Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:069/19.4BALSB
Data do Acordão:01/30/2020
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CA
Relator:MARIA DO CÉU NEVES
Descritores:UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Sumário:Sempre que estejamos perante quadros fácticos ou normativos diferentes, inexiste contradição de julgados.
Nº Convencional:JSTA000P25506
Nº do Documento:SAP20200130069/19
Data de Entrada:09/20/2019
Recorrente:MUNICÍPIO DE ALBUFEIRA
Recorrido 1:MINISTÉRIO PÚBLICO
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Pleno da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal
RELATÓRIO

O MUNICÍPIO DE ALBUFEIRA, inconformado com o Acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo proferido em 04.04.2019, no processo nº 0293/18, veio interpor recurso para uniformização de jurisprudência nos termos do disposto no artº 152º do CPTA, indicando como Acórdão Fundamento, o Acórdão igualmente proferido por este Supremo Tribunal, em 07.04.2011, no âmbito do processo nº 0601/10.

Apresenta para o efeito as seguintes CONCLUSÕES

«A. Conforme resulta de fls. 6 a 9, do Acórdão Impugnado, no Capítulo designado por “I. De Facto” a circunstância de facto subjacente ao Acórdão Impugnado é uma em que foi emitida Licença para Construção e de Utilização de Moradia (e muros de vedação), destinada a Habitação, em Prédio Rústico, situada em Zona de Uso Agrícola - segundo a Carta de Ordenamento do Plano Director Municipal de Albufeira - a um particular que não dispunha de habitação própria e sobre o qual existiam indicadores de carência habitacional.

B. No Acórdão Impugnado, considerou este Supremo Tribunal Administrativo que, in casu, o fundamento pelo qual a nulidade da licença de construção e da licença de utilização foi decretada pelo Tribunal de 1ª instância consubstancia um caso em que “a norma infringida está ao serviço de um direito ou interesse particularmente relevante, e cuja infracção, por isso mesmo, é sancionada com a nulidade”, por entender e considerar que “são os próprios fundamentos do sistema que são postos em crise por esse vício absoluto, de tal modo que a atribuição de quaisquer efeitos jurídicos, ainda que colaterais, ao acto nulo, representaria, por isso, um entorse intolerável na estrutura normativa do Estado de Direito”.

C. Entendeu por isso este Supremo Tribunal Administrativo - a fls. 13 - que: “E por isso mesmo foram declarados nulos ao abrigo do artigo 68°, alínea a), do RJUE, que pune com a nulidade as licenças urbanísticas que violem - nomeadamente - o que é disposto em «plano municipal de ordenamento de território e plano especial de ordenamento de território». Sendo que este labéu da nulidade, atento o «bem» por ele protegido, e que respeita ao correcto ordenamento do território nacional, se mantém enquanto se mantiverem as regras cuja violação o ditou [rebus sic standibus]. O que significa que esta declaração de nulidade continua actual, e que não fará sentido «suspender a instância» à espera de eventual alteração das normas cuja violação a ditaram - tal como sugere o recorrente MA - uma vez que isso resultaria numa pura instrumentalização da lei, alijando a aplicação da lei vigente em prol de normas incertas e futuras. A demolição enquanto acto de execução coerciva ao acórdão declarativo, deve suportar-se no regime jurídico vigente à data da sua determinação, pois é nessa data que se têm de verificar os requisitos que a habilitam, não fazendo qualquer sentido reportá-la quer a diplomas legais já erradicados da ordem jurídica quer normas futuras e incertas (destacado e sublinhado nossos).

D. A questão fundamental de direito em causa nos presentes autos consta de fls. 13, do Acórdão Impugnado, onde foi decidido que: “A demolição, enquanto acto de execução coerciva ao acórdão declarativo, deve suportar-se no regime jurídico vigente à data da sua determinação, pois é nessa data que se têm de verificar os requisitos que a habilitam, não fazendo qualquer sentido reportá-la quer a diplomas legais já erradicados da ordem jurídica quer normas futuras e incertas.”

