Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo | |
Processo: | 0261/11.0BECBR 0379/17 |
Data do Acordão: | 10/17/2018 |
Tribunal: | 2 SECÇÃO |
Relator: | ISABEL MARQUES DA SILVA |
Descritores: | IMPUGNAÇÃO JUDICIAL IVA MÉTODOS INDIRECTOS ÓNUS DE PROVA |
Sumário: | Recaindo sobre o sujeito passivo o ónus da prova do excesso na quantificação (artigo 74.º n.º 3 da LGT) e não tendo este logrado demonstrar erro ou manifesto excesso na matéria tributável quantificada (artigo 100.º n.º 3 do CPPT), não podia a sentença recorrida fundar a anulação da liquidação na existência de “fundada dúvida” sobre a quantificação operada, ao abrigo do n.º 1 do artigo 100.º da LGT, pois que tal caminho lhe estava vedado na situação concreta dos autos, mercê do recurso a métodos indirectos (artigo 100.º n.º 2 do CPPT). |
Nº Convencional: | JSTA00070959 |
Nº do Documento: | SA2201810170261/11 |
Data de Entrada: | 03/24/2017 |
Recorrente: | AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA |
Recorrido 1: | A... LDA |
Votação: | UNANIMIDADE |
Meio Processual: | RECURSO JURISDICIONAL |
Objecto: | SENTENÇA DO TAF DE COIMBRA |
Decisão: | CONCEDE PROVIMENTO |
Área Temática 1: | IVA |
Área Temática 2: | QUANTIFICAÇÃO DA MATÉRIA TRIBUTÁVEL, ÓNUS DA PROVA |
Legislação Nacional: | ARTIGO 74º, N.º 3 DA LGT, ARTIGOS 100º, N,ºS. 1, 2 E 3 DO CPPT |
Aditamento: | |
Texto Integral: | Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo: - Relatório – 1 – A Fazenda Pública recorre para este Supremo Tribunal da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, de 18 de Janeiro de 2017, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por A…………, Lda, com os sinais dos autos, contra liquidação adicional de IVA e juros do ano de 2008 cuja matéria tributável foi fixada por métodos indirectos, anulando a liquidação impugnada, para o que apresentou as seguintes conclusões: 1 – A presente impugnação refere-se à liquidação de IVA do ano de 2008, cuja sentença julgou a acção procedente, decisão com a qual esta RFP não pode concordar; 2 – A acção foi julgada procedente por ter sido suscitada à M. Juiz, como refere, uma dúvida fundada sobre a aderência à realidade da quantidade de produtos omitida; 3 – Ora, o ónus do excesso da quantificação impende sobre a impugnante de acordo com o estatuído no n.º 3 do art. 74.º da LGT; 4 – E, apesar de solicitados, não foram apresentados os inventários das existências divididos por taxas de IVA, obrigatoriedade imposta pelo DL n.º 410/89 de 21/11 que aprovou o Plano Oficial de Contas, posteriormente alterado pelo DL 238/91 de 02/07 e DL 35/2005 de 17/02, normativos em vigor no ano a que respeita o imposto. 5 – Este é um normativo legal que impõe a obrigatoriedade das contas e subcontas da contabilidade evidenciarem as existências por taxas de IVA, documento que ao não ser apresentado, exclui a existência de dúvida fundada, de acordo com o n.º 2 do artº 100.º do CPPT; 6 – E, contudo, prevalece a norma do n.º 3 do art. 74.º da LGT sobre a do artº 100º do CPPT de acordo com o Acórdão do TCAN, proc. n.º 00018/02 de 29-05-2014; 7 – E sempre diremos que relativamente aos custos da actividade, e que constavam inscritos na respectiva conta do POC foram aceites pela AT na sua totalidade; 8 – Pelo que, também quanto à existência de custos não foi feita qualquer prova credível da existência de custos superiores aos contabilizados, pois que a AT não coloca em tempo algum em causa a existência de custos, tendo aceitado todos os custos inscritos na contabilidade. 9 – E a prova testemunhal ao afirmar a existência de garrafas partidas ou batatas podres não consegue provar que eram outros e não os que já constavam da contabilidade; Pelo exposto e com mui douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada a sentença recorrida como é de inteira JUSTIÇA 2 – Contra-alegou a recorrida, concluindo nos seguintes termos: 1. No caso sub judice, apesar de ter ocorrido gravação dos depoimentos prestados em audiência, não é possível proceder à requerida reapreciação, uma vez que a recorrente, nas conclusões do recurso, não especificou quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou da gravação nele realizada, que foram mal interpretados e que, em sua opinião, impunham, em relação a esses pontos uma decisão diferente da que foi tomada, nem indicou onde se localizam, nessa gravação o início e termo de cada um dos depoimentos a reapreciar e que, em seu entender, impunham a alteração da referida decisão. 