Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0320/23.6BESNT
Data do Acordão:02/28/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:INTIMAÇÃO
DOMICÍLIO FISCAL
CONTRA-ORDENAÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P31960
Nº do Documento:SA2202402280320/23
Recorrente:MINISTÉRIO DAS FINANÇAS
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE CASCAIS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
ACÓRDÃO

1. RELATÓRIO

1.1. O Município de Cascais, notificado do despacho de indeferimento dos pedidos de informação relativa ao domicílio fiscal dos arguidos em processos de contra-ordenação que formulara ao Chefe do Serviço de Finanças de Cascais, interpôs contra o Ministério das Finanças, ao abrigo do preceituado nos artigos 104.º e 105.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, a presente acção de intimação para obtenção da referida informação.

1.2. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, julgando a pretensão integralmente procedente, intimou a Entidade Requerida “a prestar ao Requerente, no prazo de 10 (dez) dias, informação actualizada do domicílio fiscal dos arguidos identificados na alínea a) do probatório”.

1.3. Inconformada, a Entidade Demandada recorre para este Supremo Tribunal Administrativo formulando, nas alegações oportunamente apresentadas, as seguintes conclusões:

«I. Visa o presente recurso reagir contra a douta decisão proferida em 16-08-2023, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, que julgou “(…) julga-se a presente ação procedente e, em consequência, determina-se a intimação da Entidade Requerida a prestar ao Requerente, no prazo de 10 (dez) dias, informação atualizada do domicílio fiscal dos arguidos identificados na alínea a) do probatório.” Salvo o devido respeito, a Douta Sentença, aqui recorrida, errou na interpretação e aplicação das normas legais da matéria de facto fixada nos presentes autos, razão pela qual se pugna presentemente pela sua revogação.

II. A ora Recorrente não se conforma com a Douta Sentença sob recurso, por entender que a mesma enferma do vício de violação de lei, errónea interpretação e aplicação do direito e de erro de julgamento.

III. Entende o Tribunal a quo, inexplicavelmente, e fundamentando contra a legislação aplicável relativa à proteção conferida a dados pessoais e confidencialidade fiscal, “(…) a inexistência de limites, restrições, exceções constitucionais e/ou legais justificativas de recusa da administração em prestar a informação solicitada…”

IV. Julga, no entanto, a Recorrente, que a sentença aqui em recurso, não logrou demonstrar pelos fundamentos em que se sustentou pela legalidade da decisão.

V. Uma vez que não resulta dos factos dados como provados, designadamente que a matéria em causa reporta a tributos, o Tribunal a quo ao concluir e decidir como decidiu, afastou-se de um critério lógico e razoável assente nos factos provados e aferiu da juridicidade dos atos de forma genérica, recorrendo à analogia, o que não lhe era permitido.

VI. O Tribunal a quo não efetua esta ponderação, tanto mais que o artigo 64.º n.º 2, al. b) da Lei Geral Tributária prevê a cessação do dever de sigilo na cooperação legal da administração tributária com outras entidades públicas, na medida dos seus poderes, significando que deve existir norma expressa que permita a essas entidades o acesso à informação protegida pelo dever de sigilo.

VII. Ou seja, face à factualidade apurada, o Tribunal a quo só poderia ter concluído pela inexistência de norma que conjugada com o artigo 64.º, n.º 2, al. b), da LGT, permitisse a Autora de aceder a dados pessoais de terceiros à guarda da Recorrente.

VIII. De facto, uma das situações previstas para a derrogação do dever de sigilo para os Municípios está contida no artigo 215.º, n.º 5 e 236.º, n.º 3, ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e artigo 7.º do DL 433/99, tudo no âmbito de processos executivos.

IX. A Recorrida não trouxe para os autos, qualquer prova ou justificação razoável e objetiva que legitime o acesso a dados protegidos pelo dever de sigilo, e dada a debilidade dos argumentos que sustentam a douta decisão do Tribunal a quo, mais se dirá que o Regime Geral de Contraordenações (DL n.º 433/82, de 27 de outubro) é uma norma geral de auxílio e colaboração entre entidades públicas, não atribuindo ao Município o direito de acesso a dados pessoais à guarda da AT ou de qualquer outra entidade pública.

