Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:042/19.2BCLSB
Data do Acordão:06/18/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:FONSECA DA PAZ
Descritores:RESPONSABILIDADE DISCIPLINAR
CLUBES DESPORTIVOS
PRINCIPIO DA CULPA
VALOR DA CAUSA
CUSTAS
Sumário:I – A responsabilidade disciplinar dos clubes e sociedades desportivas pelos comportamentos, social ou desportivamente, incorrectos dos seus sócios e simpatizantes não é objectiva, mas subjectiva, por se estribar numa violação de deveres legais e regulamentares que sobre eles impendem.
II – Em face do que dispõem os artºs. 2.º, n.º 2, da Portaria n.º 301/2015, de 22/9 e 33.º, al. b), do CPTA, é de € 13.575,00 – e não indeterminável – o valor da causa onde se impugnam os actos que aplicam multas neste montante global.
III – Não é por existir uma discrepância entre o valor das custas arbitrais e o das judiciais e de o montante daquelas ser exagerado face aos rendimentos de um cidadão médio que se podem considerar violados os princípios constitucionais da proporcionalidade e da tutela judicial efectiva.
Nº Convencional:JSTA000P26079
Nº do Documento:SA120200618042/19
Data de Entrada:04/30/2020
Recorrente:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL E OUTROS
Recorrido 1:OS MESMOS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:


1. A Federação Portuguesa de Futebol (FPF), inconformada com o acórdão do TCA – Sul que concedeu provimento ao recurso que a “Futebol Clube do Porto – Futebol SAD”, interpusera do acórdão do Colégio Arbitral constituído junto do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) que mantivera as penas de multa que lhe haviam sido aplicadas pelo Conselho de Disciplina da FPF, dele interpôs, para este STA, recurso de revista, tendo na respectiva alegação, formulado as seguintes conclusões:

1. A Recorrente vem interpor recurso de revista para o STA do Acórdão proferido pelo TCA Sul em 9 de maio de 2019, que revogou acórdão arbitral proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto. Esta instância, por seu turno, havia decidido confirmar a decisão de aplicação ao FCP de multas por comportamento incorreto do público, punidas através dos artigos 187.º, n.º 1, als. a) e b) e 186.º, n.º 2 do RD da LPFP;
2. A questão em apreço diz respeito à responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorretos dos seus adeptos por ocasião de jogos de futebol, o que, para além de levantar questões jurídicas complexas, tem assinalável importância social uma vez que, infelizmente, os episódios de violência em recintos desportivos têm sido uma constante nos últimos anos em Portugal e o sentimento de impunidade dos clubes dado por decisões como aquela de que agora se recorre nada ajudam para combater este fenómeno;
3. A questão essencial trazida ao crivo deste STA – responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorretos dos seus adeptos - revela uma especial relevância jurídica e social e sem dúvida que a decisão a proferir é necessária para uma melhor aplicação do direito;
4. Assume especial relevância social a forma como a comunidade olha para o crescente fenómeno de violência generalizada no futebol – seja a violência física, seja a violência verbal, seja perpetrada por adeptos, seja perpetrada pelos próprios dirigentes dos clubes;
5. Em causa nos presentes autos estão, essencialmente, comportamentos dos adeptos relacionados com a entrada e rebentamento de engenhos pirotécnicos, entre outros, tudo por ocasião de jogos de futebol;
6. São deveres dos clubes assegurar que os seus adeptos não têm comportamentos incorretos, o que decorre dos regulamentos federativos, é certo, mas também da Lei e da Constituição;
7. Admitir, como fez o TCA Sul, que os clubes devem ser desresponsabilizados pelos comportamentos dos seus adeptos – ao arrepio do entendimento de toda a comunidade desportiva e das instâncias internacionais do Futebol, onde esta questão, de tão clara e evidente que é, nem sequer oferece discussão – é fomentar este tipo de comportamentos o que se afigura gravíssimo do ponto de vista da repercussão social que este sentimento de impunidade pode originar;
8. Esta questão tem conhecido posições contraditórias por parte do TAD, sendo que em vinte e nove processos arbitrais a questão foi decidida de forma contrária à que fez o Tribunal a quo, contra apenas cinco em sentido coincidente;
9. A questão em apreço é suscetível de ser repetida num número indeterminado de casos futuros, porquanto desde o início de 2017 até à presente data deram entrada no Tribunal Arbitral do Desporto mais de 60 processos relativos a sanções aplicadas ao FCP por comportamento incorreto dos seus adeptos;
10. Tais números não só demonstram de forma incontestável que o FCP nada tem feito ao nível da intervenção junto dos seus adeptos para que não tenham comportamentos incorretos nos estádios, como demonstram que o FCP tem traçado um “plano de ataque” que não verá um fim num futuro próximo;
11. Não existe nenhuma crítica a fazer à decisão proferida pelo TAD, ao contrário do que entendeu o TCA Sul;
12. O FCP não colocou, em momento algum, em causa que estes factos aconteceram, colocou em causa, sim, que tenham sido adeptos do FCP os responsáveis pelos mesmos e que tenha qualquer responsabilidade sobre o comportamento levado a cabo por outras pessoas;
13. Tal como consta dos Relatórios de Jogo cujo teor se encontra a fls. … do processo arbitral, a equipa de arbitragem os Delegados da Liga, bem como as forças de segurança, são absolutamente claros ao afirmar que tais condutas foram perpetradas pelos adeptos do Futebol Clube do Porto, sem deixar qualquer margem para dúvidas;
14. Com base nesta factualidade, o Conselho de Disciplina instaurou os competentes processos sumários ao FCP. Nos termos do artigo 258.º, n.º 1 do RD da LPFP, o processo sumário é instaurado tendo por base o relatório da equipa de arbitragem, das forças policiais ou dos delegados da Liga, ou ainda com base em auto por infração verificada em flagrante delito;
15. Este é um processo propositadamente célere, em que a sanção, dentro dos limites regulamentares definidos, é aplicada no prazo-regra de apenas 5 dias (cfr. artigo 259.º do RD da LPFP) somente por análise do relatório de jogo (e, possivelmente, outros elementos aí referidos) que, como se sabe, tem presunção de veracidade do seu conteúdo (cfr. Artigo 13.º, al. f) do RD da LPFP);
16. Recorde-se, aliás, que esta forma de processo consta do Regulamento Disciplinar da LPFP, aprovado pelas próprias SAD’s que disputam as competições profissionais em Portugal, entre elas a ora Recorrida;
17. A equipa de arbitragem e os Delegados da LPFP são designados para cada jogo com a clara função de relatarem todas as ocorrências relativas ao decurso do jogo, onde se incluem os comportamentos dos adeptos que possam originar responsabilidade para o respetivo clube;
18. Assim, quando a equipa de arbitragem e os Delegados da LPFP colocam no seu relatório que foram adeptos de determinada equipa que levaram a cabo determinados comportamentos, tal afirmação é necessariamente feita com base em factos reais, diretamente visionados pelos delegados no local. Até porque, caso coloquem nos seus relatórios factos que não correspondam à verdade, podem ser alvo de processo disciplinar;
19. Entende o TCA Sul que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta dos Relatórios de Jogo) que o FCP violou deveres de formação a que se encontra adstrito, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo, o que, como sabemos, não é possível;
20. Assim, os Relatórios da equipa de arbitragem e dos Delegados da LPFP, atento os respetivos conteúdos, são perfeitamente suficientes e adequados para sustentar a punição da Recorrida no caso concreto. Ademais, há que ter em conta que no caso concreto existe uma presunção de veracidade do conteúdo de tal documento (artigo 13.º, al. f) do RD da LPFP);
21. Isto não significa que os Relatório dos Delegados da LPFP contenham uma verdade completamente incontestável: o que significa é que o conteúdo dos respetivos Relatórios, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que a Recorrida incumpriu os seus deveres.
22. Para abalar essa convicção, cabia ao FCP apresentar contraprova. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.º do Código Civil;
23. Em sede sancionatória, o “arguido”, não pode simplesmente remeter-se ao silêncio, aguardando, sem mais, o desenrolar do procedimento cabendo-lhe, pelo menos, colocar uma dúvida na mente do julgador correndo o risco de, não o fazendo, ser punido se as provas reunidas forem todas no mesmo sentido.
24. Do lado do Conselho de Disciplina, todos os elementos de prova carreados para os autos iam no mesmo sentido dos Relatórios dos Delegados da LPFP, pelo que dúvidas não subsistiam (nem subsistem) de que a responsabilidade que lhe foi assacada pudesse ser de outra entidade que não o FCP.
25. De modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo dos Relatórios, cabia à Recorrida demonstrar, pelo menos, que cumpriu com todos os deveres que sobre si impendem, designadamente em sede de Recurso Hierárquico Impróprio apresentado ou quanto muito em sede de ação arbitral. Mas a Recorrida nada fez, nada demonstrou, nada alegou, em nenhuma sede.
26. Por seu turno, o TCA Sul nada analisa nem nada fundamenta;
27. Do conteúdo do Relatório de Jogo elaborado pelos Delegados da Liga, é possível extrair diretamente duas conclusões: (i) que o Futebol Clube do Porto incumpriu com os seus deveres, senão não tinham os seus adeptos perpetrado condutas ilícitas (violação do dever de formação); (ii) que os adeptos que levaram a cabo tais comportamentos eram apoiantes do Futebol Clube do Porto, o que se depreendeu por manifestações externas dos mesmos;
28. Isto significa que para concluir que quem teve um comportamento incorreto foram adeptos do FCP e não adeptos do clube visitante (e muito menos de um clube alheio a estes dois, o que seria altamente inverosímil), o Conselho de Disciplina tem de fazer fé no relatório dos delegados, os quais têm presunção de veracidade. Posteriormente, o FCP pode fazer prova que contrarie estas evidências, porém, no caso concreto, tal não aconteceu;
29. O próprio Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 730/95, diz claramente que “o processo disciplinar que se manda instaurar (…) servirá precisamente para averiguar todos os elementos da infração, sendo que, por essa via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)”;
30. Neste sentido, veja-se o Acórdão deste STA proferido no âmbito do recurso n.º 297/18, interposto da decisão do TCA Sul tirada no processo n.º 144/17.0BCLSB que, dando provimento ao recurso de revista, diz que é lícito o uso das presunções judiciais e que cabe ao clube apresentar prova que contrarie a presunção de veracidade dos relatórios, o que no caso, não sucedeu;
31. Ainda que se entenda – o que não se concede – que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir o FCP, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido – a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos da Recorrida e a violação dos respetivos deveres – foi retirado de outros factos conhecidos.
32. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com nenhum princípio constitucional, tal como o princípio da presunção de inocência ou o princípio da culpa, de acordo com jurisprudência, quer dos tribunais comuns, quer dos tribunais administrativos.
33. A tese sufragada pelo TCA é um passo largo para fomentar situações de violência e insegurança no futebol e em concreto durante os espetáculos desportivos, porquanto diminuir-se-á acentuadamente o número de casos em que serão efetivamente aplicadas sanções, criando-se uma sensação de impunidade em que pretende praticar factos semelhantes aos casos em apreço e ao invés, mais preocupante, afastando dos eventos desportivos, quem não o pretende fazer, em virtude do receio da ocorrência de episódios de violência;
34. Também não merece qualquer censura o valor atribuído à causa porquanto a ora recorrida tem um interesse que vai muito para além da mera revogação da decisão disciplinar, tanto que invoca a inconstitucionalidade das normas aplicadas.
35. Face ao exposto, deve o acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado por erro de julgamento, designadamente por errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 13.º, al. f), 172.º, 186.º, 187.º, n.º 1, al. a) e b), 222.º, n.º 2, 250.º, n.º 1 e 258.º do Regulamento Disciplinar da LPFP.”

