Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01350/09.6BELSB 0389/18
Data do Acordão:01/23/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:FONSECA DA PAZ
Descritores:ACIDENTE
CP
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
ILICITUDE
RISCO
CONVOLAÇÃO
Sumário:I – Não se pode considerar demonstrado que a R. violou deveres objectivos de cuidado, incorrendo na prática de um facto ilícito causal dos danos sofridos pela A. se apenas se provou que estes danos resultaram de ela, quando subia para o comboio, se ter desequilibrado e caído na linha, desconhecendo-se as causas desse desequilíbrio e as circunstâncias em que ela pretendia subir para a carruagem, designadamente se fora antes ou depois de ter sido dado o sinal de partida ou se o comboio se encontrava ou não em andamento.
II – A presunção de culpa estabelecida pelo art.º 493.º, n.º 2, do C. Civil, não é aplicável à circulação terrestre, onde se inclui a circulação ferroviária.
III – Embora a acção de indemnização tenha sido intentada com base na prática de facto ilícito, é admissível a convolação para a responsabilidade pelo risco quando a situação também se enquadra nesta, dado que se está perante uma mera operação de qualificação jurídica dos factos materiais da causa que, nos termos do art.º 5.º, n.º 3, do C. P. Civil, o juiz pode livremente efectuar.
IV – Assim, subsistindo um outro fundamento jurídico susceptível de determinar a condenação no pedido, tem o tribunal recorrido que apreciar a pretensão indemnizatória da A. com base na responsabilidade pelo risco.
Nº Convencional:JSTA00070851
Nº do Documento:SA12019012301350/09
Data de Entrada:05/30/2018
Recorrente:A....
Recorrido 1:CP - CAMINHOS DE FERRO PORTUGUESES, EP
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO DE REVISTA
Objecto:ACÓRDÃO DO TCA SUL
Decisão:CONCEDE PROVIMENTO
Área Temática 1:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
Legislação Nacional:493º, N.º 2 DO CC E 5º, N.º 3 DO CPC
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:



RELATÓRIO


A.……………, devidamente identificada nos autos, intentou, no Tribunal Administrativo de Círculo (TAC) de Lisboa, acção administrativa comum, contra a “CP – Caminhos de Ferro Portugueses, EP”, pedindo que, em consequência de um acidente que, em 6/8/2007, sofreu na Gare do Oriente, em Lisboa, fosse a R. condenada a pagar-lhe uma indemnização que ressarcisse os danos físicos, materiais e morais daí decorrentes no valor de 500.500 euros a título de danos já liquidados, bem como a quantia a liquidar em execução de sentença pelos danos referidos no artº 96.º, da petição inicial, acrescida dos juros contados desde a citação até integral pagamento.
O TAC julgou a acção parcialmente procedente, condenando a R. a pagar à A. a quantia global de € 179.600,00, acrescida dos juros de mora, contados à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
Desta sentença, tanto a A. como a R. interpuseram recursos para o TCA Sul, o qual, por acórdão datado de 16 de Janeiro de 2018, veio a conceder provimento ao recurso da “CP” e a considerar prejudicada a apreciação do recurso da A., julgando, assim, a acção totalmente improcedente.
Deste acórdão, a A. interpôs recurso de revista para este STA, tendo, na respectiva alegação, formulado as seguintes conclusões:
“A) - O presente recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo deve ser admitido porque está nele e causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica e social, se reveste de importância fundamental e porque a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
B) O artigo 150º do CPTA ao limitar a admissibilidade de recurso de revista para o STA em termos mais apertados do que o fazem os artigos 671º e 672º do Código de Processo Civil viola o princípio da igualdade previsto no artigo 13º da Constituição da República, pelo que o presente recurso deve ser admitido nos mesmos termos em que são admitidos os recursos em processo civil, por se verificarem os pressupostos da lei processual civil para a sua admissão.
C) EXISTE UM ERRO GROSSEIRO NA ATRIBUIÇÃO DA CAUSA ADEQUADA DOS DANOS À QUEDA DA AUTORA, O QUE, NOTORIAMENTE, NÃO É VERDADE, pois como é óbvio, os danos produziram-se porque ENTRE A PLATAFORMA E O COMBOIO EXISTE UM ESPAÇO DEMASIADO LARGO QUE PERMITE OS ACIDENTES NESTAS CIRCUNSTÂNCIAS EM VEZ DE OS PREVENIR.
D) FOI DADO SINAL DE PARTIDA AO COMBOIO QUANDO A AUTORA SE ENCONTRAVA CAÍDA SOBRE A LINHA.
E) E ESTE ARRANCOU e os rodados do comboio cortaram o calcanhar da recorrente causando-lhe os ferimentos por ela sofridos porque estava em andamento.
F) Decorre do conjunto das respostas aos quesitos (apesar da pouca clareza da resposta ao quesito 11) e da elementar experiência comum e do elementar bom senso,
G) que se o comboio estivesse sempre parado até a recorrente ser retirada do local onde caiu, OU SE ENTRE A PLATAFORMA E O COMBOIO NÃO EXISTISSE UM ESPAÇO DEMASIADO LARGO QUE PERMITE OS ACIDENTES NESTAS CIRCUNSTÂNCIAS E EM VEZ DE OS PREVENIR, os danos sofridos pela recorrente não teriam ocorrido.
H) In casu, estamos perante um caso de responsabilidade extracontratual ou aquiliana.
I) Aos acidentes ferroviários, como resulta do n.º 3 do artigo 508.º do Código Civil, são aplicáveis os preceitos do Código Civil, atinentes à responsabilidade civil.
J) Importa, assim, que estejam presentes os respectivos requisitos: Um facto voluntário, a ilicitude do facto, a culpa do agente ou seja um nexo de imputação subjectiva do facto danoso ao lesado, o dano, ou seja a afectação negativa/prejuízo de bens jurídicos pessoais e patrimoniais, juridicamente tutelados e, o nexo de causalidade entre o facto e o dano sofrido.
K) Pois que nos termos do preceituado no artigo 483º, nº 1 do Código Civil, aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
L) Aqui se estabelece pois o princípio geral de responsabilidade civil, fundada em facto que seja objectivamente controlável ou dominável pelo agente, isto é uma conduta humana, que tanto pode consistir num facto positivo, uma acção, como num negativo (avisos ou abstenção) violadora do direito de outrem ou de qualquer disposição legal que visa proteger interesses alheios - comportamento ilícito.