E. Recorde-se que este Supremo Tribunal Administrativo demonstrou estar ciente, a fls. 10, do Acórdão Impugnado, que: “3. Efectivamente, defendem os recorrentes que a demolição do prédio - que deverá ser sempre a última opção - se mostra, no caso, uma medida desproporcional, e para mais numa situação em que se encontra em revisão o respectivo PDM, pelo que o mais sensato seria o tribunal conceder um prazo razoável [dois anos] para permitir a legalização da edificação [os artigos 173º do CPTA, e 102 °-A do RJUE]. O Recorrente MA chega a sugerir, inclusivamente, que se suspenda a instância pelo período de dois anos.”

F. Isto é, não obstante conhecer e saber que o PDM se encontra em revisão, considerou o Supremo Tribunal Administrativo que não é possível a legalização da construção, com base no entendimento de que: “A demolição, enquanto acto de execução coerciva ao acórdão declarativo, deve suportar-se no regime jurídico vigente à data da sua determinação, pois é nessa data que se têm de verificar os requisitos que a habilitam, não fazendo qualquer sentido reportá-la quer a diplomas legais já erradicados de ordem jurídica quer normas futuras e incertas.” (destacado e sublinhado nossos).

G. Ou seja, e como questão fundamental de direito, temos o afastamento pelo Supremo Tribunal Administrativo, da susceptibilídade de legalização da construção com base na entrada em vigor de um novo PDM (alteração do quadro legal) que permita a legalização da construção à luz dessa alteração.

H. Demonstrou-se que, in casu, não está em causa aferir a validade dos actos administrativos em função da lei vigente na data em que foram proferidos, mas sim a alteração do quadro legal ocorrida com a entrada em vigor do novo PDM, o qual pode permitir a legalização da construção à luz da nova lei,

I. Ora, o entendimento subjacente ao Acórdão Impugnado não consubstancia uma leitura que esteja de Acordo com a Jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo, existindo, de resto, inúmeros os Acórdãos que contrariam essa tese,

J. Isto porque, em 07.04.2011, no âmbito do Processo nº 0601/10 - Acórdão Fundamento - este Supremo Tribunal Administrativo proferiu Acórdão com o seguinte Sumário: “I - A demolição de obras não licenciadas só deve ser ordenada como última e indeclinável medida sancionatória da ilegalidade cometida, por força dos princípios da necessidade, adequação e indispensabilidade ou menor ingerência possível, decorrentes do princípio da proporcionalidade, e o poder de opção entre a demolição e a legalização de obras ilegais, não licenciadas, é discricionário quanto ao tempo da decisão, pois que esta pode ser tomada a todo o tempo. II - Esse poder de escolha funciona na base de um pressuposto vinculado, já que a demolição só pode ter lugar se a autoridade houver previamente concluído pela inviabilidade da legalização das obras, por estas não poderem satisfazer aos requisitos legais e regulamentares aplicáveis. III - O juízo de viabilidade de legalização, a empreender obrigatoriamente pela Administração, só é concebível enquanto reportado ao bloco de legalidade urbanística actual, pois não faria qualquer sentido que a Administração reportasse esse juízo de possibilidade de legalização a diplomas legais ou regulamentaras já erradicados da ordem jurídica. IV - Tendo a construção ilegal sido erigida em terreno integrado na RAN segundo o PDM aplicável então em vigor, e tendo a zona em que tal terreno se situa sido retirado da RAN com a aprovação e publicação do Regulamento da 1ª Revisão do PDM, a Administração está vinculada a emitir o juízo de viabilidade de legalização da construção não licenciada, juízo esse que, a ser positivo, traduzindo a viabilidade da conformação da obra com o bloco de legalidade actual, afastará a hipótese da demolição.” (destacado nosso).