O “Futebol Clube do Porto – Futebol SAD” contra-alegou, tendo concluído do seguinte modo:
- I -
i. Inconformada com o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 07.02.2019 pretende a recorrente, em sede de revista, ver esclarecido o critério legal da apreciação da prova em processo disciplinar desportivo.
ii. Fá-lo, pretendendo que este Supremo Tribunal Administrativo funcione como uma terceira instância de apelação.
iii. O juízo sobre a matéria de facto é, via de regra, insindicável, porquanto o Supremo Tribunal Administrativo só poderá revogá-lo e determinar que o Tribunal Central Administrativo dê como provados factos que julgou como não verificados em face da prova existente se e apenas na medida em que esse juízo tenha violado disposição legal expressa que fixe a força de determinado meio de prova (art. 150.º-4 do CPTA).
iv. Não se vê, nem a recorrente a identifica, que norma legal haja sido violada pelo Tribunal Central Administrativo na apreciação da prova, devendo o recurso interposto pela recorrente ser julgado improcedente.
v. A revogação pelo STA do decidido pelo Tribunal a quo, com o fundamento de que a prova dos autos seria suficiente para sustentar a decisão condenatória tomada pela recorrida, ultrapassando a apreciação da prova realizada pelas instâncias competentes, incorrerá em excesso de pronúncia e violará o regime do recurso de revista instituído pelo art. 150.º do CPTA.
vi. Acresce que, caso o acórdão proferido por este Tribunal ad quem anule a decisão recorrida, contrariando o previsto no art. 150.º do CPTA, com fundamento de que a decisão condenatória proferida pela demandada, aqui recorrente, seria de considerar plausível e sustentável à luz do regime normativo que incide sobre a valoração da prova em sede disciplinar desportiva, então incorrerá em violação do princípio constitucional da repartição de funções de apreciação de recursos de apelação e de revista atribuídas, respectivamente, aos Tribunais Centrais Administrativos e ao Supremo Tribunal Administrativo, violando, destarte, o princípio da segurança jurídica no âmbito do exercício de funções jurisdicionais pelos tribunais administrativos, corolário do princípio do Estado de direito consagrado no art. 2.º da CRP.
- II -
vii. O arguido em processo disciplinar, tal como ocorre em processo penal, não tem de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada, até porque, aliado ao ónus da prova que recai sobre o titular da acção disciplinar (cf. jurisprudência uniforme e pacífica, e reiteradamente afirmada nos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 19/01/95, rec. n.º 031486, de 14/03/96, rec. n.º 028264, de 16/10/97, rec. n.º 031496 e de 27/11/97, rec. n.º 039040), vigora ainda o princípio da presunção de inocência.
viii. O princípio da presunção de inocência do arguido, também presente no âmbito do processo disciplinar, tem como um dos seus principais corolários a proibição de inversão do ónus da prova, não impendendo sobre o arguido – in casu a recorrida – o ónus de reunir as provas da sua inocência (neste sentido, a título de exemplo, veja-se o acórdão do TCA Norte de 02.10.2010, processo n.º 01551/05.8BEPRT, e ainda o acórdão do TCA Norte de 05.10.2012, processo n.º 01958/08.7BEPRT, disponíveis em www.dgsi.pt).
ix. Donde, toda a prova susceptível de conduzir à responsabilidade jurídico-penal do arguido deve ser carreada para os autos pelo titular da acção disciplinar, não sendo, por isso, admissível qualquer inversão do ónus da prova em sede disciplinar (cf. Acórdão do STA de 17.02.2008, processo n.º 0327/08, acórdão do STA de 28.04.2005, processo n.º 333/05, bem como o acórdão do STA de 12.01.1998, processo n.º 023940, disponíveis em www.dgsi.pt).
x. Portanto, sem que esteja demonstrada e devidamente comprovada, através de robustas provas, a materialidade e autoria da infracção disciplinar fica comprometida qualquer condenação do arguido/recorrida, que deve ter a seu favor a presunção de inocência (cf. Ac. TCAS de 02-06-2010, Proc. 5260/01).
xi. Ainda que os documentos gozem de uma presunção de veracidade e sejam elaborados pelos Delegados presentes ao jogo, não se podem aqui diminuir as exigências de prova e de sua apreciação, bastando-se com simples afirmações vertidas em relatórios.
xii. Nem mesmo a presunção de veracidade dos relatórios prevista no art. 13.º, f), do RD, pode contrariar o quadro normativo, dado que, mesmo beneficiando de uma presunção de verdade, não se trata de prova subtraída à livre apreciação do julgador.
xiii. A presunção de veracidade, prevista no art. 13.º f) do RD, dos factos que nele se prevê só abrange os factos constantes das declarações, relatórios e autos lavrados pelos agentes e que hajam sido por eles percepcionados, e não outros.
xiv. Ora, como é evidente, pela própria natureza das coisas, há elementos típicos que, por norma, não são demonstráveis através dos relatórios de jogo da equipa de arbitragem e/ou dos delegados da Liga, nomeadamente, os que se prendem com a infracção pelo clube, com culpa, dos deveres, legais ou regulamentares, a que estava adstrito, e com a conexão que há-de estabelecer-se entre essa infracção e a conduta proibida ocorrida.
xv. É, de todo o modo, inconstitucional por violação do princípio da presunção de inocência de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (art. 32.º-2 e -10 da CRP), ao direito a um processo equitativo (art. 20.º-4 da CRP) e ao princípio do Estado de direito (art. 2.º da CRP), a interpretação do art. 13.º, al. f) do RDLPFP no sentido de que factos não constantes dos relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga podem ser dados como provados, por presunção, se a sua verificação não for infirmada pelo arguido, que, desde já, se argui para os devidos efeitos legais.
xvi. Para efeitos disciplinares, como in casu, é relevante afirmar que a prova dos factos integradores da infracção é determinada face aos elementos existentes no processo e pela convicção do julgador, estando sujeita ao princípio da livre apreciação da prova (cf. art. 127.º do CPP e art. 94.º-4 do CPTA).
xvii. Uma vez que o RDLPFP nada dispõe em contrário, competirá ao julgador - na fixação dos factos e pressupostos da aplicação da pena disciplinar - formular o seu juízo sobre a realidade e sentido dos factos através da apreciação do material probatório, segundo aquela que é a sua livre convicção.
xviii. A imputação de todos e cada um dos elementos do tipo “incriminador” deve estribar-se em meios de prova que os sustentem, com a natureza de prova directa ou, pelo menos, de prova indirecta.