X. Rejeita a Recorrente a interpretação dimanada pela sentença em recurso que defendeu que o n.º 3 do art.º 54.º do RGCO “…. É aquela a norma habilitante que, considerando que a entidade requerente prossegue atribuições que pressupõem o conhecimento dos dados, especificamente prevê o acesso àquele dado pessoal, a qual é, por isso, apta a afastar o dever de confidencialidade, nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º 2 do art.º 64.º da LGT.”

XI. Para alcançar a informação pretendida através da base de dados da AT, deverá a entidade administrativa efetuar protocolo conforme obriga a Lei de Proteção dos Dados Pessoais (lei 58/2019, de 8 de agosto).

XII. Não existe base legal específica para aceder à informação à guarda da AT, designadamente, para acesso ao dado domicílio com a finalidade de instrução de processos de contraordenação, estabelecendo as normas habilitantes para a cessação do dever de segredo, a aplicação exclusiva no âmbito patrimonial e executivo, em sede de tributos.

XIII. Foi afirmado no Acórdão do STA n.º 0108/20.6BEFUN, de 23-06-2021: “A questão que se coloca é, então, a de saber se deve considerar-se constitucionalmente excessiva a instituição, pelo legislador ordinário, de um dever de segredo que possa opor-se a uma instituição pública titular de um interesse objetivamente legítimo como o da Recorrente. Entendemos que não.”

XIV. Reitera-se o dimanado no Acórdão supra referido:

“Sendo a Autoridade Tributária, para o efeito, uma entidade responsável pelo tratamento de dados pessoais, o dispositivo também é aplicável às relações entre aquela entidade e outras entidades públicas. Pelo que o protocolo de cooperação é um mecanismo adequado a fazer cessar o dever de sigilo para os efeitos previstos na alínea b) do n.º 2 do artigo 64.º, mesmo no quadro de uma interpretação estrita do preceito.

Existindo um mecanismo previsto na lei que assegura a harmonização dos valores e interesses em conflito, não pode concluir-se que a lei é demasiado restritiva ou desproporcionada”., defendendo “… esses instrumentos já existem: são os protocolos de cooperação.”

XV. A consulta e transmissão de dado pessoal em resposta a pedido de entidade externa à AT, configura tratamento de dados, não bastando haver legitimidade para a realização de um tratamento para que seja justificação suficiente para a sua execução, devendo o tratamento ser justificado dentro dos pressupostos conferidos por lei.

XVI. No caso vertente, servindo os dados relativos à identificação e ao domicílio recolhidos pela AT estritos fins tributários, não se verifica uma real conexão entre a finalidade da recolha do dado domicílio e a finalidade do acesso para instrução de processos de contraordenação.

XVII. Impõe o artigo 64.º, n.º 2, al. b) da LGT, uma norma específica que derrogue o dever de sigilo fiscal entendendo a Recorrente que a norma contida no RGCO não é a norma própria por constituir uma norma geral que atribui um dever geral de auxílio entre entidades públicas.

XVIII. O entendimento dimanado pela sentença ora em recurso contraria o entendimento jurisprudencial no que respeita ao acesso a dados protegidos, violando o previsto no artigo 64.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, a Lei 68/2019 de 8 de agosto, o proclamado no Regulamento Geral de Proteção de Dados e ainda os artigos 26.º, 35.º e 266.º da Constituição da República Portuguesa.

1.4. Admitido o recurso e notificado o Município de Cascais, foram por este apresentadas contra-alegações, encerradas nos seguintes termos:

«1. O Recorrente fundamenta o seu recurso em vício de violação de lei, por errónea interpretação e aplicação do direito e em erro de julgamento, mas salvo o devido respeito não logrou demonstrar a verificação dos mesmos, designadamente provar que a recusa de prestação de informação é legítima.

