Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0680/07.6BEPRT
Data do Acordão:01/13/2022
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ADRIANO CUNHA
Descritores:AUTARQUIA LOCAL
FREGUESIA
LIMITES DE CIRCUNSCRIÇÃO ADMINISTRATIVA
DEMARCAÇÃO
Sumário:Não pode proceder uma ação proposta por uma freguesia reivindicando a pertença à sua área de uma certa parcela territorial se a lei mais recente detetada sobre a matéria determinou que essa parcela passasse a integrar a área territorial de outra freguesia que não a Autora.
Nº Convencional:JSTA00071361
Nº do Documento:SA1202201130680/07
Data de Entrada:11/09/2020
Recorrente:FREGUESIA DE BEIRIZ
Recorrido 1:FREGUESIA DA PÓVOA DE VARZIM E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Legislação Nacional:LEI n.º 1031, de 23/08/1922
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – RELATÓRIO

1. A “Freguesia de Beiriz” (atual “União das Freguesias da Póvoa de Varzim, Beiriz e Argivai”), interpôs o presente recurso de revista do Ac.TCAN de 13/12/2019 que, concedendo provimento ao recurso de apelação da sentença do TAF/Porto, de 2/7/2013, (que havia julgado procedente a ação administrativa comum, sob a forma ordinária, intentada pela ora Recorrente contra os Réus “Município da Póvoa de Varzim”, “Freguesia da Póvoa de Varzim”, “Freguesia de Amorim”, e “Freguesia de Aver-o-Mar” -, estas duas últimas atual “União de Freguesias de Aver-o-Mar, Amorim e Terroso”), revogou a sentença de 1ª instância e julgou a ação improcedente.

2. Através da interposição da presente ação, a Autora, ora Recorrente, pediu a condenação dos Réus a:
- reconhecer que os limites atuais da freguesia de Beiriz, do concelho da Póvoa de Varzim, são os exatos limites definidos no Tombo de 1786, procedendo-se à definição e concretização material desses limites atuais conforme mapa junto como doc. n° 4;
- (as 2ª, 3ª e 4ª Rés) a deixar de exercer quaisquer poderes sobre o espaço situado no interior desses limites e sobre as pessoas que nele residem; e, para além disso,
- ser ordenado ainda ao Município da Póvoa de Varzim, através da Câmara Municipal, o envio de todos os elementos documentais e cartográficos necessários para que o Instituto Geográfico Português efetue, em conformidade com os referidos limites territoriais, as necessárias alterações na carta geográfica e administrativa do concelho da Póvoa de Varzim, tudo com as demais consequências legais.

3. Após contestação conjunta apresentada pelas Freguesias 2ª, 3ª e 4ª Rés (o 1º Réu, Município, não contestou); do proferimento de despacho saneador que julgou improcedente a invocada exceção da ilegitimidade passiva do co-Réu Município da Póvoa de Varzim, deu matéria de facto como assente e elaborou a base instrutória; da realização de perícia colegial e solicitação de esclarecimentos, que foram prestados; e da realização de audiência de julgamento e resposta a matéria de facto,
o TAF/Porto, por sentença de 2/7/2013 (cfr. fls. 1591 e segs. SITAF), julgou a ação procedente, condenando os Réus tal como peticionado pela Autora.

4. Inconformadas com esta sentença, as 2ª, 3ª e 4ª Rés interpuseram, da mesma, recurso de apelação para o TCAN, o qual, por Acórdão, ora recorrido, de 13/12/2019 (cfr. fls. 1774 e segs. SITAF), lhe concedeu provimento, revogando a sentença de 1ª instância e julgando a ação improcedente.

5. Agora inconformada com este julgamento do TCAN, veio a Autora interpor o presente recurso de revista para este Supremo Tribunal Administrativo, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (cfr. fls. 1837 e segs. SITAF):