K. Como se constata, o referido Acórdão Fundamento está em evidente, flagrante e manifesta contradição com o Acórdão Impugnado, porquanto, no Acórdão Fundamento, i) Decidiu-se que Administração tem o poder discricionário de optar entre a demolição e a legalização, podendo tomar essa decisão a todo o tempo; ii) Decidiu-se que a demolição só pode ter lugar se a Administração tiver previamente concluído pela inviabilidade da legalização das obras, por estas não poderem satisfazer os requisitos legais e regulamentares aplicáveis; iii) Decidiu-se que esse juízo de viabilidade - a efectuar pela Administração - é concebível enquanto reportado ao bloco de legalidade urbanística actual e/ou em revisão; e iv) Decidiu-se que se a zona de terreno onde foi feita a construção ilegal (integrado em RAN) for retirada da RAN em virtude de Revisão do PDM, a Administração está vinculada a emitir o juízo de viabilidade de legalização da construção não licenciada, juízo esse que, a ser positivo, traduzindo a viabilidade da conformação da obra com o bloco de legalidade actual, afastará a hipótese da demolição.

L. Enquanto que contrariamente no Acórdão Impugnado: i) Decidiu-se que Administração não tem qualquer poder discricionário de optar entre a demolição e a legalização, não podendo tomar essa decisão a todo o tempo, na medida em que foi desconsiderado o pedido do Município de Albufeira de concessão de prazo para conclusão da Revisão do PDM o que, duplamente, nega a existência desse poder discricionário e afasta a susceptibilidade de prazo para a enunciada Revisão; ii) Decidiu-se que a demolição deve ser imediatamente concretizada no prazo de 3 (três) meses, retirando ao Município de Albufeira o direito a, nos termos do Acórdão Fundamento, apreciar a viabilidade da legalização das obras, caso estas venham a satisfazer os requisitos legais e regulamentares aplicáveis na sequência da revisão do PDM; iii) Decidiu-se que esse juízo de viabilidade - a efectuar pela Administração - só é concebível enquanto reportado ao bloco de legalidade urbanística existente à data da construção, contrariamente ao que o Acórdão Fundamento que considerou que o juízo de viabilidade é reportado ao bloco de legalidade urbanística actual ou em conclusão de revisão; iv) Decidiu-se que não é susceptível de legalização a construção actualmente existente e que a única solução é a demolição, contrariamente ao que decidiu o Acórdão Fundamento, no âmbito do qual se considerou que se a zona de terreno onde foi feita a construção ilegal (integrada em RAN) for retirada da RAN em virtude de Revisão do PDM a Administração está vinculada a emitir o juízo de viabilidade de legalização da construção não licenciada, juízo esse que, a ser positivo traduzindo a viabilidade da conformação da obra com o bloco de legalidade actual, afastará a hipótese da demolição.

M. Como se constata, existe, entre Acórdão Impugnado e Acórdão Fundamento, uma evidente e manifesta contradição sobre a mesma questão fundamental de direito - susceptibilidade de legalização da construção com base na entrada em vigor de um novo PDM (alteração do quadro legal) que permita a legalização da construção à luz dessa alteração - sendo que as soluções perfilhadas no Acórdão Impugnado e no Acórdão Fundamento são opostas e contraditórias, procedendo de diversa interpretação dos mesmos critérios legais, sendo que estamos perante situações de facto substancialmente idênticas - em ambos os casos estamos perante terrenos situados em RAN, que daí serão retirados com a Revisão do PDM, o que permite a legalização -, pelo que a situação de facto e o respectivo regime legal são idênticos entre Acórdão Impugnado e Acórdão Fundamento.

N. Existe, de forma clara, contradição entre dois Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, sobre a mesma questão fundamental de direito, sendo que existe identidade, de facto e de enquadramento legal, entre Acórdão Impugnado e Acórdão Fundamento, existindo, todavia, contradição decisória, sendo que a infracção imputada ao Acórdão Impugnado se relaciona com a errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 106º, nº 2, do Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro.

O. Pois que o Acórdão Impugnado concluiu - erradamente e em contradição com o Acórdão Fundamento -, pela insusceptibilidade de legalização da construção com base na entrada em vigor de um novo PDM (alteração do quadro legal) que permita a legalização da construção à luz dessa alteração.

P. Pese embora a manifesta contradição entre Acórdão Impugnado e Acórdão Fundamento, a verdade é que é extensa a Jurisprudência que demonstra o desacerto do Acórdão Impugnado, de que são exemplo os seguintes Acórdãos:

Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, em 26.04.2001, no âmbito do Processo nº 046802, Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, em 09.04.2003, no âmbito do Processo nº 09/03, Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, em 29.11.2006, no âmbito do Processo nº 0633/04, Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, em 30.09.2009, no âmbito do Processo nº 0210/09, Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, em 24.03.2011, no âmbito do Processo nº 090/10, Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, em 25.09.2014, no âmbito do Processo nº 0226/14.

