Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0943/14
Data do Acordão:11/13/2014
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:ACTO ADMINISTRATIVO
ACTO NORMATIVO
DECLARAÇÃO DE INEFICÁCIA
ACTO DE EXECUÇÃO INDEVIDA
FUMUS BONI JURIS
PERICULUM IN MORA
PONDERAÇÃO DE INTERESSES
Sumário:I - O DL nº108/2014, de 02.07, que alterou o DL nº68/2010, de 15.06, não é «acto administrativo», mas «acto normativo», e, atento o disposto nos artigos 4º, nº2 alínea a), e 24º, nº1 alínea c), do ETAF, o STA carece de competência material para conhecer do pedido de «suspensão da sua eficácia»;
II - Quando o tribunal decide sobre a ineficácia de actos de execução praticados ao abrigo de resolução fundamentada, deve apenas verificar se a «resolução» existe, se foi emitida no prazo legalmente estipulado, e se está fundamentada no sentido de demonstrar que o deferimento da execução, que é a regra, será gravemente prejudicial, e não apenas inconveniente, para o interesse público;
III - O âmbito subjectivo activo do artigo 132º do CPTA é o dos candidatos ao concurso que, face a ilegalidades ocorridas em actos relativos à formação do contrato visado, podem requerer providências «destinadas a corrigir a ilegalidade» ou a impedir «que sejam causados outros danos aos interesses em presença»;
IV - Não cabe nesse âmbito subjectivo activo o Município que nem é concorrente a concurso público de reprivatização, nem foi preterido no mesmo, nem aponta vícios aos actos suspendendos, mas apenas intenta paralisar a concretização da opção política de reprivatização;
V - O carácter «manifesto» da ilegalidade, previsto na alínea a) do nº1 do artigo 120º do CPTA, não se compadece com aturados trabalhos de análise e subsunção jurídica, nem pode derivar da análise aprofundada das teses doutrinais ou jurisprudenciais trazidas aos autos pelas partes, em abono das suas pretensões;
VI - O requisito da aparência de «bom direito», previsto na alínea b) do nº1 do artigo 120º do CPTA, consubstancia um critério largo, bastando, para o seu preenchimento, que «não seja manifesta a falta de fundamentação da pretensão a formular no processo principal»;
VII - O «periculum in mora» visa apurar se a prolação tardia de um juízo definitivo na causa principal é susceptível de promover danos em grau tão elevado, ou de produzir uma situação de tal modo irreversível, que a eficácia reintegratória da decisão principal já não assegure a plena reconstituição anterior, por a mesma ser muito difícil ou impossível;
VIII - A imposição da «recusa» da adopção da providência requerida, tal como é consagrada pelo nº2 do artigo 120º do CPTA, emerge de três juízos que, apesar de interactivos, são metodologicamente distintos: - o juízo de ponderação sobre os interesses públicos e privados, em presença; - o juízo sobre a superioridade dos danos que resultariam da concessão da providência, em face daqueles que podem resultar da sua recusa; - e o juízo sobre a possibilidade de evitar ou de atenuar aqueles primeiros danos, através da adopção de outras providências.
Nº Convencional:JSTA000P18217
Nº do Documento:SA1201411130943
Data de Entrada:09/03/2014
Recorrente:MUNICÍPIO DA AMADORA
Recorrido 1:PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DE MINISTROS E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Aditamento:
Texto Integral: I. Relatório
1. O MUNICÍPIO DA AMADORA [MA] intenta este processo cautelar para a adopção de «providências relativas a procedimento de formação do contrato», contra o CONSELHO DE MINISTROS [CM] e 6 contra-interessadas, devidamente identificadas nos autos, pedindo a este Supremo Tribunal, a título principal, que «suspenda o procedimento concursal de formação do contrato de compra e venda de acções representativas do capital social da A………., S.A. [A……..], no âmbito do respectivo processo de reprivatização», e, a título cumulativo, que «suspenda a eficácia dos actos vertidos na Resolução do Conselho de Ministros [RCM] nº30/2014» [«Decisão de alienação de 100% das acções da A………»; «Aprovação do Caderno de Encargos»; e «Decisão de abertura do concurso»], «suspenda a eficácia do acto vertido na RCM 36-A/2014»[«Admissão de candidatos a participar na fase de apresentação de propostas vinculativas do concurso de alienação das acções da A……..»], e ainda «suspenda o acto materialmente administrativo contido no DL nº108/2014, de 02.07, que procedeu à alteração dos estatutos da B……..».

2. Deduz o pedido principal ao abrigo do artigo 132º do CPTA, alegando que se verifica a seu respeito o pressuposto independente previsto no artigo 120º, nº1 alínea a), do CPTA, aplicável ex vi artigo 132º, nº6, do mesmo diploma, e que, para além disso, a ponderação de interesses e danos prescrita neste nº6 deverá ser favorável à sua pretensão suspensiva.

E deduz os pedidos cumulativos ao abrigo do artigo 112º nº2 alínea a) do CPTA, alegando que, para além de se verificar o mesmo pressuposto independente já referido a respeito do pedido principal, também se verificará, subsidiariamente, o fumus boni juris e o periculum in mora exigidos no artigo 120º, nº1 alínea b), do CPTA, sendo favorável, também, à sua pretensão suspensiva, a ponderação de interesses e danos prevista no artigo 120º, nº2, do mesmo diploma legal.

Trata-se de pretensões cautelares requeridas pelo MA antes da instauração da pertinente acção administrativa especial [AAE], na qual irá peticionar a declaração de nulidade ou a anulação dos actos administrativos já identificados, bem como do eventual acto final de adjudicação que entretanto possa vir a ser praticado.

3. Recebido o duplicado do requerimento cautelar, o demandado CM proferiu, a 14.08.2014, «Resolução Fundamentada» nos termos e para efeitos do disposto no artigo 128º, nº1, do CPTA.

E deduziu oposição na qual defende que não deverá ser apreciada a pretensão cautelar suspensiva relativamente ao «acto materialmente administrativo contido no DL nº108/2014, de 02.07» por «incompetência absoluta da jurisdição administrativa» para o efectuar, e que deverão ser recusadas as demais pretensões suspensivas quer por ausência de periculum in mora e por manifesta falta de fundamento das inconstitucionalidades e ilegalidades apontadas aos actos a suspender, quer por clara desproporção dessa mesma suspensão face aos interesses em confronto.

4. Veio, por fim, o MA, requerer a declaração de ineficácia dos actos constantes da RCM nº55-B/2014, de 18.09.2014 [nº181 da 1ª série do DR de 19.09.2014], ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 128º do CPTA, ou seja, a declaração de ineficácia dos actos de «selecção do concorrente C……/D……/E………./F………/C…….., como vencedor do concurso público de reprivatização da A………; aprovação dos instrumentos jurídicos a celebrar entre a AdP-Águas de Portugal S.A.[AdP], o concorrente vencedor e a sociedade a constituir pelo mesmo, nomeadamente a minuta de compra e venda; e autorização para a AdP celebrar com o concorrente vencedor e a sociedade a constituir pelo mesmo o contrato de compra e venda das acções da A………..».

