Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0268/11
Data do Acordão:06/28/2011
Tribunal:2 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:SÃO PEDRO
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO
ILICITUDE
Sumário:Apesar de ter havido um prévio licenciamento de uma obra particular praticado pela Câmara Municipal de Cascais, o posterior acto de embargo da mesma obra, da autoria do Secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, no âmbito da sua competência, só é um facto ilícito gerador da obrigação de indemnizar por parte do Estado Português – sendo certo que na acção respectiva nada é pedido ao Município – se esse acto for ilegal
Nº Convencional:JSTA000P13054
Nº do Documento:SA1201106280268
Recorrente:B...
Recorrido 1:ESTADO
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
1. Relatório
1.1 Recurso da sentença final
B…, LDA., por não se conformar com a sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa que julgou improcedente a acção administrativa comum, sob a forma ordinária, por si intentada contra o Estado Português, para efectivação de responsabilidade civil extra-contratual pela “prática de actos administrativos ilícitos”, recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
A - DA OFENSA DO CASO JULGADO DO AC. STA, DE 1993.11.18
1ª O douto Acórdão deste Venerando Supremo Tribunal Administrativo, de 1993.11.18, decidiu com trânsito em julgado anular o despacho do SEALOT, de 1990.05.11, com fundamento em erro nos pressupostos de direito, reconhecendo a sua manifesta ilegalidade – cfr. texto nºs. 1 a 5;
2ª A douta sentença recorrida, ao decidir que o referido aresto não é "suficiente para se nele fundar um juízo de ilicitude", desrespeitou frontalmente o decidido com trânsito em julgado (v. arts. 671º e segs. do CPC), tanto mais que o erro nos pressupostos de direito consubstancia vício de violação de lei - ilegalidade de natureza material, reportada à própria substância, conteúdo, pressupostos ou objecto do acto administrativo - e não mero vício de forma (v. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, p.p. 383 e Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Vol. l, p.p. 501 e segs.; cfr.. entre outros, Ac. STA de 2010.12.16, Proc. 0396/10, www.dgsi.pt)- cfr. texto nºs.1 a 5;
B – DO ÂMBITO MATERIAL DOS DIREITOS DA ORA RECORRENTE
3ª. A ora recorrente era - e é - titular do Alvará de Licença n.º 3380, emitido pela Câmara Municipal de Cascais, em 1989.10.19, que licenciou a construção de "um prédio com 8 fogos sito na Galiza lote n.º 2 “ (v. al. 5 dos FA) - cfr. texto nºs. 6 a 10;
4ª. O referido acto administrativo assume claramente natureza constitutiva de direitos (v. art. 266° da CRP; cfr. art. 3° do CPA), sendo a ora recorrente titular de direitos adquiridos e interesses legalmente protegidos relativamente à construção do prédio em causa (v. art. 13° do DL 166/70, de 15 de Abril, art. 29°/3 do DL 448/91, de 29 de Novembro e arts. 18° e segs. e 77° do DL 555/99, de 16 de Dezembro) – cfr. texto nºs. 6 a 10;
5ª. O Estado Português violou frontalmente os direitos de propriedade e de iniciativa económica da ora recorrente, maxime o seu direito de construir o prédio em causa, titulado pelo Alvará de Licença n.º 3380 (v. arts. 20°, 61º e 62° da CRP) – cfr. texto nºs. 6 a 10;
C – DOS PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
6ª. Contrariamente ao decidido na douta sentença recorrida, a ora recorrente tem direito a ser ressarcida pelos danos emergentes e lucros cessantes resultantes das actuações ilícitas do Estado Português, no âmbito do instituto da responsabilidade extracontratual por factos ilícitos, cujos pressupostos se encontram previstos no art. 22° da CRP, no DL 48051/67 e nos arts. 483° e segs. e 562º e segs. do Código Civil (cfr. Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro) - cfr. texto nºs. 11 e 12;
7º. No caso sub judice verificam-se os pressupostos da responsabilidade extracontratual do ora recorrido - facto ilícito, culpa, dano e nexo de causalidade - cfr. texto nº s . 11 e 12;
CA – Da ilicitude
8º. O douto Acórdão deste Venerando Supremo Tribunal Administrativo, de 1993.05.18, transitado em julgado, que reconheceu a ilegalidade do despacho do SEALOT, de 1990.05.11, com fundamento em erro nos pressupostos de direito, "é suficiente para se nele fundar um juízo de ilicitude", pois "a ilicitude do acto administrativo coincide com a sua ilegalidade" (v. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, p.p. 398 e segs.) – cfr. texto nºs. 13 a 15;
9º. Os actos proferidos no procedimento administrativo que culminou com a ordem de embargo e demolição sub judice violaram frontalmente os direitos fundamentais da ora recorrente, maxime os seus direitos de propriedade e de iniciativa económica concretizados pelo Alvará de Licença n.º 3380, que lhe conferiu o poder de construir o prédio em causa (v. n.º 5 dos FA) – cfr. texto nº 16;
10º. É manifesto que se verificam in casu os pressupostos da indemnização por
violação dos princípios da confiança e da boa-fé, pois:
- É manifesta a existência de uma situação de confiança, gerada pelo licenciamento do prédio da ora recorrente;
- É inquestionável, em face da matéria dos autos, a justificação da situação de confiança na qual a ora recorrente se encontrava investida;
- Todas as acções respeitantes à construção do edifício configuram um investimento de confiança;
- A situação de confiança fundada e o investimento respectivo são imputáveis à actuação das entidades públicas que intervieram na aprovação e licenciamento do edifício da ora recorrente – cfr. texto nºs. 17 e 18;
11º. As ordens de embargo e demolição da construção da ora recorrente são assim claramente ilícitas, tendo a douta sentença recorrida violado frontalmente o disposto no art. 22° da CRP, nos art. 483º e segs. e 562° e segs. do C. Civil e no art. 2° do DL 48051, de 1967.11.21 (v. Ac. STA de 2006.03.14, Proc. 1794/02) - cfr. texto nºs. 13 a 18;
CB – Da culpa
12°. A culpa dos órgãos e serviços do Estado Português resulta desde logo da ilicitude do despacho do Senhor SEALOT, de 1990.05.11, que ordenou o embargo e demolição da construção do prédio em causa, pois "na responsabilidade civil extracontratual da Administração pela prática culposa de actos ilícitos, a culpa diluí-se na ilicitude" (v. Acs. STA de 2005.11.23, Proc. 648/05, www.dgsi.pt) cfr. texto nºs. 20 a 22;