xix. Considerando os pressupostos legais exigidos para a imputação e condenação pela prática das infracções p. e p. pelos arts. 186.º-2; 187.º-1, a) e b) do RDLPFP, era necessário que o Conselho de Disciplina da FPF tivesse carreado aos autos prova suficiente de que i) os comportamentos indevidos foram perpetrados por sócio ou simpatizante da Futebol Clube do Porto – Futebol SAD, como ainda que ii) tais condutas resultaram de um comportamento culposo da Futebol Clube do Porto – Futebol SAD.
xx. Tal produção de prova jamais podia competir ou ser exigido à arguida, não se podendo neste âmbito admitir – como pretende a recorrente – uma inversão do ónus da prova.
xxi. Face às normas e princípios que conformam o processo sancionatório, admitir a tese da recorrida equivaleria a uma violação das regras do ónus probatório e do princípio da presunção de inocência¸ o que deverá inevitavelmente conduzir ao repúdio de tal tese.
xxii. Além do mais, não se pode aqui abrir a porta, a uma “prova por presunção” sobre a autoria dos factos e sobre a violação de deveres constitutiva da ilicitude típica.
xxiii. Com isto não se quer significar que não se possa, no domínio disciplinar desportivo, recorrer a presunções judiciais no acto decisório de valoração probatória, mas o seu funcionamento não pode ser arbitrário e contrariar exigências epistemológicas mínimas: o princípio da livre apreciação da prova não consente que se possa presumir, sem mais, que pelo facto de adeptos adoptarem comportamentos incorrectos houve, necessariamente, a montante, uma violação, pelo seu clube, dos deveres de vigilância e controlo idóneos a prevenir e evitar tais comportamentos.
xxiv. A prova em sede disciplinar, designadamente aquela assente em presunções judiciais, tem de ter robustez suficiente, tem de ir para além do início da prova, para permitir, com um grau sustentado de probabilidade, imputar ao agente a prática de determinada conduta, tendo sempre presente um dos princípios estruturantes do processo sancionatório que é o da presunção da inocência, designadamente: “todo o acusado tenha o direito de exigir prova da sua culpabilidade no seu caso particular” (GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, I, Verbo, 2008, p. 82).
xxv. Também não se pode aqui admitir a aplicação de acordo com o qual: à recorrente, titular do poder punitivo disciplinar, caberia fazer a prova da primeira aparência da verificação do facto; e à recorrida, uma vez comprovada essa primeira aparência, compete refutá-la, destruindo essa indiciação.
xxvi. Tal critério consubstancia uma clamorosa violação ao princípio da presunção de inocência, direito fundamental de que a recorrida é titular.
xxvii. E do mesmo passo implica que para a prova dos factos fundamentadores de responsabilidade disciplinar não será necessária uma racional e objectiva convicção da sua verificação, para além de qualquer dúvida razoável, sendo suficiente uma sua simples indiciação.
xxviii. Note-se que, tal posição não tem qualquer base legal ou regulamentar: nesta matéria, os regulamentos aplicáveis não estabelecem qualquer presunção da verificação de um elemento constitutivo de uma infracção disciplinar, nem se atribuiu ao arguido qualquer ónus de infirmação do que quer que seja.
xxix. Trata-se, aliás, de critério decisório incompatível com o princípio da presunção de inocência, por duas ordens de razões: por implicar a imposição de um ónus de prova ao arguido; e por baixar o grau de convicção da verificação do facto para um nível insuportável: não a certeza correspondente à convicção para além de toda a dúvida razoável, mas a suspeita baseada somente na primeira aparência.
xxx. Atendendo aos pressupostos exigidos pelos tipos legais previstos nos arts. 186.º-2, 187.º-1, a) e b) do RD sempre se exigirá para a condenação do clube, in casu a recorrida, que se mostrassem suficientemente provados – através da produção de prova que incumbe ao titular do processo disciplinar e a qual será sujeita a uma livre apreciação - os factos consubstanciadores da prática das infracções disciplinares; não se tendo verificado tal prova nos autos, e considerando o quadro normativo aplicável ao caso, fica necessariamente prejudicada a alegação da recorrente.
xxxi. Repare-se que mesmo atentando ao descrito nos relatórios de jogo percebe-se que nenhum facto neles é sequer descrito em favor do preenchimento de pressuposto essencial dos tipos legais: uma actuação culposa da recorrida.
xxxii. De todo o modo, é inconstitucional, por violação do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.º da CRP) e do princípio da presunção de inocência, presunção de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (art. 32.º-2 e -10 da CRP), a interpretação dos arts. 13.º f), 186.º-2, 187.º-1 a) e b) do RDLPFP no sentido de que a indicação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube, o que desde já se argui.
xxxiii. Mais, deverá igualmente considerar-se inconstitucional, por violação do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.º da CRP) e do princípio da presunção de inocência, presunção de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (art. 32.º-2 e -10 da CRP), a interpretação dos arts. 13.º, f), 186.º-2, e 187.º-1 a) e b) do RDLPFP e do art. 127.º do Código de Processo Penal no sentido que a indiciação de que sócios ou simpatizantes de um clube praticassem condutas social ou desportivamente incorrectas poderá levar a que se presuma que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube.
xxxiv. Porquanto se mostram por preencher todos os elementos das infracções e não tendo o titular da acção disciplinar carreado aos autos algum elemento de prova que depusesse em favor do preenchimento de pressuposto essencial exigido pelos tipos legais – uma actuação culposa por parte do clube – sempre se impunha resolver “em favor do arguido por efeito da aplicação dos princípios da presunção de inocência do arguido e do “in dubio pro reo”.
xxxv. Face ao exposto, não padece o acórdão recorrido de qualquer erro de julgamento, tendo subsumido correctamente os factos alegados ao direito aplicável.
xxxvi. Se, por mera hipótese de raciocínio, proceder a tese da recorrente, reputa-se como inconstitucional – por violação do princípio da presunção de inocência de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente no seu direito de defesa (art. 32.º, n.os 2 e 10 da CRP), ao direito a um processo equitativo (art. 20.º-4 da CRP) e ao princípio do Estado de direito (art. 2.º da CRP) – a interpretação dos artigos 186.º-2, 187.º-1 a) e b) 222.º-2 e 250.º-1 do RDLPFP segundo a qual a comprovação de um elemento constitutivo de uma infracção disciplinar está sujeita a um ónus da prova imposto ao arguido, podendo ser dado como provado se, resultando simplesmente indiciado através de uma prova de primeira aparência, o arguido não demonstrar a sua não verificação.
xxxvii. O douto acórdão do Tribunal a quo não merece qualquer reparo ou censura, devendo manter-se “in totum”.

