Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01460/15
Data do Acordão:03/07/2018
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PEDRO DELGADO
Descritores:ACTO TRIBUTÁRIO
ANULAÇÃO PARCIAL
Sumário:O acto tributário de liquidação é por natureza um acto divisível e, consequentemente, é susceptível de anulação parcial, no respectivo processo de impugnação.
Nº Convencional:JSTA00070585
Nº do Documento:SA22018030701460
Data de Entrada:11/12/2015
Recorrente:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A..., SGPS, S.A.
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF PORTO
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR PROC FISC GRAC - LIQUIDAÇÃO
Legislação Nacional:LGT98 ART100.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC01973/02 DE 2003/03/26.; AC STA PROC0287/05 DE 2005/09/27.; AC STA PROC0583/10 DE 2011/01/12.; AC STA PROC0285/13 DE 2013/11/13.; AC STA PROC085/14 DE 2014/02/19.; AC STA PROC012/15 DE 2018/02/21.; AC STAPLENO PROC0298/12 DE 2013/04/10.
Referência a Doutrina:CASALTA NABAIS - DIREITO FISCAL 6ED PÁG421-422.
SALDANHA SANCHES - FISCALIDADE 7-8 JUL-OUT 2001 PÁG63.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo


1 – Vem a Autoridade Tributaria e Aduaneira recorrer para este Supremo Tribunal da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que, julgou procedente a impugnação deduzida pela sociedade “A…………….., SGPS, melhor identificada nos autos, contra o despacho de indeferimento da reclamação graciosa sobre o acto de liquidação de IRC referente ao exercício de 2008.

Termina as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:
«A. Vem o presente recurso interposto da douta sentença que determinou a anulação da totalidade da liquidação de IRC referente ao exercício de 2008, não obstante a Impugnante/Recorrida apenas ter considerado indevida a verba de € 30.068,34, respeitante a uma parte do valor da derrama que inicialmente havia autoliquidado.
B. Ordenando, consequentemente, a anulação de uma parte da liquidação que tão pouco foi impugnada.
C. Depreendendo-se assim que a douta sentença em apreço se baseou no entendimento de que o acto tributário de liquidação é indivisível e de que não é possível a anulação meramente parcial da liquidação.
D. Ora, ressalvado o devido respeito, com o que desta forma foi decidido, não se conforma a Fazenda Pública, sendo outro o seu entendimento, já que considera que a douta sentença sob recurso padece de erro na aplicação do direito, por violação do disposto no artigo 100º da LGT atendendo às razões que se passa a desenvolver.
E. Com efeito, determina o sobredito preceito que a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.
F. Podemos assim concluir pela admissibilidade da anulação parcial dos actos tributários, visto constituírem por natureza actos divisíveis.
G. Aliás, é neste sentido que tem propugnado a doutrina e vem decidindo a jurisprudência da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, fazendo apelo não só à referida divisibilidade, mas à natureza de plena jurisdição da sentença de anulação parcial do acto, invocando razões ligadas aos princípios processuais da economia processual e ligadas ao próprio âmbito do contencioso de mera anulação.
H. Assim, contrariamente ao sentenciado, a Fazenda Pública perfilha o entendimento de que circunscrevendo-se a ilegalidade cometida no facto de estando em causa uma situação em que se aplicava o regime especial de tributação de grupos de sociedade, a derrama relativa ao exercício económico de 2008 deveria ter incidido sobre o lucro tributável do grupo de sociedades em que a Impugnante/Recorrida é a sociedade dominante e não sobre o lucro individual de cada uma das sociedades incluídas no perímetro fiscal do referido grupo.
I. tal ilegalidade cometida é susceptível de ser corrigida mediante mera operação aritmética onde se expurgue o valor liquidado em excesso.
J. Aliás, a simplicidade de tal operação vem demonstrada na petição inicial, onde se encontra evidenciado o valor da derrama liquidado indevidamente (designadamente, €30.068,34), sustentado em simples cálculos aritméticos.
K. Afigurando-se-nos indubitável que in casu a ilegalidade cometida não fere de ilegalidade o acto no seu todo,
L. não se impondo assim a sua total anulação, mas, ao invés, a sua anulação meramente parcial nos precisos termos ora expostos.
M. Destarte, ao contrário do sentenciado, deveria ter sido determinado a anulação meramente parcial do acto de IRC impugnado, e não a sua anulação total.
N. Em suma, ao decidir-se como se decidiu, sempre com o devido respeito pelo labor do Tribunal a quo, a douta sentença incorreu em erro de julgamento sobre a matéria de direito, porque fez errada interpretação e aplicação do supracitado normativo legal.»

