Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01654/02
Data do Acordão:12/12/2002
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:FREITAS CARVALHO
Descritores:FUNDAMENTAÇÃO VAGA.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Sumário:I - Não se encontra fundamentada de facto uma deliberação camarária que indefere o pedido de licenciamento de obra com base em considerações vagas e genéricas, juízos de cariz pessoal ou afirmações contraditórias como o facto de indeferir o licenciamento, apesar de o considerar legal.
II - Não se indicando qualquer norma legal e não sendo possível inferir dos termos da fundamentação referida em I a identificação da disciplina ou do quadro jurídico com base no qual se decidiu, a deliberação em causa carece, igualmente de fundamentação de direito.
Nº Convencional:JSTA00058558
Nº do Documento:SA12002121201654
Data de Entrada:10/23/2002
Recorrente:CM DE BELMONTE
Recorrido 1:A... E OUTRO
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAC COIMBRA.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - ACTO.
Legislação Nacional:CPA91 ART124-125.
Jurisprudência Nacional:AC STAPLENO DE 1991/01/24 IN AD N352 PAG533.; AC STAPLENO DE 1993/09/30 PROC28532.; AC STAPLENO DE 1997/10/29 PROC22267.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo.
1. A Câmara Municipal de Belmonte vem interpor recurso da sentença de fls. 79 e seg.s, não se conformando com a decisão que, por falta de fundamentação, anulou a sua deliberação de 21-02-2000 que havia indeferido o pedido de licenciamento da obra de reconstrução/remodelação/ampliação de um edifício sito na Rua da Igreja Matriz, n.º 28, em Belmonte, concedendo, assim, provimento ao recurso contencioso interposto por A... e B..., identificados nos autos.
A recorrente, a fls. 97, formula as seguintes conclusões:
1 - O acto administrativo está devidamente fundamentado desde que o destinatário se possa aperceber das razões de facto e de direito que levaram à tomada de uma decisão em certo sentido e não noutro.
2 - Os recorridos A... e irmã revelam, mormente na sua resposta à audiência prévia, que entenderam bem em que sentido ia a deliberação por si recorrida.
3 - Portanto, a fundamentação do acto recorrido é clara, coerente e completa.
4 - Considerando, em particular o facto de o recorrido haver sido vereador da Câmara Municipal de Belmonte.
5 - Em consequência, a douta sentença ora recorrida deve ser revogada, sendo substituída por outra que indefira o pedido de declaração da anulabilidade do acto recorrido.
6 - Ao decretar a anulalidade da decisão recorrida, a douta sentença recorrido violou o disposto no art. 125.º do C.P.A.
Os recorridos a fls. 99 a 101, contra-alegaram sustentando a falta de fundamentação de facto e de direito do acto anulado, concluindo pela manutenção do decidido.
Do mesmo modo, o Magistrado do M.º P.º junto deste STA, fls. 122, emite parecer no sentido do improvimento do presente recurso.
2. Com interesse para a decisão, consideram-se assentes os seguintes factos:
a) Em 29-09-00 foi remetido a A... o ofício n.º 1138, subscrito pelo Presidente da Câmara de Belmonte, do seguinte teor:
“Relativamente ao assunto em epígrafe informo V.ª Ex.ª que a sua pretensão de proceder à reconstrução/remodelação/ampliação de um edifício existente na Rua da Igreja Matriz, n° ..., em Belmonte, foi indeferida, com base nos fundamentos que constam da acta da reunião da Câmara datada de 21-02-2000, a folhas 25, 26 e 27, das quais se junta fotocópia, devidamente certificadas e autenticadas.”
b) De fls. 25 a 27 da acta da reunião da Câmara Municipal de Belmonte de 21-02-2000, consta o seguinte:
“4 - RECONSTRUÇÃO/REMODELAÇÃO/AMPLIAÇÃO DE CONSTRUÇÃO EXISTENTE - A... E OUTRO - BELMONTE
O Vice Presidente da Câmara, Senhor C..., apresentou a seguinte posição:
“Considerando que uma das virtudes da democracia é a de nos permitir defender os interesses legítimos da comunidade, ainda que com prejuízo dos interesses minoritários ou individuais, particularmente no que respeita à defesa dos valores patrimoniais os quais, geralmente, têm uma relação directa com os culturais, que, no caso em análise, caso seja aprovado, implicará prejuízos irreparáveis para a zona envolvente da Igreja Matriz o que contraria, claramente, toda a orientação que este executivo tem vindo a fazer na defesa do património (da qual o requerente sempre se mostrou defensor acérrimo, enquanto no desempenho das funções de Vereador do anterior Executivo) e que existem alternativas para permuta, na mesma zona de Belmonte, num raio de 100 mts, que permitirão ao requerente fazer aquilo que nos propõe, sem prejuízo dos valores patrimoniais da Vila, não posso concordar com o projecto que nos é proposto, pelo que voto contra, ficando disponível para colaborar na procura de outras soluções que satisfaçam o interesse da comunidade e do requerente, caso seja necessário.
a) C....”