13°. Além disso, os órgãos e serviços do Estado Português não agiram com a diligência exigível face às circunstâncias em que ocorreram as actuações ilícitas sub judice (v. art. 266° da CRP; cfr. art. 3º do CPA), pelo que a sua culpa é inquestionável:
- Os referidos actos paralisaram durante oito anos a construção de um edifício que a ora recorrente estava a executar de acordo com os licenciamentos que lhe foram concedidos pelas entidades públicas competentes (v. n.º s 5 e 9 dos FA), causando-lhe os extensos prejuízos que foram invocados e provados na presente acção (v. art. 22° da CRP):
- Foram desrespeitados ostensivamente os actos constitutivos de direitos de que a ora recorrente era titular, nomeadamente os actos de licenciamento da operação de loteamento e da construção e os deferimentos tácitos das consultas realizadas pela CMC à DGOT e à CCRLVT;
- À data da prática do acto anulado – 1990.05.11 – já tinha sido proferida abundante jurisprudência deste Venerando Supremo Tribunal Administrativo relativamente à questão da forma e condição de eficácia dos actos em causa (v., por todos, Ac. STA de 1988.04.12, Proc. 022665, www.dgsi.pt);
- Pela Portaria nº. 89/97, de 5 de Fevereiro, publicada no Diário da República, I Série – B, p.p. 629, o próprio Senhor SEALOT, no exercício de competências delegadas, ratificou o Plano de Pormenor da Galiza, que fixou os parâmetros urbanísticos para o terreno da ora recorrente, permitindo-se a conclusão da construção que foi objecto de ordem de embargo e demolição – cfr. texto nºs. 23 a 25;
CC – Dos danos
14º. Em consequência das actuações ilícitas do Estado Português, verificaram-se diversos prejuízos na esfera jurídica da ora, consubstanciados em danos emergentes, bem como em lucros cessantes, decorrentes da impossibilidade de reinvestimento na sua actividade dos lucros resultantes da comercialização do seu empreendimento, em condições normais de mercado (v. art. 564° do C.Civil) – cfr. texto n º s . 26 a 31;
CD – Do nexo de causalidade
15º. Os prejuízos suportados pela ora recorrente são consequência directa e imediata das actuações ilícitas do Estado Português, existindo assim nexo de causalidade (v. arts. 562° e segs. do C. Civil) – cfr. texto nºs. 32 a 36 .
NESTES TERMOS,
Deverá ser dado provimento ao presente recurso, anulando-se ou revogando-se a douta sentença recorrida, com as legais consequências.
Em sede de contra-alegações o R. Estado Português, representado pelo Ministério Público, sustentou a manutenção da decisão recorrida, alegando o seguinte:
1. Não existe qualquer decisão dos Tribunais Administrativos (no caso, do Supremo Tribunal Administrativo), definitiva e transitada em julgado, que tenha julgado ilegal o acto em apreciação nos autos.
2. Falece, por esta via, a pretensão da Agravante de ver a ilegalidade do acto erigida a pressuposto assente e indiscutível em sede de decisão jurisdicional definitiva.
3. Esse pressuposto, pura e simplesmente, não existe, pelo que bem entendeu o Tribunal a quo que havia que indagar do pressuposto da ilicitude, para efeitos de responsabilidade, no âmbito destes autos.
4. Não se conformando a obra com o Plano de Urbanização da Costa do Sol, na data do embargo, era lícito ao Secretário de Estado da Administração Local e do Ordenamento do Território praticar o acto sindicado, tal como o fez, nos termos do artigo 6.° do Decreto-Lei n.º 37251, de 4 de Novembro de 1946, não tendo, por isso, sido violados os direitos de propriedade, de iniciativa económica ou de construção do prédio em causa, da Agravante.
5. Não caracteriza facto ilícito gerador de responsabilidade civil, por não consubstanciar a violação dos princípios da boa-fé ou da protecção da confiança, a simples existência de um licenciamento construtivo, cuja obra foi posteriormente embargada por manifesta violação dos condicionalismos previstos na Zona HE do Plano de Urbanização da Costa do Sol.
6. Desde logo, porque não existiu, por parte da Administração Central, a criação de qualquer clima potencialmente gerador de confiança e, muito menos, confiança legítima – ou seja, em conformidade com a lei - no sentido de que a Recorrente tinha direito à edificação da construção, nos termos pretendidos.
7. O que se verificou foi um licenciamento inicial que não respeitava os condicionalismos do Plano de Urbanização respectivo, sujeito, sob pena de nulidade, a autorização do Ministro do Planeamento e da Administração do Território, que, no caso, não ocorreu, por não ter sido solicitado pela entidade licenciadora – a Câmara Municipal de Cascais.
8. Não falta ao acto do Secretário de Estado da Administração Local e do Ordenamento do Território o elemento da "voluntariedade da revogação", pois não se podem revogar actos nulos.
9. Não foram indicados pela Agravante, nem se provaram factos a partir dos quais se possa concluir pela existência de qualquer vontade de antijurisdicidade do comportamento administrativo, ou do comportamento dos titulares dos órgãos da Administração, com o que falece também, na acção, o pressuposto da culpa.
10. A Agravante não distingue claramente os danos que imputa ao despacho sindicado que determinou o embargo, daqueles outros, que derivam do acto (nulo) de licenciamento, que permitiu o início da construção e, consequentemente, não é viável a formulação de um juízo de causalidade adequada entre a actuação do Estado e os pretensos danos.
11. Em suma, falecem todos os pressupostos da obrigação de indemnizar que a Agravante assaca ao Estado português.
Nestes termos, deve a sentença de 17 de Novembro de 2010, que absolveu o Réu dos pedidos, ser mantida na íntegra.
1.2 Recurso do Estado Português do despacho saneador
O réu Estado Português recorreu para este Supremo Tribunal, do despacho de 13.03.2005, por “o mesmo proceder a uma errada interpretação do direito aplicado ao caso sub judice, quer no que se refere aos pedidos genéricos formulados pela Autora, quer no que toca à fixação do valor da causa” e por “na parte do saneamento propriamente dita” enfermar, naquele entender, “de nulidade”.
