescrição, logo que sobre a prática do facto sejam decorridos cinco anos.
2- O prazo de prescrição do procedimento por contra-ordenação é reduzido ao prazo de caducidade do direito à liquidação da prestação tributária quando a infracção depender daquela liquidação.
3- O prazo de prescrição interrompe-se e suspende-se nos termos estabelecidos na lei geral, mas a suspensão da prescrição verifica-se também por efeito da suspensão do processo, nos termos previstos no nº 2 do artigo 42º, no art. 47º e nº artigo 74º, e ainda no caso de pedido de pagamento da coima antes de instaurado o processo de contra-ordenação desde a apresentação do pedido até à notificação para pagamento.”
Embora o regime do RGIT não estivesse em vigor à data da prática das infracções em causa, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal que vale aqui “o princípio constitucional da aplicação do regime globalmente mais favorável ao infractor que, embora apenas previsto expressamente para as infracções criminais (art. 29º, nº 4, da CRP), é de aplicar analogicamente aos outros direitos sancionatórios” (cfr. o Acórdão de 30/11/2004, proc nº 1017/04, e a vasta jurisprudência aí mencionada).
A sentença recorrida que decidiu neste sentido, não merece pois qualquer censura.
Considerando que a consumação das infracções ocorreu em 2000 e que o prazo normal de prescrição é de cinco anos (Note-se que, por força do disposto no art.28º do Decreto-Lei nº 433/82, a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade, apesar da ocorrência de eventos interruptivos. O Ac. do STJ n° 6/2001 publicado no Diário da República, 1 série, de 30/312001 firmou doutrina no sentido da aplicação subsidiária «A regra do n°3 do artigo 121° do Código Penal, que estatui a verificação da prescrição do procedimento quando, descontado o tempo de suspensão tiver decorrido o prazo normal da prescrição, acrescido de metade, é aplicável, subsidiariamente, nos termos do artigo 32° do regime geral das contra ordenações (Decreto — Lei n° 433/82, de 27 de Outubro, alterado pelo Decreto - Lei n°244/95, de 14 de Setembro) ao regime prescricional do procedimento contra-ordenacional. Em relação ao processo contra-ordenacional tributário, também o STA tem entendido ser aplicável o referido preceito por força do direito subsidiário» (Cfr., entre outros, o Acórdão de 30/11/2004, proc nº 1017/04, e o Acórdão de 10/10/2012, proc nº 456/12).), vejamos, então, se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao concluir pela não prescrição.
Com relevo para a decisão desta questão, resulta do probatório, entre o mais, que a notificação feita à arguida, em 2/11/2004, interrompeu ao prazo de prescrição, por força do estatuído no nº 1, do art. 28º, do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, aplicável por força da remissão do nº 3 do art. 33º, nº 3, do RGIT, e que tem o seguinte conteúdo: “a prescrição do procedimento por contra-ordenação interrompe-se (…) ou com qualquer notificação”.
Considerando que com a interrupção o tempo decorrido antes da causa de interrupção fica sem efeito, devendo reiniciar-se o período de contagem, ou seja, a interrupção anula o prazo entretanto decorrido, o prazo de cinco anos reiniciar-se-ia nesta data até à entrega da impugnação judicial em 29/4/2005.
Entretanto, resulta igualmente do probatório, que a arguida instaurou impugnação judicial das liquidações em 29/4/2004, cuja sentença transitou em julgado em 9/5/2011.
Perante o exposto considerou a sentença recorrida que a partir de 30/4/2005 o processo ficou suspenso até ao trânsito em julgado da sentença em 9/5/2011, por força do estatuído no art. 55º, nº 1, alínea c), do RGIT, que tem o seguinte conteúdo:
“1-Sempre que uma contra-ordenação tributária implique a existência de facto pelo qual seja devido tributo ainda não liquidado, o processo de contra-ordenação será suspenso depois de instaurado ou finda a instrução, quando necessária, e até que ocorra uma das seguintes circunstâncias:
a) Ser o tributo pago no prazo (…);
b) Haver decorrido o referido prazo sem que o tributo tenha sido pago nem reclamada ou impugnada a liquidação;
c) Verificar-se o trânsito em julgado a decisão proferida em processo de impugnação (…);
4- Se durante o processo de contra-ordenação for deduzida oposição de executado, em processo de execução fiscal de tributo de cuja existência dependa a graduação da coima, o processo de contra-ordenação tributário suspende-se até que a oposição seja decidida”.
Em face do teor do preceito, verificada uma destas situações, o processo de contra-ordenação terá de ser suspenso pela Administração Fiscal, até que a liquidação se torne certa e segura.
Em anotação ao nº 1 do art. 55º do RGIT, JORGE LOPES DE SOUSA E SIMAS SANTOS (Cfr. Regime Geral…, cit., anotação ao art. 55º do RGIT, p. 417.) ponderam que “A suspensão do processo contra-ordenacional não tem qualquer inconveniente de ordem substantiva para efeitos de aplicação da sanção, já que está prevista a suspensão do prazo de prescrição do procedimento enquanto o processo contra-odenacional estiver suspenso por ter sido instaurado processo em que se discuta a situação tributária de cuja definição depende a qualificação da infracção (nº 3 do art. 33º, com remissão para o nº 2 do art. 42º e para o art. 47º do RGIT)”.
No seguimento do exposto, pode ler-se na sentença recorrida que “Contado o prazo normal de cinco anos desde 11/10/2000 tal prazo atingia-se em 11/5/005. Mas enquanto não foi proferida decisão judicial transitada no processo de recurso de impugnação referido, a AA estava legalmente impossibilitada de continuar o procedimento, o que, nos termos do citado artigo 27-A, do RCCO, é também causa de suspensão «durante o tempo em que o procedimento (a) não puder legalmente iniciar-se ou continuar»”.
Em suma, tendo o procedimento sido interrompido com as notificações ao que se seguiu a suspensão do processo até ao trânsito em julgado da sentença proferida sobre a impugnação judicial, ou seja, até 9/5/2011, data a partir da qual o prazo de prescrição recomeçou a contagem, afigura-se, claro sem necessidade de mais indagações, que o referido prazo ainda não decorreu.
Assim sendo, as alegações da recorrente não merecem acolhimento devendo o recurso improceder.
Por seu turno, a sentença recorrida, que decidiu no sentido da não ocorrência da prescrição do procedimento contra-ordenacional em causa, não merece qualquer censura, devendo ser confirmada.


III- DECISÃO

Termos em que os Juízes da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 6 de Fevereiro de 2013. - Fernanda Maçãs (relatora) - Casimiro Gonçalves - Francisco Rothes.