Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0951/14
Data do Acordão:10/09/2014
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MADEIRA DOS SANTOS
Descritores:SUSPENSÃO DE EFICÁCIA
ACTO NORMATIVO
INCOMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
INTERVENÇÃO DE TERCEIRO
INTERVENÇÃO ESPONTÂNEA
Sumário:I – O requerido num processo cautelar não pode intervir espontaneamente ao lado do respectivo requerente.
II – O DL n.° 108/14, de 2/7, que alterou o DL n.° 68/2010, de 15/6, não é um acto administrativo, mas um acto normativo.
III – Não há regulamentos sob forma legislativa.
IV – Dado o disposto nos arts. 4°, n.° 2, al. a), e 24°, n.° 1, al. c), do ETAF, o STA carece de competência «ratione materiae» para conhecer do pedido de suspensão da eficácia daquele DL n.° 108/14.
Nº Convencional:JSTA00068940
Nº do Documento:SA1201410090951
Data de Entrada:08/07/2014
Recorrente:MUNICÍPIO DE LISBOA
Recorrido 1:CONSELHO DE MINISTROS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:SUSPEFIC
Objecto:DL 108/14 DE 2014/07/02.
Decisão:INCOMPETÊNCIA
Área Temática 1:DIR ADM CONT.
Legislação Nacional:CONST76 ART268 N4.
ETAF02 ART4 N2 A ART24 N1 C.
CPTA02 ART52 N1 ART120 N1 B.
CPA91 ART120.
CPC13 ART278 N1 A ART315 N1.
DL 379/93 DE 1993/11/05.
DL 558/99 DE 1999/12/17.
DL 68/10 DE 2010/06/15.
DL 92/13 DE 2013/07/11 ART13.
DL 133/13 DE 2013/10/03.
DL 108/14 DE 2014/07/02.
Jurisprudência Nacional:AC STAPLENO PROC01257/05 DE 2006/06/07.; AC STA PROC044490 DE1999/01/12.; AC STA PROC0678/04 DE 2004/11/03.
Referência a Doutrina:FREITAS DO AMARAL - CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO VOLI PAG353.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:
O Município de Lisboa veio requerer, contra o Conselho de Ministros e outras doze entidades identificadas nos autos, que se suspenda a eficácia do «acto administrativo» que diz estar «formalizado através» do DL n.° 108/2014, de 2/7, por a patente ilegalidade desse acto tornar manifesta a procedência da acção principal ou, pelo menos, por se mostrarem reunidos os requisitos do «fumus boni juris» e do «periculum in mora» e a ponderação dos interesses em conflito merecer uma resposta favorável ao requerente.

O Conselho de Ministros contestou, afirmando que o requerente não fez prova do acto, que a natureza legislativa deste acarreta a incompetência absoluta do tribunal e que, de todo o modo, não se verificam os requisitos de que depende a concessão da providência.

Contestaram também, e em conjunto, os requeridos A………………., SA, B…………………., SA, C………………, SA, e D……………………, SA, excepcionando a incompetência do tribunal «ratione materiae» e defendendo, para além disso, o indeferimento do pedido cautelar.

O requerido Município de Odivelas veio requerer que se admita a sua intervenção principal espontânea, ao lado do requerente.

Confrontado com a «resolução fundamentada» que o Conselho de Ministros emitira e cuja cópia consta de fls. 89 e ss. dos autos, o requerente opôs-se-lhe a fls. 355 e ss..

Essa oposição foi apreciada pelos requeridos contestantes, os quais pugnaram pelo seu indeferimento.

Visto que o próprio acto suspendendo se localiza num decreto-lei e que o cerne da discussão travada nos autos se refere a outros diplomas legais, o único facto assente e ligado à decisão a proferir consiste na emissão da «resolução fundamentada», advinda do Conselho de Ministros — cuja cópia consta de fls. 89 e ss. dos autos e que aqui se dá por reproduzida.

