Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0824/11
Data do Acordão:07/11/2012
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:LINO RIBEIRO
Descritores:ÓNUS DE PROVA
REVERSÃO
RESPONSABILIDADE DO GERENTE
RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA
Sumário:I - O facto ilícito susceptível de fazer incorrer o gestor na responsabilidade prevista na alinea b) do nº 1 do artigo 24º da LGT não se consubstancia apenas na falta de pagamento da obrigação tributária, mas também numa actuação conducente à insuficiência do património da sociedade.
II - Para afastar a responsabilidade subsidiária por dívidas de impostos cujo prazo de pagamento terminou durante a gestão, o gestor tem que demonstrar que a devedora originária não tinha fundos para pagar os impostos e que a falta de meios financeiros não se deveu a qualquer conduta que lhe possa ser censurável.
III - Em relação aos processos pendentes à data da entrada em vigor da Lei nº 3-B/2010 de 18 de Abril, que alterou o artigo 148º do CPPT, o sistema de reversão da execução fiscal não se presta a dar efectividade à responsabilidade civil do gestor pelas coimas aplicadas à empresa durante o período da sua gestão.
Nº Convencional:JSTA00067743
Nº do Documento:SA2201207110824
Data de Entrada:09/19/2011
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A......
Votação:UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TT1INST LISBOA
Decisão:PARCIALMENTE PROCEDENTE
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL
Legislação Nacional:LGT98 ART24 N1 A B N3 ART23 N3
CONST76 ART32 N10
CSC86 ART64
L 3-B/2010 DE 2010/04/18
CPPTRIB99 ART148 ART152 N1 ART153 N1 N2
RGIT01 ART8 N1 A B
CCIV66 ART12 N2
CPC96 ART663 N2
CPA91 ART133 N2 D
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC01147/09 DE 2012/02/23; AC STA PROC01216/09 DE 2012/04/19; AC STA PROC031/08 DE 2009/07/01; AC STA PROC064/10 DE 2010/04/14
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

1.1. A Fazenda Pública interpõe recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a oposição deduzida por A………, devidamente identificada nos autos, no processo de execução fiscal que, por reversão contra si corre termos nos Serviço de Finanças de Odivelas, por dívidas referentes a IVA, retenção na fonte e coimas.
Nas alegações, formulou as seguintes conclusões:
1- O presente recurso visa reagir contra a douta sentença declaratória da total procedência da oposição deduzida contra o despacho de reversão no processo de execução fiscal sub judice.
2 - A fundamentação da sentença recorrida (síntese) não pode proceder porque julgou em erro de direito.
3 - Ou seja, violou a aplicação do regime de responsabilidade subsidiária previsto no art. 24°, n.º 1, alínea b) da Lei Geral Tributária, por errada interpretação dos pressupostos necessários à reversão.
4 - Violou ainda o princípio da aplicação imediata da lei adjectiva no tempo, subjacente ao artigo 148° do CPPT, alínea c). Por um lado, face ao interesse público inerente à regulamentação introduzida pela lei nova, que se presume ser a melhor, interesse que reclama a aplicação imediata da nova lei ao maior número possível de situações. Por outro, o interesse da certeza jurídica, do respeito das justas expectativas dos particulares criadas à sombra de determinada lei – interesse, este último, que justifica restrições mais ou menos latas à aplicação imediata e condicionada da nova regulamentação. Conforme, em dada espécie, uma justa ponderação atribua mais ou menos peso a um ou outro destes interesses, assim o problema é de resolver pela aplicação ao caso da lei nova ou pela sua sujeição à disciplina jurídica anterior.
5. Face a estes condicionalismos estamos convictos de que de direito V. Exas farão a adequada interpretação, motivação que subjaz ao presente recurso.
6. Deste modo, a douta sentença, ora recorrida, a manter-se na ordem jurídica, revela uma inadequada interpretação e aplicação do disposto no regime sub-judice.

1.1. Não foram apresentadas contra-alegações.
1.2. O Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência do recurso quanto à reversão das dívidas de imposto e da improcedência quanto ás dívidas de coimas, dada a inconstitucionalidade do artigo 8º do REGIT.