2. O Tribunal a quo decidiu acertadamente pela procedência do pedido apresentado pelo Recorrido para obtenção de informação relativa ao domicílio fiscal dos arguidos nos respetivos processos de contraordenação, em razão de existir norma específica que legitima a derrogação do sigilo fiscal ao abrigo do dever legal de cooperação legal da AT com outras entidades públicas previsto no artigo 64° n.º 2 al. b) da LGT e dos pedidos se encontrarem fundamentados no âmbito dos seus poderes de autoridade administrativa ao abrigo do disposto nos artigos 41° n.º 2 e 54° n.º 3 do RGCO.

3. O enquadramento legal subjacente aos pedidos de informação resulta do poder conferidos às autarquias locais para instruir e decidir sobre matéria contraordenacional nos termos do disposto no artigo 35° n.º 2 alínea n) do RJAL e do disposto nos artigos 33°, 34°, 41° n.º 2, 47°, 50° e 54° n.º 3 do RGCO.

4. A douta sentença seguiu de perto a fundamentação constante da recente jurisprudência proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, designadamente a decisão proferida no âmbito do processo n.º 1085/22.4BESNT, que foi confirmada pelo Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 20.04.2023.

5. Como resulta da sentença recorrida, e em nosso entender bem, resulta provado que o Requerente prossegue atribuições que pressupõem o conhecimento do dado relativo à morada dos arguidos contra quem instauraram processo de contraordenação, na sua fase administrativa, (fls. 16 e 17 da sentença recorrida).

6. Bem andou o Tribunal a quo ao considerar que "Na fase de iniciativa e instrução do processo de contraordenação, as autoridades administrativas poderão solicitar auxílio de outras entidades ou serviços públicos e que a norma habilitante é o artigo 54 n.º 3 do RGCO (...) É aquela norma habilitante que, considerando que a entidade requerente prossegue atribuições que pressupõem o conhecimento dos dados, especificamente prevê o acesso àquele dado pessoal, a qual é, por isso, apta a afastar o dever de confidencialidade, nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º 2 do art° 64° da LGT. Assim sendo, o dever de legal de cooperação entre a AT e o Requerente no que toca à informação relativa ao domicílio fiscal dos arguidos tem de cessar, quanto a esse dado, o dever de sigilo fiscal, na medida estritamente necessária para alcançar os objetivos visados com a norma que autoriza o acesso e impõe o dever de cooperação, tendo sempre em atenção a ponderação dos interesses em jogo." (fls. 17 e 18 da sentença recorrida)

7. Resulta provado nos autos que o Recorrido fundamentou os seus pedidos de informação no âmbito dos seus poderes de autoridade administrativa ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 41°, no nº 3 do artigo 54° do RGCO e artigo 64° da LGT, não se apresentando como um mero ente administrativo que necessita de informação para prosseguir as suas atribuições e que, como tal, solicita a colaboração da Autoridade Tributária.

8. Na verdade, de pouco serviria ao recorrido a atribuição de competência específica para conduzir a fase administrativa dos processos de contraordenação, se depois estivesse impedido de levar a cabo as diligências necessárias para o efeito, sem dar oportunidade de defesa ao arguido nos processos.

9. Ao contrário do que insiste em defender o Recorrente, ficou demonstrado que no RGCO existe norma habilitante que confere poderes às autarquias locais para solicitar auxílio a outras entidades e serviços.

10. Resulta de forma expressa na lei, que, no âmbito dos processos de contraordenação, a câmara municipal tem os mesmos direitos que as entidades competentes para o processo criminal e que ao abrigo do dever de auxílio no âmbito da instrução, poderá a autoridade administrativa solicitar informação sobre o domicílio atualizado dos arguidos à AT. na medida dos seus poderes.

11. O dever, obrigação de colaboração encontra a sua razão de ser no estatuto processual das entidades administrativas.

12. Não se compreende o argumento da necessidade de celebração de um protocolo quando, na verdade, os seus pedidos de informação se encontram limitados aos poderes enquanto autoridade administrativa que deve levar a cabo a instrução dos processos com respeito por todas as garantias que a lei confere aos arguidos.

13. Não se vislumbrando qualquer necessidade de assegurar padrões de tratamento da informação transmitida face ao tipo de informação solicitada - domicílio fiscal dos arguidos - na medida em que o dever de confidencialidade se mantém assegurado pela sua extensão a quem a obtenha.