«Quanto à admissibilidade do recurso
1ª. Do pedido formulado nesta acção pela Autora e da matéria factual alegada que lhe deu causa, bem como das posições manifestadas pelas Rés, resulta manifesta a relevância e repercussão social da questão suscitada e da decisão de mérito do litígio aqui em causa, onde estão em confronto os interesses de quatro freguesias e ainda do Município da Póvoa de Varzim, no que respeita aos limites territoriais da freguesia Autora, bem como dos muitos milhares de residentes que integram a população das respectivas autarquias, de onde resulta a fundamental importância da intervenção jurisdicional para a definitiva clarificação do Direito na controvertida questão que foi objecto de duas decisões de mérito, opostas entre si.
2ª. As alterações aos limites da freguesia Autora por parte do Município da Póvoa de Varzim não são consentâneas com a importância que a questão merece e efectivamente tem também em termos culturais, tanto mais que a Autora freguesia de Beiriz é a única que mantém nos seus limites territoriais a existência da parcela de terreno que liga o centro da freguesia ao mar, testemunho marcante da história do concelho.
3ª. Em termos de administração do território, quer relativamente à contribuição especial (criada pelo Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 Março), quer para a Administração Fiscal, é pacífica a existência da dominialidade dos prédios situados nessa faixa de terreno que vai até ao mar como integrados no território da Autora freguesia de Beiriz.
4ª. A alteração dos limites da freguesia Autora, levada a cabo à revelia dos critérios legais, tem como consequência a alteração do número de fogos e de residentes na freguesia de Beiriz, com inevitáveis consequências na disponibilização das verbas afectas à freguesia pelo FEF, o que faz com que essa freguesia venha a sofrer, ano após ano, notórios prejuízos em termos de desenvolvimento público, por efeito da diminuição das verbas que lhe deveriam ser afectas com origem no Orçamento do Estado.
5ª. É igualmente inegável a relevância jurídica da questão objecto deste recurso, qual seja, a da declaração da definição dos limites territoriais da Freguesia Autora, uma vez que, atenta a declaração de improcedência da acção em segunda instância, em oposição à sentença de primeira instância, a não ser admitido o recurso ora interposto permanecerá a realidade factual que se mostra provada nos autos, de existirem inúmeros cidadãos e pessoas colectivas com as suas residências e sedes oficiais situadas numa concreta freguesia, mas cujo território geográfico correspondente é tido como integrante da área de outras freguesias.
6ª. Sendo pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que a criação, extinção e alteração dos limites territoriais das autarquias locais é efectuada através de lei, bem como de que, em caso de litígio acerca da localização desses limites, a sanação do mesmo por via da demarcação, em concreto, dos limites territoriais das autarquias locais é da competência dos Tribunais Administrativos, torna-se imprescindível o julgamento objectivo de que a Lei nº 1:301, de 10 de Agosto de 1922, que criou a freguesia de A-ver-o-Mar à custa de território que pertencia à freguesia de Amorim, não definiu os seus limites territoriais, nem a mesma lei implicou a alteração dos limites territoriais da freguesia de Beiriz, definidos legalmente pelo Tombo da Freguesia de Beiriz de 1786, realizado por ordem emanada de Decreto Régio.
7ª. Está suficientemente demonstrada a relevância jurídica deste recurso, pois que se pretende que, por via do mesmo, se ponha termo ao diferendo sobre a respectiva definição ou delimitação territorial que, se assim não for, permanecerá entre as freguesias que estão em confronto e são partes nestes autos, por via do que, igualmente e em consequência, se alcançará uma melhor aplicação do Direito na questão decidenda, em observância dos princípios e valores da harmonização jurisprudencial e da unidade do sistema jurídico, tornando-se imprescindível a admissão do presente recurso para que seja realizada a uniformização do Direito na matéria tratada pelas instâncias de forma contraditória e, em segunda instância e com a devida vénia, de forma ostensivamente errada e juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil e mesmo necessária a intervenção deste Supremo Tribunal na qualidade de órgão de regulação do sistema jurídico.
Quanto ao objecto do recurso
8ª. O douto acórdão recorrido, ao alterar o sentido decisório proferido em 1ª instância, fundamentalmente com recurso ao argumento de que a Lei nº 1:301, de 10 de Agosto de 1922, que criou a freguesia de Aver-o-Mar, não foi tomada em consideração na douta sentença proferida em primeira instância, incorreu numa errada interpretação de Direito quanto aos factos em apreço, por via de um vício de raciocínio de uma das premissas, que implica que a conclusão jurídica final se mostre assim inquinada, como claramente resulta do teor dos pontos 27.3 a 35 do relatório da douta decisão recorrida.
9ª. A afirmação de que a Lei nº 1:301, de 10 de Agosto de 1922, que criou a freguesia de Aver-o-Mar, também definiu os limites territoriais da referida freguesia é incorrecta, como resulta claro da simples leitura dessa lei, pois que dela consta, no seu artº 1º, ser constituída uma nova freguesia no concelho da Póvoa de Varzim, com sede no lugar de Aver-o-Mar, sendo que no seu artº 2º se discriminam os lugares que a constituem, que serão desanexados da freguesia de Amorim, sem definir nem especificar os limites territoriais dessa nova freguesia, pois que o seu artº 3º refere expressamente que a linha divisória entre a freguesia de Amorim e a freguesia de A-ver-o-Mar “será fixada e demarcada por uma comissão composta de um representante de cada uma dessas freguesias e de um delegado nomeado pela câmara municipal do respectivo concelho.”
10ª. Nenhuma das Rés trouxe aos autos qualquer documento do qual resulte ter essa comissão sido efectivamente criada e constituída nos termos legalmente prescritos, quem terão sido os elementos que a integraram, sob que regras a mesma terá ou não executado tal tarefa demarcadora e definidora dos limites da nova freguesia, se esse trabalho de delimitação foi efectivamente executado e concluído, se foi ou não aprovado e se foi ou não publicitado, o que tudo constitui matéria não provada, pelo que a referida Lei nº 1:301 não passou de uma lei vazia de conteúdo legislativo concreto quanto ao território da freguesia que criou, não podendo a mesma lei ser tomada em consideração ou ter qualquer valor jurídico concreto para pôr em causa ou alterar os limites territoriais definidos para a freguesia de Beiriz pelo Tombo de Beiriz de 1786.
11ª. Do projecto de lei apresentado pelo Dr. ………., que deu origem à Lei 1:301, de 10 de Agosto de 1922, consta a referência expressa a que a futura freguesia de Aver-o-Mar seria demarcada a Sul pelo ... “limite da freguesia de Beiriz, a 400 metros do marco do Graceiro.”, matéria esta alegada pela Autora na sua petição e aceite pelas Rés por via da sua não impugnação especificada, devendo a mesma, por isso, ser considerada para a prolação da decisão de mérito.
12ª. A Lei 1:301, de 10 de Agosto de 1922, não contém qualquer norma nem não faz menção a qualquer acto legislativo que tenha a susceptibilidade de legitimamente produzir alterações nos limites territoriais da Freguesia de Beiriz, não podendo, assim, ser censurada a douta sentença de 1ª instância, que bem andou, aliás, ao não ter tomado em consideração a referida Lei nº 1:301, dada a sua vacuidade legal em termos práticos e topográficos, no que respeita aos limites territoriais da nova freguesia que a mesma constituiu.
13ª. Inexistindo qualquer acto legislativo posterior ao Tombo de Beiriz de 1786, que tivesse implicado a alteração ou interferido com os limites territoriais da freguesia de Beiriz, constituídos e definidos legitimamente por via legal, cuja eficácia, legitimidade e validade legal não foi posta em causa, é errada a conclusão jurídica de que a Lei nº 1:301 tivesse trazido uma definição de concretos limites territoriais que terão sido determinantes da alteração dos limites territoriais definidos pelo Tombo de Beiriz de 1786, pois que nada disso emerge do teor dessa mesma Lei, nem prova alguma sequer existe a respeito da comissão que a mesma ordenou que fosse criada.
14ª. Ao contrário do invocado no douto acórdão recorrido, não há quaisquer dúvidas emergentes dos actos legislativos em causa – o Tombo de Beiriz de 1786 e a Lei nº 1:301 de 10/08/1922 – pois que o primeiro acto legislativo não foi afectado de forma nenhuma pelo segundo, inexistindo, assim, qualquer acto legislativo que tivesse alterado os limites territoriais da freguesia de Beiriz, definidos desde 1786.