Q. Atento o exposto, e nos termos do disposto no artigo 152°, n° 6, do CPTA, requer-se que este Supremo Tribunal Administrativo: i) Verifique e decrete a existência da contradição existente entre Acórdão Impugnado e Acórdão Fundamento, tal como invocada e demonstrada supra; II) Decida a questão controvertida nos termos propugnados, isto é, no sentido de que: a) A Administração tem o poder discricionário de optar entre a demolição e a legalização, podendo tomar essa decisão a todo o tempo; b) A demolição só pode ter lugar se a Administração tiver previamente concluído pela inviabilidade da legalização das obras, por estas não poderem satisfazer os requisitos legais e regulamentares aplicáveis; c) Esse juízo de viabilidade - a efectuar pela Administração - só é concebível enquanto reportado ao bloco de legalidade urbanística actual; d) Se a zona de terreno onde foi feita a construção ilegal (integrado em RAN) for retirado da RAN em virtude de Revisão do PDM, a Administração está vinculada a emitir o juízo de viabilidade de legalização da construção não licenciada, juízo esse que, a ser positivo, traduzindo a viabilidade da conformação da obra com o bloco de legalidade actual, afastará a hipótese da demolição; e iii) Determine a anulação do Acórdão Impugnado, substituindo-se o mesmo por outro nos termos expostos».


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O Réu Ministério Público, notificado, veio apresentar as suas contra alegações, sumariando-as do seguinte modo:

«1ª – Não deve ser admitido o presente recurso de revista para uniformização de jurisprudência, por não verificação dos necessários pressupostos, já que inexiste contradição de julgados, relativamente a uma mesma questão fundamental de direito, entre o Acórdão STA recorrido e o Acórdão STA invocado pelo Recorrente como “fundamento”.

2ª – O Acórdão STA recorrido julgou que a demolição da construção a que se referem os autos, em consequência do vício de nulidade por situada em área de “RAN”, não deve aguardar – como o Município Recorrente defende –, nomeadamente por dois anos, eventual e incerta alteração do quadro normativo aplicável, com o objectivo de, nesse caso hipotético, poder vir a ser possível a sua legalização.

3ª – Concluiu, assim, que a demolição, enquanto acto de execução coerciva do acórdão declarativo (ou o seu afastamento por viabilidade de legalização da construção), deve suportar-se no regime jurídico vigente à data da sua determinação, pois é nessa data que se têm de verificar os requisitos que a habilitam, não fazendo qualquer sentido reportá-la quer a diplomas legais já erradicados da ordem jurídica quer a normas futuras e incertas.

4ª – Ora, o Acórdão STA invocado como “fundamento” admitira a não execução da demolição de construção implantada em “RAN” apenas porque, entretanto, o quadro normativo já se alterara, pelo que o regime jurídico vigente “actual” permitia, agora, a respectiva legalização.

5ª – Advertiu, porém, expressamente que, caso o quadro normativo aplicável não se tivesse entretanto modificado (isto é, se a situação fáctica fosse, afinal, idêntica à tratada pelo Acórdão STA recorrido), «a situação dos autos não admitiria naturalmente outra solução que não fosse a da ordem de demolição».

6ª - Portanto, ambos os Acórdãos deste STA (Acórdão recorrido e Acórdão “fundamento”) entenderam o mesmo: que é à luz do quadro normativo vigente aplicável, contemporâneo, que há-de efectuar-se a necessária ponderação sobre a possibilidade de legalização de uma construção em ordem a evitar-se a sua demolição.

7ª - Assim, a diferença de julgamento entre os dois arestos não resultou de diferente interpretação do direito mas sim de diferentes situações fácticas: enquanto no caso apreciado pelo Acórdão “fundamento”, o quadro normativo tinha entretanto mudado e, “actualmente”, a legalização era possível (pois a zona da construção deixara, já, de estar incluída na RAN), no presente caso, apreciado pelo Acórdão recorrido, a construção mantém-se em área RAN, insusceptível, pois, de legalização à luz do quadro normativo aplicável actualmente vigente.

