Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:018/03.1BTPRT
Data do Acordão:10/19/2022
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CT
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
IVA
TRANSMISSÃO DE BENS EM SEGUNDA MÃO
MEIOS DE PROVA
Sumário:I - Os pressupostos de admissibilidade de Recurso para Uniformização de Jurisprudência, devem verificar-se cumulativamente e podem, esquematicamente, identificar-se pela forma seguinte: (i) existência de oposição entre o acórdão recorrido e um outro acórdão (acórdão fundamento) proferido por algum dos Tribunais Centrais Administrativos ou pelo Supremo Tribunal Administrativo; (ii) a orientação perfilhada pelo acórdão impugnado não está de acordo com a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo; (iii) o acórdão fundamento tenha transitado em julgado (conforme, particularmente, artigos 281.º e 284.º do CPPT e 688.º, n.º 2, do CPC).
II - A circunstância de dois julgamentos sobre uma mesma questão de direito se fundarem em quadros jurídicos formalmente distintos não obsta, per se, à admissão de um recurso para uniformização de jurisprudência, sendo no entanto, imprescindível que, nessas situações, o regime ou quadro regulador seja substancialmente idêntico, isto é, que se possa concluir que as alterações legislativas entretanto ocorridas não interferem, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito fundamental controvertida.
III - Se ambas as decisões, recorrida e fundamento, admitiram, à luz de regimes formalmente distintos mas substancialmente idênticos, que a prova (“justificação”) da diferença entre o valor do preço de aquisição e o preço de venda de bens em segunda mão, exigida, conjugadamente, pelos artigos 16.º, n.º 2, alínea f), do CIVA e artigo 4.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 199/96, de 18 de Outubro (ou artigo 1.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 504-G/85, de 30-12) pode ser realizada por qualquer meio legal de prova, e não apenas pela exibição de facturas ou documento equivalente, há que concluir que não há oposição de julgados.
Nº Convencional:JSTA000P30058
Nº do Documento:SAP20221019018/03
Data de Entrada:02/10/2021
Recorrente:A.......
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:

RECURSO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA

PLENO DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO

Acórdão


1. RELATÓRIO

1.1. A……… veio, ao abrigo do preceituado no artigo 284.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e 27.º, n.º 1 al. b) do estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), interpor para este Supremo Tribunal Administrativo, Recurso para Uniformização de Jurisprudência, alegando que o acórdão proferido nestes autos, a 21 de Maio de 2020 (integralmente disponível em www.dgsi.pt), se encontra, quanto à mesma questão fundamental de direito, em oposição com o julgamento realizado por este Supremo Tribunal Administrativo, a 7 de Outubro de 1988, no processo nº 22.801 (junto aos autos em suporte de papel e integralmente publicado nos Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, ano XXXXVIII, n.º 4448.º)

1.2. Nas alegações apresentadas, conclui nos seguintes termos:

«A) O Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento decidiram de forma oposta a mesma questão fundamental, no âmbito de quadro legal substancialmente idêntico e em face de situações de facto idênticas, pelo que, se verifica a oposição de Acórdãos referida nos artigos 27.°, n.° 1, alínea b), do E.T.A.F. e 284.°, do C.P.P.T.;

B) A ratio que está subjacente ao regime especial de tributação dos bens em segunda mão, previsto no DL n.° 199/96, de 18.10, é eliminar ou atenuar a tributação em sede de IVA de bens que já foram definitivamente tributados, provenientes na sua maioria de consumidores finais e que reingressam no circuito comercial;

C) Não há neste diploma nenhuma alusão aos documentos que devem servir de base às transmissões de bens em segunda mão provenientes de “pessoa que não seja sujeito passivo", previstas na alínea a) do n.° 1 do artigo 3.°, pelo que, a existência de factura ou documento equivalente não é condição da aplicação deste regime especial, dado que os consumidores finais não emitem facturas ou documentos equivalentes;

D) Como se defende no Acórdão fundamento, a expressão «devidamente justificada» constante da alínea f) do n.° 2 do artigo 16.° do Código do IVA e do regime especial de tributação dos bens em segunda mão, no n.° 1 do artigo 4.° do DL n.° 199/96, de 18.10, como requisito da diferença entre o preço de venda e o de compra “não tem o significado directo de exigir a existência de tais documentos como condição da aplicação do regime aí previsto";