O CM pronunciou-se sobre este requerimento no sentido de o mesmo dever ser liminarmente recusado, isto por os actos invocados não constituírem, a seu ver, execução dos actos suspendendos. De todo o modo, advogou a improcedência do incidente.

5. Sem vistos, dado tratar-se de processo de natureza urgente [artigos 36º, nº1 alínea e), e nº2, do CPTA].

II. De Facto

São estes os factos sumariamente provados e com interesse para a decisão:

1- Em 20.03.2014, foi publicado o «DL nº45/2014», que aprovou o processo de reprivatização da A…..….. e definiu os respectivos trâmites de procedimento [ver nº56 da 1ª série do DR de 20.03.2014];

2- Em 08.04.2014, foi publicada a «Resolução do Conselho de Ministros nº30/2014», através da qual o Conselho de Ministros resolveu, além do mais, o seguinte:

a) Decisão de alienação de 100% das acções da A………, e de que o concurso público previsto no nº2 do artigo 2º do DL nº45/2014, de 20.03, tenha por objecto acções representativas de 95% do capital social da A…………;

b) Aprovação do caderno de encargos do concurso público;

c) Decisão de abertura do concurso público previsto no nº2 do artigo 2º do DL nº45/2014, de 20.03, através do envio para publicação do anúncio no Jornal Oficial da União Europeia e no Diário da República – ver cópia de folhas 96 a 108 dos autos;

3- Em 10.04.2014, foi publicado em DR o Anúncio de procedimento nº1988/2014, relativo ao concurso público para a reprivatização da A………. – ver cópia de folhas 109 a 111 dos autos;

4- Em 14.04.2014, o «Presidente do Conselho de Administração da Parpública» - Participações Públicas, SGPS, SA.- e o «Presidente do Conselho de Administração da AdP» - Águas de Portugal, SGPS, S.A. [detida maioritariamente pela Parpública e única accionista da A………..], notificaram o ora requerente para este exercer, querendo, o direito de alienação da totalidade das participações sociais por si detidas na «B……….»– ver cópia de folhas 112 a 117 dos autos;

5- Em 24.04.2014, o ora requerente respondeu à «Parpública» por carta, na qual rejeitou, novamente, o processo de privatização da A…… e assumiu «que a posição desta autarquia é de aquisição de acções da A…… e não de venda de qualquer acção que tenha na B……….»- ver cópia de folhas 118 a 120 dos autos;

6- Em 06.06.2014, foi publicada a «Resolução do Conselho de Ministros nº36-A/2014», através da qual foi resolvido admitir a participar na fase de apresentação de propostas vinculativas do concurso público de alienação das acções da A…….. os seguintes concorrentes:

a) Agrupamento constituído pelas empresas G……………….. e H………….Limited

b) I………., S.A.;

c) Agrupamento constituído pelas empresas J………… S.A. e L……………….;

d) M…………….., S.A.;

e) N……………;

f) Agrupamento constituído pelas empresas O……………., S.A. e P…………….., S.A.;

g) Agrupamento constituído pelas empresas C…………, S.A., D……………., S.A, e E…………, S.A.– ver cópia de folha 121 dos autos;

7- Em 25.06.2014, foi publicado o DL nº96/2014, que aprovou o regime jurídico aplicável às concessões da exploração e gestão de sistemas multimunicipais que venham a ser atribuídas a entidades com capitais maioritária ou exclusivamente privados [in 1ª série do DR de 25.06.2014];

8- Em 02.07.2014, foi publicado o DL nº108/2014, que procedeu à primeira alteração ao DL nº68/2010, de 15.06, visando proceder à modificação dos estatutos da «B…………» [in 1ª série do DR de 02.07.2014];

9- Em 31.07.2014 deu entrada no STA este processo cautelar – ver folha 1 dos autos;

10- Em 14.08.2014 o CM aprovou «Resolução Fundamentada» donde consta o seguinte [folhas 244 a 251 dos autos]:

O Município da Amadora apresentou requerimento inicial de providência cautelar no Supremo Tribunal Administrativo [Processo nº943/14, primeira secção], em que deduz contra o Conselho de Ministros pedido de suspensão do «procedimento concursal de formação do contrato de compra e venda das acções representativas do capital social da A………., S.A. [A……..] no âmbito do respectivo processo de reprivatização» e dos seguintes actos administrativos:

[…]

Os actos cuja suspensão de eficácia se requer nos presentes autos são parcialmente coincidentes com os que foram objecto das providências cautelares que correm termos nesse Supremo Tribunal [1ª secção] sob os números 725/14, 799/14, 844/14 e 858/14, bem como da providência cautelar 561/14 indeferida pelo STA. Nesse contexto, entende-se que se mantêm as razões de interesse público invocadas no âmbito das resoluções fundamentadas juntas aos referidos processos.

Com efeito, a suspensão da execução daquelas decisões implicaria a suspensão do processo de reprivatização da A…………., em especial do concurso público em curso que tem por objecto alienação de 95% das acções representativas do capital social daquela empresa, o que seria gravemente prejudicial para o interesse público nos termos que a seguir se expõem:

1- A A……………., S.A. [adiante A……] é uma sociedade de capitais integralmente públicos, sub-holding da Águas de Portugal, S.A. no sector do tratamento e valorização de resíduos urbanos [RU].

2- A gestão dos sistemas de tratamento e valorização de resíduos urbanos é feita através de 11 empresas concessionárias, constituídas em parceria com os municípios servidos, que processam anualmente cerca de 3,7 milhões de toneladas de resíduos urbanos, produzidas em 174 Municípios, servindo cerca de 60% da população de Portugal, que corresponde a 6,4 milhões de habitantes.

3- O Programa do XIX Governo Constitucional estabeleceu como objectivo a promoção da sustentabilidade da política e do sistema de gestão e tratamento de resíduos, e a autonomização deste sector no seio do Grupo Águas de Portugal.

4- O Governo preparou, assim, a alteração do quadro legal aplicável ao sector, designadamente um novo enquadramento regulatório, de modo a garantir-se o cumprimento de metas nacionais e europeias de índole ambiental, a acessibilidade das populações servidas aos serviços de resíduos, mediante a adequação das tarifas à respectiva capacidade económica, a equidade territorial, fomentando a convergência tarifária e a promoção de soluções de maior eficiência e eficácia económica que assegurem a prestação aos utilizadores dos sistemas de um serviço público de excelência e, em última análise, a sustentabilidade económico-financeira dos sistemas.