2. A sentença deu por assente a seguinte matéria de facto:

a) Foi instaurado o processo de execução fiscal com o nº 4227200501127390 contra B…….. Lda., para cobrança de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) dos períodos 2003-10 a 2003-12, no valor de €7.323,87 (cf. fls. 22 e 23 do processo apenso);
b) No dia 07/08/2002 foi outorgado no 5º Cartório Notarial de Lisboa o contrato de cessão de quota segundo o qual à A……… foi cedida por C……… a quota que esta detinha na sociedade, ficando a Oponente e seu marido D……… com as quotas e sócios da sociedade e foi admitida como sócia E……… (cfr. fls. 17 e seguintes dos autos);
c) Aquando da escritura referida no ponto anterior foi decidido aumentar o capital e ficaram nomeados como gerentes todos os sócios (cfr. fls. 22);
d) A gerência ficou a cargo dos gerentes sócios ou não sócios eleitos em Assembleia-geral (cfr. fls. 35);
e) A executada originária, no âmbito do processo 4227200501127390 e apensos tem uma dívida no valor total de €69.488,20, correspondendo €50.769,78 (quantia exequenda a este processo);
f) As dívidas são referentes a IVA, Retenção na Fonte e coimas (cfr. fls. 37);
g) A Administração Tributária emitiu o despacho de reversão a fls. 42 e que se dá por reproduzido, no qual consta o valor da quantia exequenda, a enunciação da legislação ao abrigo da qual é efectuada a reversão, tendo em anexo os n°s dos processos executivos em causa, os períodos a que se reportam e a natureza da dívida (cfr. fls. 41 e 42);
h) Damos por reproduzido o documento (citação reversão), onde consta as normas ao abrigo da qual a mesma é efectuada, o valor da dívida exequenda, de que poderia requerer a dação em pagamento, em prestações, deduzir oposição, reclamação graciosa ou impugnação judicial (cfr. fls. 43).


3. Na execução fiscal por dívidas de IVA, IRS, IS e coimas, revertida contra a recorrida, foi deduzida oposição com fundamento na ilegalidade do despacho de reversão em razão (i) da falta de fundamentação, (ii) da falta de culpa na insuficiência do património da sociedade devedora, (iii) e da nulidade da citação.
Quanto às dívidas de imposto, a sentença recorrida considerou que «não resultou do probatório que a Oponente tivesse tido culpa na situação de insuficiência do património da sociedade executada para pagamento das dívidas exequendas, pelo que consegui ver revertida a seu favor toda a factualidade por si alegada».
E quanto à dívida de coimas­, considerou que «se a responsabilidade dos devedores subsidiários pelas dívidas por coimas da sociedade originária devedora é uma responsabilidade de natureza civil extracontratual e não uma responsabilidade pelo pagamento de coimas, a cobrança destas dívidas de responsabilidade civil não figura entre as dívidas que podem ser cobradas através do processo de execução fiscal, uma vez que tal cobrança não está prevista no predito art. 148º».
A recorrente discorda do enquadramento jurídico efectuado em cada uma dessas questões, argumentando que houve erro de julgamento, porquanto: (i) o ónus da prova da insuficiência do património da devedora originária pertence à oponente, sendo certo que não foi elidida a presunção da alínea b) do artigo 24º da LGT; (ii) o processo de execução deve ser aplicado à reversão por coimas porque o aditamento efectuado ao artigo 148º do CPPT pela Lei nº 3-B/2010 de 28/4, tem natureza interpretativa ou, sendo uma lei que regula o conteúdo da relação executiva, deve aplicar-se às situações já existentes.
E, a nosso ver, a recorrente tem razão na primeira questão, mas não na segunda.

3.1. Na petição da acção de oposição, a oponente limitou-se a imputar a responsabilidade pela dívida exequenda ao técnico oficial de contas, o qual não apresentou em devido tempo as declarações tributárias.
Conforme alega, «porque muitas das declarações ora em questão foram apresentadas fora do prazo legal, originando coimas e juros de mora, devem ser imputadas ao técnico oficial de contas da sociedade à data em que as declarações se mostrarem em falta» (art. 13 da petição); e se «tivesse tudo decorrido dentro dos prazos legais e a devedora não terá incorrido em coimas e juros de mora e, muito provavelmente, teria conseguido cumprir com as suas obrigações de pagamento junto da Administração Fiscal» (art. 21º).