15ª. Nada há a censurar na conclusão jurídica da douta sentença de 1ª instância, que decidiu “que os limites territoriais da freguesia de Beiriz correspondem aos limites que foram definidos pelo “Tombo de Beiriz de 1786”, realizado por ordem emanada de Decreto Régio, documento que se encontra no Arquivo Paroquial de Beiriz”, sendo inquestionável que “esse documento constitui o último documento administrativo autêntico com registo e definição dos limites da freguesia de Beiriz, pelo que, tendo em consideração que desde então não ocorreu nenhuma reforma administrativa válida e eficaz, pela qual tenham sido alterados os limites territoriais da freguesia de Beiriz, os seus limites são os que vêm definidos no referido documento.”
16ª. A alegação nos pontos 31 e 32 do relatório do douto acórdão recorrido, de que a criação da freguesia de Aver-o-Mar, através da Lei nº 1:301, foi feita inteiramente por desanexação de lugares que pertenciam à freguesia de Amorim, entre os quais o lugar de Lagoa, por onde, considerando o “Tombo de Beiriz de 1786” se fazia a ligação de Beiriz ao mar, integrando esse território a freguesia de Beiriz, e de que, com base na interpretação desses documentos, não pode afastar-se a hipótese de ter havido uma alteração dos limites da freguesia de Beiriz em consequência da criação da freguesia de Aver-o-Mar ter passado a incluir no território desta o Lugar de Lagoa, constitui, com a devida vénia, um manifesto erro de Direito, decorrente de uma errada interpretação legal e dos próprios documentos.
17ª. Sendo inquestionável que a criação e alteração dos limites das freguesias sempre teria de ocorrer por acto legislativo, não tem qualquer sustentação legal - pois que não existe qualquer texto legal que para tanto tenha sido invocado -, a afirmação de que o “Lugar de Lagoa”, pertencente à freguesia de Beiriz e mencionado no Tombo de Beiriz de 1786, seja o mesmo que o lugar de “Salvada Lagoa” referido no artº 2º da Lei nº 1:301 que, pertencendo à freguesia de Amorim, passou a integrar a freguesia de A-ver-o-Mar, sendo que, caso assim fosse, era necessário existir nos autos a prova da existência do acto legislativo por meio do qual esse Lugar tivesse deixado de pertencer à freguesia de Beiriz e passado a integrar o território da freguesia de Amorim, para desta sair para a freguesia de Aver-o-Mar, o que não aconteceu, nem existe qualquer acto legislativo a tanto atinente, cabendo às Rés tal prova, segundo as regras do ónus da prova.
18ª. A expressa menção no douto acórdão recorrido de que “não pode afastar-se a hipótese de ter havido uma alteração dos limites da freguesia de Beiriz em consequência da criação da freguesia de Aver-o-Mar” é ela mesma o reconhecimento de que tal raciocínio é meramente hipotético e da inexistência de qualquer prova segura, de fonte legislativa, que permita a conclusão de Direito de que a Lei nº 1:301 implicou a alteração dos limites da freguesia de Beiriz criados pelo Tombo de Beiriz de 1786.
19ª. O sentido da douta decisão recorrida também está em oposição com um dos argumentos expendidos no seu relatório, onde é referido expressamente no ponto 17.9, a pág. 35, que “Ademais, essa primeira resposta dos senhores peritos à questão colocada no item 47) do relatório não era logicamente compatível com a resposta dada ao item 43) do mesmo relatório onde à pergunta se «Aquando da publicação da Lei n.º 1:301 de 10 de agosto de 1922, os limites da freguesia de Amorim, em relação às freguesias de Beiriz e Póvoa de Varzim - a Sul - e Navais - a Norte, estavam perfeitamente fixados e definidos» responderam «Os peritos não encontram qualquer elemento no processo que defina os limites das freguesias referidas no quesito, aquando da criação da freguesia de Aver-o-Mar, pela publicação da Lei 1:301 de 10 de agosto de 1922. Esta lei refere-se à constituição da freguesia de Aver-o-Mar, por um conjunto de lugares e parte do lugar de Sencadas, desanexados da freguesia de Amorim. Determina que a linha divisória entre as freguesias de Amorim e a de Aver-o-Mar a criar, seria definida, à posteriori, por uma comissão a nomear».”
20ª. Também no juízo apreciativo do ponto 33º do relatório do douto acórdão recorrido, onde se faz alusão a que, dos dois documentos referidos, o Tombo de Beiriz de 1786 e a Lei nº 1:301, “são possíveis outras leituras que não foram consideradas na sentença e que condicionam a possibilidade de se dar como certo que após a constituição da freguesia de Aver-o-Mar através do seu ato fundador, o referido “Tombo de Beiriz de 1786” nenhuma outra alteração legislativa ocorreu que contendesse com os limites de Beiriz. Note-se que a análise que o tribunal a quo efetuou dos diplomas surgidos após o Tombo, não foi para além do ano de 1916, quando o diploma criou a freguesia de Aver-o-Mar, portanto, uma freguesia limítrofe de Beiriz, data de 1922. E sobre este diploma, nem uma linha.” persiste o supra invocado erro de interpretação legal, pois que do teor da Lei nº 1:301 não resulta de modo nenhum qualquer alteração territorial da freguesia de Beiriz nem dos seus limites, nem do confronto entre o Tombo de Beiriz e essa Lei 1:301 resultam possíveis quaisquer outras leituras, designadamente, a de que o Tombo de Beiriz tivesse perdido actualidade por a Lei 1:301 ter implicado alterações na freguesia de Beiriz e nos seus limites que, aliás, o douto acórdão recorrido não objectiva nem concretiza, quedando-se num horizonte de conjectura meramente hipotético e, por isso, desconforme à segurança e certeza que o Direito exige.
21ª. O horizonte de meras hipóteses não pode constituir fundamento válido para a decisão de mérito aqui em crise, nos termos que consta da afirmação contida no ponto 34º do seu relatório, na medida em que esta conclusão é a antítese da segurança e certeza do Direito e a demonstração clara de que a douta sentença de 1ª instância foi alterada, não com fundamento em qualquer matéria de facto que não tivesse sido correctamente valorada, nem em qualquer interpretação de Direito que se mostrasse errada e impusesse a sua correcção, mas sim e só com recurso a um juízo meramente hipotético – “podem ter resultado alterações aos limites da freguesia de Beiriz” – e com recurso a uma interpretação legal da Lei nº 1:301 que nela não tem qualquer suporte literal, qual seja a de que o “Lugar de Lagoa”, da freguesia de Beiriz, seja o mesmo lugar que nessa lei é chamado como “Lugar de Salvada Lagoa”, proveniente da freguesia de Amorim; e que, ainda que assim fosse – que não é nem pode ser afirmado por falta absoluta de prova – que tivesse existido um acto legislativo anterior que tivesse feito passar o Lugar de Lagoa da freguesia de Beiriz para a freguesia de Amorim, facto que só por acto legislativo podia ter ocorrido e de que, igualmente, não existe nenhum suporte legal.
22ª. A decisão sob recurso atenta contra o princípio do ónus da prova, pois que, tendo a Autora sustentado a sua pretensão num diploma legal cuja validade não foi posta em causa e está aceite, só com uma prova de igual valor, de que resultasse a alteração legal ou a sua revogação total ou parcial, poderia a pretensão deduzida ser julgada improcedente, o que de todo se não verifica, sendo também frontalmente violadora dos princípios basilares respeitantes ao início e cessação de vigência da lei, consagrados nos artºs 5º e 7º do Código Civil.
23ª. Sendo pacífico e resultando provado que o Tombo de Beiriz de 1786 definiu os limites territoriais da freguesia de Beiriz, não pode deixar de ser pacífico que, após esse acto nenhum acto legislativo válido afectou, alterou ou invalidou esses mesmos limites territoriais, pelo que, por recurso ao texto da lei e às regras do ónus probatório, nenhum facto e nenhum meio probatório nem acto legislativo permite que a decisão de mérito de 1ª instância seja alterada no sentido em que o foi, designadamente, com recurso a uma lei que nada alterou nesse âmbito, pelo simples facto de que os limites da freguesia de A-ver-o-Mar não foram legitimamente constituídos por acto legislativo, nem por via da comissão que a Lei 1:301 mandou que fosse criada mas que nada demonstrou que o tivesse sido e, mais ainda, que tivesse realizado o trabalho para o qual fora mandada constituir.
24ª. A douta sentença de primeira instância conclui – e bem, salvo melhor opinião - que, “analisados os diplomas legislativos que seriam passíveis de poderem alterar os limites territoriais das freguesias, nos mesmos não se detectou qualquer alteração geográfica aos limites da freguesia de Beiriz ou suas limítrofes.”, não merecendo, pois, a mesma o menor apontamento ou censura, pelo que deverá a matéria de facto aí congregada manter-se inalterada nos precisos termos em que foi apreciada e julgada, assim se impondo a revogação do douto acórdão recorrido, com a consequente confirmação da douta sentença de primeira instância.
25ª. O acórdão sob recurso violou, para além do mais, o regime de criação e alteração dos limites das freguesias e os princípios e as regras do ónus da prova consagrados nos artºs 5º, 7º, 342º, 347º e 364º nº 1 do Código Civil e 414º do Código de Processo Civil.