2. Tratando-se de gravação digital, a Recorrente não estava impossibilitada de fazer uma identificação precisa e separada dos depoimentos e de indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda. 3. Não o tendo feito, nem procedido à respectiva transcrição, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com esse fundamento, deve ser rejeitada de imediato. 4. Acresce: contrariamente ao que sucede no sistema de prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto de cada caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo. O que se torna necessário é que no seu livre exercício da convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção do facto como provado ou não provado, possibilitando, assim, um controlo sobre a racionalidade da própria decisão. De resto, a lei determina a exigência de objectivação, através da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador. 5. Nessa perspectiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção. 6. A decisão que dirimiu a matéria de facto controvertida deve, assim, manter-se inalterada, tal como foi decidida pela 1.ª instância. 7. A Fazenda Pública questiona erradamente que as circunstâncias concretas do caso não preencham o quadro hipotético desenhado no n.º 2 do art. 100.º do CPPT. 8. Decorre claramente dos termos verbais daquele preceito e da sua teleologia que a não admissibilidade da consideração da existência de dúvida fundada, susceptível de obviar à anulação do ato impugnado, não está estipulada para todas as situações de “quantificação da matéria tributável por métodos indirectos”, mas apenas para aquelas em que o fundamento do recurso à quantificação da matéria tributável por métodos indirectos aconteça por razões que sejam consubstanciadas em inexistência ou desconhecimento, por recusa de exibição, ou a sua falsificação, ocultação ou destruição (ainda que por razões acidentais): não basta que o caso seja de simples quantificação da matéria tributável por métodos indirectos (avaliação indirecta) mas ainda que se esteja perante uma situação de inexistência ou de desconhecimento de contabilidade ou de escrita e demais documentos legalmente exigidos por virtude de recusa da sua exibição, ou de caso de falsificação, ocultação ou destruição da contabilidade, escrita ou documentos. 9. Enquanto for racionalmente possível – com mais ou menos esforço e trabalho, mesmo da AT - efectuar a quantificação directa e exacta da matéria tributável com base na contabilidade, escrita e documentos apresentados, ou apurar a matéria tributável com base nos dados objectivos constantes da contabilidade, não é tolerável, pelos princípios da justiça, imparcialidade e da boa-fé, próprios do Estado material de direito consagrado no art. 2.º da CRP e que vinculam também a Administração (art. 266.º n.º 2, da CRP) fazer sobrepor a comodidade da cobrança à certeza da exigência tributária não sancionatória. 10. O contribuinte não está onerado com qualquer ónus de demonstração de quantificação exacta da matéria tributável a fixar, bastando-lhe criar a dúvida fundada no juiz para que este deva anular o acto impugnado. 11. Situação diferente é aquela que se integre no quadro normativo recortado no n.º 2 do art. 100.º do CPPT, em que sobre o contribuinte recai um verdadeiro ónus jurídico de demonstração de que a matéria tributável padece de erro no que importa à sua quantificação. 12. Não obstante a constituição jurídica desse ónus sobre o contribuinte, importa deixar claro que, em contrário do que já se tem visto defender, esse ónus não obriga o contribuinte a ter de demonstrar a exacta expressão do erro de quantificação, ou seja, do valor exacto em que se verifica o excesso. 13. No que se refere concretamente à quantificação efectuada, temos que a fiscalização, temos que a fiscalização optou por recalcular o valor das existências iniciais e das existências finais com base no custo médio ponderado de cada produto, ficando-se sem saber a razão de ser deste procedimento, não se conseguindo também percepcionar a razão ou as razões pelas quais não foi levada em consideração o peso que cada grupo de produtos tem no respectivo universo, tratando-se por igual o que é desigual. 14. Razão pela qual a fundamentação empregue é manifestamente insuficiente para além do desfasamento de tal critério, contrário à realidade das coisas e das regras económicas da experiência comum. Termos em que e nos mais de direito deve o recurso da Fazenda Pública ser rejeitado ou, subsidiariamente, ser julgado improcedente e se necessário conhecer-se da ampliação do recurso e proferir-se douta decisão que julgue a impugnação judicial procedente, com as legais consequências. 