A “Futebol Clube do Porto – Futebol, SAD”, interpôs recurso subordinado, tendo, na respectiva alegação, enunciado as seguintes conclusões:
i. Os custos fixados pelo TAD comprometem de forma séria e evidente o princípio da tutela jurisdicional efectiva (arts. 20.º-1 e 268.º-4 da CRP).
ii. Considerando o critério da nossa jurisprudência constitucional, não são compatíveis com o direito fundamental de acesso à justiça (arts. 20.º e 268.º-4 da CRP) soluções normativas de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efectivo exercício de um tal direito, como é o caso do TAD.
iii. Uma vez que as normas conjugadamente aplicadas pelo Tribunal a quo para fixar o valor das custas finais (art. 2.º- 1 e -5, conjugado com a tabela constante do Anexo I (2.ª linha), da Portaria n.º 301/2015, articulado ainda com o previsto nos arts. 76.º/1/2/3 e 77.º/4/5/6 da Lei do TAD) são inconstitucionais, por violação do princípio da proporcionalidade (art. 2.º da CRP) e do princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º-1 e 268.º-4 da CRP), devem essas normas ser desaplicadas (art. 204.º da CRP).”

Pela formação a que alude o art.º 150.º, do CPTA, foi proferido acórdão a admitir a revista.

A Exma. Sr. Procurador-Geral-Adjunto junto deste tribunal, notificada nos termos do art.º 146.º, nº 1, do CPTA, emitiu parecer, onde concluiu que o recurso merecia provimento.

Sem vistos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.

2. O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
“- No dia 25 de Fevereiro de 2018 ocorreu um jogo de futebol entre as equipas do Portimonense Futebol SAD e o Futebol Clube do Porto, Futebol SAD, no Portimão Estádio, a contar para a 24ª jornada da competição "…….";
- A bancada central nascente do Estádio do jogo em causa estava destinada exclusivamente aos adeptos da equipa visitante;
- Nesta bancada estava localizada a claque dos "………";
- Foram requisitados 1500 bilhetes e nenhum foi devolvido até 24 horas do início do jogo;
- Adeptos situados na bancada central nascente destinada aos adeptos do FCP, ao minuto 12 da 1ª parte de jogo, arremessaram um pote de fumo para o relvado, que caiu fora das quatro linhas, entre a linha lateral e os painéis publicitários;
- Adeptos situados na bancada central nascente destinada aos adeptos do FCP 25 minutos antes do início do jogo e, no decorrer do mesmo, aos minutos 1,10, 11,16, 17, 43, 44 e 45 da 1ª parte e ao minuto 14 da 2ª parte rebentaram 10 petardos;
- Adeptos situados na bancada central nascente destinada aos adeptos do FCP aos 44 minutos da 1ª parte e aos minutos 5 e 14 da 2ª parte deflagraram 3 potes de fumo;
- Adeptos situados na bancada central nascente destinada aos adeptos do FCP aos minutos 1e 10 da 1ª parte, deflagraram 2 flash lights;
- Adeptos situados na bancada central nascente destinada aos adeptos do FCP durante o jogo cuspiram várias vezes sobre o AA2;
- Após o final do jogo, três adeptos saíram da bancada central nascente e invadiram de forma pacífica o terreno de jogo tendo um deles sido de imediato detido pelas forças de segurança;
- Estes adeptos trajavam indumentária e adereços conotados com o FCP;
- A Demandante não foi a promotora do evento;
- A Demandante tem o cadastro disciplinar na época 2017/2018 que se encontra junto aos autos no anexo 2º, a fls 53 a 66;
- A Demandante não coloca em causa os incidentes ocorridos no jogo em causa e descritos nos factos atrás identificados;
- A Demandante agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que ao não evitar a ocorrência dos referidos acontecimentos incumpriu deveres legais e regulamentares que lhe competiam enquanto participante no espetáculo desportivo”.
3. A ora recorrida impugnou, junto do TAD, o acórdão do Pleno da Secção Profissional do CD, datado de 17/4/2018, que, negando provimento ao recurso hierárquico que interpusera, confirmou as multas que lhe haviam sido aplicadas pela prática das infracções disciplinares previstas e punidas pelo nº 2 do artigo 186.º e pelas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigos 187.°, ambos do RDLPFP, no valor global de € 13.575,00.
O TAD, por acórdão de 20/2/2019, negou provimento ao recurso, mantendo as referidas sanções e indeferiu o pedido de isenção de pagamento da taxa de arbitragem formulado pela FPF.
Para negar provimento ao recurso, o referido acórdão entendeu que não se verificava o alegado erro na apreciação da prova com violação do princípio da presunção de inocência do arguido, dado que, da presunção de veracidade do relatório de ocorrências prevista no art.º 13.º, al. f), do RDLPFP, retirava-se que os factos ilícitos haviam sido perpetrados por adeptos da ora recorrida e que esta não cumprira os deveres de formação e vigilância a que estava adstrita.
O acórdão recorrido, sem alterar a matéria de facto que havia sido considerada provada pelo TAD e remetendo para anteriores decisões – como o Ac. do TCAS de 26/7/2018, proferido no processo n.º 08/18.0BCLSB, e o Ac. do TCAS de 22/11/2018, proferido no processo n.º 30/18.6BCLSB, o qual, por sua vez remetia para o despacho do relator de 28/11/2017, proferido no processo n.º 144/17.0BCLSB, que remetia para pareceres do Magistrado do MP –, após alterar o valor da causa, concluiu pela procedência do recurso, invocando a seguinte fundamentação:
“(…)
Aqui chegados teremos de reconhecer que, cingindo-se o âmbito de incidência da presunção de veracidade estabelecida pelo art. 13.ºf) do RD limita-se aos factos que constam dos relatórios, e não outros e que, por isso, se mostra beliscado o princípio da presunção de inocência de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (art. 32.º-2 e - 10 da CRP), ao direito a um processo equitativo (art. 20.º-4 da CRP) e ao princípio do Estado de direito (art. 2.º da CRP) ou, dito de outro modo e acolhendo a tese da recorrente, é inconstitucional a interpretação do art. 13. f) do RDLPFP operada pela decisão recorrida, no sentido de que factos não constantes dos relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga podem ser dados como provados, por presunção, se a sua verificação não for infirmada pelo arguido.
É que dúvidas não subsistem de que, carecendo de outros meios probatórios convincentes da violação de deveres de cuidado por parte da recorrente, é forçoso concluir que o Tribunal a quo se limitou a presumir naturalmente que a Futebol Clube do Porto SAD falhou nos seus deveres, sustentando que cumpriria à arguida ilidir a presunção de culpa actuada pelo qual o Tribunal recorrendo a um critério da primeira aparência.
Sendo assim e como protesta a recorrente, apresenta-se contundido por este critério decisório o princípio da presunção de inocência, direito fundamental de que a recorrente é titular e, do mesmo passo, implica que para a prova dos factos fundamentadores de responsabilidade disciplinar não será necessária uma racional e objectiva convicção da sua verificação, para além de qualquer dúvida razoável, sendo suficiente uma sua simples indiciação.
Neste passo, considera-se plenamente válida a dissertação da recorrente estampada nas conclusões xvi e ss e apoiada em sólida jurisprudência penal e administrativa, no sentido de que:
- o arguido em processo disciplinar presume-se inocente, correspondendo o princípio da presunção de inocência em processo disciplinar a um direito, liberdade e garantia fundamental, ancorado no direito de defesa do arguido (art. 32.º, n.ºs 2 e 10 da CRP), no princípio do Estado de Direito (art. 2.º da CRP) e no direito a um processo equitativo (art. 20.º-4 da CRP) (cf. Ac. do Pleno da Secção do CA do STA de 18-04-2002, Proc. 033881 e Ac. do STA de 20-10-2015, Proc. 01546/14, www.dgsi.pt);
- o critério decisório adaptado pelo Tribunal a quo desrespeita o princípio da presunção de inocência;
- a "prova de primeira aparência'' ou "prova prima.facie" tem vocação civilista pois é uma regra base das presunções judiciais como decorre do art. 349.º do Código Civil e não é compatível com as exigências do direito e processo sancionatórios erigidos sobre os seus princípios estruturantes da culpa e da presunção de inocência, a impor que a prova de todos os elementos constitutivos da infracção corresponda a um convencimento para além de qualquer dúvida razoável, e não numa convicção da verificação decorrente da verificação de simples indícios resultantes de uma prova de primeira aparência, e que não se imponha à arguida no processo disciplinar o ónus de demonstração da não verificação de qualquer elemento tipicamente relevante dado que também aqui vigora o princípio do acusatório
Por esse prisma, comunga-se do ponto de vista da recorrente de que é inconstitucional - por violação do princípio da presunção de inocência de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente no seu direito de defesa (art. 32.º, n.ºs 2 e 10 da CRP), ao direito a um processo equitativo (art. 20.º-4 da CRP) e ao princípio do Estado de direito (art. 2.º da CRP) -a interpretação dos artigos 186. º-2; 187.º-1 a) e b); 222.º-2 e 250. º-1 do RDLPFP segundo a qual a comprovação de um elemento constitutivo de uma infracção disciplinar está sujeita a um ónus da prova imposto ao arguido, podendo ser dado como provado se, resultando simplesmente indiciado através de uma prova de primeira aparência, o arguido não demonstrar a sua não verificação.
E também se sufraga o entendimento da recorrente de nem mesmo acolhendo a presunção de verdade prevista no art. 13.º,f) do RD ou jurisprudência recente do Supremo Tribunal Administrativo (processo n.º 297/2018 de 18-11-2018) se alcançaria a condenação da aqui recorrente, porquanto sempre se mostra por preencher pressuposto de imputação e condenação: a actuação culposa da recorrente.
Na verdade, também perfilhamos o entendimento expresso pela recorrente e já supra afirmado, de que nos relatórios de jogo, prova documental nos autos que beneficia da presunção de verdade, não se descreve um único facto relativamente ao que fez ou não fez o clube, por referência a concretos deveres legais ou regulamentares, nem tão-pouco se descreve por que forma essa actuação do clube facilitou ou permitiu o comportamento que é censurado; sendo a actuação culposa um dos "demais elementos das infracções" que se impunha à FPF, aqui recorrida, provar, sempre se mostrava prejudicada a condenação do Clube por falta de preenchimento de pressuposto legal exigido pelos arts. 186.º-2 e 187.º-1 a) e h) do RD.
Daí, pois, se concorde que é inconstitucional, por violação do princípio jurídico­ constitucional da culpa (art. 2.º da CRP) e do princípio da presunção de inocência, presunção de que o arguido beneficia em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (arts. 32.º-2 e -10 da CRP), a interpretação dos artigos 13.º f) e 186.º-2. 187.º-1 a) e h) do RDLPFP no sentido de que a indicação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parle desse clube. o que desde já se argui, para todos os efeitos e consequências legais: e inconstitucional, porque, materialmente, na prática, significa impor ao clube uma responsabilidade objectiva por facto de outrem (2.º e 30.º-3 da CRP).
Assim e concluindo, procedendo, por fundado, o presente recurso na vertente em análise.
(…)”.
Estando em causa a questão de saber se a ora recorrida pode ser responsabilizada a título de culpa pelo comportamento dos seus sócios e simpatizantes, entendemos que, como é jurisprudência uniforme deste STA, a resposta deve ser afirmativa, pelas razões que constam do Ac. de 21/2/2019 – Proc. n.º 033/18.0BCLSB (cf., no mesmo sentido, entre muitos, os Acs. de 4/4/2019 – Proc. n.º 040/18.3BCLSB, de 2/5/2019 – Proc. n.º 073/18.0BCLSB, de 21/3/2019 – Proc. n.º 075/18.6BCLSB, de 5/9/2019 – Proc. n.º 065/18.9BCLSB, de 12/12/2019 – Proc. n.º 048/19.1BCLSB e de 7/5/2020 – Procs. nºs. 074/19.0BCLSB e 0144/17.0BCLSB), onde se referiu:

“(…).

51. O conceito de «infração disciplinar» mostra-se definido no n.º 1 do art.º 17.º do referido RD ali se preceituando que se considera «infração disciplinar o facto voluntário, por ação ou omissão, e ainda que meramente culposo, que viole os deveres gerais ou especiais previstos nos regulamentos desportivos e demais legislação aplicável», elencando-se nos artºs. 29.º e 30.º o leque de sanções disciplinares (principais e acessórias) e quais aquelas que são aplicáveis aos clubes.

52. Resulta, por sua vez, do capítulo IV do RD/LPFP-2017 o elenco de infrações disciplinares, prevendo-se na sua secção I as «infrações específicas dos clubes», as quais podem ser «muito graves» (cfr. subsecção I, artºs. 62.º a 83.º), «graves» (cfr. subsecção II, artºs. 84.º a 118.º) e «leves» (cfr. subsecção III, artºs. 119.º a 127.º), seguindo-se depois as infrações de dirigentes, de jogadores, de delegados dos clubes e dos treinadores, e na secção VI o regime das «infrações dos espetadores», resultando enunciado no art.º 172.º, como princípio geral, o de que os «clubes são responsáveis pelas alterações da ordem e da disciplina provocadas pelos seus sócios ou simpatizantes nos complexos, recintos desportivos e áreas de competição, por ocasião de qualquer jogo oficial» (n.º 1) e de que «[s]em prejuízo do acima estabelecido, no que concerne única e exclusivamente ao autocarro oficial do clube visitante, o clube visitado será responsabilizado pelos danos causados em consequência dos atos dos seus sócios e simpatizantes praticados nas vias públicas de acesso ao complexo desportivo» (n.º 2).

53. Também as «infrações dos espetadores» se mostram qualificadas como podendo ser «muito graves» (cfr. subsecção II, artºs. 173.º a 178.º), «graves» (cfr. subsecção III, artºs. 179.º a 184.º) e «leves» (cfr. subsecção IV, artºs. 185.º a 187.º), estipulando-se, no que releva para o litígio, no seu art.º 187.º, respeitante a «comportamento incorreto do público», que «[f]ora dos casos previstos nos artigos anteriores, o clube cujos sócios ou simpatizantes adotem comportamento social ou desportivamente incorreto, designadamente através do arremesso de objetos para o terreno de jogo, de insultos ou de atuação da qual resultem danos patrimoniais ou pratiquem comportamentos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina é punido nos seguintes termos: a)o simples comportamento social ou desportivamente incorreto, com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 5 UC e o máximo de 15 UC; b) o comportamento não previsto nos artigos anteriores que perturbe ou ameace a ordem e a disciplina, designadamente mediante o arremesso de petardos e tochas, é punido com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 15 UC e o máximo de 75 UC» (n.º 1).