Nestes termos, nos melhores de Direito e sempre com o melhor suprimento de V. Excias., deve o presente recurso ser admitido e julgado procedente, com a consequente revogação do douto acórdão recorrido, confirmando-se em sua substituição a douta sentença de primeira instância, com as legais consequências, assim se fazendo
JUSTIÇA»

6. As 3ª e 4ª Rés apresentaram contra-alegações conjuntas que terminaram com as seguintes conclusões (cfr. fls. 1865 e segs. SITAF):

«1. Como resulta do atrás exposto, o presente recurso não deve ser admitido, por ter cessado a personalidade e representação da freguesia de Beiriz, decorrente da publicação da Lei n.º 11-A/2013, de 28 de janeiro e por não se verificar uma relevância social da questão, nem ser claramente necessária para melhor aplicação do Direito (cf. artigo 150.º, n.º 1 do CPTA);
Quando, assim, se não entenda:
2. A Lei n.º 1/301 de 10 de agosto de 1922, que criou a freguesia de Aver-o-Mar, não é vazia de conteúdo legislativo concreto quanto ao território da freguesia que criou, uma vez que identifica no seu artigo 2.º, os lugares na orla marítima (em frente ao mar) que ficaram a fazer parte dessa freguesia, entre os quais o de LAGOA, pelo qual, alegadamente, a freguesia de Beiriz teria tido acesso ao mar;
3. A comissão referida no artigo 3.º dessa lei apenas tinha competência para delimitar a nova freguesia (Aver-o-Mar) em relação à freguesia de Amorim;
4. Assim, o Tombo de 1786 foi afetado pela referida Lei n.º 1/301 de 10 de agosto de 1922;
5. Sendo inquestionável que o lugar da Lagoa passou, com a publicação da Lei n.º 1/301, a fazer parte do território da freguesia de Aver-o-Mar, deixou a freguesia de Beiriz de incorporar esse território e, por isso, de ter acesso ao mar, sendo certo que não existe o “Lugar de Salvada Lagoa”, mas de dois lugares, “Salvada” e “Lagoa”, como se comprova com a leitura dos Projetos de Lei dos Deputados ………. e ………… e do Projeto-Lei n.º 149 (cfr. fls. 635 a 729 dos autos);
6. A referência à proposta do Deputado Doutor ………. de que a freguesia de Aver-o-Mar seria demarcada a Sul pelo “limite da freguesia de Beiriz a 400m do marco de Graceiro”, nada concretiza em relação aos limites dessas freguesias, designadamente quanto ao “Limite da Freguesia de Beiriz” uma vez que neste local não existem quaisquer marcos a delimitar tais freguesias;
7. Assim, a sentença da 1.ª instância, ao dizer que não foi detetada alguma alteração legislativa no que concerne aos limites da freguesia de Beiriz, enferma de manifesto erro, uma vez que os diplomas por ela citados, terminaram no ano de 1916, antes, portanto, do ano de 1922, com a publicação da Lei n.º 1/301, de 10 de agosto de 1922, que criou a freguesia de Aver-o-Mar.