E) Devendo abranger qualquer forma de comprovação idónea, como seja o valor de compra inscrito na Declaração de Veículo Ligeiro (DVL) apresentada junto da Alfândega que procedeu à legalização dos veículos e que, tratando-se de um documento oficial, deve ser considerado idóneo não só para efeitos de liquidação do Imposto Automóvel como também para apuramento da margem de comercialização no âmbito do regime especial de tributação dos bens em segunda mão;

F) Conclusão que sai reforçada, no caso em apreço, pelo facto de o preço de compra que consta das Declarações de Veículo Ligeiro, nos casos de aquisições a particulares, não diferir substancialmente do preço constante das facturas de compra a outros sujeitos passivos, igualmente inscrito nas Declarações de Veículo Ligeiro, conforme foi apurado pela inspecção tributária e consta do quadro inserido no relatório da inspecção;

G) Ademais, e como salienta o Acórdão fundamento, os poderes concedidos à Administração Fiscal para supervisionar o cálculo dos impostos “não pode servir de pretexto para que sejam cobrados aos contribuintes impostos em quantidades superiores às que presumivelmente resultariam da aplicação daquelas normas” sob pena de ofensa do princípio da proporcionalidade e de um “enriquecimento injusto da Fazenda Pública à custa dos contribuintes.”;

H) Por isso, no exercício desta prorrogativa, cabe à Administração Fiscal desencadear os meios ao seu alcance, no âmbito da busca da verdade material e no respeito pelos fins da tributação consagrados na Constituição e nos artigos 4.°, 5.°, 7.°, 55° e 58.° da Lei Geral Tributária, em vez de pura e simplesmente excluir as compras a particulares do âmbito da aplicação do regime especial de tributação dos bens em segunda mão, a pretexto da falta de comprovação do preço de compra através de factura ou documento equivalente;

I) Acresce que, o regime regra a aplicar aos casos de revenda de bens em segunda mão é o previsto na alínea f) do nº 2 do artigo 16º do Código do IVA, sendo apenas aplicável o regime geral quando houver opção expressa do sujeito passivo revendedor nesse sentido, como resulta da previsão do artigo 7.° do DL n.° 199/96 de 18/10, situação que não se verifica no caso em apreço, dado que o contribuinte aplicou o regime especial de tributação dos bens em segunda mão a todas as suas revendas;

J) Pelas razões apontadas, devia ter sido concedido provimento ao recurso, nesta parte e, consequentemente, anuladas as liquidações de IVA em causa com fundamento em vício de violação de lei;

K) Ao perfilhar entendimento contrário ao supra exposto e em oposição ao decidido no Acórdão fundamento, o Acórdão recorrido violou as disposições supra citadas do DL n.° 199/96 de 18/10, a alínea f) do n.° 2 do artigo 16.° do Código do IVA, bem como, os artigos 4.°, 5.°, 7.°, 55.° e 58.°, da Lei Geral Tributária, motivo por que deve ser revogado».

1.3. Conclui, a final, pedindo que, concedendo-se provimento, seja declarado que existe oposição entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido e este último revogado.

1.4. A Autoridade Tributária e Aduaneira, não obstante ter sido notificada da interposição do recurso e, para, querendo, contra-alegar, não o fez.

1.5. Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo apresentados com “termo de vista” ao Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto, veio este, após sublinhar que o facto de as decisões terem sido emitidas sob a égide de quadros normativos distintos, não devia, per se, obstar à apreciação da questão – sendo a mesma – por a regulação ser, substancialmente a mesma num e noutro dos diplomas convocados, e possuir, inclusive, quase integralmente a mesma redacção, concluindo, porém, no sentido de não admissão do recurso por falta de verificação dos seus pressupostos, em concreto, por ambos os arestos terem perfilhado idêntica interpretação do regime aplicável sendo, apenas, distinta, a valoração dos factos apurados adoptada num e noutro dos processos, sindicância que entende não caber no âmbito do presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência.

1.6 Cumpre-nos, agora, decidir, submetendo os autos a julgamento do Pleno desta Secção Tributária do Supremo Tribunal Administrativo.

2. OBJECTO DO RECURSO

2.1. Pretende a Recorrente com a interposição do presente recurso que se uniformize jurisprudência relativamente a uma questão fundamental de direito que em seu entender foi decidida em sentido oposto no acórdão recorrido e no acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo, ambos já identificados, relativamente à interpretação do conceito de “diferença devidamente justificada” e, particularmente, ao tipo de prova legalmente admissível para sustentar essa diferença, no que respeita ao valor entre os preços de aquisição e de venda de bens em segunda mão, conforme exigido, conjugadamente, pelos artigos 16.º, n.º 2, alínea f), do Código de Imposto Sobre o Valor Acrescentado (CIVA) e artigo 4.º n.º 1 do DL n.° 199/96, de 18 de Outubro.