2 – Não foram apresentadas contra alegações.

3 O Exmº Procurador-Geral Adjunto pronuncia-se no sentido do provimento ao presente recurso e de que a sentença recorrida deve ser substituída por outra que, julgando procedente a impugnação, nos termos da decisão proferida, anule parcialmente o acto impugnado.

Colhidos os vistos legais, cabe decidir.

4 – No Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto foram dados como provados e com interesse para a decisão os seguintes factos:
«1. A impugnante é sociedade dominante de um grupo de sociedades, enquadrando-se no regime especial de tributação dos grupos de sociedades;
2. Nessa qualidade, em 15.03.2011 a impugnante submeteu a declaração de rendimentos, modelo 22, declaração de substituição da declaração apresentada em 31.05.2009, relativa ao seu grupo fiscal, para o exercício de 2008;
3. Tendo declarado a título de derrama o valor de €54.947,28, obtido através do somatório dos montantes das derramas apuradas individualmente ao nível das sociedades dependentes que compõem o Grupo;
4. Por não concordar com este método de apuramento a impugnante em 20.05.2011 apresentou reclamação graciosa da referida autoliquidação;
5. Esta reclamação veio a ser indeferida.»

5. Do objecto do recurso
Da análise da decisão recorrida e dos fundamentos invocados pela Fazenda Pública para pedir a sua alteração, podemos concluir que a questão objecto do recurso consiste em saber se incorre em erro de julgamento a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que anulou na totalidade, e não parcialmente, a liquidação do IRC (2008) impugnada pela ora Recorrida no segmento relativo ao cálculo da derrama.

Alega a recorrente, Fazenda Pública, que no caso em apreço era viável e legal a anulação parcial de tal liquidação de IRC com fundamento em excesso na quantificação do valor tributável.
Argumenta, em síntese, que circunscrevendo-se a ilegalidade cometida no facto de estar em causa uma situação em que se aplicava o regime especial de tributação de grupos de sociedades, e em que a derrama relativa ao exercício económico de 2008 deveria ter incidido sobre o lucro tributável do grupo de sociedades, a ilegalidade cometida era susceptível de ser corrigida mediante mera operação aritmética.
E acrescenta que a simplicidade de tal operação vem demonstrada na petição inicial, onde se encontra evidenciado o valor da derrama liquidado indevidamente (€30.068,34), sustentado em simples cálculos aritméticos.

Em suma, e como decorre do exposto, a questão controvertida circunscreve-se à questão da possibilidade de anulação parcial da liquidação, argumentando a Fazenda Pública que a sentença recorrida, ao determinar a anulação total da liquidação sindicada incorreu em erro de julgamento e violação do disposto no artº 100º da LGT.