Termos em que, com o douto suprimento, deve o presente recurso não ser admitido e, quando assim se não entenda, ser o mesmo julgado improcedente, mantendo-se o douto acórdão recorrido».

7. O presente recurso de revista foi admitido por Acórdão de 15/10/2020 (cfr. fls. 2018 e segs. SITAF) proferido pela formação de apreciação preliminar deste STA, prevista no nº 6 do art. 150º do CPTA, designadamente nos seguintes termos:

«(…) 9. Mostra-se objeto de litígio a apreciação da pretensão de demarcação territorial dos limites de A. e RR. e cuja pronúncia/decisão reveste de relevo social e jurídico, dado o impacto aportado na e à vivência das comunidades, serviços e instituições visadas e envolvidas.

10. Revelaram-se, ainda, como diametralmente divergentes os juízos firmados pelas instâncias sobre a pretensão, fator esse que, sendo indiciador do melindre e da complexidade da questão, se vem a confirmar em virtude da dilucidação da mesma envolver análise/interpretação e concatenação de variado e sucessivo quadro normativo, presente que o teor deste no seu confronto com aquilo que constitui a alegação e o posicionamento das partes, mormente quanto a determinar se, concretamente, a referida Lei n.º 1:301 pela sua previsão envolveu ou não alterações aos limites territoriais da Freguesia de Beiriz, convocam e justificam a intervenção deste Supremo Tribunal para uma melhor análise/ponderação e, assim, virem a ser dissipadas as dúvidas que o juízo impugnado aportou.

11. Flui do exposto a necessidade de intervenção clarificadora deste Tribunal, e daí que se justifique a admissão da revista, sendo que as questões suscitadas em sede de contra-alegações e que se prendem com a falta de personalidade/legitimidade/representação da recorrente e, bem assim, com a inutilidade da lide, mostram-se fora daquilo que constituem os poderes desta Formação de Admissão Preliminar prevista no n.º 6 do art. 150.º do CPTA (…)».

8. A Exma. Magistrada do MºPº junto deste STA, notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art. 146º nº 1 do CPTA, emitiu parecer (cfr. fls. 2028 SITAF) no sentido da confirmação do Ac.TCAN recorrido e, portanto, no sentido de ser negado provimento ao presente recurso de revista.

Submetido este parecer a contraditório, nos termos do art. 146º nº 2 do CPTA, não obteve resposta (cfr. fls. 2033 e 2034 SITAF).

9. Colhidos os vistos, vem o processo submetido à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

*

II - DAS QUESTÕES A DECIDIR

10. Constitui objeto do presente recurso de revista, apreciar se o Ac.TCAN recorrido procedeu a um correto julgamento do recurso de apelação interposto, em face dos erros de julgamento que lhe são apontados, no presente recurso de revista, pela Autora, ora Recorrente, nomeadamente quanto à conclusão – contrariada pela Autora/Recorrente – de que esta não logrou comprovar, nos autos, que a faixa de terreno em disputa, se manteve na sua área geográfica desde o “Tombo da Freguesia de Beiriz”, de 1786, designadamente em face do disposto na Lei nº 1:301, de 23/8/1922.

Previamente, cumpre apreciar e decidir a invocada, pelas Rés/Recorridas, superveniente falta de personalidade jurídica (e consequente superveniente ilegitimidade) da Autora/Recorrente, uma vez que o presente recurso foi interposto pela “Freguesia de Beiriz”, que, já no decorrer da ação, fora transformada, ou agregada/incluída, na atual “União de Freguesias da Póvoa de Varzim, Beiriz e Argivai”.

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III - FUNDAMENTAÇÃO

III. A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

11. As instâncias deram como provados os seguintes factos:

A) Os seguintes prédios encontram-se inscritos na Conservatória do Registo Predial e no Serviço de Finanças, ambos da Póvoa de Varzim:
- no lugar da Lagoa - artigos ….. e …….. da matriz urbana da freguesia de Beiriz, com as descrições prediais n.°s 00463/920514-Beiriz e 00675/950203-Beiriz, respectivamente (actualmente Rua da …………, Rua ……………., Rua …………… e Praça …………..) - doc. n. ° 5.
- rústica da freguesia de Beiriz, com a descrição predial n.° 00919/970530-Beiriz - cfr. mesmo doc. n.° 5.
- no lugar de Barreiros (Rua …………..) – artigos ….., ……. e ……. da matriz urbana da freguesia de Beiriz, com as descrições prediais n.°s 01582/20040721-Beiriz e 01577/20040210-Beiriz - doc. n.° 6.
- no lugar de Bozas - descrição predial n.° 8326, a fls. 56 do livro B-22 - doc. n.° 7.

B) Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor do "Tombo da Freguesia de Beiriz", do ano de 1786, guardado no Arquivo Paroquial da freguesia de Beiriz
(conforme docs. n.° 1 e 2 juntos com a petição inicial — fls. 20, 21, 24 a 80 dos autos).

C) Tem-se, igualmente, por integralmente reproduzido o teor da certidão emitida pelo Município da Póvoa de Varzim, em 27/10/2003 (conforme doc. n.° 11 junto com a petição inicial - fls. 110 dos autos).

D) Dá-se, também, por integralmente reproduzido o teor do extracto da "Carta Administrativa Oficial de Portugal" (CAOPV.50) - planta topográfica (doc. n.° 2 junto com a contestação - fls. 133 dos autos).

E) Tem-se, ainda, por integralmente reproduzido o teor do auto de delimitação com o domínio público marítimo de sete prédios rústicos sitos no concelho da Póvoa de Varzim (conforme doc. n.° 3 junto com a contestação - fls. 134 dos autos).

F) No projecto de lei apresentado pelo Dr. ………. faz-se referência expressa a que a futura freguesia de A-ver-o-Mar seria demarcada a Sul pelo "(...) limite da freguesia de Beiriz, a 400 metros do marco do Graceiro".