Não colocou em causa que exerceu as funções de gerente da devedora originário, bem pelo contrário admite tal facto, como também não questiona que a dívida exequenda deveria ter sido paga durante o período da sua gerência.
Estes dois últimos factos fazem, desde logo, cair a responsabilidade da oponente pelas dívidas tributárias da empresa no âmbito temporal definido na alinea b) do nº 1 do artigo 24º da LGT: «dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento».
E tratando-se de dívidas enquadradas no âmbito dessa alínea, impõe-se todavia esclarecer que, por nossa parte, o facto ilícito susceptível de fazer incorrer o gestor em responsabilidade não se consubstancia apenas na falta de pagamento da obrigação tributária, mas também numa actuação conducente à insuficiência do património da sociedade. Sendo o propósito da norma inverter o ónus da prova de que foi por acto culposo do gestor que o património da sociedade se tornou insuficiente para a satisfação da dívida, naturalmente que para provar que não lhe pode ser imputada a falta de pagamento deve exigir-se que se prove que não foi por culpa sua que o património da sociedade se tornou insuficiente.
Ora, incumbindo à oponente demonstrar que a falta de pagamento das dívidas tributárias vencidas durante a sua gerência não lhe pode ser imputada, porque a inexistência ou insuficiência de bens na empresa que geriu não é da sua responsabilidade, a verdade é que não alegou factos concretos de que assim foi, como nem sequer apresentou quaisquer meios de prova capazes de ilidir tal presunção de culpa.
Na alínea b) do referido artigo 24º, ao responsabilizar-se o gestores que «não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento», estabelece-se uma presunção legal de culpa, no pressuposto de que, tendo o prazo legal de pagamento terminado no período da sua gestão, não podem desconhecer a existência da dívida, e por conseguinte, ao colocarem a empresa numa situação de insuficiência patrimonial, indiciam uma conduta dolosa que é especialmente grave para os interesses do Estado Fiscal, e por isso, só lhes resta provar que não foi por culpa sua que a empresa caiu em tal situação.
O acto ilícito culposo que se presume praticado pelo gestor não se fica pela omissão de pagamento do imposto vencido. O que se presume é que o gestor não actuou com a diligência de um bonus pater familiae, com a observância das disposições legais aplicáveis aos gestores, em especial ao do artigo 64º do CSC, que lhe impõe a observância de deveres de cuidado, de disponibilidade, de competência técnica, de gestão criteriosa e ordenada, de lealdade, no interesse da sociedade e dos sócios que sejam relevantes para a sustentabilidade da sociedade.
Apesar da dificuldade que existe na prova de um facto negativo, como é o caso da ausência de culpa, o oponente não pode deixar de alegar e provar factos concretos de onde se possa inferir que a insuficiência patrimonial da empresa se deveu a circunstâncias que lhe são alheias e que não lhe podem ser imputadas. Para afastar a responsabilidade subsidiária por dívidas de impostos cujo prazo de pagamento terminou durante a gestão, o gestor tem pois que demonstrar que a devedora originária não tinha fundos para pagar os impostos e que a falta de meios financeiros não se deveu a qualquer conduta que lhe possa ser censurável.
Mas não isso que se verificou no caso dos autos.
A oponente pretendeu afastar a sua responsabilidade indicando como responsável o técnico oficial de contas que não entregou em devido tempo as declarações tributárias. Ora, mesmo que assim tenha ocorrido, o pagamento do imposto dos impostos em causa, o IVA, IRS e IS, é uma obrigação que apenas respeita à sociedade gerida pela oponente e não ao contabilista. Ainda que o técnico oficial de contas possa eventualmente também ser responsabilizado, desde que se comprove a «violação dolosa» dos deveres que assumiu (cfr. nº 3 do art. 24º do LGT), a falta de pagamento do imposto e a insuficiência de bens da empresa é da responsabilidade de que a gere.