Para tanto, alegou o seguinte:
1. O despacho ora recorrido procede a uma errada interpretação do direito aplicável ao caso sub judice, no que se refere ao pedido relativo aos prejuízos e encargos indicados nos artigos 24.° a 34.°, 36.° a 41.°, 44.° e 51.°, da petição inicial.
2. Com efeito, era, desde logo, possível, à Autora, liquidar o valor desses prejuízos e encargos, uma vez que todos eles estão realizados, nada havendo com concretização no futuro.
3. O pedido, na formulação apresentada na alínea b), porque fora do campo de aplicação do artigo 471.° do Código de Processo Civil, gera, pois, uma situação de nulidade, nos termos e com as consequências previstas no artigo 201.° do mesmo diploma legal.
4. Por conseguinte, tal pedido deveria ter sido, desde logo, julgado improcedente e o Réu absolvido do mesmo.
5. O despacho recorrido violou, consequentemente, neste particular, o disposto nos artigos 201.° e 471.° do Código de Processo Civil.
6. O mesmo despacho procede, por outra parte, a uma errada fixação do valor da causa.
7. Fora desse valor, ficaram, efectivamente, os montantes dos prejuízos indicados pela Autora, nos artigos 38.° e 39.° da petição inicial, respectivamente, nas importâncias de Esc. 10.000.000.00 (€ 49.879.79) e de Esc. 12.000.000.00 (€ 59.855.75).
8. Todavia, cumulando-se na presente acção vários pedidos, o valor a fixar deveria ter sido o correspondente à soma dos valores de todos eles, isto é, € 2.143.470.46 (dois milhões cento e quarenta e três mil, quatrocentos e setenta euros e quarenta e seis cêntimos).
9. Mostra-se, por tal razão, ofendido, a este propósito, o disposto nos artigos 305.°, n.º 1 e 306.°, n.º 1, do Código de Processo Civil.
10. O despacho ora recorrido não tomou posição sobre a nulidade invocada pelo Réu Estado português, com fundamento em excesso do direito de resposta da Autora, na Réplica.
11. Com efeito, o Mm.° Juiz a quo não se pronunciou sobre o assunto, o que significa que os artigos da Réplica, cuja não consideração (não ponderação) se requereu, por inadmissíveis à luz dos limites da Réplica, continuam a constar dos autos sem quaisquer restrições.
12. Em consequência, o douto despacho recorrido, na parte do saneamento propriamente dita, na medida em que considerou inexistirem nulidades que importasse, desde logo, conhecer, enferma, nos termos sobreditos, da nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 668.° do Código de Processo Civil.
Termos em que deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro, nos termos acabados de descrever, decidindo-se, ainda, pela nulidade da parte do saneamento propriamente dita, na forma acima invocada.
A Autora sustentou a manutenção do despacho recorrido dizendo, para tanto, o seguinte:
1°. O pedido formulado pela A na al. b) do petitório é plenamente admissível, pois consubstancia o exercício de faculdade conferida pelos arts. 569° do Cód. Civil e 471°/1/b) do CPC – cfr. texto nºs , 1 e 2;
2°. O pedido genérico formulado pela A na al. b) do petitório é válido e adequado, pois ainda não lhe é possível indicar, de modo definitivo, as consequências dos factos ilícitos imputáveis ao Estado Português (v. art. 471°/1/b) do CPC) – cfr. texto nºs. 3 e 4;
3°. O valor da causa indicado pelo Estado Português (v. conclusão 8° das alegações), não representa a "utilidade económica imediata do pedido" (v. art. 305°/1 do CPC; cfr. Ac. do STJ, de 1991.09.18, Proc. 003063, in www.dgsi.pt), devendo tal valor ser fixado em € 2.033.734.92, conforme se decidiu no douto despacho recorrido – cfr. texto nºs . 5 a 7;
4°. É manifesta a admissibilidade da réplica apresentada pela A, pois na sua contestação o Estado Português invocou diversas excepções (v. art. 502°/1 do CPC) - cfr. texto nºs. 8 e 9;
5°. Na contestação, o Estado Português suscitou ainda questões novas, das quais a A apenas se poderia defender na réplica, como sucedeu in casu, sob pena de violação do princípio do contraditório e do princípio da igualdade das partes (v. art. 3°/3 e 3°- A do CPC) – cfr. texto n º. 10;
6°. Independentemente do acordo do Estado Português, a causa de pedir sempre poderia ser alterada ou ampliada na réplica, se o processo a admitir, como se verifica in casu (v. art. 273°/1 do CPC, expressamente invocado pela A no artigo 14° da sua réplica), pelo que não se verifica qualquer nulidade – cfr. texto nºs. 11 e 12.
NESTES TERMOS,
Deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se o douto despacho recorrido, com as legais consequências.
O recurso foi admitido, a fls. 222, “como agravo em matéria cível, com o primeiro que, após a sua interposição, haja de subir imediatamente”.
Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
2. Fundamentação
2.1 Matéria de Facto
A matéria de facto fixada na decisão recorrida é a seguinte:
1. A. é uma sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada, que tem por objecto a "construção, compra e venda e administração de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim" (Cf certidão de fls. 16119 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido)
2. Em 20 de Março de 1987, a "C…, Lda" e "E…, Lda" requereram na Câmara Municipal de Cascais (CMC) a aprovação do loteamento do prédio de que eram proprietárias, sito no lugar de …, Galiza, freguesia do Estoril, município de Cascais, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob a ficha n° 00880, e inscrito na matriz predial rústica da freguesia do Estoril sob o artigo 582°, da Secção 69, para efeitos de construção de edificações destinadas a habitação.
3. Em 4 de Novembro de 1988, foi concedido às sociedades referidas em 2) o alvará de loteamento urbano nº 877189, da CMC, conforme afixação de editais, em 1-2-89, e aviso publicado no Diário da República, III Série, de 19-4-89.
4. Por escritura pública, outorgada em 21 de Junho de 1989, as referidas sociedades venderam à A, o lote 2, que faz parte do alvará de loteamento n° 877189, descrito na 2ª Secção da Conservatória do Registo Predial de Cascais sob a ficha n° 1459/080289, da freguesia do Estoril, e inscrito na matriz predial rústica daquela freguesia sob parte do artigo 582°, da Secção 69 (Cf. certidão de fls. 20/38 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
5. Solicitada pela A. a aprovação de um projecto e o licenciamento da construção de um prédio para o referido lote 2, a CMC, em reunião de 23 de Março de 1989, aprovou aquele projecto e emitiu o respectivo alvará de licença n° 3380.