5- Nos termos da Lei nº11/90, de 5.04 - Lei-Quadro das Privatizações - o Governo tem competência exclusiva na decisão, organização e execução do processo de reprivatização. O processo de reprivatização da A……… foi cuidadosamente preparado ao longo de um ano, tendo o Governo procurado envolver os municípios no mesmo. Para tal, realizou diversas reuniões com a Associação Nacional de Municípios, em 17 de Outubro, 5 e 12 de Novembro [estas últimas com a participação dos Municípios] e 16 de Dezembro de 2013 e 13 de Março de 2014, em que foram abordados um conjunto amplo de questões relativas ao enquadramento da reestruturação do sector dos resíduos urbanos, onde se inclui a reprivatização da A……., nomeadamente os objectivos de serviço público vertidos no DL nº96/2014, de 25.06, que aprova as bases da concessão, o Plano Estratégico para os Resíduos Urbanos [PERSU 2020], o novo Regulamento Tarifário dos Serviços de Gestão de Resíduos Urbanos [Regulamento Tarifário] com a projecção da evolução tarifária demonstrativa do impacto da alteração do modelo tarifário, bem como os projectos de diplomas dos Estatutos da ERSAR e da “factura detalhada” [Lei nº10/2014 e Lei nº12/201 4, entretanto publicadas em 6 de Março de 2014].

6- Em tal procedimento foi também envolvida a ERSAR, Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos, agora independente e com novas competências nesta matéria, num processo que levou à aprovação do Regulamento Tarifário que tem como uma das características fundamentais universalidade, ou seja, está preparado para ser aplicado a todas as entidades do sector, quaisquer que sejam as fases da cadeia de valor em que intervêm ou o modelo de governo adoptado, em gestão directa, em gestão delegada, incluindo parceria, ou em gestão concessionada e independentemente da entidade gestora ter natureza pública ou privada.

7- Paralelamente, e no cumprimento das exigências decorrentes da integração europeia, foi preparado um novo Plano Estratégico para os Resíduos Urbanos [PERSU 2020], instrumento base da política de gestão de resíduos, actualmente em fase de Avaliação Ambiental Estratégica, que se segue à discussão pública promovida pelo Conselho Consultivo da ERSAR ocorrida no dia 12 de Junho de 2013, em que a ANMP tem assento.

O novo PERSU tem em vista o cumprimento das metas e estratégia comunitária para a prevenção, reciclagem, valorização do resíduo como recurso e, em sequência, uma crescente minimização da deposição em aterro, de acordo com os seguintes objectivos: até 31 de Dezembro de 2020, um aumento mínimo global para 50% em peso relativamente à preparação para a reutilização e a reciclagem de resíduos urbanos, incluindo o papel, o cartão, o plástico, o vidro, o metal, a madeira e os resíduos urbanos biodegradáveis, bem como a garantia de reciclagem de, no mínimo, 70% em peso dos resíduos de embalagens; até Julho de 2020, os resíduos urbanos biodegradáveis destinados a aterro devem ser reduzidos para 35% da quantidade total, em peso, dos resíduos urbanos biodegradáveis produzidos em 1995. Simultaneamente, pretende garantir-se a necessária compatibilização das acções a preconizar com o próximo período de financiamento comunitário 2014-2020, bem como assegurar a sustentabilidade dos sistemas de gestão e tratamento de resíduos urbanos, maximizando a eficiência destes, numa lógica de uso eficiente de recursos. Qualquer atraso na execução das operações necessárias à concretização da reprivatização da A………. poderá inviabilizar a obtenção de financiamento comunitário indispensável a assegurar uma evolução tarifária mais favorável aos cidadãos em geral e aos próprios munícipes da Amadora. Os próximos anos serão exigentes para a A………, bem como para as empresas por ela participadas, designadamente a B………., S.A., tendo em conta este novo enquadramento e as novas metas ambientais, prevendo-se investimentos acumulados de EUR 327 milhões e de EUR 645 milhões até 2020 e 2034, respectivamente. Estes investimentos têm em vista o cumprimento das metas ambientais acordadas com a Comissão Europeia no âmbito do Acordo de Parceria [Portugal 2020] e reflectidas no PERSU, bem como o cumprimento dos objectivos de serviço público propostos pelos Municípios.

8- De facto, a concretização das metas do PERSU implica um esforço de investimento cujo financiamento depende de Fundos Comunitários Europeus e da captação de recursos pelos accionistas das empresas concessionárias. A alienação da A……… tem em vista contribuir para a viabilização do esforço financeiro associado ao cumprimento de metas nacionais e europeias de índole ambiental, promover soluções de maior eficiência e eficácia económica que asseguram a prestação aos utilizadores dos sistemas de um serviço público de excelência e, em última análise, a sustentabilidade económico-financeira dos sistemas, bem como dotar a A…………. das melhores práticas no domínio ambiental e de um projecto estratégico adequado aos objectivos de desenvolvimento da economia nacional.

9- Num quadro, de todos conhecido, em que a contenção do défice orçamental, designadamente através da redução da despesa pública é uma necessidade, obrigando a que o Estado redefina o seu papel e se reforme, a abertura da gestão do sector dos resíduos a capital privado constitui um imperativo de interesse nacional que ao Governo cumpre constitucionalmente assegurar. A reprivatização da A………. constitui um passo importante na garantia da sustentabilidade do sector neste exigente quadro nacional e europeu.

10- A reprivatização da A………. encontra-se prevista no Programa de Assistência Económica e Financeira, envolvendo a Comissão Europeia, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Central Europeu, no quadro das medidas a adoptar com vista à promoção do ajustamento macroeconómico nacional.

11- Desta forma, no cumprimento do programa do Governo e das exigências decorrentes do Memorando de Entendimento, o Conselho de Ministros decidiu abrir, no passado dia 8 de Abril, o concurso público de reprivatização da A…………, tendo tido lugar uma fase de apresentação de propostas não vinculativas, e seguidamente um período de apresentação de propostas vinculativas, cujo prazo expirou no passado dia 31 de Julho.

12- O concurso ocorre num momento de viragem de ciclo da nossa economia, em que, a par com a estabilidade orçamental, o crescimento económico se torna uma prioridade. Trata-se de um momento crucial, em que a confiança na economia nacional por parte dos investidores, nacionais e estrangeiros, começa a renascer e não pode ser posta em causa, sob pena de se pôr em risco todo o esforço feito pelos portugueses ao longo destes últimos anos com as medidas de austeridade.

13- Quer a entrega das propostas não vinculativas, quer a entrega das propostas vinculativas vieram confirmar o elevado interesse que a reprivatização da A…….. tem para os investidores, assim como a crescente confiança dos mesmos na economia nacional, com a entrega de sete propostas não vinculativas, por quatro concorrentes estrangeiros e três nacionais, a que se seguiu a entrega de quatro propostas vinculativas por dois concorrentes nacionais e dois estrangeiros.

14- A providência requerida, que tem em vista defender os interesses dos municípios numa das entidades gestoras de sistemas multimunicipais - a B……….., S.A -, tem um alcance muito mais extenso do que o respeitante aos interesses do requerente, pois implica a paralisação de todo o processo de reprivatização da A…….., empresa detentora de dez entidades gestoras para além da B…………, S.A., envolvendo 174 municípios, e instrumento ao serviço do interesse nacional no sector dos resíduos urbanos.