Passemos ao direito.
«Ante omnia», há que enfrentar e resolver — e sem mais delongas, dada a urgência da lide — uma ocorrência processual. O Município de Odivelas, indicado e citado como requerido, veio, a fls. 352, solicitar a sua intervenção principal espontânea, aderindo à posição do requerente. Mas é óbvio que esse município, porque incluído no lado passivo da lide, não pode transferir-se para o seu lado activo antes de nos autos se firmar que carece de legitimidade para ser demandado. Senão, o Município de Odivelas estaria no processo, simultaneamente, como requerente e requerido — o que seria absurdo e inadmissível. Portanto, a intervenção pretendida tem de ser rejeitada (art. 315°, n.° 1, do CPC), o que se decidirá a final.
Na análise deste meio cautelar — que visa suspender a eficácia do acto administrativo alegadamente «formalizado» através do DL n.° 108/14, de 2/7 — a questão que primeiramente se coloca respeita à competência absoluta do tribunal, negada pelos requeridos que deduziram oposição. E convém precisar já o âmbito do conhecimento do assunto.
Essa excepção dilatória de incompetência «ratione materiae» assume-se, virtualmente, como uma circunstância obstativa «ao conhecimento do mérito da pretensão formulada ou a formular» no processo principal (cfr. o art. 120°, n.° 1, al. b), «in fine», do CPTA). Mas tal excepção não foi assim apresentada nas contestações, já que estas directamente a assumiram como impeditiva do conhecimento da própria providência.
Isto significa que os contestantes, ao arguirem a incompetência do tribunal em razão da matéria, quiseram que o STA se declarasse incompetente para conhecer do meio cautelar, em vez de se limitar a indeferi-lo por causa de uma incompetência localizada na acção principal. E, tendo a excepção dilatória estes contornos, logo se vê que a averiguação da sua existência pode realizar-se para além de um campo demarcado pelo que pareça evidente ou manifesto.
E deve mesmo realizar-se assim, por força da própria índole da excepção. Nos tribunais especializados, os problemas de competência resolvem-se sempre pela afirmativa; pois seria absurdo que um desses tribunais, permanecendo na dúvida sobre a sua competência, superasse esse «non liquet» afirmando-se competente. É claríssimo que um tribunal administrativo não pode decidir um meio cautelar sem antes se ter assegurado de que, ao menos provavelmente, dispõe da competência necessária para o efeito. O que reclama uma pesquisa susceptível de exceder, até em muito, a imediação da evidência.
Esclarecida a amplitude do quadro cognitivo em que nos moveremos, há que averiguar se o acto suspendendo é um acto administrativo vero e próprio, como sustenta o requerente, ou se é, antes, um acto normativo pressuposto donde flui a excepção de incompetência «ratione materiae», deduzida nas contestações.
O requerente vislumbra tal acto administrativo no DL n.° 108/2014, de 2/7, tomado na sua globalidade. E este modo de identificação do acto — que nada tem a ver com a sua prova, questão que o Conselho de Ministros colocou e agora não releva — põe-nos imediatamente de sobreaviso; pois, se é indiscutível a possibilidade dum decreto-lei conter actos administrativos («vide» os arts. 268°, n.° 4, da CRP, e 52°, n.° 1, do CPTA), já começa a ser assaz improvável que um diploma desse tipo, que se espraia por quinze artigos, se reconduza à definição inserta no art. 120° do CPA.
Mas deixemos as probabilidades e procuremos as certezas. O DL n.° 108/2014, isto é, o acto ora suspendendo, alterou o DL n.° 68/2010, de 15/6, e o seu anexo. Este diploma incidira fundamentalmente sobre quatro pontos: criara o sistema multimunicipal de triagem, recolha selectiva, valorização e tratamento de resíduos sólidos urbanos das regiões de Lisboa e do Oeste; constituíra a sociedade D……………………., S A; atribuíra a concessão da exploração e gestão do sistema a essa sociedade; e, em anexo, aprovara os estatutos da D………………... Todos esses pontos persistem no regime trazido pelo DL n.° 108/2014, embora com alterações várias em que avulta uma, que especialmente desagrada ao requerente — a possibilidade, antes excluída, do capital social da D……………… ser maioritariamente detido por entidades privadas.