8ª – E nenhum dos 6 Acórdãos do STA invocados pelo Recorrente na sua alegação de recurso contradiz este julgamento do Ac. do STA recorrido e do Ac. do STA “fundamento”, limitando-se a confirmar que a necessária ponderação (ainda que oficiosa) sobre a viabilização da legalização de uma construção ilegal em ordem a evitar-se a sua demolição há-de reportar-se ao quadro normativo vigente, “actual”, contemporâneo, e não a quadros normativos não vigentes (passados ou eventuais futuros).

9ª – Deve, pois, ser rejeitado o presente recurso para uniformização de jurisprudência.

10ª – Ainda que houvesse de uniformizar-se jurisprudência – o que só por mera cautela se refere -, considerando a fundamentação dos Acs. STA recorrido e “fundamento”, bem como a fundamentação dos demais 6 Acs. do STA invocados pelo Recorrente, a uniformização não poderia ser outra que não a indicada: que «a necessária ponderação (ainda que oficiosa) sobre a viabilização da legalização de uma construção ilegal em ordem a evitar-se a sua demolição há-de reportar-se ao quadro normativo vigente, “actual”, contemporâneo, e não a quadros normativos não vigentes (passados ou eventuais futuros)».


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Colhidos os vistos legais cumpre decidir.

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2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. MATÉRIA DE FACTO

Nos termos do disposto no artº 663º nº 6 do CPC ex vi dos artºs 1º e 140º, nº 3 do CPTA, dão-se aqui como reproduzidas as factualidades pertinentes dadas como provadas no acórdão recorrido e acórdão fundamento.


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2.2. MATÉRIA DE DIREITO

QUESTÃO PRÉVIA DA INADMISSIBILIDADE DO RECURSO

De acordo com o preceituado no art. 152º do CPTA, os requisitos de admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência são os seguintes:

a) que exista contradição entre um acórdão do TCA e outro acórdão anteriormente proferido pelo mesmo ou outro TCA ou pelo STA;

b) que essa contradição recaia sobre a mesma questão fundamental de direito;

c) que se tenha verificado o trânsito em julgado do acórdão impugnado e do acórdão fundamento;

d) que não exista, no sentido da orientação perfilhada no acórdão impugnado, jurisprudência mais recentemente consolidada no STA.

Mantêm-se ainda os princípios que vinham da jurisprudência anterior segundo os quais (i) para cada questão relativamente à qual se pretenda ocorrer oposição deve o recorrente eleger um e só um acórdão fundamento; (ii) só é figurável a oposição em relação a decisões expressas e não a julgamentos implícitos; (iii) é pressuposto da oposição de julgados que as soluções jurídicas perfilhadas em ambos os acórdãos - recorrido e fundamento - respeitem à mesma questão fundamental de direito, devendo igualmente pressupor a mesma situação fáctica; (iv) só releva a oposição entre decisões e não entre a decisão de um e os fundamentos ou argumentos de outro.

No caso dos autos, impõe-se desde já esclarecer que tudo indicia que não se verifica um dos pressupostos essenciais à admissão do recurso de uniformização interposto.

Senão, vejamos:

Suscita o recorrente Município de Albufeira, no presente recurso, uma questão de direito relativamente à qual alega que o Ac. deste STA [acórdão recorrido] julgou contraditoriamente a anterior Ac. do mesmo Tribunal [acórdão fundamento].

Convoca, para o efeito, uma “evidente e manifesta contradição sobre a mesma questão fundamental de direito – susceptibilidade de legalização da construção com base na entrada em vigor de um novo PDM (alteração do quadro legal) que permite a legalização da construção, à luz dessa alteração”.

No Acórdão recorrido julgou-se:

«No caso concreto - em revista - os actos administrativos foram «declarados nulos» por o seu conteúdo dispositivo - licenciador - ter conduzido a uma utilização «não agrícola» de solo integrado na RAN [Reserva Agrícola Nacional), mais concretamente na RAA [Reserva Agrícola do Algarve], e ter desrespeitado norma que combate «habitação dispersa» [artigos 18°, n°3.1, do Regulamento do PDM de Albufeira, e 26°, n°2, do PROT-Algarve].