6. Em 9 de Janeiro de 1990, a A. celebrou com a … um contrato de mútuo, formalizado por instrumento notarial avulso, pelo montante de Esc. 35.000.000$00 (trinta e cinco milhões de escudos), destinado a financiar a execução da construção licenciada para o seu lote, tendo hipotecado para esse efeito o único imóvel de que era proprietária (Cf. doc. de fls. 39/45 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
7. No referido contrato estabeleceu-se expressamente, além do mais, o seguinte: "O empréstimo vence juros à taxa definida e praticada pela … como taxa básica para operações de prazo correspondente, taxa essa que actualmente é de vinte e um por cento ao ano.
Em caso de alteração da taxa básica, a nova taxa será aplicada a partir do início do período de contagem de juros subsequente à data da comunicação à mutuária ou a partir da data futura indicada nessa comunicação.
Os juros serão calculados dia a dia e pagos em quinze de Julho próximo e no final dos três semestres seguintes.
Em caso de mora, os respectivos juros serão calculados à taxa que ao tempo vigorar para os juros remuneratórios contratuais, acrescida de uma sobretaxa até quatro por cento.
A … reserva-se a faculdade de, a todo o tempo, capitalizar juros remuneratórios correspondentes a um período não inferior a três meses e juros moratórias correspondentes a um período não inferior a um ano, adicionando tais juros ao capital em dívida, passando aqueles a seguir todo o regime deste.
O capital do empréstimo será amortizado em seis prestações iguais, de capital e juros, a primeira com vencimento em quinze de Julho de mil novecentos e noventa e dois e as restantes no final dos semestres seguintes ( ... ).
Para garantia deste empréstimo, respectivos juros e despesas, a devedora constitui hipoteca sobre um lote de terreno destinado a construção sito em Galiza, lote dois, freguesia do Estoril, concelho de Cascais, descrito na Segunda Secção da Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o número zero mil quatrocentos e cinquenta e nove, da referida freguesia, omisso na matriz, mas pedida a sua inscrição, registado a seu favor pela inscrição G.dois" (idem).
8. Em 11 de Maio de 1990, o Secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território (SEALOTJ, exarou o seguinte despacho:
"O Plano de Urbanização da Costa do Sol aprovado pelo Decreto-Lei n° 37.251, de 28 de Dezembro de 1948, prevê para a sua zona HE a construção de moradias isoladas, germinadas ou em grupo, com o número máximo de 2 pisos, incluindo cave ou sótão. Ora, na Praceta Projectada na Rua …, em S. João do Estoril, encontram-se neste momento em construção dois edifícios que não respeitam os condicionalismos previstos na zona HE do Plano de Urbanização da Costa do Sol, já que a retende Praceta encontra-se abrangida pela mencionada zona. Com efeito, de acordo com a informação n° 184, da Direcção-Geral do Ordenamento do Território, de 13 de Março de 1990, os edifícios em causa violam claramente o previsto para esta zona pelo Plano de Urbanização da Costa do Sol por um deles já possuir 5 pisos (4 pisos acima da cota da soleira e 1 em cave) e no outro é já visível o arranque dos pilares ao nível do 3 piso, o que indica a sua evolução em altura. Assim, verificando-se que a CMC não solicitou ao Ministro do Planeamento e da Administração do Território, através da Direcção-Geral do Ordenamento do Território, nos termos do artigo 5° do Decreto-Lei nº 37.251 de 28 de Dezembro de 1948, autorização para licenciar obras que alterassem o Plano de Urbanização da Costa do Sol tem de se concluir que, na falta de autorização Ministerial, as obras que actualmente se encontram em curso na Praceta Projectada na Rua …, em S. João do Estoril, são claramente ilegais. Pelas razões expostas e nos termos do artigo 6° do Decreto-Lei nº 31251, de 28 de Dezembro de 1948, e da alínea a) do Despacho de Delegação de Competências nº 32/90, de 11 de Abril de 1990, publicado no Diário da República, II Série, nº 102, de 11 de Maio de 1990, determino o seguinte:
1 - D embargo, por parte da Direcção-Geral do Ordenamento do Território, das obras de construção ele dois edifícios que actualmente se encontram em curso na Praceta projectada à Rua ..., em S. João do Estoril: 2 - Notificação do particular embargado de que dispõe de um prazo de 30 dias para proceder à demolição dos edifícios em causa findo o qual, não o fazendo, caberá à Direcção-Geral do Ordenamento do Território promover a sua demolição;
Mais determino que se dê conhecimento deste meu despacho à CMC e à Comissão de Coordenação Regional de Lisboa e Vale do Tejo".
9. Em 1 de Junho de 1990, foram embargadas as obras de construção do edifício da Autora, tendo sido lavrado o competente auto, do qual consta além do mais, o seguinte: "A obra embargada consta de um edifício com quatro pisos acima da cota da soleira e um em cave, encontrando-se com a estrutura totalmente executada e com a colocação de tijolos praticamente executada".
10. Em 27 de Julho de 1990, a A. requereu a suspensão de eficácia do despacho de 11.05.1990 do SEALOT, conforme tudo consta do processo que, sob o na 28.602.S correu termos pela 1ª Secção do STA (Cf. processo apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
11. Por Acórdão do STA, datado de 5 de Setembro de 1990, foi indeferido o pedido de suspensão de eficácia apresentado pela A.(Idem).
12. Em 12 de Setembro de 1990, a A. recorreu contenciosamente do despacho de 11.05.1990 do SEALOT, conforme tudo consta do processo que, sob o nº 28.690, correu termos pela 1ª Subsecção, da 1ª Secção, do STA (Cf. processo apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
13. Por Acórdão do STA, datado de 18 de Novembro de 1993, foi concedido provimento ao recurso contencioso interposto a que se ajude a alínea anterior, tendo sido anulado o despacho do SEALOT, de 11.5.90, com fundamento em erro de direito, conforme tudo consta do processo apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (Idem).
14. Por Acórdão do Pleno do STA, datado de 14 de Janeiro de 1999, proferido na sequência de recurso jurisdicional interposto pelo SEALOT, foi julgada extinta a instância do recurso contencioso em causa, com fundamento em inutilidade superveniente da lide (Ibidem).