Assim, o DL n.° 108/2014 cumpriu uma função alteradora, e substitutiva, relativamente à versão original do DL n.° 68/2010. Ora, tendo em conta as características dessa função, o DL n.° 108/2014 só poderá ser um acto administrativo se o DL n.° 68/2010 o for também. E isto não decorre de meros ideais de simetria lógica, aliás merecedores de atenção; pois funda-se na própria natureza das coisas, que há-de ser idêntica em dois diplomas que intentaram reger sucessivamente o mesmo assunto, tratando-o num único e mesmo plano. Portanto, a resposta ao problema de saber se o DL n.° 108/2014 é, ou não, um acto administrativo tanto pode ser dada a partir deste diploma como a partir do DL n.° 68/2010 — posto que a natureza de ambos tem de ser idêntica.
É significativo que o requerente não tenha ousado dizer que o DL n.° 68/2010 era, já, um acto administrativo — revogado, por substituição, pelo DL n.° 108/2014. Mas isso, que o requerente silenciou, concorda, «ex necessitate», com a ideia exposta no requerimento inicial. Com efeito, já acima dissemos que as preocupações do requerente se centram na recomposição da estrutura accionista da D………………., operada pelo DL n.° 108/2014. Ora, tenderíamos a aceitar que a qualificação deste diploma, como acto administrativo, estava certa se o DL n.° 68/2010, ao constituir a D………………… tal e qual fez — isto é, com os estatutos aprovados em anexo e alterados pelo acto suspendendo — contivesse logo um acto administrativo.
Em tese, não é absolutamente impossível que a lei preveja que uma sociedade venha a constituir-se por acto administrativo, pois até já se reconheceu que uma hipótese desse género existira no passado (cfr. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, pág. 353). Mas, à resolução do problema presente, interessa, não o que a lei poderia ter previsto, mas o que efectivamente previu — o que nos remete para a pesquisa do título jurídico que legitimou a edição do DL n.° 68/2010.
Ora, esse título não está no regime jurídico do sector público empresarial, que constou do DL n.° 558/99, de 17/12, e está hoje vertido no DL n.° 133/2013, de 3/10 — como alvitra o requerente; nem está noutros diplomas que as partes exuberantemente convocaram. O dito título constava, sim, do DL n.° 379/93, de 5/11 — aliás, citado no preâmbulo do DL n.° 68/2010, de 15/6 — cujo art. 3°, n.° 2, impusera que a «criação e a concessão» dos sistemas multimunicipais do sobredito género fossem «objecto de decreto-lei». E é óbvio que, ao prever a «criação e a concessão» desses sistemas por «decreto-lei», o legislador do DL n.° 379/93 estava a impor a concomitante constituição, subordinada à mesma forma, das sociedades concessionárias que haveriam de geri-los, se elas ainda não existissem; pois seria impossível passar-se à concessão do sistema criado por decreto-lei sem aí se constituir também, e «uno actu», a sociedade concessionária.
A imposição de que tais matérias se regulassem por decreto-lei não era insignificante nem casual — e, tanto assim, que persiste no art. 3°, nº 1, do DL n.° 92/2013, de 11/7, cujo art. 13° revogou o referido DL n.° 379/93. Se o legislador impôs essa forma — legislativa — de expressão é porque a considerou mais adequada ao caso que previu (art. 9º, n.º 3, do Código Civil); e essa melhor adequação só poderia advir do facto de, nos decretos-leis criadores dos mencionados sistemas multimunicipais, se corporizarem opções de índole normativa, em vez de pronúncias que pudessem ser assimiladas a actos administrativos.
Ora, quando o próprio legislador qualifica as suas intervenções de um certo tipo como legislativas, fica, «ipso facto», autenticado o género de actuação que ele realizará. Persiste, evidentemente, a possibilidade de, dentro dessa actividade legislativa, se ter anomalamente insinuado a prática de algum acto administrativo «proprio sensu». Mas a insistência em olhar-se todo um diploma legal, cuja produção foi prevista noutro, como um acto administrativo esbarra num decisivo obstáculo — o dessa qualificação ser imediatamente «contra legem».