É por isso que a sentença recorrida padece de erro de julgamento quando colocou o ónus probatório a cargo da Administração Tributária, como se estivesse perante a situação prevista na alínea a) do nº 1 do artigo 24º da LGT. É certo que o facto constitutivo das dívidas exequendas se verificou no período da gerência da oponente, mas não é menos certo que o prazo legal de pagamento também findou no período do exercício do cargo de gerência (cfr. certidões de dívida de fls. 46 a 63 do processo apenso).
Não há qualquer facto alegado, muito menos provado, demonstrativo de que a oponente, enquanto sócia-gestora da devedora originária, não teve qualquer responsabilidade na situação de insuficiência de bens patrimoniais para se pagar os tributos em execução.

3.2. Relativamente à outra questão, diz a sentença recorrida que o processo de execução não é o meio processual adequado para a cobrança de dívidas emergentes de responsabilidade civil extracontratual, nem é possível a reversão da execução para cobrança de dívidas não tributárias.
Como na data da sentença a Lei nº 3-B/2010 de 18 de Abril já tinha introduzido um aditamento ao artigo 148º da CPPT, pretende a recorrente que a nova norma lhe seja aplicável, ou pela consideração de que se trata de uma norma interpretativa ou de uma norma de aplicação imediata aos processo pendentes.
A verdade é que, tendo em conta a discussão que se mantinha em torno do sentido a dar ao artigo 8º do RGIT, não se pode concluir que a norma tem natureza interpretativa. De resto, mesmo após a sua introdução no CPPT, dada a forma ambígua como a alínea foi redigida, ainda se continuou a defender que o sistema de reversão da execução fiscal não se presta a dar efectividade à responsabilidade civil do gestor pelas coimas aplicadas á empresa durante o período da sua gestão.
O Tribunal Constitucional analisou o problema da constitucionalidade do artigo 8º do REGIT numa dupla perspectiva: do ponto de vista substantivo, entendendo que a responsabilidade dos gerentes ou administradores consagrada naquele artigo é titulada pelo instituto da responsabilidade civil delitual ou aquiliana; do ponto de vista adjectivo, defendendo que o recurso, ainda que implícito, ao sistema de reversão das execuções, não constitui um factor de censura constitucional, desde que, em cada caso concreto, seja acautelada a existência de um processo equitativo.
Na primeira dimensão, o artigo 8º do REGIT não é inconstitucional, porque os gestores e administradores «são chamados, a título subsidiário, na exacta medida do dano que produziram à Administração Fiscal ao terem impossibilitado, pela sua administração, a realização do pagamento das coimas devidas. A imputação não prescinde, como realçou então o Tribunal, da verificação dos pressupostos gerais, atinentes ao cometimento de um facto ilícito e culposo, bem como ao nexo de causalidade adequada entre a acção e o dano produzido. Esta configuração da responsabilidade prevista nas alíneas a) e b) do artigo 8.º, n.º 1, do RGIT torna inadequada a convocação de qualquer dos parâmetros contidos nos artigos 30.º e 32.º da Constituição. De facto, e independentemente da questão de se determinar, previamente, o âmbito de aplicação das garantias de defesa em processo criminal quando estejam em causa ilícitos contra-ordenacionais, pode-se concluir liminarmente pela inadequação das mesmas enquanto parâmetros de apreciação da questão em apreço, uma vez que a mesma se localiza num outro lugar do sistema, atinente à responsabilidade extracontratual».
Na dimensão processual, considera-se o Tribunal Constitucional que «é indiscutível que o sistema da reversão da execução não se encontra especificamente desenhado para a efectivação da responsabilidade civil subsidiária dos gerentes e administradores das sociedades, sendo o RGIT, aliás, omisso quanto a esta figura. O recurso à mesma em situações desta índole decorrerá da aplicação, ainda que implícita, das previsões da LGT, designadamente dos seus artigos 23.º e 24.º»; mas, «o facto de a reversão não se encontrar especificamente prevista para estas situações de responsabilidade subsidiária pelo não pagamento de coimas ou multas não constitui, em si mesmo, factor de censura constitucional. Com efeito, o que releva, para efeitos da apreciação da questão de constitucionalidade, é determinar se o funcionamento, em concreto, do mecanismo legal (independentemente da sua maior ou menor adequação), é susceptível de ferir os ditames constitucionais. Essencial para que não se verifique qualquer inconstitucionalidade é que em concreto seja acautelada a existência de um processo equitativo e o inerente direito de defesa através do exercício do contraditório».