E por isso mesmo foram declarados nulos ao abrigo do artigo 68°, alínea a), do RJUE, que pune com a nulidade as licenças urbanísticas que violem - nomeadamente - o que é disposto em «plano municipal de ordenamento do território e plano especial de ordenamento do território». Sendo que este labéu da nulidade, atento o «bem» por ele protegido, e que respeita ao correcto ordenamento do território nacional, se mantém enquanto se mantiverem as regras cuja violação o ditou [rebus sic standibus].

O que significa que esta declaração de nulidade continua actual, e que não fará sentido «suspender a instância» à espera de eventual alteração das normas cuja violação a ditaram - tal como sugere o recorrente MA - uma vez que isso resultaria numa pura instrumentalização da lei, alijando a aplicação da lei vigente em prol de normas incertas e futuras.

A demolição, enquanto acto de execução coerciva do acórdão declarativo, deve suportar-se no regime jurídico vigente à data da sua determinação, pois é nessa data que se têm de verificar os requisitos que a habilitam, não fazendo qualquer sentido reportá-la quer a diplomas legais já erradicados da ordem jurídica quer a normas futuras e incertas».

Ou seja, o Acórdão recorrido confirmou a improcedência da pretensão do Município de aguardar, através de “suspensão da instância” executiva, in casu, por dois anos, eventual alteração do PDM de Albufeira que viesse a “retirar” a moradia em causa da área de Reserva Agrícola nacional (RAN) – ou, mais concretamente da área da Reserva Agrícola do Algarve (RAA) -, onde se encontra actualmente implantada.

E este julgamento feito no acórdão recorrido teve subjacente o facto de, embora a demolição de uma construção deva sempre ser evitada quando se verifique a possibilidade da sua legalização, a ponderação desta possibilidade de legalização terá ser efectuada à luz do quadro normativo vigente, contemporâneo, não tendo sentido fazê-lo com referência a normas não vigentes – seja à luz de normas que vigoraram no passado, já suprimidas, seja à luz de normas futuras eventuais e incertas, ou aguardar-se por estas.

Entende, no entanto, o recorrente que este julgamento contrariou julgamento anterior deste mesmo STA consignado no Acórdão que invoca como “fundamento”, a que supra fizemos referência. [Ac. STA de 7/4/2011, proc. nº 0601/10].

No entanto, da leitura do acórdão fundamento, não se vislumbra a existência da alegada contradição de julgamento quanto à questão suscitada pelo recorrente, pois este em nada contraria o consignado no acórdão recorrido.

Isto porque, o acórdão fundamento [07.04.2011] apenas admitiu a não execução da demolição da construção ali em causa, porque o quadro normativo aplicável já se havia alterado, desde a data da decisão da demolição, tendo passado, deste modo, a possibilitar, à data da prolação do acórdão fundamento, a legalização da referida construção.

De tal forma assim é que, no acórdão fundamento, se deixou consignado o seguinte:

«(…) o certo é que o processo de revisão do PDM veio a ser concluído, dele resultando uma alteração da caracterização dos solos, com a saída do prédio em causa da zona RAN e a sua integração numa zona urbanizável multiusos, conforme planta de localização junta ao PA, estando o Regulamento da 1ª Revisão do PDM de Vila Franca de Xira já aprovado e publicado em DR, 2ª série – Nº 224, de 18.11.2009 – Aviso nº 20905/2009.

(…) Ora, o referido “juízo de viabilidade de legalização da construção não licenciada”, pressuposto vinculado de que falam os arestos deste STA atrás citados, e que deve anteceder a opção demolição/legalização, terá naturalmente que reportar-se ao quadro normativo legal e regulamentar actual, existente à data da emissão de tal juízo.

(…) O juízo de viabilidade de legalização, a empreender obrigatoriamente pela Administração, só é concebível enquanto reportado ao bloco de legalidade urbanística actual. Dito de outro modo, esse juízo de viabilidade será positivo se positiva for a resposta à pergunta seguinte: no momento actual a construção era legalmente viável?