M) A culpa pode resultar de uma atitude dolosa ou de mera negligência. Esta consiste na omissão do agente da diligência ou do cuidado que lhe era exigível em face das circunstâncias de cada caso e atenta à conduta do homo prudens, o bom pai de família e releva fruto na sua modalidade de consciente (o agente prevê a realização do facto ilícito como possível mas, por leviandade, precipitação, desleixo, ou incúria, crê na sua não verificação como inconsciente (o agente, outrossim por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão nem sequer prevê o facto, sendo-lhe porém, exigível que o tivesse previsto).
N) O artigo 563º do Código Civil consagra a doutrina da causalidade adequada na sua formulação negativa, que não pressupõe a exclusividade do facto condicionante do dano, nem exige que a causalidade tenha de ser directa e imediata, pelo que admite, não só a ocorrência de outros factos condicionantes, contemporâneos ou não, como ainda a causalidade indirecta, bastando que o facto condicionante desencadeie outro que directamente suscite o dano.
O) Pelo que o facto que acham como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a verificação do mesmo, tendo o provado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercederam no caso concreto. Deste conceito de causalidade adequado pode extrair-se desde logo, como corolário que para que haja causa adequada, não é de modo nenhum necessário que o facto, só por si sem a colaboração de outros, tenha produzido o dano essencial é que o facto seja condição do dano, mas nada obsta a que, como frequentemente sucede, ele seja apenas uma das condições desse dano.
P) Prima facie começa a douta decisão recorrida por referir que a R. não praticou qualquer facto ilícito, isto é, como consubstanciando a violação de um dever objectivo de cuidado por parte da ré ou dos seus funcionários, O QUE NÃO É VERDADE
Q) PORQUANTO: resultou provado que “A porta de entrada da composição onde a A. subiu estava aberta quando esta o fez” e que “Estando aberta a porta da carruagem por onde a A. subiu para o comboio, desequilibrou-se e caiu à linha tendo ficado entalada entre as carruagens e o muro do cais adjacente”.
R) Resultou também provado que “A A. permaneceu nas circunstâncias referidas até que a composição se deslocou e afastou”;
O sinal de partida do comboio foi comunicado pelo revisor ao maquinista, através da emissão de luz verde e o Chefe de gares, Sr. B…………, funcionário da R presente na estação, perante a queda da A. não auxiliou a testemunha C…………. porque a sua prioridade naquele momento foi garantir que os dois comboios que iriam passar na linha em causa, mudassem de linha, a fim de permitir a retirada da A. dali e a sua posterior assistência”
“O referido comboio só retomou a sua marcha depois de concluído o embarque e o desembarque de passageiros, com excepção do embarque da A.”
“A partida do comboio só foi dada depois de o respectivo revisor ter dado o sinal ao respectivo maquinista que o serviço estava concluído” e
“O comboio iniciou a sua marcha de forma suave e após ter sido dado um sinal sonoro audível na gare de partida”.
S) Quer isto dizer que houve efetivamente a violação de um dever objetivo de cuidado por parte da Ré.
Em primeiro lugar: o comboio nunca deveria arrancar sem as portas estarem totalmente fechadas, como sucedeu.
Em segundo lugar: não deveria haver entre o comboio e a plataforma um espaço tão largo que permitisse que uma pessoa normal caísse sobre alinha, no espaço entre o comboio e a plataforma.
Em terceiro lugar: o comboio, em particular numa linha de tão grande afluxo de passageiros como é a GARE DO ORIENTE, deveria ter funcionários da CP que vigiassem a entrada e saída de passageiros e que não dessem o sinal para arranque do comboio sem antes verificarem que não haveria perigo para os passageiros.
T) E a gravidade deste facto é tanto maior quanto a testemunha C……….. logo que a A. caiu à linha a socorreu e isso deveria ser verificado pelo funcionário que deu ordem (se é que deu!) para o arranque do comboio a fim de não dar esse sinal.
U) Com efeito, apesar de a douta sentença ter entendido que a dinâmica da queda da A. não resultou totalmente esclarecida, quer pela prova testemunhal, quer pela impossibilidade em obter as filmagens, o facto é que a) O comboio iniciou o seu andamento com a porta de entrada das carruagens aberta; b) A A. desequilibrou-se e caiu à linha tendo ficado entalada entre as carruagens e o muro do cais adjacente; c) O Chefe de Estação do Oriente não foi zeloso no cumprimento da sua obrigação, não actuando de forma a impedir o início da marcha do comboio com as portas abertas e da subida da A. para o comboio nessas condições, facto, ele próprio capaz de suscitar aos normais utilizadores a convicção de que ainda era possível efectuar o embarque.
V) A R. encontra-se obrigada a indemnizar a A. pelos danos por si sofridos por força do disposto no art. 66º do DL nº 39870 - Regulamento para a exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro.
W) Com efeito, o artigo 66.º do citado Regulamento preceitua que “cumpre à empresa indemnizar os passageiros de todos os prejuízos que sofreram em consequência do acidente (...) salvo se demonstrar que o acidente foi produzido por facto fortuito, força maior, culpa da vítima ou terceiro”.
X) Ao contrário do que entendeu o acórdão recorrido e foi frisado, e bem, na sentença de primeira instância, o artigo 69º do referido regulamento não exclui a responsabilidade extracontratual dos operadores relativamente aos correspondentes danos,
Y) desde logo porque, os actos de entrar e sair da carruagem estão afastados do contrato de transporte propriamente dito, mas tal não significa que os órgãos ou agentes da R. gozem de um estatuto de irresponsabilidade, pelos danos sofridos pelos utentes durante a entrada e saída do comboio,
Z) Pende assim, mais uma vez, sobre a R. o dever de garantir a segurança dos seus utentes, antes e durante o embarque, pelo que, os funcionários, nomeadamente o Chefe de Estação, devem assegurar-se que o comboio parte dentro do horário e sem causar qualquer perigo para a integridade física, devendo no caso de ter sido dado sinal de início de marcha, permanecer atentos de forma a evitar acidentes.
AA) Com efeito, conforme declarou o Chefe da Estação, tendo visto a A. a correr para o comboio em movimento, o certo é que nada fez para demover a A. de entrar no comboio ou no sentido de fazer com que este parasse ou diminuísse a sua marcha, antes pelo contrário, a prioridade daquele funcionário foi garantir que os dois comboios que iriam passar na linha em causa, mudassem de linha.
BB) Importa ainda referir a este propósito, que na data do acidente ocorreu um festival e existiam muitos passageiros na gare e com mochilas, o que deveria ter desperto a atenção dos funcionários da R. para eventuais atrasos de passageiros e até lotação do comboio, devendo assim os funcionários ter redobrado o cuidado a fim de evitar acidentes.
CC) Este dever mínimo e óbvio de cuidado parece-nos indiscutível, não só de acordo com as regras da experiência comum, como em consonância com os acidentes ferroviários envolvendo atropelamento, trucidamento de passageiros que são derrubados e/ou caem à linha, nomeadamente nessas alturas cruciais e problemáticas que são as entradas e saídas dos comboios e os momentos que as procedem e sucedem.