15. Em 11 de Novembro de 1994, a … instaurou contra a A. no Tribunal Judicial da Comarca de Cascais, acção executiva para pagamento de quantia certa com processo ordinário, tendo peticionado a sua condenação no pagamento da "quantia de Esc. 33.688.050$00, acrescida de juros vincendos até legal reembolso", por esta ter deixado de cumprir, desde 15-01-91, as obrigações emergentes do contrato de mútuo outorgado em 9-1-90, conforme tudo consta do processo que, sob o nº 1184/94, correu termos pelo 4° Juízo Cível daquele Tribunal (Cf. doc. de fls. 46/49 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
16. Em 20 de Abril de 1995, o prédio da A. foi penhorado no âmbito do referido processo judicial (Cf. doc. de fls. 50 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
17. Em 21 de Outubro de 1996, a A. depositou na …, à ordem do Tribunal Judicial da Comarca de Cascais, o valor de Esc. 33.688.050$00, para pagamento da quantia exequenda (Cf doc. de fls. 51 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
18. Em 21 de Outubro de 1997, a A. depositou na …, à ordem do Tribunal Judicial da Comarca de Cascais, o valor de Esc. 9.330.980$00, para pagamento de juros da quantia exequenda, bem como a quantia de Esc. 860.927$00, para pagamento de custas (Cf. docs. de fls. 52 e 53 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
19. E, em 26 de Novembro de 1997, a A. depositou ainda na … a quantia de Esc. 40.000$00, respeitante à retribuição atribuída ao depositário do imóvel penhorado (Cf. doc. de fls. 54 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
20. Por contrato outorgado em 24 de Abril de 1990, a A. prometeu vender a F…, pelo preço de Esc. 18.000.000$00 (€ 89.783,241), a fracção autónoma que viesse a corresponder ao segundo andar esquerdo do seu imóvel, tendo recebido de imediato a quantia de Esc. 10.800.000$00 (€53.870, 17) a título de sinal.
21. Por contrato outorgado em 27 de Abril de 1990, a A. prometeu vender a G…, pelo preço de Esc. 18.000.000$00 (€89.783,24), a fracção autónoma que viesse a corresponder ao rés-do-chão esquerdo do seu imóvel, tendo recebido de imediato a quantia de Esc. 11.160.000$00 (€ 55.665,85), a título de sinal.
22. Por contrato outorgado em 30 de Abril de 1990, a A. prometeu vender a H…, pelo preço de Esc. 41.000.000$00 (€ 204.507,13), as fracções autónomas que viessem a corresponder ao terceiro andar direito e esquerdo do seu imóvel, tendo recebido de imediato a quantia de Esc. 28.700.000$00 (€ 143.154.99), a título de sinal.
23.Por contrato outorgado em 3 de Maio de 1990, a A. prometeu vender a I…, pelo preço de Esc. 20.000.000$00 (€ 99.759.58), as fracções autónomas que viessem a corresponder ao primeiro andar direito do seu imóvel, tendo recebido de imediato a quantia de Esc. 10.000.000$00 (€ 49.879.79), a título de sinal.
24. Por contrato outorgado em 8 de Maio de 1990, a A. prometeu vender a J…, pelo preço de Esc. 21.000.000$00 (€ 104.747,55), a fracção autónoma que viesse a corresponder ao segundo andar direito do seu imóvel, tendo recebido de imediato a quantia de Esc. 11.550.000$00 (€ 57.611,16), a título de sinal.
25. Em 15 de Janeiro de 1991, a A. viu-se forçada a suspender o cumprimento das obrigações emergentes do contrato de mútuo celebrado com a …, a que se alude em 6) e 7), em virtude de, pela paralisação da sua actividade resultante das ordens de embargo e demolição do seu imóvel se terem esgotado os seus capitais próprios (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329).
26. Se não fosse o embargo a construção do referido edifício teria sido integralmente executada entre 1990 e 1991 (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329).
27. Concluindo-se a comercialização das respectivas fracções, pelo menos, entre 1991 e 1992 (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329).
28. O despacho que ordenou o embargo e demolição do edifício da A. teve publicidade, tendo sido referido num órgão de comunicação social da zona (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329).
29. O embargo, ordem de demolição e os inevitáveis processos judiciais que se lhes seguiram, bem como a divulgação pública de toda a situação fizeram desacreditar por completo o empreendimento da A. junto dos seus potenciais adquirentes (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329).
30. A A. é uma pequena empresa, tendo investido todos os seus recursos próprios, bem como recorrido ao crédito bancário, para promover a construção do seu empreendimento, hipotecando o seu único imóvel para esse efeito (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329).
31. O custo do edifício seria muito inferior ao que a A. foi obrigada a suportar em 1998, atendendo ao aumento do custo dos materiais, mão-de-obra e outros encargos, bem como pela necessidade de substituir materiais já aplicados na obra e que entretanto se deterioraram (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329).
32. Em consequência do despacho a que se alude em 8), a A. ficou impossibilitada de concluir e vender durante cerca de oito anos as fracções do prédio em causa e de beneficiar dos proveitos decorrentes desses negócios (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329).
33. A A. foi ainda obrigada a incumprir os contratos-promessa anteriormente celebrados e a devolver os valores dos sinais recebidos, no montante de € 360.181,96 (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329).
34. E deixou de auferir da parte restante dos preços, até ao final de 1992, no montante de € 228.398,78€ (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329).
35. A A. teria normalmente investido e reinvestido o produto da venda do seu empreendimento (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329).
36. Com o que obteria os respectivos lucros líquidos (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329).
37. Os quais, à data e naquele tipo de construção, nunca seriam inferiores a 30% (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329).
38. A A. investiu todos os seus recursos próprios, tendo ainda recorrido ao crédito bancário para promover a aquisição do seu lote, bem como para financiar a construção do edifício relativo ao referido terreno (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329)
39. À data do despacho de 11.05.1990 do SEALOT, a A. não tinha qualquer outro empreendimento em curso (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329).
40. Entre 1989 e 1990, o montante de capitais da A. investidos com a aquisição do seu terreno, elaboração de projectos, pagamento de taxas municipais, honorários de projectistas e demais encargos necessários ao licenciamento da construção em causa era superior a Esc. 10.000.000$00 (€ 49.879,79) (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329).
41. Entre 1989 e 1990, a A. investiu na aquisição de materiais de construção, preços de empreitadas e subempreitadas, mão-de-obra, emolumentos, electricidade, água e encargos administrativos quantias superiores a Esc. 12.000.000$00 (€ 59.855,75) (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329).
