Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:043/19.0BCLSB
Data do Acordão:11/05/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ADRIANO CUNHA
Descritores:DISCIPLINA DESPORTIVA
TRIBUNAL ARBITRAL
RESPONSABILIDADE DISCIPLINAR
CLUBES DESPORTIVOS
RELATÓRIO
JOGOS
IDENTIFICAÇÃO
PROVA
PRESUNÇÃO
Sumário:I - Não torna inviável a qualificação como adepto ou simpatizante de um determinado clube o facto de nem as autoridades policiais, nem os delegados da “FPF”, ou o árbitro, terem identificado pessoalmente indivíduo que, em concreto, provocou distúrbios durante um jogo de futebol, qualificação que pode resultar de utilizáveis presunções judiciais ou naturais.
II - A presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e dos relatórios da equipa de arbitragem e dos delegados da Federação Portuguesa de Futebol que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo art. 206º nº 1 do RD/FPF-2016 (norma idêntica à do art. 13.º, al. f), do RD/LPFP), conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos arts. 2º, 20º, nº 4 e 32º nºs 2 e 10 da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
III - A responsabilidade disciplinar dos clubes e sociedades desportivas prevista no art. 181º nº 1 do referido RD/FPF pelas condutas ou comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube e pelos quais estes respondem não constitui uma responsabilidade objetiva violadora dos princípios da culpa e da presunção de inocência.
IV - A responsabilidade desportiva disciplinar ali prevista mostra-se ser, in casu, subjetiva, já que estribada numa violação dos deveres legais e regulamentares que sobre clubes e sociedades desportivas impendem neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao do domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido.
Nº Convencional:JSTA000P26702
Nº do Documento:SA120201105043/19
Data de Entrada:10/06/2020
Recorrente:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
Recorrido 1:SPORTING CLUBE DE PORTUGAL - FUTEBOL, SAD
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I - RELATÓRIO

1. “SPORTING CLUBE DE PORTUGAL (SCP)” interpôs no Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), ao abrigo do disposto nos arts. 4º, nºs 1 e 3 a) da Lei nº 74/2013, de 6/9, na redação conferida pela Lei nº 74/2013, de 6/9, alterada pela Lei nº 33/2014, de 16/6 (LTAD), contra a “FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL (FPF)”, recurso de impugnação do acórdão, de 10/11/2017, do Conselho de Disciplina da “FPF”/Secção Não Profissional, que manteve a pena disciplinar que havia condenado o “SCP” nas sanções de derrota por 3-0, perda de 4 pontos na tabela classificativa e multa de 10 UCs, ou seja, 1.020,00€, por violação do disposto no art. 181º nº 1 do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol de 2016 (RDFPF/2016).

2. O TAD, por acórdão de 20/2/2019, no âmbito do seu processo arbitral nº 70/2017, negou provimento ao recurso interposto pelo “SCP”, assim confirmando a decisão punitiva - cfr. fls. 237 e segs. (págs. 3 a 28) da paginação “SITAF”.

3. O “SCP”, inconformado com esta decisão arbitral, interpôs recurso jurisdicional para o Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), o qual, por acórdão de 7/11/2019 (cfr. fls. 281 e segs. “SITAF”, com a adenda retificativa de fls. 308 e segs. SITAF), concedeu provimento ao recurso e, revogando a decisão arbitral recorrida, anulou o ato disciplinar punitivo ali confirmado.

4. A “FPF”, agora inconformada com este Acórdão proferido pelo TCAS, veio interpor, ao abrigo do disposto no art. 150º do CPTA, o presente recurso jurisdicional de revista, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (cfr. fls. 324 e segs. “SITAF”):

«1. A Recorrente vem interpor recurso de revista para o STA do Acórdão proferido pelo TCA Sul em 7 de novembro de 2019, que revogou a decisão recorrida e anulou a deliberação que condenou a ora Recorrida a título de sanção disciplinar, nas penas de derrota por 3-0, perda de 4 pontos, e multa no valor de 1.020,00€ por aplicação do artigo 181.º, n.º 1 do Regulamento Disciplinar da FPF.;

2. A questão em apreço diz respeito à responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorretos dos seus adeptos por ocasião de jogo de futebol, o que, para além de levantar questões jurídicas complexas, tem assinalável importância social uma vez que, infelizmente, os episódios de violência em recintos desportivos têm sido uma constante nos últimos anos em Portugal e o sentimento de impunidade dos clubes dado por decisões como aquela de que agora se recorre nada ajudam para combater este fenómeno;

3. A questão essencial trazida ao crivo deste STA – responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorretos dos seus adeptos - revela uma especial relevância jurídica e social e sem dúvida que a decisão a proferir é necessária para uma melhor aplicação do direito;

4. Assume especial relevância social a forma como a comunidade olha para o crescente fenómeno de violência generalizada no futebol – seja a violência física, seja a violência verbal, seja perpetrada por adeptos, seja perpetrada pelos próprios dirigentes dos clubes;

5. Em causa nos presentes autos está, essencialmente, comportamento grave de um adepto do SCP no decorrer de um jogo de futebol de praia;

6. São deveres dos clubes assegurar que os seus adeptos não têm comportamentos incorretos, o que decorre dos regulamentos federativos, é certo, mas também da Lei e da Constituição;

7. Admitir, como fez o TCA Sul, que os clubes devem ser desresponsabilizados pelos comportamentos dos seus adeptos – ao arrepio do entendimento de toda a comunidade desportiva e das instâncias internacionais do Futebol, onde esta questão, de tão clara e evidente que é, nem sequer oferece discussão – é fomentar este tipo de comportamentos o que se afigura gravíssimo do ponto de vista da repercussão social que este sentimento de impunidade pode originar;