3 – O Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público Adjunto junto deste Tribunal emitiu o douto parecer de fls.280 a 2833, concluindo no sentido do não provimento do recurso e, quanto à ampliação do objecto do recurso, igualmente no sentido da sua improcedência. 4 - Notificadas as partes do parecer do Ministério Público (cfr. fls. 285/286 dos autos), nada vieram dizer. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. - Fundamentação - É a de saber se a sentença recorrida padece de erro de julgamento ao ter julgado procedente a impugnação, anulando o acto de liquidação de IVA sindicado – cuja matéria colectável fora determinada por métodos indirectos -, por aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 100.º da LGT ou se, como alegado, o n.º 3 do artigo 74.º da LGT, nos termos do qual o ónus do excesso da quantificação impende sobre a impugnante, impede a aplicação in caso do disposto naquele preceito. 6 - Matéria de facto Constam do probatório fixado na sentença recorrida os seguintes factos: 1. A Impugnante apesar de estar enquadrada no CAE 47250 referente a "comércio de retalho de bebidas em estabelecimento especializado", exerce de facto a actividade de comércio por grosso e a retalho de bebidas e outros produtos alimentares, tais como batatas, azeitonas, óleos alimentares, batatas fritas, entre outros - cfr. relatório de inspecção tributária a fls. 40 a 61 do processo administrativo; este facto não foi contestado pela Impugnante. 2. A Impugnante foi alvo de uma inspecção externa de âmbito parcial em IRC e IVA, aos exercícios de 2007 e 2008, posteriormente alterada para âmbito geral - cfr. ordem de serviço n.º 01200901458 e sua alteração, de fls. 10 e 11 do processo administrativo. 3. Em 01.06.2010 o lnspector Tributário dos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Coimbra elaborou o "Projecto de Relatório de Inspecção Tributária'', sobre o qual o Director de Finanças, por delegação, em 04.06.2010, exarou o seguinte despacho "Concordo com a tributação proposta e seus fundamentos, conforme descrevem neste relatório. Notifique-se o contribuinte para, querendo, exercer o direito de audição prévia no prazo de dez dias.''-cfr-projecto de relatório de inspecção e despacho aposto na primeira página do mesmo a fls. 14 a 37 do processo administrativo. 4. Em 04.06.2010 foi enviado o ofício nº 8171, elaborado sob o assunto “PROJECTO RELATÓRIO DA INSPECÇÃO TRIBUTÁRIA – ARTIGO 60.º DA LEI GERAL TRIBUTÁRIA (LGT) E ARTIGO 60.º do REGIME COMPLEMENTAR DO PROCEDIMENTO DE INSPECÇÃO TRIBUTÁRIA (RCPIT), destinado a notificar a impugnante para o exercício do direito de audiência prévia quanto ao Projecto do relatório de Inspecção Tributária – cfr. ofício e registo postal a fls. 38 e 39 do processo administrativo. 5. Em 30.06.2010 .............., Inspector Tributário dos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Coimbra, elaborou o “Relatório de Inspecção Tributária”, cuja cópia a fls. 40 a 61 do processo administrativo aqui se dá por reproduzida e transcreve parcialmente: (fls. 190, verso, a 194, dos autos) (…)” – cfr. relatório de inspecção tributária de fls. 40 a 61 e respectivos anexos de fls. 62 a 169 do processo administrativo. 8. Em 09.08.2010 deu entrada na Direcção de Finanças de Coimbra um requerimento apresentado pela Impugnante a solicitar a revisão da matéria tributável - cfr. fls. 176 a 190 do processo administrativo. 9. Nos dias 30 de Agosto e 09 de Setembro de 2010 foram realizadas duas reuniões entre o perito da administração tributária e o perito designado pela Impugnante, no âmbito do procedimento de revisão da matéria colectável, não tendo os mesmos alcançado qualquer acordo - cfr. acta nº 027A/LGT de fls. 196, 197 e acta n.º 027B/LGT de fls. 207 a 209 do processo administrativo. 12. Em 07.12.2010 foi elaborada a notificação, destinada à Impugnante, da liquidação adicional de IVA, com o número 10319435, referente ao período 0812, efectuada com recurso a métodos indirectos, no valor de EUR 6.934,92 - cfr. liquidação adicional de fls. 26 do processo físico. - Decisão - 8 - Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida no segmento impugnado julgando inverificado o vício de “excesso na quantificação” da matéria tributável e ordenar a baixa dos autos ao tribunal “a quo” para conhecimento das questões julgadas prejudicadas, se a tal nada mais obstar. Custas pela recorrida. Lisboa, 17 de Outubro de 2018. – Isabel Marques da Silva (relatora) – Dulce Neto – Pedro Delgado. |