2.2. Atento o exposto, são duas as questões que temos que decidir.

A primeira prende-se com a admissibilidade do Recurso para Uniformização de Jurisprudência, tenho por referência a questão fundamental de direito identificada pelo Recorrente, cujos pressupostos, contrariamente ao que defende o Recorrente, o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal entende não estarem verificados no que concerne à oposição de decisões relativamente «ao tipo de prova que deve ser admitida em juízo para determinar a diferença devidamente justificada entre o valor dos preços de aquisição e de venda de bens em segunda mão».

A segunda com o fundo da questão enunciada no ponto 2.1., que apenas será objecto de apreciação se àquela primeira questão for dada resposta afirmativa. Ou seja, concluindo-se no sentido da verificação daqueles requisitos, haverá então que conhecer do mérito do recurso.

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Fundamentação de facto

3.1.1. No acórdão recorrido o julgamento de facto ficou exarado nos seguintes termos:

«Com relevância para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

A) O Impugnante exerce a atividade de comércio de viaturas automóveis - cfr. fls. 24 do processo administrativo (PA) apenso aos autos.

B) De acordo com o relatório de inspecção, no exercício da actividade referida na alínea antecedente, o Impugnante adquiriu viaturas em segunda mão no espaço da União Europeia (Alemanha), tendo, posteriormente, transmitido essas viaturas no território nacional, utilizando, para efeitos de apuramento do IVA devido, o regime especial de tributação pela margem, previsto no D.L. n.° 199/96, de 18 de Outubro - cfr. relatório de inspeção tributária, inserto a fls. 22 a 33 do PA apenso aos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

C) Da ação inspetiva de que o ora Impugnante foi alvo, resultaram correções de natureza meramente aritmética à matéria tributável do IVA, com referência aos anos de 1997, 1998 e 1999, nos montantes de € 1 150,65, € 20 380,65 e € 30 469,30, respectivamente - cfr. fls. 23 do PA apenso aos autos.

D) Na sequência das correções mencionadas na alínea antecedente, foram emitidas liquidações adicionais de IVA e de juros compensatórios para os anos de 1997, 1998 e 1999, no valor global de € 64 241,23, com data limite de pagamento em 30/11/2002 — cfr. fls. 56 a 72 dos autos e fls. 40 a 51 do PA apenso aos autos, cujo teor se dá por reproduzido.

E) A liquidação adicional de IVA de 1999 e as liquidações dos respetivos juros compensatórios foram notificadas ao aqui Impugnante em 14/10/2002, tendo as restantes liquidações (de 1997 e 1998) sido notificadas em 18/10/2002 — cfr. fls. 56 a 60 dos autos e fls. 40 a 51 do PA apenso aos autos, cujo teor se dá por reproduzido.

F) A presente impugnação deu entrada no Serviço de Finanças da Maia 2 em 28/02/2003 — cfr. fls. 2 dos autos.

G) Dá-se por reproduzido o teor do anexo 1 ao relatório de inspeção, inserto a fls. 34 e 35 do PA apenso aos autos.

3.1.2. Por sua vez, no acórdão fundamento consta provada a seguinte factualidade:

A) Em face da informação dos serviços de fiscalização tributária, designadamente do «Relatório de Exame à Escrita», o Chefe da Repartição de Finanças de Braga, em 15-9-93, fixou à impugnante, em sede de I.V.A. com referência ao período compreendido entre 1-2-89 a 31-12-89, o valor tributável de 46.160.567$00;

B) A decisão do Chefe da Repartição de Finanças fundamentou-se no «Relatório de Exame à Escrita» e foi proferida ao abrigo do disposto nos artigos 82.º, n.º 3 a 84.º, n.º 1, do C.I.V.A.;

C) No ponto 3.8 daquele relatório, diz-se o seguinte:

«O sujeito passivo comercializou viaturas usadas, tendo nalgumas delas considerado que o preço da venda foi inferior ao da aquisição, mesmo depois de efectuadas reparações.

Assim, como aliás se faz referência nas páginas 14, 16, 17 a 27 do presente relatório não existem, na quase totalidade dos casos, comprovantes externos dos valores de aquisição, como sejam facturas ou documentos equivalentes ou recibos processados pelos fornecedores em segunda mão, não sendo de admitir que após as reparações efectuadas que repõem os veículos em melhores condições de comercialização, os mesmos tivessem sido vendidos por preços inferiores ao do custo com as despesas da reparação.