8. Esta questão tem conhecido posições contraditórias por parte do TAD, sendo que em mais de 37 processos arbitrais a questão foi decidida de forma contrária à que fez o Tribunal a quo, contra apenas cinco em sentido coincidente;

9. A questão em apreço é suscetível de ser repetida num número indeterminado de casos futuros, porquanto desde o início de 2017 até à presente data deram entrada no Tribunal Arbitral do Desporto mais de 70 processos relativos a sanções aplicadas a clubes por comportamento incorreto dos seus adeptos;

10. Não existe nenhuma crítica a fazer à decisão proferida pelo TAD, ao contrário do que entendeu o TCA Sul;

11. O SCP não colocou, em momento algum, em causa que estes factos aconteceram, nem que o espectador era seu adepto;

12. Tal como consta dos Relatórios juntos aos autos, os agentes são absolutamente claros ao afirmar que tais condutas foram perpetradas por adepto do SCP, sem deixar qualquer margem para dúvidas;

13. Com base nesta factualidade, e atendendo à gravidade dos factos perpetrados, o Conselho de Disciplina instaurou o competente processo disciplinar à Recorrida;

14. Neste particular, os relatórios das forças policiais, por serem exarados por “autoridade pública” ou “oficial público”, no exercício público das “respetivas funções” (para as quais é competente em razão da matéria e do lugar), constituem documento autêntico (art.º 363.º, n.º 2 do Código Civil), cuja força probatória se encontra vertida nos artigos 369.º e ss. do Código Civil. Com efeito, tal relatório faz «prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora» (cf. art.º 371.º, n.º 1 do Código Civil);

15. Sucede que, não obstante os relatórios de jogo juntos aos autos serem claríssimos ao afirmar que foram adeptos afetos ao SCP que levaram a cabo estes comportamentos, o TCA alega que nada existe nos autos que permita concluir que os atos sub judice – punidos pelo RD da LPFP – foram praticados por sócio, adepto ou simpatizante do clube recorrido;

16. Manifestamente, o acórdão recorrido não tomou em consideração a presunção de veracidade legal e regulamentarmente estabelecida para os relatórios de policiamento desportivo nem o facto de o adepto estar devidamente identificado nos autos pelas forças de segurança;

17. E é, precisamente, esta presunção de veracidade que, inscrevendo-se nos princípios fundamentais do procedimento disciplinar, confere um valor probatório reforçado aos relatórios dos jogos elaborados pelas forças policiais relativamente aos factos deles constantes que estes tenham percecionado;

18. Isto não significa que os Relatórios contenham uma verdade completamente incontestável: o que significa é que o conteúdo dos Relatórios, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que foram adeptos ou simpatizantes da recorrida que levaram a cabo os comportamentos sub judice;

19. Tal não significa que quem acusa não tenha o ónus de provar. Trata-se de abalar uma convicção gerada por documentos que beneficiam de uma especial força probatória;

20. E, para abalar essa convicção, cabia ao clube, no lugar de se remeter ao silêncio, apresentar contraprova. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.º do Código Civil;

21. Quanto à questão de saber se a ora recorrida pode ser responsabilizada a título de culpa por esses comportamentos, mais uma vez, nenhuma crítica há a fazer à decisão do Conselho de Disciplina;

22. Entende o TCA Sul que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta dos Relatórios de Jogo) que o SCP violou deveres de formação a que se encontra adstrito, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo, o que, como sabemos, não é possível;

23. Para abalar essa convicção, cabia ao SCP apresentar contraprova. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.º do Código Civil;

24. Em sede sancionatória, o “arguido”, não pode simplesmente remeter-se ao silêncio, aguardando, sem mais, o desenrolar do procedimento cabendo-lhe, pelo menos, colocar uma dúvida na mente do julgador correndo o risco de, não o fazendo, ser punido se as provas reunidas forem todas no mesmo sentido.

25. Do lado do Conselho de Disciplina, todos os elementos de prova carreados para os autos iam no mesmo sentido, pelo que dúvidas não subsistiam (nem subsistem) de que a responsabilidade que lhe foi assacada pudesse ser de outra entidade que não o SCP.

26. De modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo dos Relatórios, cabia à Recorrida demonstrar, pelo menos, que cumpriu com todos os deveres que sobre si impendem, designadamente em sede de Recurso Hierárquico Impróprio apresentado ou quanto muito em sede de ação arbitral. Mas a Recorrida não o demonstrou, em nenhuma sede;

27. Por seu turno, o TCA Sul nada analisa nem nada fundamenta;

28. O próprio Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 730/95, diz claramente que “o processo disciplinar que se manda instaurar (…) servirá precisamente para averiguar todos os elementos da infração, sendo que, por essa via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)”;

29. Neste sentido, veja-se o Acórdão deste STA proferido no âmbito do recurso n.º 297/18, interposto da decisão do TCA Sul tirada no processo n.º 144/17.0BCLSB que, dando provimento ao recurso de revista, diz que é lícito o uso das presunções judiciais e que cabe ao clube apresentar prova que contrarie a presunção de veracidade dos relatórios, o que no caso, não sucedeu;

30. Ainda que se entenda – o que não se concede – que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir o clube recorrido, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido – a prática de condutas ilícitas por parte de adepto da Recorrida e a violação dos respetivos deveres – foi retirado de outros factos conhecidos.

31. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com nenhum princípio constitucional, tal como o princípio da presunção de inocência ou o princípio da culpa, de acordo com jurisprudência, quer dos tribunais comuns, quer dos tribunais administrativos.