O Vereador, Senhor Dr. D..., apresentou a seguinte posição:
“Sendo certo e muito positivo o princípio constitucional de que a todos os Portugueses é reconhecido o direito à habitação condigna e que o estado tem responsabilidades na matéria, tantas vezes esquecida, bastando para tanto lembrar os muitos portugueses que a não têm, a verdade é que tal direito como qualquer outro, deve ser exercido no respeito pela lei, e demais circunstâncias inerentes ao caso.
A não ser assim, o direito passa a ser abuso de direito é exercido irresponsavelmente.
A letra e espírito da lei não devem ser apenas e só os referenciais da decisão no que respeita à possibilidade de os cidadãos exercerem o direito à habitação.
Devem, também, salvo melhor opinião e com todo o respeito por outras opiniões, sempre legítimas e oportunas, ter em conta o sentir e querer da colectividade.
É que há decisões legais, que em tudo e ferem os sentimentos mais nobres da população a quem eventuais decisões afectam.
No caso, o licenciamento da construção urbana para habitação a que se refere o processo 94/99 sendo legal é, sem margem para dúvidas, inaceitável do ponto de vista social, património urbano construído, urbanístico, paisagístico e religioso.
Edificar em frente da Igreja Matriz de Belmonte revoltaria, seria objecto de crítica e reprovação social quanto ao órgão que licenciasse qualquer edificação que toldasse a vista à frontaria da Igreja Paroquial de Belmonte.
É que, e não sendo a mesma imóvel classificado no papel, ela é classificada na memória do povo que identifica tal monumento como aquele onde se vivem tantas alegrias e tristezas e se encontra alívio e razão de viver para tanta atribulação da vida.
Edificar em frente à Igreja Paroquial de Belmonte retira a esta impacto e dignidade.
Já basta de torres em frente ou ao lado da Igreja Matriz de Belmonte.
E a nós, autarcas da Câmara Municipal de Belmonte cabe a decisão de permitir ou não a edificação em apreço - processo n° 94/99.
Por mim e sem qualquer margem para dúvidas ou reserva mental entenda ser necessário preservar a Igreja Matriz de Belmonte.
O direito à habitação não pode, necessariamente passar pelo edificar em qualquer lugar e como se quer.
Há que preservar aquilo que é de todos por forma a que a beleza, a dignidade e impacto se mantenham.
A grandiosidade, a beleza da Igreja Matriz de Belmonte não passa por qualquer classificação de qualquer organismo público, mas sim pelo apreço, carinho e emoção de todos aqueles que a identificam como sua e nela se revêm.
E todos aqueles que a consideram sua (e são muitos) entre os quais me incluo, jamais compreenderiam (creio) que o executivo Municipal de Belmonte (nós) licenciasse qualquer obra nos moldes em que é requerida a referente ao processo n° 94/99.
Daí que e sem necessidade de mais considerações voto contra o licenciamento da obra objecto do processo n° 94/99 nos moldes em que é requerida.
Belmonte, 02/2000
a) D...
Vereador,”
O Vereador, Senhor E... apresentou a seguinte declaração de voto:
“DECLARAÇÃO DE VOTO PROCESSO RELATIVO A RECONSTRUÇÃO/AMPLIAÇÃO DE IMÓVEL PERTENCENTE A A...
Em virtude de este processo ser assunto de sucessivas reuniões de Câmara, sem que houvesse uma decisão sobre o mesmo.
Tendo ainda em atenção a minha situação transitória no Executivo Municipal de Belmonte, entendo que não devo tomar qualquer posição, quer ela seja favorável ou não sobre esta matéria, pelo que o meu voto é de abstenção relativamente a este processo.
Belmonte e Paços do Concelho, 21 de Fevereiro de 2000
O Vereador
a) E....”
A Câmara deliberou, por maioria, com os votos contra do Senhor Presidente da Câmara, do Senhor Vice Presidente e dos Vereadores, Senhores Dr. D... e F... e a abstenção do Vereador, Senhor E..., indeferir o pedido de Reconstrução/Remodelação/Ampliação de construção existente em nome de A... e Outro, em Belmonte.”