Deste modo, a base tributável em IVA não poderá merecer crédito pois não é justificada a diferença entre o valor da venda e o respectivo custo, porquanto não justifica o preço de custo e porque o preço de venda não se mostra consentâneo com a realidade. Relativamente aos bens em segunda mão que se põem em causa, não será de considerar aceitável o sistema de tributação previsto no Decreto-Lei n.º 504-G/85, de 30-12, porquanto não se mostra justificada a base tributável, como preceitua o n.º 2, do artigo 1º daquele mesmo Decreto-Lei.

Será, por esse facto, de tributar o valor da venda que se presume, por falta de elementos mais concretos, em 46.160.567$00 (correspondente ao valor registado como valor de aquisição e acrescido das despesas da reparação), à taxa normal de 17%, resultando o I.V.A. em falta de 7.847.296$00, ao qual deverá ser abatido o I.V.A. de 746.938$00 que liquidou sobre o preço na viatura, também em estado de uso, de matrícula ……. e que faz parte do conjunto das vendas do valor acima referido» — vide fls. 29 do apenso.

D) A impugnante, na sequência da notificação que lhe foi efectuada da decisão do Chefe da Repartição de Finanças, deduziu reclamação para a Comissão Distrital da Revisão nos termos do artigo 84.º, do C.P.T.

Nesta foi deliberado, «por acordo entre as partes, alterar a base tributável que inicialmente tinha sido fixada em 46.160.567$00, para 44.109.019$00, concedendo provimento em parte à reclamação do contribuinte».

E) A deliberação da Comissão Distrital de Revisão fundamentou-se no seguinte:

— o vogal da Fazenda Pública concordou em considerar como não existente, no cômputo, qualquer margem de lucro nas vendas das viaturas usadas, propondo um valor das vendas igual ao seu custo acrescido das despesas com reparações a elas inerentes, donde uma diminuição à base tributável previamente fixado, de 2.051.548$00;

— o vogal do contribuinte, também na perspectiva de acordo, aceitou a proposta do vogal da Fazenda Pública quanto aos veículos usados, não deixando de afirmar como verdadeiros os valores declarados.

F) Da acta da deliberação da Comissão Distrital de Revisão (C.D.R.) consta ainda o seguinte:

— o vogal do contribuinte, «embora não concordando com a determinação do valor tributável à margem do Decreto-Lei n.º 504-G/85, de 30 de Dezembro, tendo até para o efeito apresentado a quase totalidade dos documentos inerentes às aquisições das viaturas usadas (em fotocópia e que se junta à presente acta) aceita que tal questão deva ser apreciada fora da presente comissão» — vide fls. 110 do apenso.

G) Em 3-12-93, foi a impugnante notificada da deliberação da C.D.R., com a indicação de que deveria proceder ao pagamento voluntário do imposto e juros compensatórios ora impugnados no prazo de 15 dias;

H) Decorrido o prazo atrás referido, sem que tivesse sido efectuado o pagamento, foi o valor impugnado debitado para cobrança virtual em 31-12-93, tendo a abertura do cofre ocorrido em 3-1-94.

3.2. Fundamentação de direito

3.2.1. O presente recurso vem interposto do acórdão proferido nestes autos pelo Tribunal Central Administrativo que confirmou, pelos fundamentos nele aduzidos, o julgamento da 1ª instância que julgou totalmente improcedente a Impugnação Judicial deduzida pela ora Recorrente.

3.2.2. Para a Recorrente, como dissemos aquando da identificação da questão fundamental de direito, importa uniformizar jurisprudência quanto à questão de saber «que tipo de prova deve ser admitida em juízo para determinar a diferença devidamente justificada entre o valor dos preços de aquisição e de venda de bens em segunda mão».

3.2.3. Segundo a Recorrente, o acórdão recorrido, ao considerar, como condição de aplicação do regime legal especial de tributação da margem, consagrado no artigo 4.º, n.º 1 do Decreto-lei n.º 199/96, de 18 de Outubro, a apresentação de facturas ou documentos equivalentes para dar como preenchido o requisito de devidamente justificada (a diferença) está em total oposição com o acórdão fundamento que julgou que a expressão devidamente justificada é compatível com a utilização de qualquer meio de prova para a sua determinação, concluindo que a uniformizar jurisprudência quanto à questão de saber que tipo de prova deve ser admitida em juízo para determinar a diferença devidamente justificada entre o valor dos preços de aquisição e de venda de bens em segunda mão.