DD) No que concerne ao nexo de causalidade o mesmo deve ser apreciado sobre dois prismas, a formulação naturalística e a formulação negativa.
EE) Relativamente à formulação naturalística, trata-se se apurar uma mera relação de causa-efeito, ou seja, averiguar se o processo sequencial foi, ou não, facto desencadeador ou gerador do dano, verificando-se se a conduta do lesante foi desencadeadora do resultado lesivo.
FF) Por sua vez, a formulação negativa encontra-se consagrada no art. 565º do CC, segundo o qual “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.”
GG) Ora, o Supremo Tribunal de Justiça tem perfilhado o entendimento de que o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercedam no caso concreto.
HH) Assim, a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo só ocorreu por circunstâncias excepcionais ou extraordinárias.
II) Ora a conduta negligente da R. através dos seus empregados foi condição do evento dano que em concreto ocorreu, isto é, se as portas da carruagem estivessem fechadas ou a A. tivesse sido alertada para não subir para o comboio, a queda não teria ocorrido, e se o espaço entre a plataforma e o comboio não permitisse a queda duma pessoa normal sobre a linha, e, finalmente se antes de o chefe da estação dar ordem para o comboio reiniciar a sua marcha quando o não deveria ter feito se usasse as devidas cautelas, se houvesse funcionários suficientes para prevenirem casos destes num local de tanta afluência de passageiros como é a GARE DO ORIENTE, o acidente e os danos, tal como se verificaram, nunca teriam ocorrido.
JJ) Ao contrário do decidido no douto acórdão recorrido, e no que concerne à culpa o acidente é imputável à R., além do mais, com fundamento na presunção de culpa que não Ilidiu, nos termos dos artigos 503º, nº 3 e 493º, nº 2 do C. Civil.
KK) Estatui o artigo 503º, nº 1 do C. Civil, que aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.
LL) Ter a direcção efectiva do veículo, significa ter o controlo da sua circulação ou possibilidade de circulação, mesmo que por intermédio de um terceiro.
MM) E de acordo com o disposto no nº 3 do art.º 503º do C.C., que estabelece uma presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem pelos danos que causar, aplicável nas relações entre o lesante e o titular ou titulares do direito a indemnização, e o regime das presunções (legais, consignado no art. 350º do C. Civil, entende-se que haverá obrigação de indemnizar por parte do comissário quando este, perante a verificação das enunciados pressupostos de responsabilidade civil por facto ilícito, com excepção da culpa efectiva, não afastar (ilidir) a presunção da sua culpa por provar em contrário ou seja, não demonstrar não existir o facto presumido.
NN) É evidente que “in casu” a R. CP - Caminhos de Ferro Portugueses, EP tinha a direcção efectiva do comboio interveniente no sinistro e utilização no seu interesse, pelo que deve responder pelas suas consequências em termos de responsabilidades objectiva fundada no risco.
OO) Entre o condutor do comboio e a entidade dona dele, existe uma relação de comissão - artigo 500º do C. Civil, pois que é evidente que o comboio em causa estava sob a direcção efectiva da CP a circular no seu interesse - a que se aplica a regra do artigo 503º do mesmo diploma.
PP) Assim, é manifesto que “in casu” impende sobre o condutor do comboio lesante uma presunção de culpa - trata-se de transporte terrestre a que se aplica o regime legal do art. 503º do C. Civil, que, porque não foi ilidida, implica que se tenha de considerar tal condutor o responsável pelo acidente, inclusivamente, pelas regras de responsabilidade objectiva.
QQ) Ademais, estipula-se no artigo 493º, nº 2 do C. Civil que “quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos mais utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se provar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de as prevenir”.
RR) Actividades perigosas são aquelas que criam para os terceiros um estado de perigo, isto é, a possibilidade ou, ainda mais, a probabilidade de causar dano; uma probabilidade maior do que a normal, derivada de outras actividades, devendo tratar-se de actividade que, mercê da sua natureza ou dos meios utilizados, tenha ínsita ou envolva uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes actividades em geral
SS) A lei estabelece, neste caso, a presunção de culpa por parte de quem exerce uma actividade perigosa, o que determina uma inversão do ónus da prova; é aquele que tem de provar, para se eximir à responsabilidade, que não teve culpa na produção do facto danoso (artºs 342º e 344º do CC).
TT) Esta presunção de culpa assenta sobre a ideia de que não foram tomadas as medidas de precaução necessárias para evitar o dano; daí que, quanto aos danos causados no exercício de actividades perigosas, o lesante só poderá exonerar-se da responsabilidade provando que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para os evitar.
UU) Ninguém dúvida que a circulação ferroviária - assim como as principais actividades a ela ligadas - é uma actividade perigosa pela sua própria natureza e se encontra excluída da previsão do assento, que deve ser interpretado, no caso, restritivamente, assim como no que respeita a certas actividades rodoviárias, igualmente perigosas pela sua própria natureza.
VV) A circulação ferroviária em si, dada a sua particular característica de circulação rápida, prioritária, e dimensões excepcionais, com grande número de passageiros e acumulação destes nas estações, é capaz de causar um perigo para os cidadãos em geral (transportados ou não) superior ao da normal circulação rodoviária.
WW) Queremos com isto dizer que a presunção de culpa que dimana do artigo 493.º/2 do Código Civil valerá para acidentes de circulação que, pelas suas características, se revistam de especial perigosidade; assim, uma vez aceite a aludida interpretação restritiva, já não se aplicará a prescrição do assento quando a circulação terrestre decorre de uma actividade perigosa (acrobacia de veículos, corridas de automóveis, ralis, gincanas, etc.) que acresce à já em si perigosa actividade de circulação. Justificar-se-ia, portanto, uma interpretação restritiva do assento para estes casos de particular perigosidade.
XX) Foi também considerada como perigosa a circulação ferroviária em várias decisões dos tribunais superiores.
YY) No que se refere à exigência legal quanto ao afastamento da presunção de culpa, um dos indícios do critério legal da qualificação de alguma actividade como perigosa, no âmbito do citado art.º 493º, 2, do C Civil consiste em ter estado no pensamento do legislador a ideia de que o agente de actividades perigosas, para ilidir a presunção de culpa sobre si impendente terá de provar a adopção de providências especiais a tal destinadas.
ZZ) Tal significa que nas situações enquadráveis nesta norma a presunção de culpa do agente é ilidida pela demonstração de que actuou, não apenas como teria actuado o bom pai de família, pressuposto no art.º 487º, nº 1, do C Civil, uma pessoa mediamente cautelosa, atenta, informada e sagaz, mas mais do que isso, empregando todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de evitar os danos.