32. A tese sufragada pelo TCA é um passo largo para fomentar situações de violência e insegurança no futebol e em concreto durante os espetáculos desportivos, porquanto diminuir-se-á acentuadamente o número de casos em que serão efetivamente aplicadas sanções, criando-se uma sensação de impunidade em que pretende praticar factos semelhantes aos casos em apreço e ao invés, mais preocupante, afastando dos eventos desportivos, quem não o pretende fazer, em virtude do receio da ocorrência de episódios de violência;

33. Face ao exposto, deve o acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado por erro de julgamento, designadamente por errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 181.º,

5. O Demandante “SCP”, aqui ora recorrido, para o efeito notificado, não contra-alegou.

6. O presente recurso de revista foi admitido pelo Acórdão de 10/9/2020 proferido pela formação de apreciação preliminar deste STA, prevista no nº 5 do art. 150º do CPTA (cfr. fls. 404/405 “SITAF”), nos seguintes termos:

«(…) «In casu», o Conselho de Disciplina (Secção não profissional) da FPF sancionou o Sporting — com uma pena de multa, uma pena de derrota por 3-0 e a perda classificativa de quatro pontos — por causa do comportamento violento de um seu adepto durante um jogo de futebol de praia.

O TAD negou provimento ao recurso do Sporting.

Mas o TCA, entendendo que o Sporting fora disciplinarmente punido em termos enquadráveis numa genuína responsabilidade objectiva, revogou a pronúncia arbitral e anulou a decisão punitiva.

Na sua revista, a FPF insurge-se contra o acórdão recorrido, dizendo-o desconforme à realidade factual apurada e à jurisprudência do Supremo, por um lado, e inapto para combater o fenómeno da violência no desporto, por outro.

E, «primo conspectu», o aresto mostra-se discrepante em relação à linha jurisprudencial que este Supremo tem seguido em casos do género, relacionados com o comportamento dos simpatizantes ou adeptos dos clubes de futebol. Essa suspeita, ademais acompanhada pelo alarme provocado pelas condutas violentas em recintos desportivos, justifica o recebimento da revista — para garantia de uma melhor aplicação do direito».

7. A Exma. Magistrada do Ministério Público junto deste STA, notificada nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 146º nº 1 e 147º nº 2 do CPTA, emitiu parecer no sentido do provimento do recurso da “FPF”.

8. Sem vistos (atento o disposto nos arts. 36º nºs 1 e 2 e 147º do CPTA e 8º nº 2 da Lei do TAD, aprovada e publicada em anexo à referida Lei nº 74/2013, na redação supra referida), mas com prévia divulgação do projeto de acórdão pelos Srs. Juízes Adjuntos, o processo vem submetido à Conferência, cumprindo apreciar e decidir.

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II - DAS QUESTÕES A DECIDIR

9. Constitui objeto do presente recurso:

Aferir se o Acórdão do TCAS, de 7/11/2019, ao ter concedido provimento ao recurso jurisdicional do “SCP” e revogado a decisão arbitral do TAD de 20/2/2019, anulando o ato disciplinar punitivo (acórdão de 10/11/2017 do Conselho de Disciplina da «FPF»/Secção Profissional) nela impugnado, enferma de erro de julgamento por errada interpretação e aplicação do disposto nos art. 181º nº 1 do RDFPF/2016.


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III - FUNDAMENTAÇÃO

III. A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

10. Resultou elencado, na decisão arbitral do TAD, como assente, o seguinte quadro factual:

«A. No dia 17 de junho de 2017 realizou-se em Sesimbra, na Praia do Ouro, o jogo n° 611.01.005 entre o Sporting Clube de Braga (SCB) e o Sporting Clube de Portugal (SCP) a contar para o Campeonato Nacional de Futebol de Praia - Divisão de Elite;

B. A equipa de arbitragem do jogo era composta pelo árbitro A………, pelo 2° árbitro, B………., pelo 3° árbitro ……….. e pelo cronometrista ……………..;

C. O policiamento do jogo foi efectuado pela Polícia Marítima de Setúbal, conforme relatório junto aos autos que se dá por reproduzido;

D. Aquando do aquecimento de ambas as equipas um adepto do SCP identificado com camisola e calções com o símbolo deste clube, aproximou-se cerca de um metro do jogador do SCB C…………. e disse-lhe: "vou-te foder, filho da puta, cabrão, traidor, não vais sair daqui vivo";

E. Aos 08.34 minutos do primeiro período de jogo, após o 1º golo do SCP o mesmo adepto entrou cerca de dois metros dentro do recinto de jogo para comemorar o golo;

F. Antes do início do 2° período, o mesmo adepto do SCP atirou cerveja de um copo em direcção do árbitro B………., atingindo-o na cabeça e no braço esquerdo;

G. Aos 06.10 minutos do 2º período o mesmo adepto do SCP perseguiu o mesmo árbitro B……….., percorrendo a bancada junto à linha lateral, ao mesmo tempo que lhe cuspia e o ameaçava através de expressões como "vou-te matar no final do encontro, filho da puta";

H. No momento em que o árbitro B………… parou, aquele adepto agrediu-o, dando-lhe duas palmadas na cabeça;

I. No seguimento dos factos descritos atrás o jogo foi interrompido durante três minutos, tendo a força policial presente assegurado a segurança do jogo afirmando que "não havia qualquer problema dali em diante porque eles (os agentes da PM) tinham tudo sob controlo";

J. A 2.47 minutos do final do 3° e último período do jogo, quando o resultado estava em 5-3 favorável ao SCB, o mesmo adepto do SCP deu a volta ao campo aproximando-se da zona onde se encontrava o banco de suplentes do SCB e deu um pontapé nas costas do jogador ………., que envergava a camisola n° 8 do SCB, o qual se encontrava sentado e abandonou o terreno de jogo ato contínuo;

K. No seguimento destes factos, o árbitro A………. decidiu terminar o jogo antes do tempo regulamentar por entender não estarem reunidas as condições de segurança necessárias ao seu prosseguimento;