3.2.4. Concluindo, o que pede, que a resposta a essa questão, ou seja, a uniformização a realizar, seja no sentido assumido pelo acórdão fundamento, isto é, no sentido de que para efeito de prova da referida diferença e, consequentemente, de aplicação do regime especial de tributação de bens em segunda, é admissível qualquer meio de prova e não apenas a apresentação de factura ou documento equivalente.

3.2.5. Exposta em traços abrangentes a pretensão que nos vem colocada e os seus fundamentos, passamos agora a decidir as questões identificadas no objecto do recurso, começando, pelas razões também já apontadas, pela primeiramente enunciada: estão verificados nos autos os pressupostos substantivos de admissibilidade do presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência?

3.2.6. Vejamos, então, sublinhando que, estando há muito identificados os requisitos de que depende a admissão do recurso para uniformização de jurisprudência, nos limitamos a proceder à sua enunciação de forma esquemática, reafirmando que os pressupostos dessa admissibilidade, que devem cumulativamente estar preenchidos, e que são: (i) a existência de oposição entre o acórdão recorrido e um outro acórdão (acórdão fundamento) proferido por algum dos Tribunais Centrais Administrativos ou pelo Supremo Tribunal Administrativo, (ii) que a orientação perfilhada pelo acórdão impugnado não esteja de acordo com a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo e (iii) que o acórdão fundamento tenha transitado em julgado [tudo, conforme, artigos 281.º e 284.º do CPPT e 688.º, n.º 2, do CPC].

3.2.7. A frequente falta de rigor na interpretação do que deve entender-se por “mesma questão fundamental de direito” determinou ao longo dos anos que a doutrina e a jurisprudência realizassem um rigoroso recorte conceptual nesta matéria, sendo hoje pacífico que a questão fundamental de direito é a mesma se, por um lado, a uniformização peticionada ao Supremo Tribunal Administrativo se prende com uma questão de direito e, por outro, se essa questão de direito foi decidida num quadro de facto substancialmente idêntico, o que ocorrerá se forem passiveis de ser subsumidas às mesmas normas legais ou, a terem existido alterações legislativas relevadas num dos acórdãos em confronto, as mesmas não interfiram, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.

3.2.8. Importa ainda reafirmar que, para efeitos de aferir se há ou não oposição entre as decisões, o que releva é a existência de decisões expressas e em sentido oposto e não os seus fundamentos. Ou seja, para que este requisito se encontra preenchido é imperioso que ambas as decisões se pronunciem expressamente sobre o fundo da questão, não se mostrando suficiente para o efeito a pronúncia implícita ou meras considerações colaterais que sobre a mesma sejam tecidas no âmbito do julgamento de questões distintas.

3.2.9. No caso concreto não subsistem dúvidas que a questão jurídica identificada pela Recorrente foi colocada perante ambos os Tribunais, já que ambos se debruçaram sobre as condições de aplicação do regime especial de tributação da margem e sobre a prova, ou não, dos seus pressupostos, particularmente no que respeita à prova ou justificação da diferença entre o valor dos preços de aquisição e de venda de bens em segunda mão.

3.2.10. Vejamos, então, começando por salientar que em ambos os arestos esta questão partiu da análise de regimes legais consagrados em distintos diplomas. Na decisão fundamento a apreciação e decisão da questão parte do quadro jurídico consagrado no artigo 1.º, n.º 2 Decreto-Lei n.º 504.º-G/85, de 30 de Dezembro (conjugado com o artigo 16.º, n.º 2 alínea f) do CIVA) e no acórdão recorrido parte do regime legal consagrado no artigo 4.º, n.º 1 do Decreto-Lei 199/96, de 18 de Outubro (que revogou aquele primeiro).

3.2.11. Porém, desde já se adianta, que não é este regime legal de que, inicialmente, partem um e outro dos arestos, que, per se, obsta à admissão do presente Recurso para Uniformização, uma vez que, para o que releva, o regime é substancialmente idêntico.

3.2.12. Na verdade, há data da liquidação constava dos citados preceitos o seguinte:

- Artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 504-G/85, de 30-12

«1 - O regime previsto na alínea f) do n.º 2 do artigo 16.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado é aplicável unicamente às transmissões de bens em segunda mão ou dos referidos no n.º 19 do artigo 9.º do mesmo Código efectuadas por sujeitos passivos do imposto que os tenham adquirido para revenda.