14. O sigilo fiscal previsto no n.º 1 do artigo 64° da LGT, enquanto expressão do direito à privacidade dos contribuintes, não é absoluto e deve ser derrogado como resposta a outros bens jurídicos igualmente relevantes, na medida necessária para satisfazer o equilíbrio dos interesses em jogo. Veja-se a este propósito o sumário do Acórdão do STA de 16.11.2011, proferido no processo n.º 0838/11.

15. No âmbito da instrução dos processos de contraordenação a manutenção do sigilo pela AT revela-se contrária aos interesses e direitos dos arguidos, impedindo-os de exercerem os seus direitos constitucionais conforme previsto nos artigos 268°, 32° n.º 2 e 18° da CRP.

16. Os elementos protegidos pelo segredo fiscal devem ser cedidos na medida do estritamente necessário, por forma a assegurar os direitos fundamentais dos arguidos e atendendo ao interesse público subjacente aos processos de contraordenação.

17. O Município não peticiona um acesso direto e geral à base de dados da Autoridade Tributária e Aduaneira, limitando-se a solicitar informação específica e limitada à instrução dos processos de contraordenação, fundamentado o seu pedido nos poderes e atribuições que a Lei lhe confere e de forma a salvaguardar os interesses dos arguidos.

18. Para além da existência de norma habilitante, também resulta provado nos autos que os pedidos contêm o fim a que se destina a informação e se limitam ao estritamente necessário para o prosseguimento dos autos, revelando-se o meio adequado e necessário para a sua obtenção.

19. Presentemente, a AT faz uso da sua base de dados quando procede à instrução dos processos de execução de coimas aplicadas pelas câmaras municipais (quando estas não são pagas voluntariamente, nem são objeto de impugnação).

20. Pelo que, mais uma vez, bem andou o Tribunal a quo ao entender que os arguidos dos processos de contraordenação da competência do Requerente não merecem maior, nem menor proteção que os arguidos dos processos de contraordenação instaurados pela AT "para que não se criem entropias no sistema", (a fls. 18 da sentença recorrida).

21. É inequívoca a legitimidade do ora recorrido bem como o seu interesse legítimo qualificado, decorrente das suas atribuições e competências, não podendo este direito ser ilegalmente limitado nos termos pretendidos pelo Recorrente.

22. Em conclusão, no âmbito da instrução dos processos de contraordenação, a informação solicitada pelo Recorrido deve ser prestada em cumprimento da Lei, em que está expressamente consagrado um dever de auxílio, sendo certo que o dever de sigilo se comunica a quem obtenha os elementos protegidos pelo referido dever conforme resulta do n.º 3 do artigo 54° da LGT.

23. Razões pelas quais bem andou o Tribunal a quo ao decidir pela procedência da ação de intimação, devendo manter-se na íntegra a decisão recorrida, com as legais consequências.

1.5. A Excelentíssima Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no qual, após incursão sobre o quadro legal pertinente, conclui que a sentença recorrida merece ser confirmada.

1.6. Sem vistos, atenta a natureza urgente do processo, submetem-se agora os autos à Conferência para julgamento.

2. OBJECTO DO RECURSO

2.1 Como é sabido, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva oficiosamente conhecer, o âmbito de intervenção do tribunal de recurso é determinado pelo teor das conclusões com que a Recorrente finaliza as suas alegações [artigo 635.º do Código de Processo Civil (CPC)].

Essa delimitação do objecto do recurso jurisdicional, numa vertente negativa, permite concluir se o recurso abrange tudo o que na sentença foi desfavorável ao Recorrente ou se este, expressa ou tacitamente, se conformou com parte da decisão de mérito proferida quanto a questões por si suscitadas, desta forma impedindo que essas questões voltem a ser reapreciadas pelo Tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 3 e 4 do CPC). Numa vertente positiva, a delimitação do objecto do recurso, especialmente nas situações de recurso directo para o Supremo Tribunal Administrativo, como é o caso, constitui ainda o suporte necessário à fixação da sua própria competência, nos termos em que esta surge definida nos artigos 26.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e 280.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