15- A paralisação, neste momento, do concurso de reprivatização da A……., ou a simples incerteza quanto à possibilidade de conclusão do mesmo, através da respectiva adjudicação ao concorrente vencedor, desde logo pelo tempo necessário para o processo cautelar, é susceptível de defraudar o interesse legítimo dos municípios, que já declararam formalmente aderir à opção de venda nas mesmas condições de venda da participação do Estado, de poderem vender as suas acções em condições extremamente favoráveis e com impacto directo nas respectivas receitas, nos termos do artigo 42º do Caderno de Encargos.

16- Acresce que, com toda a probabilidade, também poderia acarretar gravíssimos prejuízos para os investidores, que já incorreram em elevados custos na preparação das propostas vinculativas, uma vez que destruiria a confiança que os mesmos depositaram no processo. Na verdade, ainda que se tratasse de uma suspensão pelo tempo necessário à decisão do processo cautelar, a mesma seria suficiente para que os concorrentes perdessem a confiança no processo e tivessem argumentos para pretender em desvincular-se da sua proposta, invocando a ocorrência de uma alteração a que são alheios.

17- A suspensão do concurso traria uma situação de grande incerteza sobre o desfecho do mesmo, que não é compatível com o clima de confiança incutido nos investidores que importa, em nome do interesse nacional, defender.

18- A paralisação do concurso, ou a impossibilidade de o levar ao seu termo nas condições previstas, poderia significar o seu fim, e mesmo a inviabilização da reprivatização da A………. - não apenas do presente processo, mas da própria possibilidade de alguma vez a levar a cabo -, pois implicaria não só o risco de que os investidores pretendessem desistir das propostas vinculativas que apresentaram, como certamente de que se desinteressassem de qualquer eventual processo de reprivatização do capital desta empresa - já que ninguém quererá investir num quadro marcado por tão elevado grau de incerteza.

19- Ficaria, assim, em perigo a própria reprivatização da A………., o que, nos termos expostos, acarretaria o incumprimento de uma obrigação a que o Governo se vinculou no quadro do Memorando de Entendimento, pondo ainda em risco a política de sustentabilidade do sector dos resíduos, adoptada pelo Governo, e, nessa medida, o interesse dos cidadãos.

20- As condicionantes do programa de apoios comunitários Portugal 2020 impõem a necessidade de um novo modelo de gestão que favoreça a sustentabilidade económica dos sistemas e infra-estruturas existentes no sector, o qual, conforme referido anteriormente, também ficaria em causa com a inviabilização da reprivatização da A………..

21- Parar o processo num momento em está tão perto do seu termo, e em que já houve um investimento tão sério - financeiro e de confiança - de investidores nacionais e estrangeiros seria dar um sinal muitíssimo negativo e perigoso de que afinal não se pode confiar em Portugal. Na verdade, o clima de incerteza que a paralisação traria a este concurso não ficaria certamente confinado ao mesmo, alastrando a outros sectores da economia, com um enorme potencial de destruição da confiança dos investidores e dos mercados na Economia Nacional. Ora, esse é um risco que Portugal não pode correr.

22-O interesse público nacional que ao Governo cumpre defender sairia gravemente prejudicado pela paralisação neste momento, e por tempo indeterminado, do processo de reprivatização da A………., pelo que se adopta a presente resolução.

Assim, através desta resolução fundamentada reconhece-se que existe grave prejuízo para o interesse público no diferimento da execução das disposições suspendendas, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 128º, nº1, do CPTA.

[…]

11- Em 18.09.2014, foi publicada a «Resolução do Conselho de Ministros nº55-B/2014» [nº181 da 1ª série do DR de 19.09.2014], que, nos termos do nº3 do artigo 10º do DL nº45/2014, de 20.03, do nº1 e do nº3 do artigo 30º do Caderno de Encargos aprovado pela RCM nº30/2014, de 08.04, e da alínea g) do artigo 199º da CRP, resolveu, além do mais, o seguinte:

- Seleccionar o concorrente «C………/D………/E……../F……/C…..» [Esposende], como vencedor do concurso público de reprivatização da A………….;

- Aprovação os instrumentos jurídicos a celebrar entre a AdP-Águas de Portugal S.A. [AdP], o concorrente vencedor e a sociedade a constituir pelo mesmo, nomeadamente a minuta de compra e venda;

- Autorizar a AdP celebrar com o concorrente vencedor e a sociedade a constituir pelo mesmo o contrato de compra e venda das acções da A…………

12- A sociedade «B……………, S.A.», resultante da fusão da «B’………..], S.A.», com a «B’’……..», tem por titulares do capital social, para além de outros, a A……………, com 5.040.000 acções [correspondendo a 56,17% da totalidade do mesmo], e o MA, com 232.105 acções [correspondendo a 4,60% do mesmo].

III. De Direito

1. O tema é vasto. Por isso mesmo importará enquadrar as questões colocadas, o que, de forma muito breve, passaremos a fazer.

Tanto a recolha e tratamento de resíduos sólidos urbanos, como os serviços de abastecimento de água e a drenagem e tratamento de águas residuais, vinham sendo serviços de titularidade municipal, pois era suposto visarem a satisfação de interesses próprios das respectivas comunidades locais.

Esta situação de exclusivo municipal manteve-se até 1993, altura em que o DL nº379/93, de 05.11, instituiu a figura dos sistemas multimunicipais, atribuindo a sua titularidade ao Estado por estarem em causa bens jurídicos nacionais, como a protecção do ambiente e a qualidade de vida das populações, e um conjunto de atribuições estratégicas no âmbito da gestão e exploração daqueles serviços.

Operou-se, assim, a distinção entre sistemas municipais, destinados à prestação de serviços a utilizadores finais [actividade dita «em baixa», ou «serviço retalhista»], e sistemas multimunicipais, de importância estratégica, de titularidade estatal, tendo como utilizadores essencialmente os municípios [actividade dita «em alta», ou «serviço grossista»].

Ou seja, em 1993, o Estado adoptou esta orientação por razões de «interesse nacional», assumindo, no fundo, um investimento financeiro que veio ajudar os municípios das respectivas áreas multimunicipais a suportar custos envolvidos nessas actividades de interesse público geral.

Para cumprir esta sua «obrigação», o Estado lançou mão da A…………., que, antes de ter sido nacionalizada na decorrência da «Revolução de Abril», era detida pelo «Grupo Q………..» [«Q…………, »], e funcionava como holding de gestão do mesmo.

Em concreto, a empresa «AdP» [Águas de Portugal, S.G.P.S., S.A.], passou a ser titular da totalidade do capital social da A……………., e esta passou a ser accionista maioritária de diversas sociedades concessionárias que receberam a «gestão e exploração de um sistema multimunicipal», ficando os municípios abrangidos por cada sistema com a titularidade de uma posição minoritária.

Assim foram criadas, por acto legislativo, as sociedades concessionárias R…………., S……….., T…………, U…….., V………….., B’’……., X……., Z……….., AA…….., AB………… E B…………., sendo a A………. accionista maioritária de todas elas, passando, assim, a ser a sub-holding do Estado para o sector dos resíduos sólidos [ver DL nº379/93, de 05.11; DL nº294/94, de 16.11; Lei nº88-A/97, de 25.07; DL nº195/2009, de 20.08].