5.1 Da questão da cindibilidade dos actos tributários de liquidação e da possibilidade da sua anulação parcial.

Este Supremo Tribunal Administrativo tem entendido, em geral, que os actos administrativos que impõem a obrigação de pagamento de uma quantia, designadamente os actos de liquidação de tributos, são naturalmente divisíveis, sendo-o também juridicamente, por a lei prever a possibilidade de anulação parcial dos mesmos (art. 100º da LGT) - cf. entre outros, os acórdãos proferidos em 26/03/2003, no processo n.º 1973/02; em 27/09/2005, no processo n.º 287/05; em 12/01/2011, no processo n.º 583/10, o acórdão 285/13 de 13.11.2013, o acórdão 85/14, de 19.02.2014, o acórdão de 21.02.2018, no recurso 12/15 e, em especial, o acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário 10/04/2013, proferido no processo 298/12.
Como se disse neste último aresto «se o juiz reconhecer que o acto tributário está inquinado de ilegalidade que só em parte o invalida, deve anulá-lo apenas nessa parte, deixando-o subsistir no segmento em que nenhuma ilegalidade o fira».
Sendo que o critério jurisprudencial para determinar se o acto deve ser total ou parcialmente anulado passa por determinar se a ilegalidade afecta o acto tributário no seu todo, caso em que o acto deve ser integralmente anulado ou apenas em parte, caso em que se justifica a anulação parcial.
Para além deste critério, que assenta na divisibilidade do acto tributário, também a doutrina (e a jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo) têm admitido a possibilidade de anulação parcial do acto tributário com base na natureza de sentença de plena jurisdição da sentença de anulação parcial do acto e por duas ordens de razões.
Por um lado por força do princípio da economia processual, para que da sentença ou acórdão do tribunal saia logo uma definição da situação que não careça de qualquer nova pronúncia da administração tributária.
Por outro lado por razões ligadas ao próprio âmbito do contencioso de mera anulação, num sistema de administração executiva como o nosso, no qual os limites à plena jurisdição só serão de aceitar em relação àqueles aspectos da acção administrativa em que a plena jurisdição implique para o juiz tributário, enquanto juiz administrativo, a prática de actos que afrontem o núcleo essencial da função administrativa – neste sentido Casalta Nabais, in Direito Fiscal, 6ª ed., pág. 421/422 e Saldanha Sanches, in Fiscalidade, 7/8, Julho-Outubro de 2001, págs. 63 e segs.
Assim, quando um acto de liquidação se baseia em determinada matéria colectável e se vem a apurar que parte dela foi calculada ilegalmente, por não dever ser considerada, não há qualquer obstáculo a que o acto de liquidação seja anulado relativamente à parte que corresponda à matéria colectável cuja consideração era ilegal, mantendo-se a liquidação na parte que corresponde a matéria colectável que não é afectada por qualquer ilegalidade.
Será essa, a nosso ver, a situação em análise nos presentes autos.

Como decorre da decisão sindicada foi impugnado o despacho de indeferimento da reclamação graciosa sobre o acto de autoliquidação de IRC referente ao exercício de 2008, no segmento relativo à derrama, a qual foi apurada com base no lucro tributável de cada uma das sociedades que integram o grupo e autoliquidada no valor de 54.947,29 €.
Estando em causa saber se a derrama devia ser calculada sobre o lucro tributável do grupo de sociedades ou se deveria ser apurada mediante a soma algébrica das derramas apuradas em cada uma das sociedades do grupo, foi pela sentença considerado que «nos casos em que esteja em causa a aplicação do RTGS a base de incidência da derrama para os efeitos do artigo 14.°, nº 1, da Lei nº 2/2007, de 15 de Janeiro (redacção então em vigor), será o lucro resultante da soma de lucros tributáveis e prejuízos fiscais individuais (resultado agregado), uma vez que apenas este se encontra sujeito a IRC (art. 64.°, n.° 1 do CIRC).»
Ora nenhum obstáculo existe à consideração do valor tributável tido pela sentença recorrida como relevante para determinação da colecta devida, na medida em que o valor tributável reduzido não implica a realização de nova liquidação, podendo ser obtido, como a recorrida demonstra, e a Administração Tributária admite na conclusão J das suas alegações de recurso, mediante correcção da liquidação efectuada por mera operação aritmética,

Acresce que, como bem nota o Ministério Público neste Supremo Tribunal Administrativo, a Impugnante, ora Recorrida, apenas sindicou o segmento da liquidação de IRC atinente ao cálculo da derrama sendo esse, portanto, o objecto da acção impugnatória e, naturalmente, aquele sobre o qual o tribunal a quo se pronunciou. Assim, tendo sido julgada procedente a impugnação, por ilegalidade da derrama autoliquidada, apenas o segmento da liquidação a ela relativo é atingido pela decisão anulatória.
Sucede que, não obstante o assim decidido, a sentença recorrida determinou a anulação (total) da liquidação de IRC controvertida.
Assim circunscrevendo-se a ilegalidade ao apuramento e determinação da derrama em causa, e mostrando-se que esse valor pode ser definido mediante simples operação aritmética, haverá que proceder à anulação parcial da liquidação sindicada e não à sua anulação total.

6 - Decisão

Termos em que acordam os Juízes deste Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar parcialmente procedente a impugnação, determinando a anulação da liquidação impugnada e correspondentes juros compensatórios apenas na parte em excedeu o valor da derrama apurada como base no lucro tributável do grupo de sociedades a que impugnante pertence.

Custas pela Fazenda Pública apenas em 1.ª instância e sem taxa de justiça pela recorrida neste recurso, uma vez que não contra-alegou.

Lisboa, 07 de Março de 2018. – Pedro Delgado (relator) – Dulce Neto – Isabel Marques da Silva.