2.2. No caso concreto, tendo por referência o que ficou dito, a questão a decidir é apenas uma: saber se a sentença recorrida errou ao julgar - com fundamento nos artigos 35.º, n.º 2, alínea n) do RJAL, 33°, 34°, 41° n.º 2, 47°, 50° e 54° n.º 3 do RGCO e 18.º, 32.º e 268.º da CRP - que o Município de Cascais tem direito a que lhe seja prestada informação relativa ao domicílio fiscal dos arguidos em processo de contra-ordenação, que identificou, para instruir os processos dessa natureza que se encontram contra eles instaurados nos seus serviços.

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Fundamentação de facto

O Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra julgou provados os seguintes factos

a) Através de ofícios, dirigidos ao Exmo. Senhor Chefe do Serviço de Finanças de Cascais 1, com o assunto «Pedido de informação», a Exma. Senhora Directora do Departamento de Assuntos Jurídicos da Câmara Municipal de Cascais requereu, ao abrigo dos art.º 33.º, n.º 1 do art.º 34.º, n.º 2 do art.º 41.º, n.º 3 do art.º 54.º, todos do RGCO e da alínea n) do n.º 2 do art.º 35.º do RJAL, informações relativas aos domicílios fiscais de arguidos em processos de contraordenação, que identificou da seguinte forma:

1. AA, com o número de identificação fiscal ...17, arguido no processo de contraordenação n.º ...22;

2. BB, com o número de identificação fiscal ...63, arguido no processo de contraordenação n.º ...21;

3. CC, com o número de identificação fiscal ...22, arguido no processo de contraordenação n.º ...20;

4. DD, com o número de identificação fiscal ...87, arguido no processo de contraordenação n.º ...21;

5. EE, com o número de identificação fiscal ...61, arguido no processo de contraordenação n.º ...21;

6. FF, com o número de identificação fiscal ...93, arguido no processo de contraordenação n.º ...21;

7. GG, com o número de identificação fiscal ...28, arguido no processo de contraordenação n.º ...21;

8. HH, com o número de identificação fiscal ...89, arguido no processo de contraordenação n.º ...21;

9. II, com o número de identificação fiscal ...66, arguido no processo de contraordenação n.º ...21;

10. JJ, com o número de identificação fiscal ...62, arguido no processo de contraordenação n.º ...19;

11. KK, com o número de identificação fiscal ...23, arguida no processo de contraordenação n.º ...19;

12. LL, com o número de identificação fiscal ...25, arguido no processo de contraordenação n.º ...19;

13. MM, com o número de identificação fiscal ...62, arguida no processo de contraordenação n.º ...19;

14. NN, com o número de identificação fiscal ...39, arguido no processo de contraordenação n.º ...20;

15. OO, com o número de identificação fiscal ...83, arguido no processo de contraordenação n.º ...19;

16. PP, com o número de identificação fiscal ...04, arguida no processo de contraordenação n.º ...20;

17. QQ, com o número de identificação fiscal ...76, arguido no processo de contraordenação n.º ...20;

18. RR, com o número de identificação fiscal ...44, arguido no processo de contraordenação n.º ...20;

19. SS, com o número de identificação fiscal ...62, arguida no processo de contraordenação n.º ...21;

20. TT, arguido no processo de contraordenação n.º ...21;

21. UU, com o número de identificação fiscal ...07, arguido no processo de contraordenação n.º ...22;

22. VV, com o número de identificação fiscal ...74, arguida no processo de contraordenação n.º ...22 (provado pelos documento n.ºs 1 a 22, juntos à petição inicial).

b) Através dos ofícios de 20-02-2023, de 24-02-2023 e de 13-03-2023 do Serviço de Finanças de Cascais 1, o Requerente foi notificado dos despachos, proferidos pela Exma. Senhora Chefe de Finanças Adjunta, no sentido do indeferimento dos pedidos de informação sobre o domicílio fiscal dos arguidos melhor identificados na alínea anterior (provado pelos documento n.ºs 22 a 25, junto à petição inicial).