54. Decorre, por outro lado, do art.º 34.º do RC/LPFP-2017, relativo à segurança e utilização dos espaços de acesso público, que os «clubes estão obrigados a elaborar um regulamento de segurança e utilização dos espaços de acesso ao público relativo ao estádio por cada um utilizado na condição de visitado e cuja execução deve ser concertada com as forças de segurança, a ANPC e os serviços de emergência médica e a Liga» (n.º 1), e que tal regulamento deverá conter, designadamente, medidas relativas à «a)separação física dos adeptos, reservando-lhes zonas distintas, nas competições desportivas consideradas de risco elevado;… d) instalação ou montagem de anéis de segurança e adoção obrigatória de sistemas de controlo de acesso, de modo a impedir a introdução de objetos ou substâncias proibidas ou suscetíveis de possibilitar ou gerar atos de violência, nos termos previstos na lei» (n.º 2).

55. Resulta do art.º 35.º do mesmo RC que «[e]m matéria de prevenção de violência e promoção do fair-play, são deveres dos clubes: a)assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança; b) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados; c) aplicar medidas sancionatórias aos seus associados envolvidos em perturbações da ordem pública, impedindo o acesso aos recintos desportivos nos termos e condições do respetivo regulamento ou promovendo a sua expulsão do recinto; (…) f) garantir que são cumpridas todas as regras e condições de acesso e de permanência de espetadores no recinto desportivo; (… k) não apoiar, sob qualquer forma, grupos organizados de adeptos, em violação dos princípios e regras definidos na Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, com a redação dada pela Lei n.º 52/2013, de 25 de julho; i) zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube participem do espetáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas, xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos; (…) o) desenvolver ações de prevenção socioeducativa, nos termos da lei; (…) s) reservar, nos recintos desportivos que lhe são afetos, uma ou mais áreas específicas para os filiados dos grupos organizados de adeptos» (n.º 1), e que «[p]ara efeito do disposto na alínea f) do número anterior, e sem prejuízo do estabelecido no artigo 24.º da Lei n.º 39/2009 (…) e no Regulamento de prevenção da violência constante do Anexo VI, são considerados proibidos todos os objetos, substâncias e materiais suscetíveis de possibilitar atos de violência, designadamente: (…) f) substâncias corrosivas ou inflamáveis, explosivas ou pirotécnicas, líquidos e gases, fogo-de-artifício, foguetes luminosos (very-lights), tintas, bombas de fumo ou outros materiais pirotécnicos; g) latas de gases, aerossóis, substâncias corrosivas ou inflamáveis, tintas ou recipientes que contenham substâncias prejudiciais à saúde ou que sejam altamente inflamáveis», sendo que «[p]ara além do disposto nos números anteriores, os clubes visitados, ou considerados como tal, devem proceder à colocação, em todas as entradas do estádio, de um mapa-aviso, de dimensões adequadas, com a descrição de todos os objetos ou comportamentos proibidos no recinto ou complexo desportivo, nomeadamente invasões do terreno de jogo, arremesso de objetos, uso de linguagem ou cânticos injuriosos ou que incitem à violência, racismo ou xenofobia, bem como a introdução (…) material produtor de fogo-de-artifício ou objetos similares, e quaisquer outros suscetíveis de possibilitar a prática de atos de violência» (n.º 6).

56. E quanto aos regulamentos de prevenção da violência (cf. art.º 36.º daquele RC) a matéria surge regulada nos referidos RD/LPFP e no anexo VI ao RC/LPFP [o RPV/RC/LPFP – adotado ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 05.º da Lei n.º 39/2009 (cfr. art.º 02.º do mesmo RPV - «norma habilitante»)], extraindo-se do seu art.º 04.º que «[c]ompete à Liga e as seus associados, incentivar o respeito pelos princípios éticos inerentes ao desporto e implementar procedimentos e medidas destinados a prevenir e reprimir fenómenos de violência, racismo, xenofobia e intolerância nas competições e nos jogos que lhes compete organizar», constituindo deveres do «promotor do espetáculo desportivo» [no caso os «clubes» - cfr. art.º 05.º, al. h), do referido RPV], no que aqui ora releva, os de «(…) b) assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança; c) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados; (…) l) não apoiar, sob qualquer forma, grupos organizados de adeptos, em violação dos princípios e regras definidos na Lei n.º 39/2009 (…); m) zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube, associação ou sociedade desportiva participem do espetáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos; p) desenvolver ações de prevenção socioeducativa, nos termos da lei; (…) t) reservar, nos recintos desportivos que lhe são afetos, uma ou mais áreas específicas para os filiados dos grupos organizados de adeptos; u) instalar e manter em funcionamento um sistema de videovigilância, de acordo com o preceituado nas leis aplicáveis» (cfr. art.º 06.º do mesmo Regulamento).

57. Constituem, por último, condições de acesso dos espetadores ao recinto desportivo definidas no art.º 09.º do referido Regulamento, nomeadamente, o: «f) não entoar cânticos racistas ou xenófobos ou que incitem à violência; (…) l) consentir na revista pessoal e de bens, de prevenção e segurança, com o objetivo de detetar e/ou impedir a entrada ou existência de objetos ou substâncias proibidos ou suscetíveis de possibilitar atos de violência; m) não transportar ou trazer consigo objetos, materiais ou substâncias suscetíveis de constituir uma ameaça à segurança, perturbar o processo do jogo, impedir ou dificultar a visibilidade dos outros espetadores, causar danos a pessoas ou bens e/ou gerar ou possibilitar atos de violência, nomeadamente: (…) vi. Substâncias corrosivas ou inflamáveis, explosivas ou pirotécnicas, líquidos e gases, fogo-de-artifício, foguetes luminosos (very-lights), tintas, bombas de fumo ou outros materiais pirotécnicos; vii. Latas de gases, aerossóis, substâncias corrosivas ou inflamáveis, tintas ou recipientes que contenham substâncias prejudiciais à saúde ou que sejam altamente inflamáveis», sendo que o acesso e permanência dos grupos organizados de adeptos (cfr. art.º 11.º) se mostra disciplinado pelo estabelecido, nomeadamente, no art.º 09.º, sendo sempre obrigatória a revista pessoal aos mesmos e seus bens.

58. Encerrando-se aqui o elencar do quadro normativo tido por pertinente para a análise do litígio temos que a previsão do ilícito desportivo disciplinar em questão, no caso o inserto no art.º 187.º do RD/LPFP-2017, mostra-se clara e perfeitamente integrada naquilo que, por um lado, são os deveres legais e regulamentares atrás aludidos e que nesta matéria impendem, nomeadamente, sobre os clubes e sociedades desportivas, e, por outro lado, no que, mais vastamente, constituem os objetivos e os fins da política de combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança e desportivismo, prevenindo a eclosão e reprimindo a existência ou a manifestação de tais fenómenos.

59. Através da previsão do referido ilícito desportivo disciplinar visa-se a prossecução e realização daqueles objetivos e fins, prevenindo e reprimindo os comportamentos e as condutas que nele se mostram tipificados e que são atentatórios e desconformes com aqueles objetivos e fins, fazendo responder clubes e sociedades desportivas por tais condutas e comportamentos incorretos, tidos pelo público aos mesmos afetos ou simpatizante, enquanto reveladores da inobservância por estes, por ação ou por omissão, do que constituem os seus deveres legais e regulamentares gerais e especiais constantes dos comandos normativos atrás convocados.

60. Na formulação do que constitui o tipo de ilícito disciplinar inserto no art.º 187.º do RD/LPFP-2017 e do que, em decorrência, se exige para o seu preenchimento em concreto, estão subjacentes, tão-só, as condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube/sociedade desportiva e pelos quais os mesmos respondem, porquanto decorrentes ou fruto do que constitui o incumprimento pelos mesmos, por ação ou omissão, do dever in vigilando que têm sobre as suas claques e adeptos, nomeadamente e no que releva para a discussão objeto dos autos sub specie, de que houve alguma falha no dever de revista dos adeptos, no dever de revista do estádio, no dever de controlar os adeptos dentro do estádio, no dever de demover os adeptos de praticarem ou desenvolverem tal tipo de comportamentos e condutas.