Foi neste contexto que foi constituída, a 16 de Setembro de 1994, a «B’………..], S.A.», que em 25 de Setembro de 1995 lhe foi outorgado o respectivo contrato de concessão pelo Estado [através do Ministério do Ambiente e Recursos Naturais], e ainda que, em Junho de 2010 [DL 68/2010, de 15.06], se procedeu à sua fusão com a B’’………… S.A., dando origem à «B…………….. S.A.», de capitais exclusivamente públicos, a que foi atribuída a concessão da exploração e gestão do seu sistema multimunicipal.

Vinte anos passados, a opção legislativa foi reformulada, em consonância com o Programa do XIX Governo Constitucional, de forma a expurgar-se a actividade de «gestão e exploração da recolha e tratamento de resíduos sólidos» do leque das actividades que apenas podiam ser concessionadas a entidades cujo capital fosse maioritariamente público. Foi, pois, eliminado o «impedimento legal» para que a concessão de sistemas multimunicipais pudesse ser confiada a entidades dotadas de capital total ou maioritariamente privado [Lei 35/2013, de 11.06; e DL 92/2013, de 11.07].

Esta opção legislativa, pela possibilidade de transferência para o sector jurídico-privado, significa uma inversão do movimento determinado em 1975, quando se impôs a nacionalização da A…….. em conjunto com o restante Grupo Q…...

Em Março de 2014, menos de 1 ano após a alteração do dito quadro normativo, foi publicado o diploma que formalizou a opção do XIX Governo Constitucional.

Assim, o DL nº45/2014, de 20 de Março, aprovou o processo de reprivatização da A……….., concretizado pela «alienação das acções representativas de até 100% do seu capital social», a decorrer parcialmente através de «concurso público» e parcialmente através de uma «oferta pública de venda dirigida a trabalhadores» dessa empresa [dando satisfação, assim, à exigência prevista pelo nº1 do artigo 12º da Lei nº11/90, de 05.04, alterada pela Lei nº102/2003, de 15.11, e pela Lei nº50/2011, de 13.09, que enquadra as «operações de reprivatização de empresas nacionalizadas após o 25 de Abril»].

Poucos dias depois, a RCM nº30/2014, de 08.04, definiu os termos da subdivisão do capital social a alienar por concurso público e por venda directa, fixando os seus montantes, respectivamente, em 95% e 5% do capital da A…………..

Em 06.06.2014, foi publicada a RCM 36-A/2014, através da qual foram admitidos os concorrentes a participar na fase de apresentação de propostas vinculativas do concurso público de alienação das acções da A…………

Em 02.07.2014, foi publicado o DL nº108/2014, de 2 de Julho, que alterou o DL 68/2010, de 15.06, visando proceder à modificação dos estatutos da B……………..

Em 18.09.2014, foi publicada a RCM nº55-B/2014, que seleccionou o concorrente vencedor do «concurso público de reprivatização da A……….», aprovou a minuta do contrato a celebrar, e autorizou a celebração do respectivo contrato de compra e venda das acções da A……………

Resulta, pois, que a«reprivatização da A……..» através da alienação a privados da maioria das suas acções, não visa apenas a sua transformação numa empresa de capital e gestão privados, mas sim, também, a transformação em empresas privadas das onze empresas públicas de que a A…………… é sócia maioritária e que são detentoras de «concessões de sistemas multimunicipais de valorização e tratamento de resíduos sólidos urbanos»[ver Preâmbulo do Dl nº96/2014, de 25.06].

É deste contexto que nascem as várias «questões» colocadas no âmbito deste processo cautelar, pelo que o teremos sempre presente ao abordá-las.

2. São as seguintes as «questões» a abordar no presente acórdão, enumeradas numa sequência de lógica jurídica: - A competência material desta jurisdição para apreciar o pedido cautelar relativo ao DL nº108/2014, de 2 de Julho [artigos 4º, nº2 alínea a), e 24º, nº1 alínea c), do ETAF]; - A pretendida declaração de ineficácia de actos de execução indevida [artigo 128º, nº4, do CPTA]; - A adequação dos regimes jurídicos que são invocados pelo requerente cautelar [artigos 132º e 120º do CPTA]; - A ocorrência ou não do requisito do fumus boni juris [artigo 120º, nº1, alíneas a) e b), in fine, CPTA]; - A ocorrência ou não do requisito do periculum in mora [artigo 120º, nº1 alínea b), in principio, CPTA]; - A ponderação de interesses e danos [artigo 120º, nº2, do CPTA].

3. Um dos pedidos cautelares deduzidos pelo município requerente MA, consiste na suspensão «do acto materialmente administrativo contido no DL nº108/2014, de 02.07, que procedeu à alteração dos estatutos da B………».

Quanto a este pedido cautelar, excepcionou o CM a «incompetência absoluta da jurisdição administrativa» para dele conhecer.

E com razão, como já foi decidido, aliás, por este Supremo Tribunal em acórdão de 09.10.2014 [Processo nº0951/14], com esse exacto objecto, e, ainda, na sequência do mesmo, pelos acórdãos de 23.10.2014 [Proc.º 0856/14] e 06.11.2014 [Proc.º 940/14], com objecto similar.

Repetimos aqui a fundamentação jurídica desse primeiro aresto, por suficiente, sendo com base nela que também decidimos deferir a «excepção dilatória» em apreço.

Aí se diz o seguinte:

[…]

«Na análise deste meio cautelar - que visa suspender a eficácia do acto administrativo alegadamente «formalizado» através do DL nº108/14, de 02.07 - a questão que primeiramente se coloca respeita à competência absoluta do tribunal, negada pelos requeridos que deduziram oposição. E convém precisar já o âmbito do conhecimento do assunto.

Essa excepção dilatória de incompetência «ratione materiae» assume-se, virtualmente, como uma circunstância obstativa «ao conhecimento do mérito da pretensão formulada ou a formular» no processo principal [ver o artigo 120º, nº1, alínea b), in fine, do CPTA]. Mas tal excepção não foi assim apresentada nas contestações, já que estas directamente a assumiram como impeditiva do conhecimento da própria providência.

Isto significa que os contestantes, ao arguirem a incompetência do tribunal em razão da matéria, quiseram que o STA se declarasse incompetente para conhecer do meio cautelar, em vez de se limitar a indeferi-lo por causa de uma incompetência localizada na acção principal. E, tendo a excepção dilatória estes contornos, logo se vê que a averiguação da sua existência pode realizar-se para além de um campo demarcado pelo que pareça evidente ou manifesto.

E deve mesmo realizar-se assim, por força da própria índole da excepção. Nos tribunais especializados, os problemas de competência resolvem-se sempre pela afirmativa; pois seria absurdo que um desses tribunais, permanecendo na dúvida sobre a sua competência, superasse esse «non liquet» afirmando-se competente. É claríssimo que um tribunal administrativo não pode decidir um meio cautelar sem antes se ter assegurado de que, ao menos provavelmente, dispõe da competência necessária para o efeito. O que reclama uma pesquisa susceptível de exceder, até em muito, a imediação da evidência.