Ao debruçar-se sobre se no caso concreto em fiscalização foi ou não acautelada uma tramitação processual mínima que salvaguardasse os direitos de defesa e de contraditório dos sujeitos que foram “chamados” ao processo, o qual, se baseava num título de dívida “originário” que não iria sofrer, por via de tal “chamamento”, quaisquer alterações, o Tribunal Constitucional deixou em aberto a questão de saber se as normas da LGT e do CPPT permitem que se use a execução fiscal movida contra a empresa condenada em coimas para se executar também o “quantum” da responsabilidade civil dos gestores que culposamente não providenciaram para que as coimas fossem pagas.
A questão parece estar resolvida actualmente pela norma da alínea c) do artigo 148º do CPPT introduzida pela Lei nº 3-B/2010, ao estabelece que o processo de execução fiscal abrange a cobrança coerciva de «coimas e outras sanções pecuniárias decorrentes da responsabilidade civil determinada nos termos do Regime Geral das Infracções Tributárias».
Mas, dada a ambiguidade da norma, nos acórdãos deste Tribunal de 23/2/2012, rec. nº 01147/09 e de 19/4/2012, rec. nº 01216/09, considerou-se que o aditamento daquela alínea ao artigo 148º não veio alterar o entendimento vertido na jurisprudência anterior, no sentido de que é de afastar a cobrança de dívidas de natureza civil, através de reversão efectuada em processo de execução fiscal, por não estar legalmente prevista a cobrança de dívidas de responsabilidade civil extracontratual emergente de coimas através dessa forma processual.
Antes do aditamento da alínea c) ao artigo 148º do CPPT, apesar da jurisprudência do Tribunal Constitucional, entendia-se que a responsabilidade civil extracontratual emergente de coimas através de processo de execução fiscal não estava prevista no art. 148.º do CPPT. O órgão da execução fiscal apenas tinha legitimidade para promover a execução e a reversão (art. art. 152.º, n.º 1 e 153.º, n.ºs 1 e 2, do CPPT) relativamente às dívidas que se enquadravam naquele artigo e não a quaisquer outras.
Deste modo, defendia-se que apenas as dívidas de coimas podiam ser cobradas em processo de execução fiscal, pois estavam previstas no ar 148.º, n.º 1, alínea b), do CPPT, não havendo obstáculo processual a que pudesse haver reversão, se ela for constitucionalmente admissível; mas relativamente às decorrentes de responsabilidade civil extracontratual considerava-se que não podiam ser cobradas através de processo de execução fiscal e, consequentemente, não podia haver reversão. (cfr. acs. do STA de 1-7-2009, processo n.º 31/08, e de 14-4-2010, processo n.º 64/10).
Após o aditamento, continuou a manter-se a mesma jurisprudência, agora o argumento de que «não é possível perceber o que se quer dizer naquela alínea c) ao fazer-se referência a «coimas e outras sanções pecuniárias decorrentes da responsabilidade civil determinada nos termos do Regime Geral das Infracções Tributárias», pois no RGIT não se prevê qualquer situação em que de responsabilidade civil decorram coimas ou sanções pecuniárias nem é imaginável que de responsabilidade civil possa emergir não um dever de indemnização, mas coimas e sanções acessórias. O que se prevê no art. 8.º, n.º 1, do RGIT, na interpretação adoptada pelo Tribunal Constitucional, é o contrário do que se prevê nesta alínea c) do n.º 1 do art. 148.º do CPPT, isto é, responsabilidade civil decorrente de coimas e sanções pecuniárias e não coimas e sanções pecuniárias decorrentes de responsabilidade civil que é o que se refere naquela alínea c). De qualquer modo, o certo é que nesta alínea c) se prevê que sejam cobradas dívidas de coimas e sanções pecuniárias e não de responsabilidade civil, pelo que se mantém a situação acima referida de inexistência de norma que preveja a cobrança de dívidas de responsabilidade civil através de processo de execução fiscal».