AAA) Ou seja, está em causa nos autos a omissão do dever de observância de regras de segurança, regras essas que estavam a cargo da ré.
BBB) Nos termos do art.º 486º do Código Civil, as simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando, independentemente dos outros requisitos legais, havia, por força da lei ou do negócio jurídico, o dever de praticar o acto omitido.
CCC) Ora, a obrigação de agir pode resultar da lei, como acontece nos casos previstos nos art.ºs 492º e 493º do Código Civil e a relevância jurídica da omissão está ligada ao “dever genérico de prevenção de perigo”.
DDD) O acórdão recorrido violou as supracitadas disposições legais pelo que deverá ser revogado e substituído por outro em que se considere a Ré culpada pela ocorrência do acidente em causa nestes autos dado ter-se provado a negligência de sua parte no que toca à distância entre a plataforma e o comboio, conforme o acima alegado,
EEE) Ou dos seus funcionários pelas razões também acima alegadas,
FFF) Sendo que, em qualquer caso se aplica aqui a presunção de culpa pelos vários motivos expostos.
GGG) Deverá ainda o acórdão recorrido ser e se condene a Ré a indemnizar a autora pelos danos causados no acidente aqui em causa pelo menos até aos termos em que a Ré foi condenada em primeira instância.
HHH) Mais deve ordenar-se que os autos desçam ao Tribunal Central Administrativo Sul para conhecimento do recurso aí interposto pela A.”.
A recorrida, CP, contra-alegou, tendo concluído:
“1.O recurso de revista não deve ser admitido, nos termos do artigo 150º do CPTA, já nele não se discutem quaisquer questões novas com relevância jurídica ou social nem o mesmo é necessário para uma melhor aplicação do direito já que o acórdão recorrido é conforme com o direito que aplicou aos factos assentes que são imodificáveis e não a nenhuns outros, como parece pretender-se;
2.A revista limita-se tão só a conhecer se o acórdão recorrido violou ou não a lei substantiva ou adjectiva o que não acontece até porque a Recorrente não indica de forma precisa e concreta quais as normas que o mesmo viola;
3. Apesar de assim acontecer entende a CP que o acórdão recorrido deve ser mantido, uma vez que o acidente não se deu por facto que lhe seja imputável e ainda porque e sem conceder a Recorrente não sequer provou e, tinha esse ónus, os danos que refere, como melhor consta das alegações apresentadas para o Tribunal Central Administrativo do Sul que, por isso, aqui se mantêm;
4. Sublinha-se, de novo, que queda da Recorrente à linha ocorrida na Gare do Oriente no dia 6.08.07 deu-se quando a mesma tentava subir para uma carruagem do comboio IC nº 531 que tinha uma porta ainda aberta;
5. O desequilíbrio da Recorrente, sem mais e em circunstâncias não esclarecidas, que provocou a sua queda à linha ocorreu já depois de o revisor ter dado sinal ao maquinista que o serviço estava concluído não é, por isso, gerador de responsabilidade civil da CP;
6. Acontece ainda que comboio IC nº 531 iniciou a sua marcha de forma suave e após ter sido dado um sinal sonoro de partida audível na Gare do Oriente que era a de partida;
7. A Recorrente tentou entrar nesse comboio já depois de o serviço ter sido dado como concluído e depois de ter sido dado o dito sinal sonoro de partida;
8. As portas do comboio só ficam bloqueadas depois do comboio atingir a velocidade de 15 km/hora, o que permite que as mesmas possam ser abertas, ou impedido o seu fecho, quer de dentro quer do lado de fora;
9. O acidente ficou-se a dever tão só a uma conduta imprudente e temerária da Recorrente que nas condições antes indicadas tentou entrar no comboio;
10. O facto de o comboio ter uma porta aberta não pode ser considerado como causa adequada do sinistro;
11. Para a produção do acidente contribui decisivamente a circunstância anormal, extraordinária e anómala que interrompeu o nexo causal que consistiu no facto de a Recorrente ter tentado subir para o comboio já depois de ter sido dado o sinal de serviço concluído;
12. A conduta “atrevida” e imponderada da Recorrente também desrespeitou o disposto no artigo 69º, nº 2, do Regulamento de Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro, aprovado pelo Decreto-Lei nº 39870, de 21.08.1954, que estatui que “são da responsabilidade do passageiro os actos de subir para a carruagem e descer dela”;
13. As conclusões precedentes fundadas unicamente em factos assentes permitem concluir que a responsabilidade pelo sucedido é tão só imputável à Recorrente e não à CP que não tem, consequentemente, que responder civilmente pelas consequências do acidente;
14. Por cautela de patrocínio adianta-se que as consequências do acidente não são as que a Recorrente refere, mas somente as que foram apuradas na perícia médica e que não coincidem com as que a mesma, sem provar, invoca;
15. Identicamente e pela mesma razão sublinha-se que a Recorrente não provou qual a sua real situação profissional à data do acidente v.g. em termos de vínculo e de estatuto remuneratório;
16. No tocante à vida escolar da Recorrente apenas apurado foi que, à data do acidente, estava matriculada num curso de engenharia química, mas, e apesar de ser fácil a prova documental, tudo o mais a esse respeito, ficou por esclarecer, caso dos anos de frequência e seu aproveitamento;
17. Era à Recorrente que competia a prova de todos factos em que fundava os pedidos de indemnização que formulou, o que não fez;
18. Assim deverá ser negado provimento ao recurso e inteiramente confirmado o acórdão recorrido.”
O digno Magistrado do MP, notificado nos termos do art.º 146.º, do CPTA, não emitiu parecer.
Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência para julgamento

FUNDAMENTAÇÃO

I. MATÉRIA DE FACTO
O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
“1 - O comboio intercidades no 531, que no dia 06 de Agosto de 2007, pelas 22h 40m, circulava na linha do Norte, no sentido Sul/Norte, é propriedade da R. CP - Caminhos de Ferro Portugueses, E.P. (facto assente A));
2 - O referido comboio circulava por sua ordem e direcção, e no seu interesse, fazendo o transporte de passageiros de entre Lisboa e o Porto, mediante retribuição dos passageiros pelas viagens por eles efectuadas. (facto assente B));
3 - O condutor do veículo da Ré conduzia o veículo, no interesse e por conta desta, e sob suas ordens e direcção, mediante remuneração como condutor/maquinista do referido comboio. (facto assente C));
4 - À data do acidente, a A. era empregada da cadeia de supermercados Pingo Doce, trabalhando na secção de Padaria. (facto assente D));
5 - A A. nasceu no dia 24/09/1985, tendo por isso, 21 anos na data dos factos alegados nesta p.i., cfr. certidão de nascimento (doc. n° 5 junto à p.i.). (facto assente E));
6 - No dia 06.08.2007, em hora não determinada, mas anterior às 22 horas e 40 minutos, a A. munida de título de transporte que previamente comprara à Ré, para o comboio intercidades n° 531, encontrava-se na Gare do Oriente, para iniciar a sua viagem de Lisboa para o Porto. (resposta ao quesito 1);
7 - A porta de entrada da composição onde a A. subiu estava aberta quando esta o fez. (resposta ao quesito 5);
8 - Estando aberta a porta da carruagem por onde a A. subiu para o comboio, desequilibrou-se e caiu à linha, tendo ficado entalada entre as carruagens e o muro do cais adjacente. (resposta ao quesito 8);
9 - A A. permaneceu nas circunstâncias referidas até que a composição se deslocou e afastou. (resposta ao quesito 9);
10 - O sinal de partida do comboio foi comunicado pelo revisor ao maquinista, através da emissão de luz verde e o Chefe de gares, Sr. B…………, funcionário da R., presente na estação, perante a queda da A. não auxiliou a testemunha C……….. porque a sua prioridade naquele momento foi garantir que os dois comboios que iriam passar na linha em causa, mudassem de linha, a fim de permitir a retirada da A. daí e a sua posterior assistência. (resposta ao quesito 10);
11 - Em consequência da queda a que se refere o facto provado n.° 8, a A. teve graves ferimentos, sobretudo no calcanhar direito, tendo sofrido “Fractura do calcâneo e esfacelo do retro pé direitos” com “grande destruição de tecidos moles do retro pé direitos com exposição do calcâneo”, cfr. boletim de admissão no serviço de urgência do Hospital Curry Cabral, em Lisboa, a fls. 238 e 238 v° dos autos. (resposta aos quesitos 11 e 12);
12 - A A. foi transportada por uma viatura do INEM para o Hospital Curry Cabral, onde foi assistida (resposta ao quesito 14);
13 - E veio a ser transferida para o Centro Hospitalar de Lisboa, Zona Central, Hospital S. José, de seguida para o Hospital Santa Maria e daí, de novo, transferida para o Centro Hospitalar de Lisboa, Zona Central, Hospital S. José, onde foi internada e sob requianestesia, submetida a desbridamento cirúrgico de tecidos desvitalizados e sutura de retalhos aparentemente viáveis, apresentando fractura alinhada incompleta do corpo do calcâneo do pé direito, cfr. fls 238 v°, 224-225 e 229 dos autos. (resposta aos quesitos 15, 16 e 17);
14 - Dois dias depois, ou seja, no dia 08 de Agosto de 2007, foi transferida para o Hospital S. João, no Porto, onde foi internada no Serviço de Cirurgia Plástica, onde foi submetida a mais duas cirurgias, e onde esteve internada até 28/09/2007 (resposta ao quesito 18);
15 - Em consequência do acidente, a A. foi submetida às seguintes intervenções cirúrgicas:
- Em 22/08/2007 foi submetida a desbridamento excisional de ferida, infecção ou queimadura;
- Em 22/08/2007 foi submetida enxerto pediculado ou retalho, Soe;
- Em 12/09/2007 foi submetida enxerto livre de pele Soe;
- Em 12/09/2007 foi submetida a revisão de enxerto pediculado ou retalho;
E efectuou as seguintes terapias:
- em 21/08/2007 foi submetida a plastia de exposição do calcâneo direito com retalho sural em ilha;
- Em 12/09/2007 foi submetida a plastia da área dadora e perda de substância do pé com enxerto de pele parcial colhida da coxa direita;
No pós operatório apresentou necrose distal do retalho sural e o enxerto de pele foi integrado na totalidade (resposta aos quesitos 19, 20 e 21);
16 - Teve alta do Serviço de Cirurgia Plástica em 28 de Setembro de 2007 e foi orientada para a consulta externa de Cirurgia Plástica para continuação de tratamento (resposta ao quesito 22);
17 - No dia 11/12/2007, a A. foi novamente internada no Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital de S. João, e no dia seguinte 12/12/2007 foi submetida a intervenção cirúrgica de remodelação de retalho sural previamente efectuado para reconstrução do calcâneo à direita e colocação de tala gessada (resposta ao quesito 23);
18 - Aí permaneceu internada durante 4 dias, até 14/12/2007, tendo tido alta orientada para a Consulta de Cirurgia Plástica e Medicina Física e Reabilitação (resposta aos quesitos 24 e 25);
19 - Para serem efectuadas as cirurgias plásticas referidas foi retirado à A. tecido da coxa e tecido e músculo da perna direita, para ser enxertado no calcanhar, tendo ficado com cicatrizes nessas zonas, cfr. prova documental junta a fls 19-20 e 24, 232, 235 e 269 v.° dos autos. (resposta ao quesito 26);
20 - Em consequência do acidente, a A. ficou impossibilitada de frequentar as aulas do curso de Engenharia Química em que estava inscrita, não tendo podido assistir às aulas nem fazer qualquer cadeira no primeiro semestre do ano lectivo de 2007/2008, não tendo mesmo conseguido frequentar a faculdade durante a parte inicial do segundo semestre. (resposta ao quesito 27);
21 - A A. apresenta as seguintes lesões no membro inferior direito: dismorfia grave ao nível do calcanhar e face posterior da perna (área gemelar). Na face posterior da perna (terço superior e médio) observa-se área de tonalidade cicatricial dismórfica de tonalidade castanha, com reacção queloide, de forma oval com 8 cm por 7 cm de maiores dimensões. Da extremidade inferior desta área observa-se cicatriz linear, em “Z, que se dirige pela face posterior da perna até à face posterior do tornozelo. Na área anatómica do calcanhar observa-se zona almofadada coberta com pele fina - neo calcanhar no que diz respeito a composição de partes moles. T\a face plantar do terço médio do pé observa-se cicatriz cordonal com 6 cm de comprimento posicionada perpendicularmente ao eixo do pé e que a examinada refere como dolorosa ao toque. Mobilidade do tornozelo limitada para os movimento de flexão plantar (0°-15°) e para o movimento de dorsi - flexão (0°-10°) não executando de forma funcional os movimentos de inversão e eversão do pé. Área cicatricial associada a colheita de pele para enxerto localizada na face posterior e medial da coxa sem queixas subjectivas associadas, cfr. relatório pericial. pág. 5. a fls 286 v.° dos autos. (resposta aos quesitos 28 e 29);