L. Já após o jogo ter terminado aquele mesmo adepto do SCP foi junto dos jogadores e dirigentes do SCB e dirigindo uma vez mais ao jogador C………. disse-lhe "vou-te matar C……….., juro-te pelos meus 8 filhos que te mato e enterro em Portugal":

M. O Demandante, SCP, já anteriormente havia sido punido pelas infracções constantes do seu cadastro disciplinar, junto ao processo disciplinar a fls 14 e sgs;

N. A organização e promoção da competição e daquele jogo em concreto pertenceu à FPF;

O. O Demandante tem 4 grupos organizados de adeptos, todos eles registados;

P. O Demandante elaborou o Regulamento dos Grupos Organizados de Adeptos do Sporting Clube de Portugal e a declaração de Adesão e Condições Particulares juntos aos autos, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido e que foram subscritos pela Associação Juventude Leonina.

Q. Com cada um dos grupos organizados de adeptos o Sporting Clube de Portugal mantém uma relação de proximidade juridicamente sustentada no regulamento dos GOA, o qual estabelece direitos e deveres recíprocos;

R. O Demandante tem reuniões e acções de formação regulares com os GOE no sentido de promover activamente os valores que integram a ética desportiva;

S. Nos jogos que não organiza, como é o caso dos autos, o Demandante não toma a seu cargo medidas específicas ou concretas de segurança e controle de adeptos».


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III. B – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

11. Como vimos, insurge-se a Recorrente “FPF” quanto ao juízo firmado pelo TCAS ao julgar procedente o recurso jurisdicional de apelação, revogando a decisão do TAD e anulando a decisão disciplinar punitiva, considerando que aquele padece de erro de julgamento, ocorrendo, assim, infração, nomeadamente, ao que se mostra disposto no art. 181º nº 1 RDFPF/2016.

12. O Ac.TCAS ora recorrido concedeu provimento ao recurso de apelação intentado pela “SLB, SAD”, por ter entendido, desde logo e contrariamente ao que fora julgado pelo CD da FPF e pelo TAD, que a falta de identificação civil do autor dos vários distúrbios perpetrados durante o jogo em causa impede a sua qualificação como “sócio, adepto ou simpatizante” do “SCP”, o que inviabiliza a punição deste clube por prática de infração prevista no art. 181º nº 1 do RDFPF/2016.

Efetivamente, argumentou, nesta parte, o Ac.TACS recorrido, designadamente, que:

«(…) o sócio, adepto ou simpatizante executor do ilícito disciplinar tem de ser uma pessoa singular devidamente identificada no processo disciplinar através da sua identidade civil para, por seu intermédio, se fazer a imputação funcional do comportamento ilícito do sócio ou simpatizante, devidamente identificado, ao clube desportivo (pessoa colectiva), pelas duas razões já expostas:

a. por um lado, a pessoa singular está ligada funcionalmente ao clube pela sua qualidade de sócio, adepto ou simpatizante

b. e, por outro, o critério da autoria do clube face aos ilícitos do art° 181° n° 1 RD-FPF/2016 repousa na titularidade dos deveres elencados no art° 180° n° 1 do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol/2016 (RD-FPF/2016)

Ou seja, não só é juridicamente obrigatório carrear para o processo disciplinar os meios de prova referentes aos factos que configuram o comportamento não querido pela norma (no caso. desvalor de acção e de resultado de ilícito comissivo doloso art° 181° nº 1 RD-FPF/2016) como também é obrigatório carrear o meio probatório relativo à identificação da pessoa singular que realizou a acção em contrário do dever legal (imputação subjectiva da acção ao sujeito executor) e da sua ligação funcional ao clube desportivo em função da sua qualidade de sócio, adepto ou simpatizante (imputação da autoria ao clube), nos exactos termos da norma incriminadora do clube a título de autoria, v.g. art° 181° n° 1 do RD-FPF/2016.

(…) Dito de outro modo, não é juridicamente admissível presumir a qualidade de sócio, adepto ou simpatizante do clube relativamente à pessoa singular desconhecida e, como tal, não existente no processo, pessoa que executa os actos materiais tipificados no art° 181° n° 1 do RD-FPF/2016, que é o sócio, adepto ou simpatizante do clube, e que assim concretiza a infracção, nos termos já expostos, materializando o comportamento proibido pelo tipo de ilícito disciplinar.

Se não se sabe quem é a pessoa singular, porque não está identificada no processo disciplinar, não é possível fazer derivar por presunção e dar como provado que a pessoa em causa é sócio, adepto ou simpatizante do clube para efeitos de imputação da autoria ao clube desportivo.

(…) Só os calções e a camisola com a heráldica do clube, não chega para dar operatividade à imputação de autoria ao clube, posto que, nos termos já referidos, tal é vedado pelo art° 32° n° 2 e 10 da Constituição».

13. Como vimos, o Ac.TAD havia dado como provado que o autor dos distúrbios era um “adepto” do “SCP” (cfr. probatório, ponto 10 supra):

«(…) 6.1.4 [D] – Aquando do aquecimento de ambas as equipas um adepto do SCP identificado com camisola e calções com o símbolo deste clube (…);

6.1.5 [E] – (…) o mesmo adepto (…);

6.1.6 [F] – (…) o mesmo adepto do SCP (…);

6.1.7 [G] – (…) o mesmo adepto do SCP (…);

6.1.8 [H] – (…) aquele adepto (…);

6.1.10 [J] – (…) o mesmo adepto do SCP (…);

6.1.12 [L] – (…) aquele mesmo adepto do SCP (…)».

E fê-lo, tal como já o havia feito o CD da FPF, não só em decorrência da presunção de veracidade dos relatórios do jogo, como em resultado da inferência, pelas “regras da experiência”, que o indivíduo em questão era “adepto” ou “simpatizante” do “SCP”.