Não há dúvida que, tomada à letra, a nova norma só pode tratar-se de um lapso na forma como foi redigida, uma vez que as coimas e as sanções têm por fonte a responsabilidade penal e não a responsabilidade civil. O que a jurisprudência constitucional dizia à data do aditamento da alínea c) ao artigo 148º, era que não se estava perante uma qualquer forma de transmissão de responsabilidade penal ou tão pouco de transmissão de responsabilidade contra-ordenacional. Como referimos, o que o artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT prevê é uma forma de responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes, que resulta do facto culposo que lhes é imputável de terem gerado uma situação de insuficiência patrimonial da empresa, que tenha sido causadora do não pagamento da multa ou da coima que era devida, ou de não terem procedido a esse pagamento quando a sociedade ou pessoa colectiva foi notificada para esse efeito ainda durante o período de exercício do seu cargo. Por conseguinte, o que está em causa não é a mera transmissão de uma responsabilidade contra-ordenacional que era originariamente imputável à sociedade ou pessoa colectiva, mas antes a imposição de um dever indemnizatório que deriva do facto ilícito e culposo que é praticado pelo administrador ou gerente, e que constitui a causa adequada do dano que resulta, para a Administração Fiscal, da não obtenção da receita em que se traduzia o pagamento da multa ou coima que eram devidas.
Mas o fim visado pelo legislador não pode ser outro que não seja o de incluir no âmbito da execução fiscal essa forma de responsabilidade civil, que decorre dos danos causados ao Fisco pelo não pagamento da coima em que a empresa foi definitivamente condenada. O lapso na redacção da alínea deve-se certamente ao facto do montante indemnizatório corresponder ao valor da multa ou coima não paga. De acordo com os critérios da responsabilidade civil, a coima corresponde à expressão pecuniária do dano que ao lesante cabe reparar, que é necessariamente coincidente com a receita que deixa de ter dado entrada nos cofres da Fazenda Nacional. Daí que a norma, na parte em que se refere a «coimas e «sanções pecuniárias», tenha que ser lida necessariamente como pretendendo referir-se à dívida, calculada por referência ao montante da coima ou multa, que decorre da responsabilidade civil que recai sobre o gestor ou administrador pelo facto de culposamente a não ter pago.
Ora, se o pensamento legislativo subjacente à alínea c) do artigo 148º é o de incluir na execução fiscal a responsabilidade civil do gestor pelo não pagamento das coimas em que a empresa foi condenada, então deve-se proceder a uma interpretação correctiva dessa alínea, de modo a que seja possível alcançar o fim visado.
Feita a devida correcção, e não tendo o legislador declarado que a nova norma tinha carácter interpretativo, nada nos diz que a nova regra veio resolver um problema, e consagrar uma solução, que a jurisprudência, por si só, poderia ter resolvido no mesmo sentido no domínio da legislação anterior. Admite-se que o legislador interveio para resolver uma questão de direito cuja solução era controversa no domínio do CPPT. Mas não se aceita que tenha vindo consagrar uma solução que já era possível ser dada pelo CPPT. Como acima referimos, tal solução não só não resultava expressamente do artigo 148º, como a jurisprudência do STA era toda no sentido da inadmissibilidade do uso do processo de execução fiscal para se cobrar do gestor as coimas aplicadas à empresa. E a jurisprudência do TC nunca chegou a analisar se o incidente de reversão, tal como está configurado na lei, constitui um «processo equitativo» para se efectivar a responsabilidade civil do gestor pelo não pagamento das coimas. Apenas se disse que a ausência de norma a prever a reversão nesse caso não è passível de «censura constitucional», desde que, no caso concreto, tenha sido acautelado o direito de defesa.
Significa isto que, a norma que foi aditada ao artigo 148º do CPPT veio na verdade resolver um problema cuja solução constituída matéria em debate, mas resolveu-o num sentido que o intérprete não estava autorizado a dar-lhe, pelo que, em nosso ver, indiscutivelmente uma norma inovadora.
Sendo uma lei nova, diz a recorrente que, ainda assim, deve ser aplicada aos processos pendentes, porque é uma norma que dispõe directamente sobre o conteúdo de situações jurídicas abstraindo dos factos que lhe deram origem, pelo que, nos termos da 2ª parte do nº 2 do artigo 12º do Código Civil, abrange as relações já constituídas.