(…) Aqui chegados, dúvidas não subsistem de que, à luz do actual instrumento de gestão territorial, cujo processo de revisão, iniciado em 2005, foi concluído com a aprovação e publicação do Regulamento da 1ª Revisão do PDM de Vila Franca de Xira (DR, 2ª série – Nº 224, de 18.11.2009), e pelo qual foi retirado da RAN a zona em que se situa o terreno em que a construção ilegal foi erigida, a Administração está vinculada a emitir o juízo de viabilidade de legalização da construção não licenciada».

Resulta do exposto que, quer o acórdão recorrido, quer o acórdão fundamento, são unânimes no entendimento de que é à luz do quadro normativo vigente aplicável, contemporâneo, que se deve efectuar a necessária ponderação sobre a possibilidade de legalização de uma construção, com vista a evitar-se a sua demolição.

Quer isto dizer que a diferença de julgamento entre os acórdãos recorrido e fundamento, não resultou de diferente interpretação sobre o mesmo direito aplicável, mas, ao invés, de diferentes situações fácticas e normativas.

Enquanto no domínio do caso apreciado pelo Acórdão “fundamento”, o quadro normativo tinha entretanto mudado e, “actualmente”, à data da sua prolação, a legalização já era possível (pois a zona da construção deixara, já, de estar incluída na RAN), no caso, apreciado pelo Acórdão recorrido, à data da sua prolação, a construção mantém-se em área RAN, insusceptível, pois, de legalização à luz do quadro normativo aplicável à data vigente.

E, aliás, esta questão, não deixou de ser abordada pelo acórdão fundamento, tendo-se, inclusive, feito constar a este propósito o seguinte:

«Em condições normais de estabilização do quadro legal e regulamentar [ou seja, não fora a alteração do quadro normativo], é evidente que, mesmo em sintonia com a orientação jurisprudencial atrás assinalada – que aponta a demolição como último e indeclinável remédio da situação de ilegalidade, necessariamente antecedida de um juízo sobre a possibilidade de legalização ou conformação da obra com os ditames urbanísticos infringidos – a situação dos autos não admitiria naturalmente outra solução que não fosse a da ordem de demolição (…)» (fls. 14).

Ou seja, o acórdão fundamento afirma de forma expressa que, se estivesse perante a situação fáctica presente no acórdão recorrido, «a situação dos autos não admitiria naturalmente outra solução que não fosse a da ordem de demolição», tal como foi entendido e julgado no acórdão recorrido.

Deste modo, sempre que estejamos perante quadros fácticos ou normativos diferentes não se pode falar em contradição de julgados.

Por fim, cumpre esclarecer que nos recursos para uniformização de jurisprudência, apenas se admite a invocação de um acórdão fundamento; assim, quanto aos demais acórdãos convocados pelo recorrente, não está este Supremo Tribunal Administrativo obrigado, em relação aos mesmos, a analisar a questão suscitada, que diga-se de passagem, nunca permitiria concluir, pela existência de oposição de julgados, quanto à mesma questão de direito, uma vez, que naqueles, igualmente, são tratadas questões fácticas e normativas diferentes.

Atento o exposto, dúvidas inexistem de que não se verifica qualquer contrariedade decisória sobre a mesma questão fundamental de direito.

Resulta, assim, e sem necessidade de mais considerandos, que não se verifica o pressuposto da alínea b) do nº 1 do artigo 152º do CPTA, motivo pelo qual este recurso para uniformização de jurisprudência não deve ser admitido.


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3. DECISÃO

Nestes termos, os Juízes do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal acordam em não admitir o presente recurso.

Custas pelo recorrente.

DN sem cumprimento do disposto no nº 4, «in fine», do artigo 152º do CPTA.

Lisboa, 30 de Janeiro de 2020. – Maria do Céu Dias Rosa das Neves (relatora) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa – Jorge Artur Madeira dos Santos – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – José Augusto Araújo Veloso – José Francisco Fonseca da Paz – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano – Ana Paula Soares Leite Martins Portela.