Porém, o Ac.TCAS recorrido reverteu este entendimento, configurando-o expressamente como um “verdadeiro erro de direito”, que, a seu ver, se consubstanciou como um «erro na livre apreciação das provas (…) quando aquela apreciação ostente juízo de presunção judicial revelador de manifesta ilogicidade, ofensivo de qualquer norma legal ou extraído a partir de factos não provados. (…) A nosso ver, é o que ocorre nas circunstâncias do caso trazido a recurso».

A Recorrente “FPF” não se conforma com este entendimento, alegando que resulta absolutamente claro que as condutas em causa foram perpetradas por adepto do “SCP”, «sem deixar qualquer margem para dúvidas» (cfr., designadamente, conclusão 12ª).

E, efetivamente, não nos parece que seja de manter este entendimento do Ac.TCAS, pois que o mesmo não só descarta por completo a presunção de veracidade dos relatórios do jogo, como não se vê que resulte a, por si, alegada “ilogicidade” na apreciação das provas, designadamente na inferência de que o autor dos distúrbios em causa seja “adepto” ou “simpatizante” do “SCP”.

Note-se que, conforme consta do ponto 7 do Ac.TAD (“Fundamentação da matéria de facto”), a factualidade dada como provada (constante do probatório supra) assentou, em grande parte, como ali se consignou, no Relatório do Jogo, no Relatório do Delegado da FPF e no Relatório de Policiamento Desportivo).

Ora, desde logo, o Ac.TCAS recorrido descartou a presunção de veracidade dos relatórios do jogo, prevista no art. 206º nº 1 do RDFPF/2016, aqui aplicável («Os factos constantes das declarações e relatórios das equipas de arbitragem e dos delegados da FPF, feitos no exercício de funções presumem-se verdadeiros, salvo prova em contrário») – norma equivalente à constante do art. 13º f) do RD das Competições Organizadas pela Liga da FPF. E, para além da não consideração, por parte do Ac.TCAS recorrido, da aludida presunção de veracidade dos relatórios do jogo, sempre haverá que reconhecer que, diversamente do ponderado pelo Ac.TCAS, não são apenas “os calções e a camisola com a heráldica do clube” que relevam, mas sim todo o contexto da prática dos distúrbios, onde se deve incluir, para além da forma como o indivíduo se encontrava trajado, toda a sua conduta, ações e dizeres explicitados no probatório.

Em abono da sua tese de que seria necessário conhecer a identidade civil do indivíduo provocador dos distúrbios, o Ac.TCAS recorrido invoca e cita o Ac.TC nº 730/95, de 14/10/95, proc. 328/91, na passagem: «(…) convém reter que as sanções referidas nos artigos 3º a 6º do Decreto-Lei nº 270/89 são aplicadas aos clubes desportivos por condutas ilícitas e culposas das respectivas claques desportivas (assim chamadas e que são os sócios, adeptos ou simpatizantes, como tal reconhecidos) condutas que se imputam aos clubes, em virtude de sobre eles impenderem deveres de formação e de vigilância que a lei lhes impõe e que eles não cumpriram de forma capaz (…). Não é, pois, em suma, uma ideia de responsabilidade objectiva que vinga “in casu”, mas de responsabilidade por violação de deveres (…)».

E desta passagem – com o sublinhado de sua responsabilidade – o Ac.TCAS retira que o TC está a exigir a identificação concreta dos “sócios, adeptos ou simpatizantes” perturbadores como requisito da responsabilização dos clubes. Mas não é, manifestamente, assim, pois que o “reconhecimento” que se exige é o da sua qualidade de “sócio” ou de “adepto” ou de “simpatizante” do clube em causa, e não o “reconhecimento” da sua identidade civil.

Aliás, numa crítica certeira a este entendimento do Ac.TCAS recorrido, o TC, na decisão sumária nº 246/2020, de 23/4/2020, proferida nos presentes autos (cfr. fls. 374 e segs. SITAF), refere expressamente «não ser perfeitamente evidente em que medida a identidade civil do indivíduo permite estabelecer a sua ligação ao clube, nomeadamente se estivermos perante meros simpatizantes, adeptos ou espectadores, dos quais não há, em princípio, registos nominativos de ligação ao clube».

Por outro lado, este entendimento do Ac.TCAS é contrário à jurisprudência deste STA que, em diversos arestos vem repetindo que não se torna necessária a identificação dos agentes perturbadores dos jogos mas apenas a sua qualidade de “sócios”, “adeptos” ou “simpatizantes” do clube responsabilizado; e que este “reconhecimento” pode resultar de presunções que o inferem, quer da presunção de veracidade do relatado nos relatórios dos jogos (policiais ou dos agentes desportivos fiscalizadores) quer de presunções judiciais ou naturais, baseadas nas regras da experiência, perfeitamente admissíveis em direito sancionatório.

Veja-se, a título meramente exemplificativo, o Acórdão deste STA de 21/2/2019 (Proc. nº 033/18.0BCLSB):

«(…) 33. Em apreciação da matéria objeto de discussão nos autos afirmou este Supremo nos acórdãos citados, em linha, como vimos, com o que constitui entendimento deste Tribunal, que aqui se secunda e reitera, que «no domínio do direito disciplinar, a que se aplicam subsidiariamente os princípios do direito penal, é lícito o uso das presunções judiciais».

34. E que aliada a tal afirmação importa ter, ainda, como «indubitável que, no domínio do direito disciplinar desportivo, vigora o princípio geral da “presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e dos delegados da Liga, e por eles percecionado no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posto em causa” [art. 13.º, al. f), do RD]», sendo que «[e]sta presunção de veracidade, que se inscreve nos princípios fundamentais do procedimento disciplinar, confere, assim, um valor probatório reforçado aos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP relativamente aos factos deles constantes que estes tenham percecionado».