42. Em virtude da total paralisação da obra cm curso, os capitais investidos deixaram de poder gerar qualquer rendimento (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329).
43. E continuaram a avolumar-se as despesas com juros de empréstimos e outros encargos suportados pela A. com vista à prossecução do seu empreendimento (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329).
44. Em consequência do despacho de 11.05.1990 do SEALOT e subsequente impossibilidade da A. prosseguir a realização do seu empreendimento, a sua actividade ficou praticamente paralisada (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329).
45. Ficando mesmo em risco a sua subsistência (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329)
46. Os sócios da A. efectuaram no ano de 1996 um suprimento no valor de Esc. 55.710.178.000$00 (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329)
47. Como efeito dos actos praticados pelo SEALOT e do consequente descrédito por eles provocados, a A. suportou durante um maior período de tempo os encargos relativos aos investimentos feitos com a aquisição do terreno e a construção do edifício (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329).
48. Caso os referidos montantes tivessem sido investidos no âmbito da actividade comercial da Autora, em condições normais do seu exercício, na aquisição, construção e venda de imóveis, permitiriam a obtenção de lucros líquidos nunca inferiores a 30% (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329).
49. A A. manteve as suas despesas de funcionamento, nomeadamente as remunerações dos sócios gerentes e despesas administrativas diversas (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329).
50. Como efeito necessário dos actos praticados pelas entidades referidas, a A. tem e terá de suportar diversos encargos e despesas com processos judiciais e com honorários devidos aos advogados constituídos (cf. resposta dada à BI de doc. de fls. 326 a 329).
2.2 Matéria de direito
2.2.1 Ordem de apreciação dos recursos interpostos
Nos termos do art. 710.º, n.º 1, do CPC a apelação e os agravos que com ela tenham subido são julgados pela ordem da sua interposição; mas os agravos interpostos pelo apelado que interessam à decisão da causa são apreciados se a sentença não for confirmada.
O agravo interposto pelo Réu – que no caso é apelado – só será conhecido se a sentença não for confirmada e se interessar à decisão da causa.
Deste modo, apreciaremos em primeiro lugar o recurso da Autora (apelação) e, caso o recurso mereça provimento, conheceremos, então, do agravo interposto pelo Réu.
2.2.2 Apreciação do recurso da sentença final
A sentença final absolveu o réu do pedido, por considerar que não se provou a ilicitude, a culpa e o nexo de causalidade. Em síntese, (i) entendeu que não havia ilicitude; (ii) entendeu ainda que “nesta acção não foi alegada nem se vislumbra onde resida a culpa do autor do acto em causa. A causa de pedir é insuficiente quanto à indicação dos factos que permitam o preenchimento deste pressuposto”, pois não são indicados factos “dos quais se conclua pela vontade de antijuridicidade do comportamento administrativo, ou do comportamento dos titulares dos órgãos da Administração”; (iii) entendeu finalmente que “quanto ao nexo de causalidade a Autora não distingue claramente os danos que imputa ao despacho do SELOT, que determina o embargo, daqueles que têm forçosa e directamente de derivar do acto (nulo) de licenciamento da operação de loteamento, que permitiu que a Autora desse início à construção da obra com base num alvará nulo.
Na crítica dirigida à sentença recorrida a autora/recorrente faz a seguinte sistematização:
a) da do caso julgado do acórdão do STA de 18-11-1993;
b) do âmbito dos direitos da recorrente;
c) dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual;
ca – da ilicitude;
cb – da culpa;
cc – dos danos
cd – do nexo de causalidade.
Tendo em atenção o que foi decidido na sentença recorrida, apreciaremos as questões suscitadas no âmbito dos requisitos da responsabilidade civil extracontratual afastados pela sentença: ilicitude, culpa e nexo de causalidade.
(i) ilicitude
O autor fundou o seu pedido na responsabilidade civil extracontratual do Estado.
Os factos onde assenta o pedido podem resumir-se nos termos seguintes.
A autora, adquiriu, em 21-6-89, um lote de terreno, que faz parte do alvará de loteamento n.º 877/89. Solicitou e viu aprovado o licenciamento da construção de um prédio nesse lote 2, sendo emitido o respectivo alvará de licença n.º 3380. Em 11-5-90 o Secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território ordenou o embargo das construções acima referidas.
A autora pediu a suspensão de eficácia de tal acto, que foi indeferida por acórdão do STA de 5-9-90.
A autora recorreu contenciosamente desse mesmo acto, tendo o STA por acórdão de 18-11-93, anulado o mesmo. O SEALOT recorreu para o Pleno da 1ª Secção, vindo a ser julgada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide. Tal ocorreu porque após a publicação da Portaria 89/97, de 5/2, que aprovou o Plano de Pormenor da Galiza e seu Regulamento, a autora veio a obter novos alvarás de licença de construção que permitiram a continuação das obras embargadas. O Supremo concluiu que “com tais actos, deixaram de vigorar na ordem jurídica, tornando-se inoperativos ou ineficazes para futuro, os actos administrativos contenciosamente impugnados”.
O pedido de indemnização reporta-se assim aos danos sofridos pela autora com o embargo, durante a sua vigência, isto é entre 11-5-90 e a data do novo alvará de licença ao abrigo do Plano de Pormenor da Galiza aprovado em 1997.
Vejamos as razões do recorrente.
Para justificar a ilicitude a recorrente começa por imputar ao acórdão a violação do caso julgado do acórdão deste STA de 18-11-1993 (acórdão da Subsecção que anulou o embargo). Este argumento não tem razão de ser. Esse acórdão não transitou em julgado. O acórdão que transitou em julgado foi o acórdão do Pleno da 1ª Secção que não apreciou o mérito do recurso contencioso. Neste acórdão – como acima se referiu – foi julgada extinta a instância por se ter concluído que o acto contenciosamente impugnado (embargo) tinha perdido eficácia para o futuro, perante a emissão de novo alvará de licença que permitia a continuação da construção.
Alega ainda a recorrente que o acto de embargo ofendeu direitos da ora recorrente. O acto que licenciou a construção tem natureza constitutiva e portanto o acto administrativo que determinou o embargo tem natureza constitutiva. O Estado violou assim os direitos de propriedade e da iniciativa económica da recorrente.
Esta argumentação é manifestamente insuficiente para fundamentar uma conduta ilícita do Estado Português.
Vejamos porquê e por partes.