2 - O valor tributável das transmissões de bens referidos no n.º 1 é constituído pela diferença, devidamente justificada, entre a contraprestação obtida ou a obter do cliente e o preço de compra dos mesmos bens, com inclusão do imposto sobre o valor acrescentado, caso este tenha sido liquidado e venha expresso na factura ou documento equivalente.»;

- Artigo 4.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 199/96, de 18-10

«O valor tributável das transmissões de bens referidas no artigo anterior, efectuadas pelo sujeito passivo revendedor, é constituído pela diferença, devidamente justificada, entre a contraprestação obtida ou a obter do cliente, determinada nos termos do artigo 16.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, e o preço de compra dos mesmos bens, com inclusão do imposto sobre o valor acrescentado, caso este tenha sido liquidado e venha expresso na factura ou documento equivalente».

3.2.13. Em suma, quer numa quer noutra das decisões postas em confronto a questão de direito foi apreciada partindo, ab initio, por referência a um quadro jurídico substancialmente idêntico, ou, dito de forma directa, as alterações legislativas ocorridas no regime especial em apreço não interferem, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida, já que, quanto a esta, a regulamentação não sofreu alterações substanciais.

3.2.14. No que respeita à factualidade também não descortinamos nela diferenças de relevo, antes sendo de concluir pela sua identidade substancial, uma vez que em ambos os arestos estão em causa sujeitos passivos cuja actividade sindicada se substancia na comercialização (compra e venda) de viaturas automóveis usadas, ambos utilizaram, para efeitos de apuramento do IVA devido, o regime especial de tributação pela margem (nos termos previstos nos diplomas já mencionados) e em ambos os casos a Autoridade Tributária, na sequência de inspecção realizada, veio a concluir que não estava devidamente justificada a diferença entre a contraprestação obtida ou a obter do cliente e o preço de compra dos mesmos bens.

3.2.15. Pelo que, em sintonia com o que ficou exarado no acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário desse Supremo Tribunal de 30.09.2020 (proferido no processo n.º 6/20.3BALSB, integralmente disponível em www.dgsi.pt) há que concluir que a “questão de direito é a mesma quando a norma jurídica é a mesma ou tem idêntico teor e é idêntica a factualidade a considerar do ponto de vista da subsunção a essa norma jurídica” .

3.2.16. Porém, já não corresponde à realidade que o acórdão recorrido e o acórdão fundamento tenham dado resposta distinta a essa mesma questão, como podemos concluir da análise cuidada da fundamentação jurídica aduzida num e noutro dos arestos em confronto.

3.2.17. Note-se, como resulta da leitura das alegações, que a Recorrente suporta a sua pretensão de oposição no seguinte raciocínio: não existindo no Decreto-Lei n° 199/96 de 18-10, tal como já não existia no Decreto-Lei n°504-G/85, de 30-12, qualquer alusão aos documentos que devem servir de base à transmissão de bens em segunda mão de pessoa que não seja sujeito passivo, nunca o tribunal recorrido podia ter concluído que a existência de factura ou documento equivalente é condição inultrapassável de aplicação deste regime especial, tanto mais que, como é sabido, os consumidores finais não emitem facturas ou documentos equivalentes. Ou seja, segundo o Recorrente, no acórdão do Tribunal Central Administrativo devia ter-se concluído e decidido, como, diz, se faz no acórdão fundamento, que a expressão “devidamente justificada” não tem o significado directo de exigir a existência de tais documentos como condição da aplicação do regime previsto no referido diploma legal.

3.2.18. Em síntese, para a Recorrente, há contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento porque no primeiro se julgou que sem a exibição de facturas ou documentos equivalentes não se mostra devidamente justificada a diferença entre o preço de compra e a contraprestação obtida com a venda e, no segundo, se julgou que tal exibição não seria necessária, uma vez que a expressão «devidamente justificada» que consta do regime de tributação dos bens em segunda mão dever ser interpretada no sentido de ser compatível com qualquer meio de prova.

3.2.19. Acontece, porém, como já dissemos, e repetimos, a interpretação que a Recorrente partilha dos dois arestos e a consequente oposição que extrai da sua leitura extrai não é correcta.