61. Ora no caso vertente inexiste, por não aportado aos autos, um qualquer elemento densificador e revelador do cumprimento por parte da demandante dos deveres a que está subordinada no que respeita aos deveres de formação, controlo e vigilância do comportamento dos seus adeptos e espectadores, bem sabendo que estava obrigada a cuidar dos mesmos e que eram os seus adeptos que ocupavam a denominada «bancada sul», onde se verificaram as ocorrências registadas no Relatório.

62. Sobre os clubes de futebol e as respetivas sociedades desportivas, como é o caso da demandante aqui recorrida, recaem especiais deveres na assunção, tomada e implementação de efetivas medidas não apenas dissuasoras e preventivas, mas, também, repressoras, dos fenómenos de violência associada ao desporto e de falta de desportivismo, de molde a criar as condições indispensáveis para que a ordem e a segurança nos estádios de futebol português sejam uma realidade.

63. Neste contexto, ao invés do sustentado pela demandante na sua impugnação e que veio a ter acolhimento no acórdão recorrido, não estamos em face de uma qualquer situação de responsabilidade disciplinar objetiva violadora dos princípios e comandos constitucionais.

64. Com efeito, mostra-se ser in casu subjetiva a responsabilidade desportiva na vertente disciplinar da demandante aqui recorrida, já que estribada naquilo que foi uma violação dos deveres legais e regulamentares que sobre a mesma impendiam neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido.

65. É que se no domínio da prevenção da violência associada ao fenómeno desportivo o quadro normativo impõe deveres a um leque alargado de destinatários, nomeadamente, aos clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, é porque lhes reconhece capacidade para os cumprir e também para os violar, pelo que apurando-se a violação de deveres legalmente estabelecidos os destinatários dos mesmos serão responsáveis por essa violação.

66. Socorrendo-nos e transpondo para o caso vertente a jurisprudência do TC expendida no acórdão n.º 730/95 [consultável in: www.tribunalconstitucional.pt/tcacordaos e que foi firmada no quadro da apreciação da conformidade constitucional da sanção de interdição dos estádios por comportamentos dos adeptos dos clubes prevista nos artºs. 03.º a 06.º do DL n.º 270/89, de 18/8 (diploma no qual se continham medidas preventivas e punitivas de violência associada ao desporto) e 106.º do Regulamento Disciplinar da FPF], temos que os ilícitos disciplinares ou disciplinares desportivos imputados e pelos quais a demandante aqui recorrida foi sancionada resultam de «condutas ilícitas e culposas das respetivas claques desportivas (assim chamadas e que são sócios, adeptos ou simpatizantes, como tal reconhecidos) – condutas que se imputam aos clubes, em virtude de sobre eles impenderem deveres de formação e de vigilância que a lei lhes impõe e que eles não cumpriram de forma capaz», «[d]everes que consubstanciam verdadeiros e novos deveres in vigilando e in formando», presente que cabe a cada clube desportivo o «dever de colaborar com a Administração na manutenção da segurança nos recintos desportivos, de prevenir a violência no desporto, tomando as medidas adequadas», concluindo-se no sentido de que [n]ão é, pois (…) uma ideia de responsabilidade objetiva que vinga in casu, mas de responsabilidade por violação de deveres».

67. É, por conseguinte, neste ambiente de proteção, salvaguarda e prevenção da ética desportiva, bem como do combate a manifestações de violência associadas ao desporto, que incidem ou recaem sobre vários entes e entidades envolvidos, designadamente sobre os clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, um conjunto de novos deveres in vigilando e in formando e em que a inobservância destes deveres assenta necessariamente numa valoração social, moral ou cultural da conduta do infrator, mas antes no incumprimento de uma imposição legal, sancionando-se aqueles por via da contribuição omissiva, causal ou co causal que tenha conduzido a um comportamento ou conduta dos seus adeptos.

68. Na verdade, não estamos in casu, pois, perante uma responsabilidade objetiva já que o regime previsto nos artºs. 17.º, 19.º, 20.º, 127.º, 187.º, als. a) e b), do RD/LPFP-2017 em articulação, nomeadamente, com os artºs. 06.º, al. g), e 09.º, n.º 1, al. m), do RPV/LPFP-2017 e com o que resulta do demais quadro normativo atrás convocado, observa o princípio da culpa, tanto mais que em sua decorrência apenas se sancionam os clubes de futebol ou as suas sociedades desportivas pelos comportamentos incorretos do seu público havidos em violação por aqueles dos deveres que sobre os mesmos impendiam.

69. Daí que, no contexto, o princípio constitucional da culpa, enquanto servindo, igualmente, de elemento conformador e basilar ao Estado de direito democrático, e tendo como pressuposto o de que qualquer sanção configura a reação à violação culposa de um dever de conduta, considerado socialmente relevante e que foi prévia e legalmente imposto ao agente, não se mostra minimamente infringido, tanto mais que será no quadro do processo disciplinar a instaurar (cfr. artºs. 212.º e segs., 225.º e sgs., do RD/LPFP-2017) que se terão de averiguar e apurar todos os elementos da infração disciplinar, permitindo, como se refere no citado acórdão do TC, que «por esta via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)».

70. Frise-se que é na e da inobservância dos deveres de assunção da responsabilidade pela segurança do que se passe no recinto desportivo e do desenvolvimento de efetivas ações de prevenção socioeducativa que radica ou deriva a responsabilidade disciplinar desportiva em questão, dado ter sido essa conduta que permitiu ou facilitou a prática pelos seus adeptos dos atos ou comportamentos proibidos ou incorretos.

71. E que cabe aos clubes de futebol/sociedades desportivas a demonstração da realização por parte dos mesmos junto dos seus adeptos das ações e dos concretos atos destinados à observância daqueles deveres e, assim, prevenirem e eliminarem a violência, e isso sejam esses atos e ações desenvolvidos em momento anterior ao evento, sejam, especialmente, imediatamente antes ou durante a sua realização.

72. Para o efeito, aportando prova demonstradora, designadamente, de um razoável esforço no cumprimento dos deveres de formação dos adeptos ou da montagem de um sistema de segurança que, ainda que não seja imune a falhas, conduza a que estas ocorrências e condutas sejam tendencialmente banidas dos espetáculos desportivos, assumindo ou constituindo realidades de carácter excecional.

73. A previsão no quadro disciplinar do ilícito desportivo em crise mostra-se, assim, devidamente legitimada já que encontra ou vê radicar, repousar os seus fundamentos não apenas naquilo que é a necessária prevenção, mas, também, na culpa, sancionando-se o que constitui um negligente cumprimento dos deveres supra enunciados, sem que, de harmonia com o exposto, um tal entendimento atente ou enferme de violação dos princípios da culpa e do Estado de direito, ou constitua um entorse aos direitos de defesa e a um processo equitativo, dado que assegurados e garantidos em consonância e adequação com o entendimento e interpretação fixados.

74. E também não vemos que tal entendimento e interpretação possam envolver uma pretensa violação dos princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo, pois, não estamos em face da assunção duma presunção de culpa da arguida ou de regra que dispense, libere ou inverta o ónus probatório que colida com o mesmo princípio, nem, como atrás referido, no caso em presença somos confrontados com uma situação de inexistência de prova relevante de que foi cometido ilícito e de quem é o sujeito responsável à luz da prova produzida para, mercê da existência de legítima dúvida, fazer apelo ao segundo princípio.

75. Assiste, por conseguinte, razão à recorrente, não podendo, assim, manter-se o juízo firmado neste segmento do acórdão recorrido”.

Nestes termos, nada obstava a que o relatório de ocorrências elaborado pelos delegados da LPFP servisse de base ao uso de presunções judiciais nos termos em que o TAD o fez e extraindo-se da matéria fáctica considerada provada pelo acórdão recorrido que a ora recorrida incumpriu culposamente os deveres de formação e de vigilância a que estava adstrita, não pode deixar de se concluir que nele se incorre em erro de julgamento quando se considera existir violação dos princípios da culpa e da presunção de inocência do arguido por se traduzir na sua responsabilização sem culpa.