Em primeiro lugar deve referir-se que a acção foi intentada apenas contra o Estado. Ao Município de Cascais que emitiu os actos de licenciamento não é pedida qualquer indemnização. Por isso, qualquer dano que decorra da confiança que a autora depositou no alvará de licença que lhe permitiu iniciar a construção, não pode ser imputado ao Estado. O Estado não criou qualquer estado de confiança no recorrente, pois limitou-se a embargar a obra, por entender que o licenciamento era ilegal.
Em segundo lugar a alegada ofensa do direito de propriedade e iniciativa não existem por mero efeito de um embargo. Se o embargo for legal e portanto válido, a questão da violação do direito de propriedade e iniciativa não são violados. Existe uniforme e abundante jurisprudência no sentido de que o “jus edificandi” não é absoluto e está sujeito às regras legais sobre o ordenamento do território.
Finalmente e em terceiro lugar o direito de propriedade e iniciativa da recorrente apenas podem considerar-se violados se o embargo decretado não for válido. Então sim, existirá ilicitude que, em rigor, não radica na violação do direito de propriedade ou iniciativa, mas na violação das regras que justificaram o embargo.
Tudo pois se reconduz a saber se o embargo decretado era ou não legal.
A legalidade do embargo foi exaustivamente apreciado na sentença recorrida e, em boa verdade, sobre as razões concretamente aí invocadas a recorrente nada diz. Há, assim e desde logo, alguma deficiência no ataque à sentença, deixando de criticar os seus fundamentos essenciais.
Ora a sentença concluiu que o acto administrativo que ordenou o embargo era válido por duas razões: (i) é entendimento, hoje dominante na jurisprudência do STA que os Regulamentos aprovados por despacho de 17 de Fevereiro de 1959, para serem eficazes, não teriam que ser publicados; (ii) o acto da CM de Cascais que licenciou a construção era nulo, por ter sido proferido sem prévio parecer à DGOT e por estar em desconformidade com um Plano de Ordenamento (art. 56º do Dec. Lei 448/91, de 29/11).
Como vamos ver ambos os argumentos da sentença são exactos.
É certo que o acto de embargo foi anulado pela Subsecção (e as razões da anulação não chegaram a ser apreciadas no Pleno). Mas também é verdade que, feita essa análise na sentença recorrida à luz da jurisprudência actual do STA, deve concluir-se que a falta de publicação dos Regulamentos que alteraram o PUCS (motivo da anulação) não lhe retira validade e eficácia.
O acórdão que anulou o embargo tinha concluído que “… Em qualquer caso, o certo é que se impunha a publicação no Jornal oficial do diploma que alterasse o Regulamento inicial do PUCS. (…). Mas no caso em apreciação, isso não aconteceu (…)”. Foi este o motivo da anulação do embargo.
Porém como disse a sentença o entendimento actual da jurisprudência do STA não é esse:
Com efeito, como refere o acórdão de 26.10.99, citado pelo recorrido e proferido no Rº 34294, constitui hoje entendimento pacífico, ao nível da jurisprudência deste ESTA, que aquele DL 37251, pôs em vigor o … com o respectivo Regulamento, que o integra, mesmo sem que este tivesse sido publicado no jornal oficial, sem embargo do disposto nos DL 22470, de 11.4.33, e 33.921, de 5.9.44, sobre a publicação, por se tratar de lei especial não sendo assim afectadas, nem a validade nem a eficácia daqueles diplomas, matéria aliás de natureza puramente formal, pelo que não é questionada pelo art. 293º da CRP (versão originária).
Como vem assinalado na sentença recorrida e se consignou em recente acórdão deste ESTA (de 27.01.99, in A.D. 451-875 e segs.), com remissão para vasta jurisprudência emitida neste ESTA a propósito da aplicabilidade do … e seu regulamento, de acordo com o art.º 1º, da Lei nº 1909, de 22 de Maio de 1935, a região denominada Costa do Sol seria urbanizada de harmonia com o Plano de Urbanização aprovado pelo Governo.
Veio este a aprovar o referido plano, conforme consta do art.º 1º do DL 37.251, onde se diz que ele mereceu parecer favorável do Gabinete das Obras Públicas.
E mais não exigia o diploma que, ao tempo, regulava a elaboração dos planos de urbanização, o Dec-Lei nº 33.921, de 5 de Setembro de 1944, onde, aliás, se previa que organismos diferentes das câmaras o fizessem (cf. § 1º, do artº 11º e art.º 19º), no qual apenas se dizia que eles deveriam ser aprovados pelo Governo (cf. art.º 10º).
Só relativamente aos regulamentos dos planos se impunha que o Ministro das Obras Públicas os aprovasse por Portaria (cf. art.º 30º), tal como já decorria da alínea b), do art.º 9º. Do DL nº 26.762, embora neste se não dissesse qual a forma que deveria revestir esse acto.
Só no art.º 14º, nº 2, do DL nº 560/71, de 17 de Dezembro, se veio a dispor que com a Portaria que aprovasse os regulamentos dos planos de urbanização se publicasse no Diário do Governo uma planta síntese das disposições do plano e respectivo regulamento.
Para que o .... e o respectivo regulamento – este aprovado por despacho de 17 de Fevereiro de 1959 e alterado por despacho de 14 de Dezembro de 1962 – ganhassem eficácia, não teriam que ser publicados como anexo ao DL 37.251 ou mesmo posteriormente.
Como se assinala no mesmo aresto, o tribunal Constitucional, por seu acórdão de 12.03.97 (in D.R. II nº 144, de 25.06.97, a pags. 7274), não julgou inconstitucional as normas do ... pois que, como aí se refere, o art. 122 da Constituição de 1976, respeitante à publicação dos actos normativos, não é parâmetro de aferição da validade constitucional das normas do P.C.U.-S., pois sendo estas normas anteriores à Constituição de 1976, não pode a sua validade foram e orgânica ser ajuizada à luz dos preceitos deste texto constitucional. É que o sentido do art.º 293º nº 1, na redacção originária …- que dispõe que o direito ordinário anterior – mantém-se desde que não seja contrário à Constituição ou aos princípios nela consignados é o de que todo o direito ordinário anterior se mantém, desde que o seu conteúdo seja materialmente compatível com as normas ou princípios da nova Constituição, e isso independentemente da sua conformidade ou desconformidade com a ordem constitucional anterior e independentemente também da sua conformidade ou desconformidade com as normas constitucionais relativas à forma e à competência dos actos normativos. As normas da C.R.P. de 1976 relativas à forma e competência dos actos normativos só se aplicam para o futuro, não fazendo qualquer sentido averiguar se, à luz do artº 112º, da C.R.P., as normas do .... deviam ou não ser publicadas no D.R. para serem válidas e eficazes.