35. Ora, ao invés do que se sustenta no acórdão do «TCA/S» aqui objeto de impugnação, a decisão do «TAD» não incorreu em erro de julgamento ao haver mantido incólume o quadro factual que havia sido fixado como provado na decisão disciplinar punitiva.

36. O juízo na mesma firmado nessa sede louvou-se ou socorreu-se não apenas do princípio da presunção de veracidade dos factos nos termos que se mostram previstos na al. f) do art. 13.º do RD/LPFP-2017, mas, também, de presunções naturais radicadas em circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência [cfr. art. 349.º do CC] (…).

37. Esta não viu radicar, pois, o juízo punitivo numa qualquer presunção de culpa da «…, SAD», antes se mostrando o mesmo juízo alicerçado, ao invés, naquilo que foi a prova lograda coligir e produzir no processo disciplinar e o uso de presunções, considerando e fazendo apelo, inclusive, daquilo que são decorrências do cumprimento das obrigações que impendem sobre os clubes no decurso e participação nas competições em que estão envolvidos [cfr., nomeadamente, os arts. 34.º a 36.º do RC/LPFP-2017, e arts. 06.º, 07.º 08.º, 09.º, 10.º e 11.º do RPV/RC/LPFP-2017] e em que a designada «bancada topo Sul» do Estádio …, indicada expressis verbis no relatório como local onde os ilícitos ocorreram, é consabidamente um local ocupado por adeptos, sócios, apoiantes ou simpatizantes afetos ao clube «…»/«…, SAD», (…).

41. De referir ainda que do facto de nem as autoridades policiais, nem os delegados da «LPFP», ou o árbitro, terem identificado pessoalmente quem, em concreto, fez uso dos engenhos pirotécnicos ou proferiu as expressões/cânticos reportados, tal não invalida ou impossibilita a fixação da factualidade nos termos que se mostram realizados.

42. É que para o que constitui o objeto de incriminação e tendo em conta as circunstâncias em que os factos ocorreram [no decurso de um jogo de futebol e em que os adeptos e simpatizantes estavam numa bancada afeta a adeptos do «…», mostrando-se portadores de sinais inequívocos da sua ligação ao respetivo clube, nomeadamente, as referidas bandeiras, cachecóis e camisolas] a circunstância de, no meio daquela imensa mole humana, não ter sido efetuada a identificação pessoal dum concreto sujeito ou dos concretos sujeitos, tem-se como de todo em todo desnecessária, já que a imputação não é feita aos concretos adeptos, mas ao clube de que os mesmos são apoiantes ou simpatizantes, adeptos esses que, refira-se, não estão sequer sujeitos ou abrangidos pelo âmbito do «RD/LPFP» [cfr., nomeadamente, seus arts. 03.º, 04.º, n.º 1, al. b), e 187.º] (…)». (sublinhados nossos).

14. Por fim, quanto a esta questão, é ainda de notar que o próprio clube punido (o “SCP”) admite, nestes autos, que o indivíduo que praticou os distúrbios verificados era seu “adepto”. Admitiu-o junto do CD da FPF e admitiu-o o próprio árbitro do colégio arbitral do TAD por si nomeado, no seu voto de vencido (cfr. fls. 237 e segs. SITAF, págs. 27/28): «Não tenho dúvida que, no caso em apreço, existiram aquelas agressões por parte de um adepto do Sporting (…)». E, nas alegações de recurso do próprio “SCP” para o TCAS (cfr. fls. 39 e segs. SITAF, pág. 5): «Em causa está a conduta (inadmissível) de um determinado indivíduo, aparentemente simpatizante do Sporting CP (…)».

Como refere o Ac.TC nº 730/95, citado no Ac.TCAS recorrido, e já acima aludido:

«(…) o processo disciplinar que se manda instaurar (artigo 4º) servirá precisamente para se averiguar todos os elementos da infracção, sendo que, por essa via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube (…)».

Ora, no presente caso, não é, naturalmente, possível concluir que o clube responsável afastou a prova de primeira aparência resultante dos relatórios do jogo ou de presunções judiciais ou naturais, já que, pelo contrário, é o próprio clube que admite nos autos, ou afirma expressamente, que o indivíduo em causa era seu “adepto”.

Assim, não é de acompanhar o juízo de “ilogicidade” em que o Ac.TCAS recorrido se fundamentou para afastar a inferência de que o indivíduo em causa era “adepto” ou “simpatizante” do “SCP”.

15. Por outro lado, o Ac.TCAS recorrido também considerou, relativamente à questão da responsabilização do clube pelo comportamento do seu “adepto”, que (por remissão para o Acórdão de 9/5/2019, rec. 42/19.2BCLSB, do mesmo TCAS):

«(…) também perfilhamos o entendimento expresso pela recorrente e já supra afirmado, de que nos relatórios de jogo, prova documental nos autos que beneficia da presunção de verdade, não se descreve um único facto relativamente ao que fez ou não fez o clube, por referência a concretos deveres legais ou regulamentares, nem tão-pouco se descreve por que forma essa actuação do clube facilitou ou permitiu o comportamento que é censurado; sendo a actuação culposa um dos "demais elementos das infracções" que se impunha à FPF, aqui recorrida, provar, sempre se mostrava prejudicada a condenação do Clube por falta de preenchimento de pressuposto legal exigido pelos arts. 186° 2 e 187° 1 a) e h) do RD. Daí, pois, se concorde que é inconstitucional, por violação do princípio jurídico- constitucional da culpa (art. 2° da CRP) e do princípio da presunção de inocência, presunção de que o arguido beneficia em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (arts. 32° 2 e 10 da CRP), a interpretação dos arts. 13° f) e 186° 2 e 187° 1 a) e h) do RDLPFP no sentido de que a indicação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube, o que desde já se argui, para todos os efeitos e consequências legais: e inconstitucional, porque, materialmente, na prática, significa impor ao clube uma responsabilidade objectiva por facto de outrem (2° e 30° 3 da CRP). (…)».