Esclarecida a amplitude do quadro cognitivo em que nos moveremos, há que averiguar se o acto suspendendo é um acto administrativo vero e próprio, como sustenta o requerente, ou se é, antes, um acto normativo pressuposto donde flui a excepção de incompetência «ratione materiae», deduzida nas contestações.

O requerente vislumbra tal acto administrativo no DL nº108/2014, de 02.07, tomado na sua globalidade. E este modo de identificação do acto - que nada tem a ver com a sua prova, questão que o Conselho de Ministros colocou e agora não releva - põe-nos imediatamente de sobreaviso; pois, se é indiscutível a possibilidade dum decreto-lei conter actos administrativos [«vide» os artigos 268º, nº4, da CRP, e 52º, nº1, CPTA], já começa a ser assaz improvável que um diploma desse tipo, que se espraia por quinze artigos, se reconduza à definição inserta no artigo 120º do CPA.

Mas deixemos as probabilidades e procuremos as certezas. O DL nº108/2014, isto é, o acto ora suspendendo, alterou o DL nº68/2010, de 15.06, e o seu anexo. Este diploma incidira fundamentalmente sobre quatro pontos: criara o sistema multimunicipal de triagem, recolha selectiva, valorização e tratamento de resíduos sólidos urbanos das regiões de Lisboa e do Oeste; constituíra a sociedade […]; atribuíra a concessão da exploração e gestão do sistema a essa sociedade; e, em anexo, aprovara os estatutos da […]. Todos esses pontos persistem no regime trazido pelo DL nº108/2014, embora com alterações várias em que avulta uma, que especialmente desagrada ao requerente - a possibilidade, antes excluída, do capital social da […] ser maioritariamente detido por entidades privadas.

Assim, o DL nº108/2014 cumpriu uma função alteradora, e substitutiva, relativamente à versão original do DL nº68/2010. Ora, tendo em conta as características dessa função, o DL nº108/2014 só poderá ser um acto administrativo se o DL nº68/2010 o for também. E isto não decorre de meros ideais de simetria lógica, aliás merecedores de atenção; pois funda-se na própria natureza das coisas, que há-de ser idêntica em dois diplomas que intentaram reger sucessivamente o mesmo assunto, tratando-o num único e mesmo plano. Portanto, a resposta ao problema de saber se o DL nº108/2014 é, ou não, um acto administrativo tanto pode ser dada a partir deste diploma como a partir do DL nº68/2010 - posto que a natureza de ambos tem de ser idêntica.

É significativo que o requerente não tenha ousado dizer que o DL nº68/2010 era, já, um acto administrativo - revogado, por substituição, pelo DL nº108/2014. Mas isso, que o requerente silenciou, concorda, «ex necessitate», com a ideia exposta no requerimento inicial. Com efeito, já acima dissemos que as preocupações do requerente se centram na recomposição da estrutura accionista da […], operada pelo DL nº108/2014. Ora, tenderíamos a aceitar que a qualificação deste diploma, como acto administrativo, estava certa se o DL nº68/2010, ao constituir a […] tal e qual fez -isto é, com os estatutos aprovados em anexo e alterados pelo acto suspendendo- contivesse logo um acto administrativo.

Em tese, não é absolutamente impossível que a lei preveja que uma sociedade venha a constituir-se por acto administrativo, pois até já se reconheceu que uma hipótese desse género existira no passado [ver Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, volume I, página 353]. Mas, à resolução do problema presente, interessa, não o que a lei poderia ter previsto, mas o que efectivamente previu - o que nos remete para a pesquisa do título jurídico que legitimou a edição do DL nº68/2010.

Ora, esse título não está no regime jurídico do sector público empresarial, que constou do DL nº558/99, de 17.12, e está hoje vertido no DL nº133/2013, de 03.10 - como alvitra o requerente; nem está noutros diplomas que as partes exuberantemente convocaram. O dito título constava, sim, do DL nº379/93, de 05.11 - aliás, citado no preâmbulo do DL nº68/2010, de 15.06 - cujo artigo 3º, nº2, impusera que a «criação e a concessão» dos sistemas multimunicipais do sobredito género fossem «objecto de decreto-lei». E é óbvio que, ao prever a «criação e a concessão» desses sistemas por «decreto-lei», o legislador do DL nº379/93 estava a impor a concomitante constituição, subordinada à mesma forma, das sociedades concessionárias que haveriam de geri-los, se elas ainda não existissem; pois seria impossível passar-se à concessão do sistema criado por decreto-lei sem aí se constituir também, e «uno actu», a sociedade concessionária.

A imposição de que tais matérias se regulassem por decreto-lei não era insignificante nem casual - e, tanto assim, que persiste no artigo 3º, nº1, do DL nº92/2013, de 11.07, cujo artigo 13º revogou o referido DL nº379/93. Se o legislador impôs essa forma - legislativa - de expressão é porque a considerou mais adequada ao caso que previu [artigo 9º, nº3, do Código Civil]; e essa melhor adequação só poderia advir do facto de, nos decretos-leis criadores dos mencionados sistemas multimunicipais, se corporizarem opções de índole normativa, em vez de pronúncias que pudessem ser assimiladas a actos administrativos.

Ora, quando o próprio legislador qualifica as suas intervenções de um certo tipo como legislativas, fica, «ipso facto», autenticado o género de actuação que ele realizará. Persiste, evidentemente, a possibilidade de, dentro dessa actividade legislativa, se ter anomalamente insinuado a prática de algum acto administrativo «próprio sensu». Mas a insistência em olhar-se todo um diploma legal, cuja produção foi prevista noutro, como um acto administrativo esbarra num decisivo obstáculo - o dessa qualificação ser imediatamente «contra legem».

Assim, tanto o DL nº68/2010 como o DL nº108/2014 assumiram forma legislativa porque havia leis anteriores que a impunham. E tal imposição, por si só, descaracteriza logo tais diplomas como actos administrativos e insta a encará-los como actos normativos.

E, contra isto, é vão argumentar -como faz o requerente- em torno das características de generalidade e abstracção. Estas são, decerto, duas notas que normalmente acompanham a normatividade e habilitam a distinguir entre actos e normas. Mas nem sempre, já que é sabido que o intervencionismo estatal opera hoje frequentemente através de comandos que incidem sobre realidades particularizadas ou determinadas e que, não obstante, adoptam e possuem o valor de lei. E os diplomas legais dotados dessas especiais características têm sido agrupados num conceito significativamente designado como «leis-medida» ou «leis-providência» [ver o acórdão do STA de 12.01.99, proferido no recurso nº44.490].