G) Os prédios elencados na alínea A) da matéria assente situam-se na parcela de território identificada no documento n.° 4 junto com a petição inicial, que corresponde à faixa de terreno (que vai até ao mar) que a Autora aqui reivindica como pertencendo aos limites da freguesia de Beiriz.

H) A «A……………, S.A.», desde sempre, tem vindo a indicar a sua sede como situada em Penouces, Beiriz.

I) A «B…………., S. A.» tem vindo a identificar a sua unidade fabril e um bairro habitacional construído para os seus operários, como se localizando em Barreiros (Rua ……………..), em Beiriz, esclarecendo-se que a parte Sul da Rua ………… pertence à freguesia de Beiriz e a parte Norte à freguesia de Amorim.

J) A Autora, através da sua Junta de Freguesia, desde sempre, emitiu atestados de residência a solicitação das pessoas que habitam na indicada parcela de terreno.

K) A atual carta geográfica e administrativa (CAOPV5) do concelho da Póvoa de Varzim não reproduz os limites da freguesia de Beiriz expressos no "Tombo da Freguesia de Beiriz", do ano de 1786.

L) Essa delimitação do "Tombo" consubstancia-se, a Norte e Sul pelo chamado corredor de Beiriz, que liga esta freguesia ao mar, no lugar chamado da Lagoa e, junto ao oceano, situa-se entre as praias da Fragosa (a Norte) e da Salgueira (a Sul), continuando depois para nascente em direção a Boza (ou Borges), Penouces, Barreiros e Giesteira, e daí para o centro urbano da freguesia.»

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III. B – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

12. As Rés/Recorridas, nas suas contra-alegações, levantaram a questão prévia da falta, superveniente, de personalidade jurídica e, consequentemente, de falta superveniente de legitimidade, da Autora/Recorrente “Freguesia de Beiriz”, pois que esta foi, por força da Lei nº 11-A/2103, de 28/1, agregada e incluída na atual “União das Freguesias da Póvoa de Varzim, Beiriz e Argivai”, cessando, portanto, a sua existência jurídica como freguesia autónoma.

Aliás, como bem referem, a questão da aludida agregação já tinha sido apreciada nos autos, na perspetiva da eventual consequência da inutilidade superveniente da lide, invocada pelas Rés (cfr. fls. 1610 e segs. SITAF), em decorrência da publicação, já na pendência da ação, da referida Lei nº 11-A/2013. E, após oposição da Autora (cfr. fls. 1615 e segs. SITAF), foi, por despacho de 3/10/2013 (cfr. fls. 1696 SITAF) - proferido ainda no TAF do Porto (citado no ponto 10 do Relatório do Ac.TCAN ora recorrido) -, indeferido tal pedido de extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, aí se justificando que “No caso dos autos, encontra-se também em litígio os limites territoriais entre as freguesias de Beiriz e Aver-o-Mar. Ora, não obstante a agregação, verifica-se que estas duas freguesias não foram agregadas uma à outra, pelo que continua em aberto o litígio de demarcação. É quanto basta para que haja interesse na causa”.

13. Agora, é distinta a questão invocada pelas Rés/Recorridas nas suas contra-alegações, ainda que também resultante da agregação determinada pela Lei nº 11-A/2013 e da consequente extinção das freguesias agregadas, enquanto autonomamente consideradas. Daqui que seja invocada a cessação, com a entrada em vigor do citado diploma, da personalidade jurídica da Autora e, consequentemente, da sua legitimidade para a interposição do presente recurso, ademais subscrito por advogado com procuração outorgada apenas pela freguesia Autora, já extinta como freguesia autónoma.

Porém, o certo é que, por um lado, foi deduzido, por apenso aos presentes autos, precisamente pela atual “União das Freguesias da Póvoa de Varzim, Beiriz e Argivai”, incidente de habilitação com o objetivo expresso de ser declarada sucessora da freguesia Autora (Freguesia de Beiriz), e de assim assumir, nos presentes autos, a posição processual desta freguesia, nela integrada ou agregada - ainda que este incidente tenha sido liminarmente rejeitado, com a fundamentação de que:
“(…) a “sucessão” da Freguesia de Beiriz (Autora, que instaurou a presente ação) pela “União das Freguesias da Póvoa de Varzim, Beiriz e Argivai” foi determinada “ex lege” na pendência da ação - isto é, por força da lei. O que, de modo idêntico, sucedeu com as Rés Freguesias de “Amorim” e “Aver-o-Mar” relativamente à sua sucessora legal “União das Freguesias de Aver-o-Mar, Amorim e Terroso”.
Assim sendo, tal “sucessão” opera automaticamente, sem aplicação do incidente de habilitação previsto nos arts. 352º a 357º do CPC, já que não há qualquer necessidade de, por essa via, se determinar o sucessor da parte processual: esta “sucessão”, sendo determinada “ex lege”, impõe-se a todos, partes ou não partes no processo, e ao tribunal (aliás, “jura novit curia”).
Assim, quando, como é o caso, a “sucessão/transformação” de uma parte processual, integrando a generalidade dos seus direitos e obrigações, opere por força da lei, não há lugar à suspensão da instância (cfr. art. 269º nº 2 do CPC) nem a um (desnecessário e inaplicável) incidente de habilitação, mas apenas à correspondente substituição”.

E, por outro lado, e de forma mais relevante, a atual “União das Freguesias da Póvoa de Varzim, Beiriz e Argivai” veio aos autos ratificar expressamente os atos processuais entretanto praticados, fazendo-o da seguinte forma:
(…) ratifica, nos seus exactos e precisos termos, todos e cada um dos actos processuais praticados nos autos, nomeadamente após a data em que a Lei nº 11-A/2013, de 28 de Janeiro produziu os efeitos de extinguir as freguesias que nestes autos eram partes e conferiu personalidade jurídica e, consequentemente, judiciária, à União de Freguesias aqui requerente,
11º. Desses actos assumindo todas as responsabilidades e legítimos interesses e direitos que deles são decorrentes, de forma a prosseguirem estes autos os seus precisos termos até final, alcançando-se uma decisão do mérito da causa (…)”.
E juntou procuração a favor do advogado subscritor (procuração que também foi junta com o requerimento do acima mencionado incidente de habilitação de herdeiros).