22 - A A. tem dificuldade em se erguer e caminhar, só o conseguindo fazer amparada, cfr. relatório pericial, pág. 9, a fls 288 dos autos. (resposta aos quesitos 30 e 31);
23 - E não consegue correr (resposta ao quesito 32);
24 - Não pode usar sapatos mas apenas botas, quer de Verão quer de Inverno (resposta ao quesito 34);
25 - Tem de usar calcanheiras de silicone para não ficar com chagas ao andar calçada (resposta ao quesito 35);
26 - A A. tem de usar meia elástica até à coxa por cima das cicatrizes na coxa e na perna, tem de usar meia elástica até à coxa por cima das cicatrizes na coxa e na perna. (resposta ao quesito 36);
27 - O pé direito da A. fica inchado após a marcha, sentindo dor intensa (resposta aos quesitos 37, 38 e 67);
28 - Não pode fazer por si só compras num supermercado e carregá-las como o pode fazer qualquer pessoa (resposta ao quesito 46);
29 - A A., antes da queda em causa era jogadora de voleibol. (resposta ao quesito 49);
30 - Não pode conduzir quaisquer veículos nem andar de bicicleta (resposta ao quesito51);
31 - Vive, neste momento, com sua mãe (resposta ao quesito 53);
32 - O pé direito da A. ganha bolhas com facilidade. (resposta ao quesito 55);
33 - A A. não consegue sequer aproximar-se de comboios, nem consegue ver sequer na televisão qualquer reportagem sobre comboios devido ao traumatismo psíquico que lhe foi causado pelo acidente (resposta ao quesito 57);
34 - O acidente causou-lhe um pânico e um sofrimento atrozes até terem passado todas as carruagens e sentir que estava livre do perigo de morte, pois enquanto as carruagens, pelo menos quatro, não passaram esteve, como costuma dizer-se, a ver a morte à sua frente (resposta ao quesito 60);
35 - Tendo ficado sentada em cadeira de rodas e não deitada em maca (resposta ao quesito 62);
36 - A A. teve de atravessar toda a estação nesse estado, em cadeira de rodas, a segurar no pé para segurar as ligas que evitavam o escoamento muito intenso do sangue (resposta ao quesito 64-A);
37 - A A. teve de passar uma rua calcetada em paralelos a correr e com a cadeira de rodas a tremer intensamente, até chegar à ambulância (resposta ao quesito 64-B);
38 - A qual se encontrava num arruamento adjacente à estação o que demorou cerca de 15 minutos (resposta ao quesito 64-C);
39 - Nesse trajecto, e durante esse tempo, voltou a sentir o pânico da morte à sua frente (resposta ao quesito 65);
40 - E sofreu dores atrozes em consequência da amputação de parte do tornozelo (resposta ao quesito 66);
41 - Sofreu dores elevadas muito elevadas em consequência das sucessivas cirurgias a que foi submetida (resposta ao quesito 66-A);
42 - A A. sofreu e ainda sofre dores e sentiu e continua a sentir grande desgosto e angústia, quer por ter deixado de ser uma pessoa fisicamente perfeita, nomeadamente pelas cicatrizes acima referidas, as quais desfeiam o seu corpo e a inibem de estar em fato de banho, ou simples calções, quer por se ver incapacitada de fazer a sua vida normal, nomeadamente de poder jogar voleibol, de poder dançar, correr, nadar, fazer exercícios físicos sem limitações. (resposta aos quesitos 68, 69 e 70);
43 - Tais actividades que se fazem essencialmente quando se é jovem, como é a A, que deixará de viver plenamente, a melhor parte da sua vida que é a sua juventude (resposta ao quesito 72);
44 - Não pode andar descalça (resposta ao quesito 73);
45 - Não pode ir para a praia a não ser calçada (resposta ao quesito 74);
46 - A A. nadava na praia e em piscinas antes do acidente com enorme prazer (resposta ao quesito 74-C);
47 - A A. não pode apanhar sol nas cicatrizes. (resposta ao quesito 75);
48 - A A. perdeu parte da sua alegria de viver após ter sofrido as lesões referidas. (resposta ao quesito 77);
49 - A era uma pessoa fisicamente perfeita, robusta e saudável antes do acidente (resposta ao quesito 78);
50 - A A. engordou, após o acidente, o que constituirá uma limitação do seu bem-estar e da sua saúde. (resposta ao quesito 79)
51 - Antes do acidente em causa nestes autos, a A. era uma pessoa alegre e cheia de vitalidade (resposta ao quesito 80);
52 - A A. nunca se recompôs emocionalmente do acidente atrás descrito e recorda-se constantemente com angústia e desespero o acidente, o que lhe provoca enorme tristeza, insónias e frequentes situações de pesadelos durante o sono (resposta ao quesito 81);
53 - Tais factores psicológicos influenciam a sua qualidade de vida. (resposta ao quesito 82);
54 - A A. matriculou-se em 28.9.2007, no 2.º ano do curso de Engenharia Química, no Instituto Superior de Engenharia do Porto, cf. fls 26 dos autos. (resposta ao quesito 84);
55 - A A. antes do comboio partir estava acompanhada com um senhor que lhe seria próximo, na plataforma da Gare do Oriente onde o comboio IC n° 531 com destino ao Porto iria estacionar (resposta ao quesito 89);
56 - O referido comboio só retomou a sua marcha depois de concluído o embarque e o desembarque de passageiros, com excepção do embarque da A. (resposta ao quesito 90);
57 - A partida do comboio só foi dada depois de o respectivo revisor ter dado o sinal ao respectivo maquinista que o serviço estava concluído (resposta ao quesito 91);
58 - O comboio iniciou a sua marcha de forma suave e após ter sido dado um sinal sonoro audível na gare de partida. (resposta ao quesito 98);
59 - É a própria máquina que comanda o esforço de tracção a aplicar o que ocorre após a colocação do respectivo manípulo na posição de tracção (resposta ao quesito 99);
60 - O sistema de convel (sistema de controlo automático da velocidade das composições) impede o arranque do comboio à velocidade de 14-15km/hora, se anteriormente esteve parado mais de 3 minutos. (resposta ao quesito 100);
61 - Qualquer desses equipamentos - tracção e convel - estavam a funcionar sem qualquer anomalia (resposta ao quesito 101);
62 - As portas que dão acesso ao comboio só ficam bloqueadas depois deste atingir a velocidade de 15 km/hora (resposta ao quesito 102);
63 - Este fecho inicial das portas não tem muita pressão, pois só ficam bloqueadas depois de a composição atingir a velocidade indicada de 15 km/hora, daí que as mesmas possam ser abertas quer de dentro quer do lado de fora (resposta ao quesito 104)”.