A nova norma veio atribuir ao órgão de execução o poder de utilizar a execução fiscal para se efectivar a responsabilidade civil do gestor pelas coimas aplicadas à sociedade no período da sua gerência. Admitindo-se que não há impedimento constitucional a que a reversão seja o mecanismo através do qual se pode operar essa responsabilidade, como se reconheceu no acórdão nº 437/2011, temos então uma situação de superveniência de uma norma na pendência de uma execução já revertida.
À primeira vista, a norma que vem dar poderes executivos a um órgão que não os tinha, deveria aplicar-se imediatamente aos processos já instaurados. Uma solução que poderia resultar do princípio da aplicação imediata das leis processuais aos processos pendentes no momento em que elas entram em vigor ou, tratando-se de norma substantiva, da regra da aplicação imediata do ius superveniens aos processos em curso, tal como se prevê no nº 2 do artigo 663º do CPC.
Mas, neste caso, o problema da relevância da superveniência de normas jurídicas, tem que ser analisado no plano substantivo e não num plano estritamente processual. A acção de oposição à execução fiscal, em que a causa de pedir é constituída por ilegalidades imputadas ao acto de reversão, é uma acção de natureza impugnatória, cuja questão central, como se sabe, é a validade daquele acto. Ora, tratando-se de um processo de impugnação de acto administrativo, pois a reversão tem essa natureza, aquela questão só pode ser apreciada e resolvida por referência às normas vigentes no momento em que a reversão foi praticada. O que releva aqui é o princípio tempus regit actum, um princípio de direito substantivo, segundo o qual a validade dos actos jurídicos deve aferir-se por referência aos factos existentes e às normas vigentes no momento da respectiva produção. Em regra, não se pode atender ao ius superveniens que surge na pendência do processo, porque o que está em causa é a validade de um acto jurídico que deve ser confrontado com o quadro normativo que existia ao tempo em que foi praticado.
E se assim é, tem razão a sentença recorrida quando julgou que a reversão não podia ser utilizada para efectivar a responsabilidade civil da recorrida pelas coimas que não pagou durante o exercício da gerência da devedora originária.
Na verdade, o mecanismo da reversão foi utilizado em data anterior ao aditamento da norma da alínea c) do artigo 148º. Como se vê dos factos assentes, a reversão ocorreu 30/6/2009, numa data em que ainda não havia entrado em vigor a Lei nº 3 -B/2010. E se a efectivação da responsabilidade da gerente por via do mecanismo da reversão no processo de execução fiscal não estava legalmente prevista, então não lhe era exigível que apresentassem a defesa e contraditório no incidente que o órgão de execução fiscal levantou para o efeito. E se isso não lhe era exigível, a continuação da execução sem que efectivamente tivessem exercido a defesa e o contraditório no âmbito de um outro procedimento relativamente às coimas, ou sem que o tivessem efectivamente exercido através do mecanismo do nº 3 do artigo 23º da LGT, o que não se mostra ter ocorrido nos autos, representa uma violação do direito constitucional previsto no nº 10 do artigo 32º da CRP.
Ao permitir a reversão da execução, sem que os recorrentes alguma vez tenham exercido, no âmbito de um processo equitativo, o direito de defesa relativamente às coimas que foram aplicadas à devedora originária, o despacho é ilegal, por violação de um direito fundamental, o que tem como consequência a nulidade (cfr. art. 133º, nº 2, alínea d) do CPA).

4. Pelo exposto, acordam em conceder provimento parcial ao recurso, revogando-se a sentença recorrida na parte relativa à execução das dívidas de imposto e julgando-se a oposição improcedente nessa parte, mantendo-se a sentença na parte restante.
Custas, nesta instância, pela recorrente, na proporção de ½, e na primeira instância, por ambas as partes, em partes iguais.
Lisboa, 11 de Julho de 2012. – Lino Ribeiro (relator) - Casimiro Gonçalves (voto a decisão, no entendimento, quanto à questão atinente à dívida exequenda emergente de coimas aplicadas à Sociedade originariamente executada, de que o aditamento da al. c) ao nº 1 do artº 148º do CPPT, não é aplicável no caso, atenta a data dos factos.) – Ascensão Lopes.