Pelo exposto, considera-se que a instância se encontra regularizada, sendo a “União das Freguesias da Póvoa de Varzim, Beiriz e Argivai” a atual Autora/Recorrente, por ter sucedido “ex lege” à anterior Autora/Recorrente, e considerando, ainda, que a mesma ratificou todos os atos processuais entretanto praticados, manifestando vontade na prossecução da lide, e que se encontra regularmente representada em juízo por advogado a quem outorgou a devida procuração.

Improcede, assim, esta invocada questão prévia.

14. A Autora/Recorrente, através do presente recurso de revista, insurge-se contra o Ac.TCAN recorrido por este ter revogado a sentença do TAF/Porto (que havia julgado a ação procedente), alterando o sentido decisório da mesma, fundamentalmente com o argumento de que tal sentença não tomou em consideração a Lei nº 1:301 de 10/8/1922, que criou a Freguesia de Aver-o-Mar, sendo que, tomada tal lei em consideração, resultam postos em causa os limites territoriais definidos para a Freguesia de Beiriz pelo Tombo de 1786.

A Autora/Recorrente diverge deste entendimento, sustentando que a Lei nº 1:301 não afetou, de forma nenhuma, os seus limites territoriais definidos naquele Tombo de 1786, pelo que a sentença de 1ª instância decidiu bem ao julgar a ação procedente, independentemente de ter considerado, ou não, a Lei nº 1:301, que resulta ser inócua para essa decisão de procedência.

Mais sustenta que a Lei nº 1:301 se limitou a criar a nova freguesia de Aver-o-Mar, com território extraído da freguesia de Amorim, pelo que nada afetou a sua área territorial (da freguesia de Beiriz). Até porque nem sequer cuidou de traçar os limites entre a freguesia de Aver-o-Mar (que criou) e a freguesia de Amorim (donde retirou os lugares que passaram a fazer parte da nova freguesia de Aver-o-Mar), deixando essa tarefa para uma comissão (que refere que não se apurou se chegou a ser criada e se chegou a realizar esse projetado trabalho de demarcação).

15. O Ac.TCAN recorrido, porém, na senda do alegado pelas Rés (então Recorrentes, ora Recorridas) julgou que a consideração da Lei nº 1:301, totalmente omitida na sentença de 1ª instância, introduzia, efetivamente, dúvidas fundadas sobre a manutenção dos limites da freguesia de Beiriz, uma vez que refere expressamente que o lugar de “Lagoa” é um dos lugares a transitar, por sua determinação, da freguesia de Amorim para a nova freguesia de Aver-o-Mar.

Ora, sucede que o lugar de “Lagoa” é, precisamente a parcela de terra que, segundo a Autora/Recorrente, lhe pertencia pelo “Tombo de 1786” e que permitia a sua ligação ao mar. Isto é, é a parcela de terra que se encontra em litígio entre a Autora e as Rés, reivindicada por ambas as partes, e que justificou a propositura da presente ação.

Sendo assim, o Ac.TCAN entendeu – contrariamente à sentença do TAF/Porto, que nem abordou, como vimos, a Lei nº 1:301 – que, se a parcela reivindicada em causa, objeto do litígio entre as partes, transitou, por força dessa Lei de 1922, da freguesia de Amorim para a freguesia de Aver-o-Mar, não é possível concluir, muito menos com a necessária segurança, que a mesma pertença, ou continue a pertencer, atualmente, à área territorial da freguesia de Beiriz.

16. A Autora/Recorrente contesta este entendimento, do Ac.TCAN recorrido, argumentando que comprovou, nos autos, o título jurídico que sustenta a pertença da dita parcela à sua área territorial (o Tombo de 1786) e que, considerando que as freguesias só podem ser criadas, ou alterados os seus territórios, por diploma legal, a ação deve proceder (desde logo, segundo diz, por aplicação das regras do ónus da prova) já que não foi feita prova “de igual valor” (cfr. conclusão 22ª das suas alegações), isto é, de diploma legal, que tenha retirado essa parcela do seu território. É que não basta, a seu ver, verificar que a Lei nº 1:301 retirou a parcela da freguesia de Amorim para a freguesia de Aver-o-Mar: falta comprovar por força de que diploma legal é que essa parcela teria transitado do seu território para o da freguesia de Amorim. Ou seja, na falta de comprovação desse suposto diploma legal, teria de prevalecer o Tombo de 1786.

Mas a Autora/Recorrente não tem razão, nomeadamente quanto ao seu referido entendimento sobre a repartição do ónus da prova.

Efetivamente, a Autora, ao pedir, através da propositura da presente ação, o reconhecimento judicial de que determinada parcela territorial pertence legalmente aos seus limites, e não ao âmbito territorial de outra freguesia, que também a entende como sua, tem que, para além de alegar as razões que sustentam essa sua alegação, produzir prova que convença o tribunal da procedência desse seu pedido; se o não fizer, a ação só pode ser julgada improcedente.

É verdade que a Autora carreou para os autos prova documental (o Tombo da Freguesia de Beiriz de 1786) que aponta para que o território em questão pertenceria, à altura, ao seu âmbito territorial (ainda que nem este pressuposto, de partida, resulte totalmente incontestado da diversa prova, designadamente pericial, recolhida nos autos – veja-se o esclarecimento dos peritos, no âmbito do quesito 47: «Os Peritos, segundo os elementos constantes do Processo, apenas encontram a peça desenhada “Reconstituição da Carta de Beiriz no séc. XVIII, - Anexo IV, que leva a supor que Beiriz teria uma ligação ao mar. No entanto, a simbologia aí utilizada para definir os eventuais limites entre freguesias, aldeias e lugares (----- ; +++++) não está devidamente referenciada na legenda, pelo que o grafismo e o seu eventual simbolismo não lhes permite confirmar tal conclusão» (cfr. fls. 1423 e segs. SITAF).