Ainda como se assinalou no acórdão deste ESTA de 3.10.95 (Rec. 34.281), publicado no Apêndice ao D.R., de 30.04.98, a pags. 7223 e segs., também citado no aludido aresto de 27.01.99, a eficácia do … e respectivos regulamentos decorria pois da sua publicidade pelos meios habituais de publicação dos comandos normativos emanados dos entes autárquicos interessados e não da sua publicação no jornal oficial. Com efeito, sendo aqueles planos e respectivos regulamentos … de interesse predominantemente local e regional, a publicação deles nos termos gerais exigidos para as normas e actos gerais emitidos pelos entes autárquicos seria suficiente para defesa dos respectivos interessados. Refira-se que não vem sequer alegado que aqueles documentos normativos não tenham sido publicados naqueles termos.
Em suma, de harmonia como exposto deve concluir-se pelas plenas validade e eficácia do D… e seu regulamento … .” - Acórdão de 25-2-2003, proferido no recurso 0223/02:
No mesmo sentido os acórdãos de 25-2-03, recurso 223/02: “O DL 37251, de 28.12.48, pôs em vigor o PUCS com o respectivo regulamento, que o integra, mesmo sem que este tivesse sido publicado no jornal oficial, sem embargo do disposto nos D.L. 22.470, de 11.04.33, e 33.921, de 5.9.44, sobre a publicação, por se tratar de lei especial, não sendo assim afectadas, nem a validade nem a eficácia daqueles diplomas, matéria aliás de natureza puramente formal, pelo que não é questionada pelo art. 293.º da CRP (versão originária). II - A eficácia do PUCS e respectivos regulamentos decorria, pois, da sua publicidade pelos meios habituais de publicação dos comandos normativos emanados dos entes autárquicos interessados e não da sua publicação no jornal oficial” – acórdão.
Igualmente no mesmo sentido o acórdão de 8-11-2006, recurso 765/05, onde é transcrita a jurisprudência dominante.
“(…)
Antecipando a conclusão entendemos que a decisão recorrida se encontra de acordo com a jurisprudência firmada neste Supremo Tribunal (oportunamente citada) e com a qual concordamos inteiramente.
No Acórdão do Pleno da 1ª Secção de 18 de Janeiro de 1998 (recurso 27816/27817) foi (mais uma vez) apreciada a questão da validade e eficácia do PUCS no seguintes termos: “Sobre a questão da validade e eficácia do PUCS nos termos em que as recorrentes a põem – não conter um verdadeiro e próprio regulamento e não ter sido publicado – já este Tribunal várias vezes se debruçou e em termos que geraram uma jurisprudência pacífica que não se vê razão para alterar. Como se escreveu no Ac. de 3-10-95, recurso 34.281, aconteceu é que foi revogada a “exigência geral de publicação no Jornal Oficial do Plano de Urbanização da Costa do Sol … com a publicação do Dec. Lei 37.251, diploma posterior e de igual dignidade hierárquica dos diplomas que, em geral, exigiam aquela publicação”. A eficácia daquele plano e dos respectivos regulamentos decorria pois da sua publicidade pelos meios habituais de publicitação dos comandos normativos emanados dos entes autárquicos interessados e não da sua publicação no Jornal Oficial. Com efeito, sendo aquele plano e respectivos regulamentos, bem como as alterações posteriores, de interesse predominantemente local e regional, a publicitação deles nos termos exigidos para as normas e actos emitidos pelos entes autárquicos seria suficiente para defesa dos interesses dos respectivos interessados. Como dos autos não resulta – nem sequer foi alegado – que aqueles documentos normativos não tenham sido publicitados naqueles termos, há que reconhecer-lhes plena eficácia, mesmo perante a norma constitucional do art. 122º, 2 da CRP”.
No mesmo sentido podem ver-se muitos outros acórdãos, designadamente os de 14-3-91, AD 370/1052; 24-10.91, recurso 26750; de 23-9-93, recurso 30.917 e de 17-2-94, recurso 32306.
Entendimento que de resto se tem mantido firme, como se pode ver no Acórdão de 25-2-2003, proferido no recurso 0223/02:
(…)
Entendimento de resto bem acolhido na doutrina – cfr. SOFIA DE SEQUEIRA GALVÃO, Cadernos de Justiça Administrativa, 8, pág. 18.
Assim, sendo válido e eficaz o instrumento urbanístico invocado – PUCS – improcede a crítica feita a este segmento da decisão impugnada.”
Assim e perante a actual jurisprudência podemos facilmente concluir como a sentença recorrida que a invalidade apontada ao embargo não se verifica – a qual decorria como se viu na falta de validade e eficácia do instrumento urbanístico invocado como fundamento de direito do embargo.
Decorre da matéria factual trazida aos autos e das alegações da autora que “a obra em causa apesar de ter sido inicialmente legalizada apresentava-se desconforme ao PUCS”. Deste modo podemos concluir com segurança que o embargo era válido pois invocou um Regulamento válido e eficaz e que o acto de licenciamento não respeitava.
A desconformidade do acto de licenciamento com os PUCS torna-o nulo, nos termos do art. 56º do Dec. Lei 448/91, de 29/11, o que, também inviabiliza a prática de quaisquer deferimento tácitos, pelo que procede também – sem necessidade de maiores desenvolvimentos – o outro argumento da sentença recorrida.
Deste modo, a decisão recorrida está certa quanto à falta de ilicitude. O primitivo acto de licenciamento era nulo, por permitir uma construção em desconformidade com o PUCS e o acto de embargo era válido.
Como os requisitos da responsabilidade civil são cumulativos, a falta de ilicitude prejudica a apreciação dos demais.
2.2.3. Recurso do réu/Estado Português
Com a improcedência do recurso e, em consequência, da absolvição do Estado Português do pedido, o agravo por si interposto perde utilidade, pelo que não será apreciado.
3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo acordam em negar provimento ao recurso confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 400 € e a procuradoria em 70%.
Lisboa, 28 de Junho de 2011. – António Bento São Pedro (relator) – Jorge Manuel Lopes de Sousa – Fernanda Martins Xavier e Nunes.