16. Mas também este entendimento não pode merecer a nossa concordância, na medida em que recusa, por alegada inconstitucionalidade, a utilização da prova por presunções naturais utilizada pelo CD da FPF e pelo TAD para inferir a responsabilidade do clube por violação dos seus deveres legais de formação e de vigilância.

Ora, desde logo, o próprio TC no Acórdão nº 730/95 citado no Ac.TCAS recorrido, e já acima aludido, admite, nos processos sancionatórios como o presente, a prova por presunção natural, ou de primeira aparência, desde que a mesma possa ser contrariada pelo clube responsabilizado.

E tem sido este, também, o entendimento constante e reiterado deste STA (cfr. Acs. de 18/10/2018, Proc. nº 0144/17.0BCLSB; de 20/12/2018, Proc. nº 08/18.0BCLSB; de 21/2/2019, Proc. nº 033/18.0BCLSB; de 21/3/2019, Proc. nº 075/18.6BCLSB; de 4/4/2019, Procs. nºs 040/18.3BCLSB e 030/18.6BCLSB; de 2/5/2019, Proc. nº 073/18.0BCLSB; de 19/6/2019, Proc. nº 01/18.2BCLSB; de 5/9/2019, Procs. nºs 058/18.6BCLSB e 065/18.9BCLSB; de 26/9/2019, Proc. nº 076/18; de 3/10/2019, Proc. nº 034/18; de 12/12/2019, Proc. nº 048/19; de 16/1/2020, Proc. nº 039/19; de 7/5/2020, Procs. nºs 074/19 e 0144/17, todos consultáveis in: «www.dgsi.pt/jsta»).

Tem sido, efetivamente, julgado por este STA:

- que «a prova dos factos conducentes à condenação do arguido em processo disciplinar não exige uma certeza absoluta da sua verificação, dado a verdade a atingir não ser a verdade ontológica, mas a verdade prática, bastando que a fixação dos factos provados, sendo resultado de um juízo de livre convicção sobre a sua verificação, se encontre estribada, para além de uma dúvida razoável, nos elementos probatórios coligidos que a demonstrem ainda que fazendo apelo, se necessário, às circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência»;

- que «a presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa Futebol Profissional [LPFP] que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo art. 13.º, al. f), do Regulamento Disciplinar da LPFP [RD/LPFP], conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos arts. 02.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo»;

- e que «a responsabilidade disciplinar dos clubes e sociedades desportivas prevista no art. 187.º do referido RD/LPFP pelas condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube ou de uma sociedade desportiva e pelos quais estes respondem não constitui uma responsabilidade objetiva violadora dos princípios da culpa e da presunção de inocência», tratando-se, antes, “in casu”, de uma responsabilidade desportiva disciplinar subjetiva «já que estribada numa violação dos deveres legais e regulamentares que sobre clubes e sociedades desportivas impendem neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao do domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido».

17. Na verdade, como resulta daquela jurisprudência, para além da presunção legal “juris tantum” (ilidível, portanto) prevista no art. 13º f) do RDLPFP (e, de forma idêntica, no art. 206º nº 1 do RDFPF/2016, aplicável no caso dos autos), relativa à veracidade dos factos percecionados e inscritos nos relatórios de jogo pelos árbitros e delegados da Liga, é possível retirar do comportamento dos adeptos e simpatizantes dos clubes, por presunção judicial ou natural, apoiada na experiência comum, a inferência de que os clubes não cumpriram os deveres, que legalmente lhes estão adstritos, de formação, vigilância e segurança.

Ora, sendo as presunções judiciais (ou naturais), nos termos do art. 349º do Cód. Civil, ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos (factos de base) para dar como provados factos desconhecidos (factos presumidos), traduzindo-se e concretizando-se num juízo de indução ou de inferência extraído do facto de base ou instrumental para o facto essencial presumido, à luz das regras da experiência, sendo admitida nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art. 351º do Cód. Civil), não se vê como seja possível, a propósito de casos como o presente, afirmar, como faz o Ac.TCAS recorrido, ser «inconstitucional, por violação do princípio jurídico- constitucional da culpa (art. 2° da CRP) e do princípio da presunção de inocência, presunção de que o arguido beneficia em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (arts. 32° 2 e 10 da CRP), a interpretação dos arts. 13° f) e 186° 2 e 187° 1 a) e h) do RDLPFP no sentido de que a indicação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube (…) e inconstitucional, porque, materialmente, na prática, significa impor ao clube uma responsabilidade objectiva por facto de outrem (2° e 30° 3 da CRP). (…)».

Este entendimento, em face dos factos dados como provados (cfr. probatório supra), afronta a dita jurisprudência deste STA, uma vez que aqueles factos – salvo para quem exclua a utilização de presunções judiciais -, permitem a inferência, como deliberou o TAD e alega a Recorrente “FPF”, de que o clube aqui Recorrido incumpriu os seus citados deveres legais.

É que, como a jurisprudência deste STA tem repetido (tal, aliás, como o Tribunal Constitucional), a utilização destas inferências, resultantes de presunções judiciais, não é incompatível com os direitos assegurados pelo direito sancionatório disciplinar (nem sequer o seria no âmbito do direito criminal), não significando qualquer violação do princípio da presunção de inocência ou qualquer inversão do ónus da prova (visto que constitui, precisamente, “a prova”).

