Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:048295
Data do Acordão:02/07/2002
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:SANTOS BOTELHO
Descritores:LICENÇA DE CONSTRUÇÃO.
OBRA PARTICULAR.
PRINCIPIO TEMPUS REGIT ACTUM.
SERVIDÃO DE PASSAGEM.
FUNÇÃO ADMINISTRATIVA.
Sumário:I - A legalidade dos actos administrativos é aferida pela lei em vigor à data da sua prática.
II - Não incumbe à administração no acto de licenciamento de obras particulares assegurar o respeito por normas de direito civil designadamente das que tutelem servidões de passagem de terceiros sobre o prédio onde se situa a obra licenciada.
Nº Convencional:JSTA00057278
Nº do Documento:SA120020207048295
Data de Entrada:11/28/2001
Recorrente:A...
Recorrido 1:VEREADOR DO PELOURO DO URBANISMO E PLANEAMENTO DA CM DO PORTO
Recorrido 2:OUTRA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAC PORTO.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR URB - LICENCIAMENTO CONSTRUÇÃO.
Legislação Nacional:CCIV66 ART12 ART1305 ART1543.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC26880 DE 1995/03/30.; AC STA PROC31797 DE 1993/12/02.; AC STA PROC28734 DE 1998/02/05.; AC STA PROC44021 DE 1999/11/11.
Aditamento:
Texto Integral: 1 - RELATÓRIO
1.1 A .... , casado, residente na Rua ......., ......., ......, Porto, recorre de sentença do TAC do Porto, de 22-6-01, que negou provimento ao recurso contencioso por si interposto do despacho do Vereador do Pelouro do Urbanismo e Planeamento da CM do Porto, de 13-5-98, que deferiu o pedido de licenciamento de construção de 3 garagens no prédio urbano sito na Av. ..., apresentado pela Recorrida Particular B....
Nas suas alegações formula as seguintes conclusões:
“1ª. Os prédios em causa foram construídos sob o Plano Auzelle, segundo o qual só era construtível 80% da área do terreno destinado a construção;
2ª. Nos 20% restantes foi constituída uma servidão sobre o prédio da Avenida do ..., em benefício do prédio da Rua de ..., representado pelo recorrente;
3ª. Foi, assim, por escritura notarial, constituída uma situação que define a posição das partes e que não pode ser alterada pela parte que representa o prédio serviente em prejuízo do prédio dominante;
4ª. A Câmara Municipal não pode violar direitos de propriedade de terceiros ao emitir licenças;
5ª. A licença camarária não podia, pois, ser concedida sem acordo dos condóminos dos dois prédios porque a construção autorizada ia afectar direitos adquiridos e a servidão do prédio dominante, representado pelo recorrente e que impendia sobre o prédio da recorrida particular, o prédio serviente;
6ª. Violou, assim, a sentença recorrida os artºs 41º, nº 2, 3ª parte, do Plano Auzelle e o artº 4º do Plano Director Municipal e os artºs 12º, 1305º e 1543º do CC.
Nestes termos deve o recurso merecer provimento e ser revogada a sentença recorrida.” - cfr. fls. 140v.
1.2 . A Entidade Recorrida contra-alegou nos seguintes termos:
“O Vereador recorrido nada tem a acrescentar à douta sentença proferida que se mostra bem fundamentada de facto e de direito, não violando os dispositivos legais apontados pelo recorrente.
Nestes termos...deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida...” - cfr. fls. 143.
1.3. A Recorrida Particular não contra-alegou.
1.4. No seu Parecer o Magistrado do M. Público pronuncia-se pelo não provimento do recurso jurisdicional.
1.5. Colhidos os vistos cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO
2 - A MATÉRIA DE FACTO
A matéria de facto pertinente é a dada como provada na sentença recorrida, que aqui consideramos reproduzida, como estabelece o nº 6, do artigo 713º do CPC.
3 - O DIREITO
3.1. O agora recorrente impugnou contenciosamente junto do TAC do Porto o despacho, de 13-5-98, do Vereador do Pelouro do Urbanismo e Planeamento da CM do Porto, que deferiu o pedido de licenciamento para construção de 3 garagens no prédio urbano sito na Av. do ..., Porto, apresentado pela Recorrida Particular.
Para o Recorrente o aludido despacho viola os artigos 41º, nº 2 (3ª parte) do plano Auzelle e o artigo 4º do PDM e aos artigos 12º, 1305º e 1543º do CC.
E, isto, já que, alegadamente, se trataria de uma construção que não só incide sobre a área não edificável de 20% estabelecida pelo Plano Auzelle como também pelo facto de incidir sobre área em relação à qual foi constituída uma servidão em benefício exclusivo do prédio sito na Rua de ..., sem que se tivesse obtido a necessária autorização dos condomínios dos dois prédios.
Porém, esta tese não viria a ser acolhida na sentença recorrida, que considerou não proceder qualquer dos vícios arguidos pelo Recorrente, por se ter considerado não ser de aplicar o Plano Auzelle, sendo certo que, por outro lado, se entendeu não estar demonstrada violação do artigo 4º do PDM, publicado no DR, II Série, de 2-3-93. Quanto ao alegado desrespeito do direito de servidão salientou-se que o acto impugnado não o tinha posto em causa.