3.2. Fundamentação de direito

3.2.1. Dos pontos que antecedem resulta já claro o contexto em que surge o dissídio que ora nos cumpre decidir, os factos que foram julgados pertinentes para os decidir, o julgamento realizado e os fundamentos que determinam a Recorrente a discordar deste julgamento.

3.2.2. Sintetizando. O Município, alegando que lhe compete instaurar processos de contra-ordenação e aplicar as respectivas coimas, solicitou à Administração Tributária, no âmbito desses procedimentos, informação sobre o domicílio fiscal dos arguidos tendo em vista notificá-los para exercerem os direitos que o ordenamento jurídico lhes reconhece, particularmente de exercerem o direito de defesa que constitucionalmente lhes está reconhecido.

3.2.3. Invocou, para legitimar substantivamente a sua pretensão, a imposição legal, nos termos do artigo 64.º, n.º 2 al. b) da LGT, de cessação do dever de sigilo nas situações em que outras entidades públicas, no exercício das competências que legalmente lhe estão atribuídas, necessitam de aceder a dados submetidos em regra ao dever de sigilo; que existe um especial dever de cooperação ou auxilio precisamente tendo em vista a efectividade do exercício das competências que legalmente lhe estão cometidas, como é o caso, conforme resulta do preceituado, conjugada e designadamente, nos artigos nos artigos 35.º, n.º 2 alínea n) do RJAL, 33°, 34°, 41° n.º 2, 47°, 50° e 54° n.º 3 do RGCO e 64° n.º 2 al. b) da LGT; que tais pedidos foram oportuna e devidamente fundamentados nos requerimentos que apresentou à Administração Tributária, sublinhando o âmbito dos poderes de autoridade administrativa que lhe estão cometidos e o regime consagrado nos artigos 41° n.º 2 e 54° n.º 3 do RGCO.

3.2.4. Tudo, pois, para concluir que nestas circunstâncias, é inexigível a existência ou celebração de qualquer protocolo por o direito à informação solicitado estar, no caso concreto, lealmente reconhecido e dele resultar a cessação do dever de sigilo fiscal.

3.2.5. A Entidade Demandada, por seu turno, entende que a satisfação da prestação da referida informação seria ilegal. Por um lado, porque não existe norma legal capaz de legitimar a transmissão desses dados, não constituindo o conjunto normativo invocado pela Requerente, particularmente o artigo 54.º, n.º 3 do RGOC, suporte bastante para que deva entender que cessa o dever de sigilo por parte da Administração Tributária. Por outro, porque entre o Ministério das Finanças e o Município de Cascais não foi celebrado qualquer protocolo a regulamentar as condições em que essa partilha de dados fiscais se pode ou deve efectivar.

3.2.6. Em suma, para a Recorrente a prestação da informação solicitada pressupõe a existência de uma norma expressa que permita ao Município aceder a dados pessoais de terceiros à guarda da Recorrente. Não existindo essa norma, só o protocolo de cooperação constituiria o mecanismo adequado a fazer cessar o dever de sigilo para os efeitos previstos na alínea b) do nº 2 do artigo 64º da LGT. Não existindo norma especial nem protocolo não estão verificados os pressupostos de derrogação do dever de sigilo e, consequentemente, está-lhe legalmente vedada a partilha pretendida, devendo, em conformidade, a sentença ser revogada.

3.2.7. Vejamos, então, sublinhando que, embora a formulação da questão a decidir não seja difícil, é complexa a apreciação que ela convoca, atentos os múltiplos normativos e institutos a conjugar.

3.2.8. Começamos, por isso, por salientar os aspectos em que, independentemente do sentido da decisão, todos os intervenientes processuais (e neste e noutros processos em que a mesma questão se coloca ou colocou) estão de acordo: o direito à informação, em que a pretensão da Recorrida se traduz, constitui um direito constitucional fundamental, de natureza análoga a direitos, liberdades e garantias, que se encontra expressamente consagrado no artigo 268.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e este direito à informação, por estar constitucionalmente consagrado, só pode ser restringido ou comprimido por lei nos casos expressamente previstos na Constituição e para salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, nomeadamente os que tenham subjacentes matérias relativas a segredo de Estado, conexas com a protecção de propriedade intelectual ou industrial, sigilo fiscal ou outras (artigos 17.° e 18.º n.º 2 da CRP).