3.2.20. Na verdade, conforme se apreende da leitura do acórdão recorrido, o Tribunal Central Administrativo Norte nunca colocou sequer a hipótese de que a diferença só estaria devidamente justificada se o Recorrente tivesse apresentado as facturas ou documentos equivalentes. O que o Tribunal Central Administrativo Norte relevou foi o probatório, particularmente o teor do relatório de inspecção, do qual consta, designadamente, entre outros factos apurados através do cruzamento de informações obtidas junto das autoridade fiscais alemães, que havia operações de compra relativas a 16 viaturas, declaradas pelo Recorrente como tendo por si sido adquiridas na Alemanha que, comprovadamente, tinham sido vendidas nesse país mas a uma outra empresa portuguesa, a inexistência de correspondência entre o valor de venda constante do VIES e o valor declarado pelo sujeito passivo, e outras circunstancias factuais por este não contestadas, como seja o valor atribuído às viaturas atendendo à sua origem (Alemanha) e à moeda então utilizada (marco) de cuja conversão era quase impossível alcançar os preços declarados, factos estes que, todos juntos determinaram, a correcção, através de métodos directos, dos valores devidos em sede de IVA e a aplicação do regime geral de tributação.

3.2.21. Aliás, o que o Tribunal Central Administrativo Norte aduz em síntese conclusiva – após a já referida análise exaustiva do relatório de inspecção e depois de relevar todas as diligências oficiosamente realizadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, as informações obtidas e todos os documentos por aquela analisados - é que, não tendo o Recorrente logrado contraditar essa factualidade, era de julgar afastada a presunção de veracidade das declarações por si apresentadas, nos termos do n.º 2 do artigo 75.º da Lei Geral Tributária (LGT), passando a caber-lhe, consequentemente, o ónus de provar a veracidade dos valores de compra por si declarados, o que não tinha feito e poderia ter feito através de factura ou documento equivalente, bem como através de cheques de compra dos veículos por si alegadamente adquiridos, comprovativos de depósito do preço ou contratos que tivesse celebrado com os particulares, desta forma incluindo no seu julgamento a apreciação (e refutação) do Recorrente de que os particulares não emitem facturas.

3.2.22. É este julgamento que resulta linearmente, designadamente, do excerto que ora transcrevemos: “o recorrente nada contrapõe à factualidade evidenciada pela ATA, pelo que a temos por adquirida e, com base nela, podemos concluir, em sintonia com a ATA, que a diferença entre a contraprestação obtida e o preço de compra das viaturas em causa não se encontra devidamente justificada, mostrando-se afastada a presunção de veracidade creditada às declarações do Recorrente, por força do artigo 75.°, n° 2, alínea a) da LGT” e “ por assim ser, passou a impender sobre o recorrente a prova da veracidade dos valores de compra por ele declarados - para o que serviriam as faturas passadas nos termos legais ou, tratando-se de compras a particulares ou outros documentos, por exemplo, os contratos de compra e venda, como bem se refere no relatório inspectivo.”

3.2.23. Em conclusão, no acórdão recorrido, contrariamente ao que alega a Recorrente (bem ou mal é, nesta sede, irrelevante), o fundamento do julgamento de improcedência da Impugnação Judicial não se alicerçou na exigibilidade ou imprescindibilidade de apresentação de factura ou documento equivalente para justificar (provar) a diferença entre o valor da compra e de venda dos veículos em segunda mão para efeitos de aplicação do regime especial consagrado no artigo 4.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 199/96, antes se louvou no entendimento de que, não tendo o Recorrente posto em causa a factualidade carreada para os autos através do relatório de inspecção, afastada estava a presunção de que legalmente beneficiava, passando a caber-lhe o ónus de provar, por qualquer meio, a veracidade das transacções, o que, segundo a valoração dos factos provados que realizou, não lograra fazer.

3.2.24. Distintamente, no acórdão fundamento, a questão da exigibilidade de apresentação à Administração Tributária de factura ou documento equivalente para efeito de comprovação de verificação dos pressupostos de aplicação do regime especial foi efectivamente enfrentada e constituiu o fundamento da decisão de procedência da Impugnação, tendo-se aí decidido que “para determinação da diferença entre o preço de venda e o preço de compra de bens em segunda mão, à face do preceituado nos artigos 16°, n° 1, alínea f), do CIVA e 1°, n° 2, do Decreto-Lei n° 504-G/85, de 31.12, não é imprescindível que sejam exibidos à Administração Fiscal, quando efectua exame à escrita, documentos comprovativos do valor das aquisições, designadamente, facturas ou documentos equivalentes”, sendo a «expressão «devidamente justificada», relativa à diferença dos valores de aquisição e de revenda, utilizada naquelas normas (…) compatível com a utilização de qualquer meio de prova para a sua determinação”, revogando a decisão então recorrida que, alicerçara exclusivamente na falta de apresentação desses documentos a improcedência da Impugnação.