Mas ainda que se tome esse pressuposto como verdadeiro, o certo é que a questão a decidir na presente ação não é a qual freguesia pertencia esse território em 1786, mas sim a qual pertence, legalmente, na atualidade.

Ora, repetimos, ainda que se tenha por certo que, em 1786, o território em disputa pertencia à freguesia de Beiriz, e ainda que não se tenha apurado nos autos eventual diploma legal que tenha extraído esse território dessa freguesia atribuindo-o à freguesia de Amorim, não deixa de relevar, no sentido de não concluir pela manutenção atual dessa pertença, que a Lei nº 1:301, de 10/8/1922, tenha determinado que esse mesmo território transitava da freguesia de Amorim para a freguesia de Aver-o-Mar (que esse diploma criava).

Foi precisamente esta circunstância – não enfrentada pela sentença de 1ª instância, voltamos a lembrá-lo – que o Ac.TCAN considerou suficientemente relevante para abalar a prova resultante, apenas, da consideração do Tombo de 1786.

E, afinal, com toda a pertinência: se a procedência da ação dependia de o tribunal se convencer de que o território em causa se mantinha legalmente, ainda hoje, no âmbito territorial da freguesia Autora, como é possível concluir-se nesse sentido se um diploma legal de 1922 (Lei nº 1:301) veio determinar a transição desse território para a freguesia de Aver-o-Mar?

17. A Autora/Recorrente argumenta, ainda, que o território determinado transitar, em 1922, para a freguesia de Aver-o-Mar não será o mesmo que o território (“Lugar de Lagoa”) em causa nos autos, uma vez que a Lei nº 1:301, no seu art. 2º refere, na lista dos lugares a serem integrados na nova freguesia, o lugar de “Salvada Lagoa” e não o de “Lagoa”.

Mas esta argumentação é totalmente de rejeitar, pois que, como as Rés/Recorridas referem, e resulta abundantemente comprovado através de vários documentos juntos aos autos, existem os lugares de “Salvada” e de “Lagoa”, que são distintos, ambos integrados, com outros, na nova freguesia de Aver-o-Mar, por determinação da Lei nº 1:301, de 1922.

Vejam-se os Projectos de Lei nºs 666-C e 57-K, bem como o Projeto final que os conciliou (denominado “Contra-Projecto”), que originaram a Lei nº 1:301, de 1922, onde ressalta da lista dos Lugares (da freguesia de Amorim) a integrar na nova freguesia de Aver-o-Mar, entre outros, os lugares de “Salvada” e de “Lagoa”: «Art. 2º. Essa nova freguesia denominar-se há – freguesia de A-ver-o-Mar – e será constituída pelos lugares seguintes: (…) Salvada, Lagoa (…), os quais serão, para tanto, desanexados da freguesia de Amorim» - cfr. documentação enviada pelo Arquivo Histórico Parlamentar da Assembleia da República, junta aos autos a fls. 1099 e segs. SITAF (em parte, relevante, já antes constante dos autos, por junção requerida pela própria Autora… – cfr. fls. 1070 e segs. SITAF).

Diga-se, a propósito, que as alegações da Autora/Recorrente mostram uma incompleta ponderação da totalidade da documentação congregada nos autos, uma vez que refere, designadamente nas suas conclusões 9ª e 10ª, que a Lei nº 1:301, no seu art. 3º,
«refere expressamente que a linha divisória entre a freguesia de Amorim e a freguesia de A-ver-o-Mar “será fixada e demarcada por uma comissão composta de um representante de cada uma dessas freguesias e de um delegado nomeado pela câmara municipal do respectivo concelho”.
10ª. Nenhuma das Rés trouxe aos autos qualquer documento do qual resulte ter essa comissão sido efectivamente criada e constituída nos termos legalmente prescritos, quem terão sido os elementos que a integraram, sob que regras a mesma terá ou não executado tal tarefa demarcadora e definidora dos limites da nova freguesia, se esse trabalho de delimitação foi efectivamente executado e concluído, se foi ou não aprovado e se foi ou não publicitado, o que tudo constitui matéria não provada, pelo que a referida Lei nº 1:301 não passou de uma lei vazia de conteúdo legislativo concreto quanto ao território da freguesia que criou, não podendo a mesma lei ser tomada em consideração ou ter qualquer valor jurídico concreto para pôr em causa ou alterar os limites territoriais definidos para a freguesia de Beiriz pelo Tombo de Beiriz de 1786».
Ora, contrariamente ao assim expressado pela Autora/Recorrente – e independentemente da sua relevância para a decisão da presente lide -, a verdade é que a dita Comissão foi efetivamente criada e constituída, estando identificados os seus elementos, e executou a tarefa de demarcação ou de delimitação de que foi incumbida, como resulta da “Acta de delimitação e demarcação da nova freguesia de Aver-o-mar com a freguesia de Amorim», datada de 10/10/1923 (enviada pela Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, e junta aos autos em 10/2/2009, a fls. 1046 e segs. SITAF).

18. Por tudo o exposto, nos termos já explanados no Ac.TCAN recorrido, e porque, em suma, a integração da parcela de terreno em disputa nos autos, reivindicada pela Autora - correspondente ao chamado “Lugar da Lagoa” - foi integrada, por determinação da Lei nº 1:301, de 10/8/1922, na freguesia de Aver-o-Mar (criada por este diploma legal), não é possível concluir, como pretendido e pedido pela Autora, que tal parcela se encontra, atualmente, ainda integrada, legalmente, no seu âmbito territorial.


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IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202º da Constituição da República Portuguesa, em:

Negar provimento ao recurso de revista deduzido pela Autora/Recorrente “Freguesia de Beiriz”, atual “União das Freguesias da Póvoa de Varzim, Beiriz e Argivai”, e, consequentemente, manter o Acórdão do TCAN recorrido, que julgou improcedente a presente ação.

Custas a cargo da Autora/Recorrente.

D.N.

Lisboa, 13 de janeiro de 2022 – Adriano Fraxenet de Chuquere Gonçalves da Cunha (relator) – José Augusto Araújo Veloso – Maria do Céu Dias Rosa das Neves.