Aliás, parece ter sido isso que ocorreu «in casu», com os DL’s nºs 68/2010 e 108/2014 - enquanto actuantes no plano da constituição e da modificação da estrutura accionista de uma sociedade anónima. Seja qual for o grau de generalidade e de abstracção que divisemos nesses diplomas, é inequívoco — até pelo que sucessivamente dispuseram os DL’s nºs 379/93 e 92/2013 quanto à necessidade do assunto ser «objecto de decreto-lei» - que as pronúncias vertidas no «acto» suspendendo e no decreto-lei que ele modificou se pretenderam normativas e foram-no na realidade.

Ademais, se dúvidas houvesse, elas haveriam de resolver-se em favor da normatividade - como este STA já decidiu [«vide» o acórdão de 03.11.2004, proferido no processo nº678/04].

Face à índole normativa do DL nº108/2014, é ocioso averiguar se ele foi o fruto de uma opção política ou meramente administrativa. É que, nesta última hipótese - a que tomasse o DL nº108/2014 como uma mera particularização modal de uma escolha política de fundo - continuaríamos a ter de afirmar a natureza legislativa do acto suspendendo, visto que não há regulamentos sob forma legislativa. Neste ponto, a doutrina e a jurisprudência são unânimes no sentido de que as normas formalmente legislativas emanadas do Governo são havidas como tal, não sendo possível negá-lo a pretexto de que elas seriam materialmente administrativas [ver o acórdão do Pleno do STA, proferido em 07.06.2006 no recurso nº1257/05].

Consequentemente, o acto suspendendo não é administrativo, mas legislativo. Ora, está excluída do âmbito da jurisdição administrativa a impugnação - e, nessa medida, também o conhecimento de algum meio cautelar que a prepare [artigo 24º, nº1, alínea c), do ETAF] - de actos praticados no exercício da função legislativa [«vide» o artigo 4º, nº2, alínea a), do ETAF]. E essa incompetência «ratione materiae» do STA -inicialmente indiciada no facto da providência ter por alvo todo um decreto-lei e que, agora, consideramos demonstrada e manifesta- prejudica a apreciação do mérito da providência, nos termos gerais [artigo 278º, nº1, alínea a), do CPC]». […]

Temos, assim, que o DL nº108/2014, de 02.07, que alterou o DL nº68/2010, de 15.06, não é acto administrativo, mas acto normativo, e que, atento o disposto nos artigos 4º, nº2, alínea a), e 24º, nº1, alínea c), do ETAF, o STA carece de competência material para conhecer do pedido de «suspensão da sua eficácia».

Resta, pois, e também aqui, declarar essa incompetência em razão da matéria, e «absolver da instância» o requerido cautelar, CM, relativamente a esse pedido cautelar [artigos 278º, nº1 alínea a), do CPC, ex vi 1º CPTA].

4. O requerente cautelar, confrontado com a prolação da RCM nº55-B/2014, de 18.09.2014, durante a pendência deste processo, veio requerer a declaração de ineficácia, ao abrigo do artigo 128º, nº4, do CPTA, dos actos dela constantes - «selecção do concorrente C……./D…………../E……./F………./C…….., como vencedor do concurso público de reprivatização da A……….; aprovação dos instrumentos jurídicos a celebrar entre a AdP-Águas de Portugal S.A. [AdP], o concorrente vencedor e a sociedade a constituir pelo mesmo, nomeadamente a minuta de compra e venda; e autorização para a AdP celebrar com o concorrente vencedor e a sociedade a constituir pelo mesmo o contrato de compra e venda das acções da A………….».

O requerido cautelar veio dizer, sobre este requerimento, que o mesmo deveria ser liminarmente recusado, ou pelo menos deveria improceder.

Vejamos.

A permissão de iniciar ou prosseguir a execução de acto suspendendo, durante a pendência do respectivo processo cautelar, constitui mecanismo excepcional. Assim, a resolução fundamentada, proferida ao abrigo do artigo 128º, do CPTA, só é justificável quando «a lesão para o interesse público resultante do deferimento da execução for grave», devendo «as razões demonstrativas dessa gravidade constar da resolução», na certeza de que esta não deverá operar os seus efeitos típicos se tais razões faltarem totalmente, forem irreais, ou não estiverem logicamente concatenadas com a afirmação do «grave prejuízo para o interesse público» [ver, entre outros, AC STA de 25.08.2010, Processo nº0637/10].

Deste jeito, quando se decide sobre a invocada ineficácia de actos de execução praticados ao abrigo de resolução fundamentada, deve, apenas, verificar-se se essa «resolução» existe, se foi emitida dentro do prazo legalmente estipulado, e se está fundamentada no sentido de mostrar que o deferimento da execução, que é a regra, será gravemente prejudicial, e não apenas inconveniente, para o interesse público.

Ora, no presente caso é certo que a «resolução fundamentada» existe [ponto 10 do provado], foi emitida em prazo [pontos 9 e 10 do provado], e contém, de forma suficiente e clara, cremos, as razões justificativas do grave prejuízo para o interesse público decorrentes do deferimento da execução.

Na verdade, lida essa resolução, constatamos que ela contém a enunciação de um conjunto de factos, ou, se quisermos, de juízos de valor sobre factos, que a levam a concluir que o «interesse público nacional que ao Governo cumpre defender sairia gravemente prejudicado pela paralisação neste momento, e por tempo indeterminado, do processo de privatização da A……….».

Nela se alega, nomeadamente: o carácter essencial da prossecução do interesse público nacional na concretização do procedimento concursal em questão, para efeitos da promoção da sustentabilidade da política e do sistema de gestão de tratamento de resíduos, em cumprimento do Programa de Governo e das metas ambientais nacionais e europeias acordadas com a Comissão Europeia, e materializadas, mormente, no acordo de parceria «Portugal 2020», e reflectidas no novo «PERSU 2020»; o aproveitamento dos investimentos com recurso imperioso e necessário aos Fundos Comunitários Europeus, num contexto de difícil situação financeira do País e num quadro de grandes restrições ao nível da despesa pública; o quadro de contenção do défice orçamental, que exige do Estado Português a redefinição do seu papel e sua reforma, assumindo-se a privatização da A………. como um passo na garantia da sustentabilidade do sector e na promoção do ajustamento macroeconómico nacional no âmbito das obrigações assumidas pelo País no Programa de Assistência Económica e Financeira que envolve a Comissão Europeia, FMI e BCE; e a prossecução/relevância do interesse público nacional, dos interesses dos concorrentes e dos interesses dos municípios que declararam a opção de venda na prossecução do concurso.

Trata-se de um acervo de razões factuais, claras e congruentes, que permitem aos destinatários, mormente ao tribunal, perceber a motivação que conduziu à necessidade de «continuar com a execução», e de perceber que a sustação da mesma é passível de «prejudicar gravemente» o interesse nacional, pois que os juízos a tal respeito emitidos se mostram perfeitamente plausíveis.

Naturalmente que ao ajuizar sobre este tipo de «fundamentação», não poderá o tribunal entrar na análise da «oportunidade» dos actos em causa, nem invadir aquilo que são as margens da «decisão política». Daí que as críticas efectuadas pelo requerente a esse respeito se mostrem insubsistentes, e se imponha o seu desatendimento.