3.2.25. Importa ainda, e por fim, sublinhar que, além da questão da presunção de veracidade da escrita ou o seu afastamento, isto é, a inversão do ónus probatório, nunca ter sido equacionada no acórdão fundamento, aí se invocaram, em reforço da interpretação realizada do referido artigo 1.º n.º 1 do Decreto-Lei n° 504-G/85, princípios gerais de tributação de IVA, designadamente os então vigentes artigos 82.º, 83.º, 83.º-A e 84.º, n.º 1 do CIVA, o princípio constitucional da proporcionalidade e, bem assim, os casos de dispensa de emissão de facturas, previstos no então artigo 39.º do CIVA e a expressa admissão de qualquer meio que, para estes casos, se encontrava prevista no, também então vigente, artigo 46.º do mesmo diploma legal. E, ainda não menos relevantemente, o facto de, no caso aí em apreço, ter resultado provado que a Administração Tributária aceitara não ter existido qualquer margem de lucro para a Impugnante na aquisição e revenda de inexistência dos veículos, atenta a factualidade vertida na alínea E), matéria que não só não se encontra provada no acórdão recorrido, como, se bem vemos, é precisamente a não-aceitação desse facto que determinou as correcções efectuadas.

3.2.26. Temos, pois, por seguro, que não existe oposição de decisões relativamente à mesma questão de direito. Porque o acórdão recorrido - ao admitir que a devida justificação, consagrada no artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 199/96 ou a prova do valor tributável por referência à diferença entre o valor de contra e a contraprestação obtida com a revenda pode ser feita por factura ou por outros documentos, designadamente contratos de compra e venda a particulares - admite que a prova do valor de compra pode ser efectuada por outros meios (designadamente, como adiantara a Administração Tributaria, através de declaração de venda ou de comprovativos do meio de pagamento), sendo evidente que o que verdadeiramente constituiu o fundamento do seu julgamento foi a valoração que fez dos factos provados e a ilação, que extraiu, de que a Administração Tributária ilidira a presunção de veracidade consagrada no artigo 75.º, n.º 1 da LGT, pelo que, por força do preceituado no n.º 2 do mesmo artigo e diploma citado, se verificava uma situação de inversão do ónus probatório, que, no caso, o Tribunal veio a julgar não ter sido satisfeito pelo sujeito passivo. Porque esse entendimento de admissibilidade de outros meios de prova (que não apenas a factura ou documento equivalente) foi, como muito bem aduz a Recorrente, também o professado pelo acórdão fundamento, à luz do regime consagrado no artigo 1.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 504-G/85, ao decidir que a expressão “devidamente justificada”, abrange “qualquer forma de comprovação desde que suficientemente convincente”, acórdão que, para efeitos de anulação da Impugnação não convocou nem ponderou, como se denota da sua leitura, a questão da presunção legal consagrada, hoje, no artigo 75.º da LGT, o ónus de prova no caso do seu afastamento e, particularmente, relevou o facto de a Administração Tributária ter expressamente aceite que não tinha havido qualquer margem de lucro, o que, definitivamente, não ocorre no caso do acórdão recorrido.

3.2.27. A inexistência de oposições de decisões quanto à mesma questão fundamental de direito, nos termos expostos, determina a não verificação dos pressupostos de admissão do Recurso para Uniformização de Jurisprudência e, consequentemente, que não se conheça do mérito nem se formule o julgamento de uniformização que nos foi peticionado.

3.2.28. O Recorrente, vencido, suportará os custos da acção, nos termos impostos pelo artigo 527.º, n.º 1 e 2 do CPC, aplicável aos autos ex vi artigo 281.º do CPPT.

4. DECISÃO

Em face do exposto, acordam os Juízes do Pleno da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo, não tomar conhecimento do mérito do recurso.

Custas pelo Recorrente.

Registe e notifique.

Lisboa, 19 de Outubro de 2022 - Anabela Ferreira Alves e Russo (relatora) – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia - Isabel Cristina Mota Marques da Silva - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes - José Gomes Correia - Joaquim Manuel Charneca Condesso - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos - Aníbal Augusto Ruivo Ferraz - Gustavo André Simões Lopes Courinha - Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro - Pedro Nuno Pinto Vergueiro.