Como factos não provados, o acórdão recorrido referiu os seguintes:
“2 - A A. acabara de entrar, com os dois pés já para além da porta de entrada da carruagem, encontrando-se na entrada da carruagem em que iria viajar, com alguns passageiros à sua frente (resposta ao quesito 3)
3 - Tendo o referido comboio iniciado o seu andamento repentinamente (resposta ao quesito 4);
4 - Sem dar o sinal sonoro indicador de que o comboio iria reiniciar a sua marcha (resposta ao quesito 6);
5 - Não havia, na estação referida, qualquer funcionário da Ré para o fazer (resposta ao quesito 7);
(…)
32 - Só depois de o comboio ter começado a andar é que tanto a A. como o seu acompanhante começaram a correr em direcção ao mesmo (resposta ao quesito 95);
33 - Foi, então, que a A. tentou entrar no comboio quando o mesmo já se encontrava em andamento (resposta ao quesito 96);
34 - A A. porque o comboio já iniciara a sua marcha não conseguiu nele entrar tendo, ao que refere, caído à linha (resposta ao quesito 97).".

II. O DIREITO.

O Acórdão recorrido, para julgar procedente o recurso interposto pela R. e revogar a sentença do TAC, ponderou o seguinte:
“(…).
Ora, destes factos não é possível retirar que o desequilíbrio da autora - e consequente queda e lesões sofridas - é imputável a um facto ilícito praticado pela ré ou pelos seus funcionários.
Com efeito, apenas se provou que, estando aberta a porta da carruagem por onde a autora subiu para o comboio, esta desequilibrou-se e caiu, sofrendo diversos ferimentos, o que só por si - isto é, desacompanhado da prova de qualquer outro facto [pois verifica-se que não se apurou a versão da autora nem da ré, quanto à dinâmica do acidente (cfr. maxime e factos n.ºs 2 a 5 e 32 a 34, elencados como não provados na sentença recorrida, correspondentes aos quesitos 3, 4, 6, 7 e 95 a 97 e acima transcritos), ficando por apurar os exactos termos em que se deu tal desequilíbrio, ou seja, se o mesmo ocorreu pela causa indicada pela autora, pela ré ou eventualmente por outra não inteiramente coincidente com qualquer das causas indicadas pelas partes] - não pode ser considerado como traduzindo a prática de um facto ilícito, isto é, como consubstanciando a violação de um dever objectivo de cuidado por parte da ré ou dos seus funcionários, pois apenas lhes é imputável a abertura da porta da carruagem, mas cabe sublinhar que, para os passageiros poderem entrar e sair das carruagens, as respectivas portas têm de estar abertas pelo que, nada mais se tendo provado, não se pode considerar que o facto de a porta da carruagem se encontrar aberta viola qualquer dever objectivo de cuidado ou que é a causa do desequilíbrio da autora, pelo que tem de se concluir que a sentença recorrida errou ao julgar em sentido diverso.
Efectivamente, na sentença recorrida considerou-se que existe nexo de causalidade adequada entre a actuação da ré e o evento danoso, já que o risco criado pela falta de aviso para não subir para o comboio e pelo facto de ser possível o início da marcha do comboio com as portas da carruagem abertas, o que sucedeu, é, em abstracto, susceptível de provocar o evento danoso, ou seja, levar a que as pessoas subam para os comboios mesmo quando sabem que estão atrasadas em relação à hora da partida e ocorram quedas para a linha.
…..
Ora, da factualidade dada como provada nada resulta no sentido de que a autora subiu para o comboio quando este já estava em andamento - pressuposto em que assenta a sentença recorrida - pois, como acima salientado, apenas se apurou que, estando aberta a porta da carruagem por onde a autora subiu para o comboio, esta desequilibrou-se e caiu …. o que só por si - isto é, desacompanhado da prova de qualquer outro facto - não pode ser considerado como traduzindo a prática de um facto ilícito ou de um facto que tenha sido a causa do desequilíbrio da autora.
Ora, não sendo possível imputar à ré qualquer facto ilícito, nem de um facto que tenha sido a causa do desequilíbrio da autora (e da consequente queda e danos que sofreu), terá de ser concedido provimento ao recurso interposto pela ré, revogada a sentença recorrida e, consequentemente, julgada totalmente improcedente a presente acção, pois cabia à autora o ónus de provar os pressupostos da responsabilidade civil - concretamente o facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo causal -, os quais são de verificação cumulativa, pelo que a falta de prova de qualquer deles resolve-se contra ela, nos termos do art. 342º n.º 1, do Código Civil.

Dito por outras palavras, não se podendo imputar à ré qualquer facto ilícito que tenha sido a causa do desequilíbrio da autora (e da consequente queda e lesões sofridas), fica prejudicado o conhecimento do pressuposto relativo à culpa…...”
Resulta do exposto que o acórdão recorrido, considerando que a A. fundara a sua pretensão indemnizatória na responsabilidade civil extracontratual pela prática de facto ilícito, julgou não verificado o requisito da ilicitude da conduta da R. por não se ter apurado a versão de nenhuma das partes quanto à dinâmica do acidente, apenas se tendo provado que, estando aberta a porta da carruagem quando a A. subia para o comboio, esta se desequilibrou e caiu, desconhecendo-se as causas desse desequilíbrio.
Contestando este entendimento, a A., na presente revista, alega que resulta dos factos provados que a R. violou um dever objectivo de cuidado, dado o comboio ter arrancado sem que as portas das carruagens estivessem totalmente fechadas, por o chefe da estação ter dado o sinal para esse arranque quando a A. subia para a carruagem, nada tendo feito para a demover e por existir, entre a plataforma e o comboio, um espaço tão largo que permitia que uma pessoa normal caísse sobre a linha. Refere também que a causa dos danos sofridos não foi a queda, mas a existência desse espaço e o facto de ter sido dado o sinal de partida quando ela se encontrava caída sobre a linha, o que levou a que o rodado do comboio cortasse o seu calcanhar. Invocou ainda que, de qualquer modo, o acidente era imputável à R. a título de culpa presumida – nos termos do art.º 493.º, n.º 2, do Código Civil, por a circulação ferroviária ser uma actividade perigosa – ou com base no risco – nos termos dos nºs. 1 e 3 do art.º 503.º do mesmo código, por ser ela que, na altura do acidente, tinha a direcção efectiva e utilizava o comboio no seu próprio interesse e haver culpa presumida do seu maquinista.
Vejamos se lhe assiste razão.
À data do acidente em causa nos autos ainda estavam em vigor os artºs. 66.º e 69.º do Regulamento para a Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro, aprovado pelo DL n.º 39780, de 21/8/54, que só vieram a ser revogados pelo art.º 41.º, n.º 1, do DL n.º 58/2008, de 26/3.