E, ao assim concluir, este STA não está a julgar de facto através de uma distinta valoração probatória, mas a aplicar o direito aos factos que foram considerados provados pelo acórdão recorrido.

Procede, pois, nesta parte, o recurso principal.

A recorrente também contesta o acórdão recorrido na parte em que alterou o valor da causa que lhe fora atribuído pelo TAD, alegando que subjacente à pretensão da demandante estava um interesse imaterial que ia muito para além do valor económico das sanções pecuniárias que lhe haviam sido aplicadas.

Mas não tem razão.

Efectivamente, estando o valor da causa sujeito às regras do CPTA (art.º 2.º, n.º 2, da Portaria n.º 301/2015) e estabelecendo-se, no art.º 33.º, al. b), deste diploma, que, nos processos relativos a actos administrativos em que está em causa a aplicação de sanções de carácter económico, tal valor é determinado pelo montante da sanção aplicada, não merece censura o acórdão recorrido quando, revogando a decisão do TAD, fixou à acção o valor de € 13.575,00, correspondente ao valor global das multas em que a demandante fora condenada.

No recurso subordinado, a recorrente invoca que os art.º 2.º, nºs. 1 e 5, da Portaria n.º 301/2015, de 22/9, conjugado com tabela constante do seu anexo I (2.ª linha) e articulado com os artºs. 76.º, nºs. 1, 2 e 3 e 77.º, nºs. 4 e 5, da Lei do TAD, enferma de inconstitucionalidade por conduzir à fixação de um valor de custas totalmente desproporcional e comprometer o princípio da tutela jurisdicional efectiva, consagrado nos artºs. 20.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4, ambos da CRP, em virtude de haver uma enorme discrepância entre o valor das custas arbitrais e das custas judiciais sem que haja qualquer razão justificativa e de o montante daquelas ser incomportável para um cidadão médio.

Esta questão – já apreciada por este STA, no Ac. de 5/9/2019, proferido no Proc. n.º 058/18.6BCLSB, que concluiu pela sua improcedência – veio a ser objecto do recente Ac. do TC n.º 543/2019, de 16/10/2019, a cujo entendimento aderimos e onde se escreveu:

“(…).

Como o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, no contexto de apreciação das custas judiciais, a Constituição não garante uma justiça gratuita mas uma justiça economicamente acessível à generalidade dos cidadãos, sem necessidade de recurso ao sistema de apoio judiciário (cfr., entre outros, Acórdãos nºs. 1182/96 e 70/98). Ora, se o Estado pode exigir aos cidadãos que recorrem aos tribunais públicos o pagamento de taxas de justiça em contrapartida do serviço público de justiça que lhes é individualmente prestado nos processos judiciais, por maioria de razão poderá exigir aos operadores desportivos o pagamento do serviço especializado de justiça desportiva que lhes é especificamente prestado pelo TAD, que é um centro de arbitragem de natureza privada criado para responder às necessidades de uniformização, celeridade e especialização impostas pela especificidade do litígio desportivo /Acórdão n.º 230/13).

(…) a transferência de competências jurisdicionais dos tribunais administrativos para o TAD, na matéria em apreço (cfr. artigos 4.º e 5.º da respetiva lei), redundou num encarecimento dos valores cobrados pelo serviço público de justiça prestado em processos de valor igual ou inferior a € 30.000,00. E efetivamente assim é, como decorre da comparação do montante global na primeira linha da tabela constante do Anexo I da Portaria n.º 301/2015 (€ 3.325,00) e o montante máximo da taxa de justiça fixada na tabela I do RCP para a generalidade dos processos judiciais de valor não superior a € 30.000,00 (cinco unidades de conta, que equivale a € 510,00), situando-se a diferença em cerca de seis vezes mais o valor das custas dos processos arbitrais necessários (€ 510,00 x 6 = €3060,00).

Sucede que, como se antecipou no ponto anterior, há razões constitucionalmente aceitáveis para essa diferença de valores, que se prendem com a natureza privada do TAD – que tem nas custas processuais a sua principal fonte de financiamento (artigo 1.º, n.º 3, da Lei do TAD) –, o nível médio de rendimentos de entidades desportivas envolvidas nos litígios que integram a competência necessária desse tribunal arbitral, sensivelmente superior ao nível médio de rendimentos dos cidadãos em geral, e as próprias características do serviço de justiça prestado pelo TAD.

Conforme é referido no Acórdão n.º 155/2017, «[p]ara que se possa considerar existir uma clara desproporção que afeta o carácter sinalagmático de um tributo não se pode atender apenas ao carácter fortemente excessivo da quantia a pagar relativamente ao custo do serviço (acórdãos nºs. 640/95 e 1140/96); ela há-de igualmente ser aferida em função de outros fatores, designadamente da utilidade do serviço para quem deve pagar o tributo (cfr. acórdãos nºs. 1140/96, 115/02 e 349/02».

(…) não se deve ignorar a especificidade da justiça arbitral (necessária) face à justiça estadual, nem a especificidade do tipo de litígios integrados na competência necessária do TAD face à generalidade dos demais litígios carecidos de resolução jurisdicional, sendo necessariamente diferentes as variáveis de ponderação que o legislador deve atender na fixação do valor das custas de processos que genericamente envolvem federações desportivas, ligas profissionais e clubes desportivos, e são decididos por uma entidade que, tendo natureza jurisdicional, não é pública, nem financiada pelo Estado, e tem a seu cargo custos próprios permanentes que decorrem da sua específica estrutura arbitral de funcionamento.

Neste enquadramento, não se afigura constitucionalmente censurável a fixação de um valor mínimo de custas processuais que reflita a maior capacidade económica presumida dos potenciais litigantes e permita cobrir os custos específicos mais elevados do serviço de justiça prestado pelos tribunais arbitrais, como sucede com o valor concretamente fixado na primeira linha da tabela anexa à Portaria n.º 301/2015 (€ 3.325,00).

Os eventuais excessos que o sistema de custas processuais legalmente estabelecido possa comportar, por força da amplitude do primeiro escalão tributário, devem ser sinalizados caso a caso em função do concreto valor processual da causa e do concreto valor das custas processuais cobradas. Esta tem sido, aliás, a perspetiva de análise que o Tribunal Constitucional tem adotado no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade de normas que fixam o montante das custas processuais exclusivamente em função do valor da causa, sindicando à luz do princípio constitucional da proporcionalidade, não o critério em si, mas o resultado tributário concreto a que a sua aplicação conduziu no processo que deu origem ao recurso de constitucionalidade.

(…)”.

Assim, ao contrário do alegado pela recorrente, não é pelo facto de haver uma discrepância entre o valor das custas arbitrais e o das judiciais e de o montante daquelas ser exagerado face aos rendimentos de um cidadão médio que se pode julgar procedente a alegada inconstitucionalidade.

Para que tal sucedesse seria necessário que, no caso concreto, o montante das custas a pagar no âmbito do processo que correu no TAD se apresentasse desproporcional perante o valor da acção, o que, em face do alegado, não se pode concluir, considerando que, em resultado do valor da causa que veio a ser fixado terá de ser alterado o montante das custas estabelecido por aquele tribunal, o qual se manterá porém, em valores bem inferiores àquele.

Improcede, pois, o recurso subordinado.

4. Pelo exposto, acordam em:

a) Conceder parcial provimento ao recurso principal, revogando o acórdão recorrido na parte em que anulou os actos impugnados e confirmando-o na parte em que alterou o valor da causa;

b) Negar provimento ao recurso subordinado, confirmando, nessa parte, o acórdão recorrido.

Custas no TCA e neste STA pelo “Futebol Clube do Porto – Futebol SAD” e pela FPF, na proporção de respectivamente, 5/6 e 1/6.


Lisboa, 18 de Junho de 2020. – José Francisco Fonseca da Paz (relator) - Maria do Céu Dias Rosa das Neves - Cláudio Ramos Monteiro.