3.2.9. As partes também não discutem que, não sendo o direito dos interessados à informação absoluto, e constituindo o direito à intimidade da vida privada um direito constitucionalmente tutelado (artigo 26.º da CRP), se justifica a imposição ou exigência de um correspondente dever de sigilo imposto à Autoridade Tributária quanto aos dados elevados por lei à condição de dados pessoais tendo em vista impedir o acesso e uma potencial divulgação incontrolada desses dados da vida privada a estranhos.

3.2.10. E também não discutem, ou, no mínimo, implicitamente aceitam, que é neste contexto de ponderação de direitos fundamentais que se integram o sigilo profissional, bancário e fiscal, enquanto mecanismos criados pelo legislador tendo em vista restringir o acesso e controlar as entidades, tipo de informação e modo admissível de transmissão de dados pessoais.

3.2.11. Em suma, as partes concordam que não sendo nenhum dos direitos fundamentais em confronto direitos absolutos, o âmbito de protecção do direito à vida privada pode ser objecto de “compressão”, designadamente quando o acesso a informações protegidas pelo dever de sigilo imposto à Administração Tributária em matéria de dados elevados por lei à condição de “dados pessoais", se revele imprescindível para a realização de outros valores fundamentais ou prossecução do interesse público, desde que essa derrogação do dever de sigilo esteja legalmente prevista. Isto é, desde que a lei reconheça que deve ser admitido o acesso a esses dados e que com tal obtenção se tenha em vista salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

3.2.12. É esta, de resto, a interpretação que este Supremo Tribunal Administrativo já perfilhou em situação similar: «perante a necessidade de conciliar o princípio da administração pública aberta e da cooperação institucional pública (resultante de uma administração pública regida por coordenadas de legalidade e transparência na prossecução do interesse público) com o direito constitucional à privacidade e sequente caráter sigiloso de certos dados, os conflitos que surjam entre o direito à informação em poder da Administração e o direito dos administrados à privacidade terão de ser analisados à luz das disposições que regulam o acesso à informação e das disposições que restringem esse acesso, numa equilibrada ponderação dos interesses em jogo», correspondendo «a consagração da regra do sigilo fiscal (…), precisamente, à extensão e reconhecimento do direito à privacidade no âmbito da actividade tributária, enquanto direito fundamental constitucionalmente consagrado, que privilegia a tutela da intimidade privada dos contribuintes e que se traduz num impedimento quer ao acesso a estranhos quer à divulgação de informações disponíveis acerca da vida pessoal e privada dos contribuintes».

3.2.13. Quanto ao reconhecimento do direito à privacidade no âmbito da actividade tributária, que constitui a questão que ora nos ocupa, assume relevo fundamental a regra do sigilo fiscal consagrada no artigo 64.º da Lei Geral Tributária (LGT), norma que concretiza a opção do legislador ordinário, por recurso ao princípio da proporcionalidade (que o legislador constitucional impõe que deve presidir na resolução das situações em que há conflito de direitos fundamentais, nos termos do artigo 18.º da CRP), de compatibilizar o direito constitucional de protecção da vida privada e o dever de salvaguarda de outros direitos e interesses públicos com igual dignidade constitucional.

3.2.14. Neste normativo ou regulamentação, que tem por epígrafe «Confidencialidade», estão consagradas uma regra e um conjunto de excepções que importa analisar com acuidade.

A regra é a do dever geral de sigilo: «Os dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária estão obrigados a guardar sigilo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado» (n.º 1).