Aquele art.º 66.º estabelecia que “cumpre à empresa indemnizar os passageiros de todos os prejuízos que sofrerem em consequência de acidente, quer nas suas pessoas, quer nos valores de mão e animais que levem consigo, salvo se demonstrar que o acidente foi produzido por caso fortuito, força maior, culpa da vítima ou de terceiro”.
Por sua vez, o mencionado art.º 69.º, depois de, no seu n.º 1, considerar passageiro toda a pessoa que viajasse no comboio munida de título de transporte, exceptuados os empregados e funcionários em serviço da empresa, dispôs, no n.º 2, o seguinte:
“Entende-se que o transporte começa no momento em que o passageiro se confia ao transportador e subsiste enquanto dura esta situação. São da responsabilidade do passageiro os actos de subir para a carruagem e descer dela”.
Assim, depois de o art.º 66.º estabelecer uma presunção de culpa, o n.º 2 do art.º 69.º exclui do contrato de transporte celebrado entre o utente e “CP” os actos de entrar e sair das carruagens.
Nestes termos, os danos sofridos pelos utentes da “CP” quando sobem para as carruagens ou descem delas apenas serão da responsabilidade desta empresa quando se verifiquem os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual previstos no art.º 483.º e seguintes do Código Civil, diploma aplicável por o acto causador do dano indemnizável se caracterizar como um acto de gestão privada.
Perante os factos que foram dados por provados, é de concluir que os danos sofridos pela A. resultaram de esta, quando subia para o comboio, se ter desequilibrado e caído na linha, tendo ficado entalada entre a carruagem e o muro do cais adjacente, onde permaneceu até que a composição se deslocou e afastou (cf. factos 8, 9 e 11, do probatório).
É, pois, esse desequilíbrio e queda a causa do acidente e dos prejuízos sofridos, não se podendo afirmar, como a recorrente, que estes resultaram de o rodado do comboio ter cortado o seu calcanhar por ter sido dado o sinal de partida quando ela estava caída sobre a linha.
Para concluir pela verificação da ilicitude, a A. alega, como vimos, a violação objectiva de deveres de conduta por parte dos funcionários ou agentes da R.
Porém, a matéria fáctica dada por provada não permite extrair essa ilação.
Efectivamente, estando apenas demonstrado que quando a A. subiu para a carruagem esta tinha a porta aberta, tendo ela então se desequilibrado e caído e não estando provado que quando o comboio reiniciou a sua marcha essa porta não estava totalmente fechada, não se pode concluir pela violação de um dever de cuidado resultante de o comboio ter arrancado sem as portas das carruagens estarem totalmente fechadas.
E, na ausência de qualquer facto provado que o demonstre, também não se pode imputar à R. a violação do mencionado dever com o fundamento que o sinal para o comboio arrancar foi dado quando a A. subia para a carruagem e sem que o chefe da estação fizesse algo para a demover. Com efeito, estando apenas provado o que consta dos factos 10, 56 e 57 do probatório e desconhecendo-se as circunstâncias em que a A. pretendeu subir para a carruagem, designadamente se foi antes ou depois de ter sido dado o sinal de partida, ou se o comboio já estava ou não em andamento, não é possível concluir no sentido por ela pretendido.
No que respeita à largura do espaço existente entre a plataforma e o comboio – matéria que não foi sequer alegada na petição inicial – nada se provou, não se podendo, por isso, inferir que pelo facto de A. ter caído sobre a linha se verificou a violação de quaisquer normas legais ou regulamentares que, aliás, nem sequer são indicadas ou de um dever de conduta dos funcionários e agentes da R, sendo certo também que não está demonstrado que a existência do referido espaço tenha sido causal do acidente ou que tenha provocado os danos.
Assim, o acórdão recorrido, ao considerar que não estava demonstrada a verificação do requisito da ilicitude, não merece a censura que lhe é dirigida pela recorrente.
Deve notar-se, porém, que estando em causa, na situação em apreço, a violação de deveres objectivos de cuidado em que a ilicitude implica a culpa, a A., ao considerar aplicável a presunção de culpa do art.º 493.º, n.º 2, do C. Civil, está, na realidade, a afirmar a existência de uma presunção de ilicitude.
Mas essa presunção não tem aqui aplicação, dado que, como entendeu o Assento do STJ de 21/11/79 (publicado no DR de 29/1/80), embora a circulação terrestre – onde se inclui a circulação ferroviária (cf., vg, o Ac. do STJ de 2/4/92 – Proc. n.º 081329) – envolva uma actividade perigosa foi precisamente por assim ser considerada que ela foi integrada na responsabilidade pelo risco.
Nestes termos, impendendo sobre a A. o ónus da prova dos factos constitutivos do seu direito (art.º 342.º, n.º 1, do C. Civil) e não existindo qualquer presunção de ilicitude nem estando provado que os agentes da R. praticaram um facto ilícito, não pode proceder a sua pretensão indemnizatória com base na responsabilidade civil extracontratual pela prática de facto ilícito, por recair sobre ela as consequências desvantajosas da verificação no caso de um “non liquet” probatório.
Quanto à responsabilização da R. com fundamento no risco, ao abrigo do art.º 503.º, do C. Civil, coloca-se a questão de saber se sendo a acção intentada com base na prática de facto ilícito, é admissível a convolação para a responsabilidade pelo risco quando a situação em causa também se enquadra nesta.
Cremos que a resposta a essa questão deve ser afirmativa, visto tal convolação não implicar a violação do princípio da estabilidade da instância nem a modificação da causa de pedir – que, de acordo com a teoria da substanciação, não é o facto jurídico abstracto tal como o autor o configura, mas o acontecimento concreto produtor dos efeitos jurídicos que ele pretende atingir –, traduzindo-se numa mera operação de qualificação jurídica dos factos materiais da causa que, nos termos do art.º 5.º, n.º 3, do CPC, o juiz pode livremente efectuar (cf. neste sentido, os Acs. do STJ de 23/3/2000 in BMJ 495.º-298 e de 14/4/2005 – Proc. n.º 05B686).
Assim, subsistindo um outro fundamento jurídico susceptível de determinar a condenação no pedido, teria o tribunal recorrido que o apreciar.
Portanto, merece provimento a presente revista, devendo os autos baixar ao TCA-Sul, a fim de aí se proceder à apreciação da pretensão indemnizatória da A. com base na responsabilidade pelo risco, bem como, se o seu conhecimento não ficar entretanto prejudicado, conhecer do recurso interposto pela A.



DECISÃO

Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido e ordenando a baixa dos autos ao TCA-Sul para os fins que ficaram referidos.
Sem custas.


Lisboa, 23 de Janeiro de 2019. – José Francisco Fonseca da Paz (relator) – Maria do Céu Dias Rosa das Neves – António Bento São Pedro.