Assim, tanto o DL n.° 68/2010 como o DL n.° 108/2014 assumiram forma legislativa porque havia leis anteriores que a impunham. E tal imposição, por si só, descaracteriza logo tais diplomas como actos administrativos e insta a encará-los como actos normativos.
E, contra isto, é vão argumentar — como faz o requerente — em torno das características de generalidade e abstracção. Estas são, decerto, duas notas que normalmente acompanham a normatividade e habilitam a distinguir entre actos e normas. Mas nem sempre, já que é sabido que o intervencionismo estatal opera hoje frequentemente através de comandos que incidem sobre realidades particularizadas ou determinadas e que, não obstante, adoptam e possuem o valor de lei. E os diplomas legais dotados dessas especiais características têm sido agrupados num conceito significativamente designado como «leis-medida» ou «leis-providência» (cfr., v.g., o acórdão do STA de 12/1/99, proferido no recurso n.° 44.490).
Aliás, parece ter sido isso que ocorreu «in casu», com os DL’s ns.° 68/2010 e 108/2014 — enquanto actuantes no plano da constituição e da modificação da estrutura accionista de uma sociedade anónima. Seja qual for o grau de generalidade e de abstracção que divisemos nesses diplomas, é inequívoco — até pelo que sucessivamente dispuseram os DL’s ns.° 379/93 e 92/2013 quanto à necessidade do assunto ser «objecto de decreto-lei» — que as pronúncias vertidas no «acto» suspendendo e no decreto-lei que ele modificou se pretenderam normativas e foram-no na realidade.
Ademais, se dúvidas houvesse, elas haveriam de resolver-se em favor da normatividade — como este STA já decidiu («vide» o acórdão de 3/11/2004, proferido no proc. n.° 678/04).
Face à índole normativa do DL n.° 108/2014, é ocioso averiguar se ele foi o fruto de uma opção política ou meramente administrativa. É que, nesta última hipótese — a que tomasse o DL n.° 108/2014 como uma mera particularização modal de uma escolha política de fundo — continuaríamos a ter de afirmar a natureza legislativa do acto suspendendo, visto que não há regulamentos sob forma legislativa. Neste ponto, a doutrina e a jurisprudência são unânimes no sentido de que as normas formalmente legislativas emanadas do Governo são havidas como tal, não sendo possível negá-lo a pretexto de que elas seriam materialmente administrativas (cfr. v.g., o acórdão do Pleno do STA, proferido em 7/6/2006 no recurso n.° 1257/05).
Consequentemente, o acto suspendendo não é administrativo, mas legislativo. Ora, está excluída do âmbito da jurisdição administrativa a impugnação — e, nessa medida, também o conhecimento de algum meio cautelar que a prepare (art. 24°, n.° 1, al. c), do ETAF) — de actos praticados no exercício da função legislativa («vide» o art. 4°, n.° 2, al. a), do ETAF). E essa incompetência «ratione materiae» do STA — inicialmente indiciada no facto da providência ter por alvo todo um decreto-lei e que, agora, consideramos demonstrada e manifesta — prejudica a apreciação do mérito da providência, nos termos gerais (art. 278°, n.° 1, al. a), do CPC).
E é claro que a incompetência absoluta do tribunal obsta ainda ao conhecimento do incidente que o requerente deduziu quanto à «resolução fundamentada» emitida pelo Conselho de Ministros.

Nestes termos acordam:
a) Em rejeitar a intervenção principal espontânea do Município de Odivelas;
b) Em declarar a jurisdição administrativa incompetente, em razão da matéria, para conhecer desta providência cautelar e em absolver da instância as entidades demandadas.
As custas daquele incidente de intervenção ficam a cargo do Município de Odivelas.
Ficam a cargo do requerente, Município de Lisboa: as custas do procedimento cautelar — já que iniciativa processual do requerente não se inclui em nenhuma das hipóteses de isenção previstas no art. 4° do CRP; e as custas do incidente que ele deduziu a propósito da «resolução fundamentada», cuja taxa de justiça se fixa no mínimo.

Lisboa, 9 de Outubro de 2014. – Jorge Artur Madeira dos Santos (relator) – Maria Fernanda dos Santos Maçãs – José Augusto Araújo Veloso.