3. A sentença recorrida considerando que a deliberação contenciosamente impugnada “não se encontra fundamentada de acordo com o que se estipula nos artigos 124° e 125° do CPA “já que nela não se expressa nenhuma “razão válida (jurídica e factual)” porque “o projecto foi indeferido”, anulou-a por vício de forma por falta de fundamentação.
3.1 A única questão a decidir no presente recurso é, tão só, a de saber se deliberação da Câmara Municipal de Belmonte, transcrita na al. b) da matéria de facto, respeita ou não os requisitos do dever de fundamentação que os artigos 124 e 125 do Código de Procedimento Administrativo impõem para os actos administrativos.
Por outras palavras, saber se do acto que indeferiu o pedido de licenciamento formulado pelos aqui recorridos, constam ou não as razões de facto e de direito que conduziram àquela decisão.
Dispõe o artigo 124 do Código de Procedimento Administrativo que os actos administrativos, designadamente os que neguem direitos ou interesses legalmente protegidos, como é o caso da deliberação contenciosamente anulada, devem ser fundamentados, dispondo o artigo 125, do mesmo diploma, que a fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão (n.º 1), equivalendo à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto (n.º 2).
Como é sabido, o dever de fundamentação prossegue três objectivos essenciais: assegurar maior ponderação ao órgão decidente; dar ao conhecer a destinatário do acto as circunstâncias factuais e legais em que se baseou a decisão, assim lhe permitindo inferir dos pressupostos e da legalidade da mesma, aceitando-a, se concordar com as razões expressas, ou impugnando-a, no caso contrário (cfr. acórdãos do Pleno da 24.1.91 e de 30.9.93, in AD 352-533 e recurso n.º 28.532).
Como se escreve no acórdão do Pleno de 29-10-97, Recurso n.º 22.267 e 22.458, “o administrado tem o direito de ser esclarecido da todas as concretas razões em que se baseou o autor do acto e este o dever de as expressar em ordem a facultar àquele a sua efectiva tutela jurisdicional, o que de resto é postulado pelo princípio da transparência a que a Administração, no exercício das suas funções, está sujeita. Nesta medida, irrelavam como fundamentação as referências vagas e genéricas ou do tipo conclusivo, por as mesmas não serem susceptíveis de esclarecer «concretamente a motivação do acto»”
No caso em apreço, o fundamento da deliberação contenciosamente recorrida é constituído pelo conteúdo das declarações dos Vereadores C... e D... transcritas na al. b), da matéria de facto.
Da análise das mesmas resulta que não são indicadas quaisquer razões concretas para o indeferimento do licenciamento requerido pelos aqui recorridos, limitando-se à formulação de considerações vagas e genéricas, de juízos de cariz pessoal do tipo “Por mim e sem qualquer margem para dúvidas ou reserva mental entenda ser necessário preservar a Igreja Matriz de Belmonte.” ou como “E todos aqueles que a consideram sua (e são muitos) entre os quais me incluo, jamais compreenderiam (creio) que o executivo Municipal de Belmonte (nós) licenciasse qualquer obra nos moldes em que é requerida a referente ao processo n.° 94/99.”, e até contraditórias como resulta da afirmação “o licenciamento da construção urbana para habitação a que se refere o processo n.º 94/99 sendo legal é, sem margem para dúvidas, inaceitável do ponto de vista social, património urbano construído, urbanístico, paisagístico e religioso.”
A fundamentação do acto é pois, vaga e genérica - logo obscura -, contraditória - logo incongruente -, e ainda, insuficiente por que não esclarecer os motivos porque o projecto que suportava o pedido de licenciamento respeitante a processo n.º 94/99 foi indeferido, o que, nos termos do n.º 2, do artigo 125, do C.P.A. equivale à falta de fundamentação.
Para além disso, a deliberação anulada é completamente omissa quanto à fundamentação de direito já que nela não se indica qualquer norma legal, nem os termos da fundamentação usada possibilitam, ao menos, a identificação da disciplina ou do quadro jurídico com base no qual se decidiu.
Não se mostrando, pois, atingidas as finalidades do dever de fundamentação acima referidas, bem andou a sentença recorrida ao anular o acto administrativo contenciosamente recorrido por não respeitar os requisitos da fundamentação exigidos pelos artigos 124 e 125, o do C.P.A.
4. Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Sem custas.
Lisboa, 12 de Dezembro de 2002
Freitas Carvalho – Relator - João Cordeiro - Adérito Santos