As excepções - situações em que esse dever de sigilo cessa - são as que estão enunciadas nas várias alíneas do n.º 2 e nos demais números do mesmo artigo 64.º da LGT, salientando-se, por mais pertinentes para a questão a decidir e para esclarecimento dos argumentos que nuclearmente nortearão a nossa decisão, as seguintes:

«2 - O dever de sigilo cessa em caso de:

a) Autorização do contribuinte para a revelação da sua situação tributária;

b) Cooperação legal da administração tributária com outras entidades públicas, na medida dos seus poderes;

c) Assistência mútua e cooperação da administração tributária com as administrações tributárias de outros países resultante de convenções internacionais a que o Estado Português esteja vinculado, sempre que estiver prevista reciprocidade;

d) Colaboração com a justiça nos termos do Código de Processo Civil e mediante despacho de uma autoridade judiciária, no âmbito do Código de Processo Penal;

(…)

3 - O dever de confidencialidade comunica-se a quem quer que, ao abrigo do número anterior, obtenha elementos protegidos pelo segredo fiscal, nos mesmos termos do sigilo da administração tributária.

4 - O dever de confidencialidade não prejudica o acesso do sujeito passivo aos dados sobre a situação tributária de outros sujeitos passivos que sejam comprovadamente necessários à fundamentação da reclamação, recurso ou impugnação judicial, desde que expurgados de quaisquer elementos susceptíveis de identificar a pessoa ou pessoas a que dizem respeito.

5 - Não contende com o dever de confidencialidade:

(…)

7 - Para efeitos do disposto na alínea d) do n.º 2, e com vista à realização das finalidades dos processos judiciais, incluindo as dos inquéritos em processo penal, as autoridades judiciárias acedem diretamente às bases de dados da Autoridade Tributária e Aduaneira.

8 - A concretização do acesso referido no número anterior é disciplinada por protocolo a celebrar entre o Conselho Superior da Magistratura, a Procuradoria-Geral da República e a Autoridade Tributária e Aduaneira.

3.2.15. Resulta deste normativo, se bem o interpretamos, que o legislador ordinário, consciente da natureza fundamental do direito à tutela da vida privada constitucionalmente consagrado, optou por disciplinar de forma especial os termos e condições em que esse direito deve ser salvaguardado e de consagrar, de forma assaz detalhada, os termos e condições em que, atento outros valores e princípios de igual dignidade constitucional, estes direito de privacidade dos contribuintes pode ser comprimido ou derrogado, isto é, as situações em que, verificadas que sejam, passa a ser permitido a terceiros o acesso a informações disponíveis no sistema da Autoridade Tributária da vida pessoal ou privada dos contribuintes.

3.2.16. Como vimos já, a questão, no caso, é a de saber em que termos deve ser interpretado o n.º 2 al. b) do artigo 64.º da LGT na parte em que dispõe que o dever de sigilo cessa nas situações em que exista cooperação legal da Administração Tributária com outras entidades públicas, na medida dos seus poderes.

3.2.17. Ora, sobre esta questão concreta, nos precisos termos de facto apurados e tendo por referência idênticos argumentos e fundamentos jurídicos invocados quer nas alegações de recurso quer nas contra-alegações já este Supremo Tribunal Administrativo se pronunciou recentemente, por dois acórdãos proferidos a 13-12-2023 (processos n.ºs 180/23.7BESNT e 780/23.5BESNT) e por acórdão hoje julgado por esta conferência (processo n.º 1083/23.0BESNT), no sentido de revogar as sentenças recorridas e julgar procedente o recurso jurisdicional.

3.2.18. Assim, nos termos e ao abrigo do artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil, acolhemos neste julgamento o que nos referidos arestos ficou decidido, para os quais remetemos, dispensando-se a junção aos autos desses acórdãos uma vez que os dois primeiros se encontram já integralmente disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.

3.2.19. E, assim sendo, há que julgar procedente o recurso jurisdicional e revogar a sentença recorrida, o que, a final, se decidirá.

3.3. As custas serão suportadas pelo Recorrido, integralmente vencido na acção, nos termos do artigo 527.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil.

4. DECISÃO

Termos em que, acordam os Juízes que integram a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, concedendo provimento ao recurso jurisdicional, revogar a sentença recorrida e julgar a intimação improcedente.

Custas pela Recorrida

Registe e notifique.

Lisboa, 28 de Fevereiro de 2024. - Anabela Ferreira Alves e Russo (relatora) – Joaquim Manuel Charneca Condesso – Aníbal Augusto Ruivo Ferraz.