3.2. Em sede do presente recurso jurisdicional o Recorrente sustenta que a sentença do TAC inobservou os preceitos já antes citados, devendo, por isso, ser revogada.
Vejamos se lhe assiste razão.
3.3. No que concerne à alegada violação do Plano Auzelle não proceda a censura formulada pelo Recorrente.
Com efeito, nesta área rege, em regra, o princípio do “tempus regit actus”.
Aliás, trata-se aqui, em bom rigor, de um princípio geral do direito administrativo a regra de que os actos administrativos se regem pela lei existente à data da sua prática, princípio esse que se apresenta como uma consequência do princípio da legalidade Administração.
Temos assim, que, em princípio, não é licito invalidar um acto administrativo com base num quadro legal não vigente à data da sua prática.
Vidé, neste sentido, entre outros, os Acs. deste STA, de 20-11-69 (Pleno) - AD 97, a págs. 144, de 22-7-76 (Pleno) AD 160-1672, de 17-12-80 (Pleno) - AD 233-637 e de 23-1-86 (Pleno) - AD 299-1379 e da Secção de 27-9-88 - AD 351-285, de 10-1-89 - AD 303, de 29-1-91 - Rec. 28831, de 2-12-93 - Rec. 31797 e de 30-3-95 - Rec. 26880.
E, isto, sem prejuízo de nalgumas situações ser de aplicar a figura de invalidade sucessiva ou superveniente, que decorre de um acto, originariamente válido, vir a ser invalidado “ex vi” de uma alteração superveniente da situação de facto ou de direito que esteve na base da sua prática.
Cfr., quanto a esta questão, Pedro Gonçalves, in “A nulidade dos actos administrativos de gestão urbanística”, na Revista do Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente”, Ano, 1, 99, a págs. 34 e seguintes.
De qualquer maneira, o que não podia ser apresentado como fonte de invalidade do despacho contenciosamente impugnado era o denominado “Plano Auzelle”, por à data da formulação de pedido de licenciamento e da prática do dito despacho, já estar em vigor o PDM do Porto, ratificado pelo despacho do Ministro do Planeamento e da Administração do Território nº 103-a/92, de 2-10.92, publicado no DR, II Série, de 2-2-93.
Daí que, o Meritíssimo Sr. Juiz “a quo” ao ter por inaplicável ao caso a mencionado Plano Auzelle o não tenha inobservado.
3.4. Por outro lado, como bem se assinala na sentença do Tribunal “a quo”, o Recorrente não alegou factos de onde fosse lícito inferir a violação do artigo 4º do PDM, preceito que, por isso, se não pode ter por violado na sentença.
3.5. Resta apurar da alegada violação dos artigos 12º, 1305º e 1543º, todos do CC e que o Recorrente liga ao invocado desrespeito do direito de servidão já atrás referenciado.
Só que, também quanto a esta questão não assiste razão ao Recorrente, como se irá demonstra de seguida.
Na verdade, a legalidade do deferimento do pedido de licenciamento da obra em causa tem de se equacionar com atinência aos condicionamentos urbanísticos legalmente estabelecidos.
A este nível, a Administração não tem poderes (falta de atribuições), para, por acto autoritário, se intrometer no domínio privado, dirimindo um conflito entre particulares a propósito de interesses privados.
Vidé, em especial, os Acs. deste STA, de 8-4-97 - Rec. 36955 e de 5-2-98 - Rec. 28734.
Com efeito, tal definição não se enquadra claramente na função administrativa, antes integrando a função jurisdicional.
Ou seja, à Administração não incumbe, assim, qualquer forma de composição jurisdicional de conflitos, só aos Tribunais competindo administrar a justiça (princípio da reserva de competência judicial, acolhido no nº 1 , do artigo 202º da CRP).
Ora, existindo no caso em análise divergência entre Particulares em sede do sentido e alcance do direito de servidão da passagem já antes referenciado não competia à Entidade Recorrida dirimir tal conflito ao praticar o acto de licenciamento, não lhe incumbindo qualquer definição administrativa sobre tal direito.
É que o licenciamento teria de ser concedido nos limites e condições legais, sendo que as relações jurídicas reais, como a agora em análise, não podem ser objecto do acto de licenciamento.
Este aspecto em nada prejudica as posições subjectivas dos titulares do aludido direito de servidão, na medida em que, como é sabido, o licenciamento de obra não os inibe de usar os meios cíveis que entendam por adequados à defesa de tais posições.
Podemos, por isso, concluir, como se faz no Ac. deste STA, de 11-11-99 - Rec. 44021, que “não incumbe à Administração no acto de licenciamento de obras particulares assegurar o respeito por normas de direito civil, designadamente das que tutelem servidões de passagem de terceiros sobre o prédio onde se situa a obra do licenciamento”, razão pela qual a sentença do TAC ao decidir como decidiu não ter violado o disposto nos artigos 12º, 1305º e 1543º, do CC.
3.6. Improcedem, assim, todas as conclusões da alegação do Recorrente, não tendo a sentença recorrida inobservado qualquer dos preceitos nelas invocado.
4 - DECISÃO
Nestes termos, acordam em negar provimento ao recurso jurisdicional, mantendo a sentença recorrida.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 200 Euros e a procuradoria em 100 Euros. .
Lisboa, 7 de Fevereiro de 2002
José Manuel dos Santos Botelho – Relator – Macedo de Almeida – Alves Barata.