18. Como se julgou, a este propósito, no citado Acórdão deste STA de 21/2/2019 (Proc. nº 033/18.0BCLSB):

«(…) 67. É, por conseguinte, neste ambiente de proteção, salvaguarda e prevenção da ética desportiva, bem como do combate a manifestações de violência associada ao desporto, que incidem ou recaem sobre vários entes e entidades envolvidos, designadamente sobre os clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, um conjunto de novos deveres in vigilando e in formando e em que a inobservância destes deveres assenta não necessariamente numa valoração social, moral ou cultural da conduta do infrator, mas antes no incumprimento de uma imposição legal, sancionando-se aqueles por via da contribuição omissiva, causal ou co causal que tenha conduzido a um comportamento ou conduta dos seus adeptos.

68. Na verdade, não estamos in casu, pois, perante uma responsabilidade objetiva já que o regime previsto nos arts. 17.º, 19.º, 20.º, 127.º, 187.º, n.º 1, als. a) e b), do RD/LPFP-2017 em articulação, nomeadamente, com os arts. 06.º, al. g), e 09.º, n.º 1, al. m), do RPV/RC/LPFP-2017 e com o que resulta do demais quadro normativo atrás convocado, observa o princípio da culpa, tanto mais que em sua decorrência apenas se sancionam os clubes de futebol ou as suas sociedades desportivas pelos comportamentos incorretos do seu público havidos em violação por aqueles dos deveres que sobre os mesmos impendiam.

69. Daí que, no contexto, o princípio constitucional da culpa, enquanto servindo, igualmente, de elemento conformador e basilar ao Estado de direito democrático, e tendo como pressuposto o de que qualquer sanção configura a reação à violação culposa de um dever de conduta, considerado socialmente relevante e que foi prévia e legalmente imposto ao agente, não se mostra minimamente infringido, tanto mais que será no quadro do processo disciplinar a instaurar [cfr. arts. 212.º e segs., 225.º e segs., do RD/LPFP-2017] que se terão de averiguar e apurar todos os elementos da infração disciplinar, permitindo, como se refere no citado acórdão do TC, que «por esta via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)».

70. Frise-se que é na e da inobservância dos deveres de assunção da responsabilidade pela segurança do que se passe no recinto desportivo e do desenvolvimento de efetivas ações de prevenção socioeducativa que radica ou deriva a responsabilidade disciplinar desportiva em questão, dado ter sido essa conduta que permitiu ou facilitou a prática pelos seus adeptos dos atos ou comportamentos proibidos ou incorretos.

71. E que cabe aos clubes de futebol/sociedades desportivas a demonstração da realização por parte dos mesmos junto dos seus adeptos das ações e dos concretos atos destinados à observância daqueles deveres e, assim, prevenirem e eliminarem a violência, e isso sejam esses atos e ações desenvolvidos em momento anterior ao evento, sejam, especialmente, imediatamente antes ou durante a sua realização.

72. Para o efeito, aportando prova demonstradora, designadamente, de um razoável esforço no cumprimento dos deveres de formação dos adeptos ou da montagem de um sistema de segurança que, ainda que não sendo imune a falhas, conduza a que estas ocorrências e condutas sejam tendencialmente banidas dos espetáculos desportivos, assumindo ou constituindo realidades de carácter excecional.

73. A previsão no quadro disciplinar do ilícito desportivo em crise mostra-se, assim, devidamente legitimada já que encontra, ou vê radicar, repousar os seus fundamentos não apenas naquilo que é a necessária prevenção, mas, também, na culpa, sancionando-se o que constitui um negligente cumprimento dos deveres supra enunciados, sem que, de harmonia com o exposto, um tal entendimento atente ou enferme de violação dos princípios da culpa e do Estado de direito, ou constitua um entorse aos direitos de defesa e a um processo equitativo, dado que assegurados e garantidos em consonância e adequação com o entendimento e interpretação fixados.

74. E também não vemos que tal entendimento e interpretação possam envolver uma pretensa violação dos princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo, pois, não estamos em face da assunção duma presunção de culpa da arguida ou de regra que dispense, libere ou inverta o ónus probatório que colida com o primeiro princípio, nem, como atrás referido, no caso em presença somos confrontados com uma situação de inexistência de prova relevante de que foi cometido ilícito e de quem é o sujeito responsável à luz da prova produzida para, mercê da existência de legítima dúvida, fazer apelo ao segundo princípio».

19. Pela motivação exposta no excerto acabado de transcrever, que aqui se secunda e reitera, e apresentando-se como desnecessárias quaisquer considerações complementares, cumpre, pois, concluir no sentido do provimento do presente recurso de revista, visto assistir inteira razão à Recorrente nas críticas que acometeu ao acórdão recorrido, não podendo manter-se o juízo nele firmado, cientes de que este nosso julgamento não infringe, como ali se concluiu de igual modo, os princípios da culpa, da presunção de inocência (e inerente direito de defesa) e do “in dubio pro reo”.


*


IV – DECISÃO

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202º da Constituição da República Portuguesa, em:

- Conceder provimento ao presente recurso jurisdicional de revista deduzido pela Recorrente “FPF”, revogando-se o Acórdão do TCAS recorrido e fazendo subsistir o Acórdão do TAD.

Custas a cargo do Recorrido “SCP”, levando-se em conta que não contra-alegou no presente recurso de revista.

D.N.

Lisboa, 5 de novembro de 2020. – Adriano Cunha (relator, que consigna e atesta que, nos termos do disposto no art. 15º-A do DL nº 10-A/2020, de 13/3, aditado pelo art. 3º do DL nº 20/2020, de 1/5, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento, Conselheiro Jorge Artur Madeira dos Santos e Conselheiro José Francisco Fonseca da Paz).