Em suma: deve ser julgado improcedente o incidente em apreço, deduzido nos termos do artigo 128º, nº4, do CPTA.

5. Como referimos no «Relatório» deste acórdão, o município requerente deduz o pedido de «suspensão do procedimento concursal» ao abrigo do artigo 132º do CPTA, e os demais pedidos de «suspensão de actos contidos nas Resoluções do Conselho de Ministros nº30/2014 e nº36-A/2014» ao abrigo do artigo 120º do mesmo diploma.

Mas esta «dualidade de regimes» aplicável à mesma situação jurídica não tem, cremos, qualquer justificação legal.

Desde logo, estamos no âmbito de um «processo de reprivatização», através de «concurso público», realizado nos termos da «Lei Quadro das Privatizações»[LQP – Lei nº11/90, de 05.04, alterada pela Lei nº102/2003, de 15.11, e pela Lei nº50/2011, de 13.09], ao qual não se aplica o «Código dos Contratos Públicos» mas sim o «Código dos Valores Mobiliários» [artigo 6º da LQP]. Aliás, este processo de reprivatização da A……….. foi aprovado pelo DL nº45/2014, 20.03, que previne, no nº4 do seu artigo 2º, que «Ao concurso público previsto no nº anterior não se aplica o disposto no Código dos Contratos Públicos aprovado pelo DL nº18/2008, de 29 de Janeiro».

Embora esta não seja, de modo algum, razão definitiva para devermos afastar a aplicação do artigo 132º do CPTA ao caso em juízo, certo é, no entanto, que ela alerta para a especificidade da situação jurídica em causa, e impõe cuidado no enveredar por soluções demasiado óbvias.

Trata-se, de facto, de um procedimento específico, que se desenvolve mediante uma selecção progressiva de propostas, as quais, depois de avaliadas, levam à selecção do concorrente vencedor, isto é, daquele com o qual irá ser celebrado o contrato de compra e venda das acções da A………..

Sendo que esta reprivatização tem como objectivo, que já vinha traçado desde o «Programa» do XIX Governo Constitucional, «a promoção da sustentabilidade da política e do sistema de gestão e tratamento de resíduos, e a autonomização deste sector no seio do Grupo Águas de Portugal» [ver preâmbulo do DL nº45/2014, de 20.03].

O artigo 132º do CPTA, trata de «providências relativas a procedimentos de formação de contratos», e estipula que «Quando esteja em causa a anulação ou declaração de nulidade ou inexistência jurídica de actos administrativos relativos à formação de contratos, podem ser requeridas providências destinadas a corrigir a ilegalidade ou a impedir que sejam causados outros danos aos interesses em presença, incluindo a suspensão do procedimento de formação do contrato».

Ora, sem pôr em causa que este regime cautelar possa ser aplicável ao concurso em apreço, certo é que, no caso concreto, a posição e a pretensão cautelar do requerente não se coadunam com a teleologia do preceito, de modo a poderem ser por ele abrangidas.

Na verdade, tudo aponta para que ele se destine a candidatos ao concurso que, face a ilegalidades ocorridas em actos relativos à formação do contrato visado, podem requerer providências «destinadas a corrigir a ilegalidade» ou a impedir «que sejam causados outros danos aos interesses em presença».

Mas não é o que acontece no presente caso. O município requerente, MA, nem é concorrente ao «concurso público de reprivatização da A……….» nem foi preterido no âmbito do mesmo.

Ele não imputa aos actos suspendendos qualquer ilegalidade, nem tão pouco ao desenrolar do procedimento, donde pudessem derivar consequências lesivas para uma eventual posição já por ele alcançada no concurso ou para a expectativa de a vir a alcançar.

O que acontece é que tal concurso público concretiza e efectiva a opção política do XIX Governo Constitucional de reprivatizar a A…………, opção de que o requerente cautelar totalmente discorda, sendo que a forma encontrada para paralisar essa opção política foi a de atacar os respectivos actos de concretização, ainda que a estes nada mais tenha a opor do que essa radical discordância.

Esta é uma conclusão legítima extraída dos contornos desta lide cautelar, e que, a nosso ver, a afasta irremediavelmente do âmbito de aplicação do artigo 132º, pois que através dela não se pretendem corrigir ilegalidades na mira da sanidade jurídica do procedimento concursal, antes se pretende arredar este da ordem jurídica por absoluta discordância com a sua finalidade.

Temos para nós, portanto, que a pretensão cautelar do recorrente, globalmente considerada, cabe por inteiro no âmbito do regime do artigo 120º do CPTA.

6. O requerente cautelar, MA, intenta ver decretada a providência conservatória requerida desde logo com base na alínea a) do nº1 do artigo 120º do CPTA.

A seu ver, os actos integrados na RCM nº30/2014, e na RCM nº36-A/2014, que configuram momentos decisórios relevantes no iter procedimental reprivatizador da A………, são «manifestamente ilegais», e, porque assim é, torna-se evidente a procedência da pretensão que vai formular na respectiva AAE, e na qual pedirá que os mesmos sejam declarados nulos, ou pelo menos anulados.

Quando assim não se entenda, continua, sempre deverá ser considerado como preenchido o pressuposto do «fumus non malus juris» previsto na parte final da alínea b) do nº1 do artigo 120º do CPTA, porquanto nem é manifesta a falta de fundamento da pretensão impugnatória que irá formular no processo principal, nem a existência de circunstâncias que obstem ao conhecimento do seu mérito.

Defende, ao longo de 89 artigos do seu requerimento inicial [149 a 238], que esses referidos actos são manifestamente ilegais, em síntese, pelas seguintes razões:

- Porque o processo de reprivatização da A………, ao entregar ao sector privado a «concessão da gestão e exploração de sistemas multimunicipais, fá-lo em manifesto confronto com a vontade dos municípios, e retira-lhes atribuições, pelo que os diplomas e actos subjacentes ao processo de reprivatização da A……. são inconstitucionais por violarem a «reserva legislativa da Assembleia da República em matéria de regime das autarquias locais» [artigos 165º, nº1 alínea q), da CRP; 23º, nº1 alínea k), da Lei nº75/2013, de 12.09]. Além disso, o acto que vier a titular a «alienação das acções da A………..» e, desse modo, a retirar da esfera do Estado o controlo da B………., será nulo por via do artigo 133º, nº2 alínea b), do CPA, por violar as atribuições dos municípios.

- Porque a alienação das acções representativas do capital social da A……… implicará que mais de 51% das acções da classe «A», representativas do capital social da B………., deixem de ser detidas por entes públicos, ou pelos municípios detentores do sistema multimunicipal de Lisboa e Oeste, motivo pelo qual ocorre violação da reserva de lei sobre o sector público empresarial [artigos 5º, nº3, e 8º, nº1, do DL 68/2010, de 15.06], sendo nulo, por via do artigo 8º, nº2, dos Estatutos da B……….., esse acto que vier a titular a transmissão do capital social da A………….

- Porque o DL nº108/2014, de 02.07, padece de inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva legislativa da Assembleia da República [artigo 165º, nº1 alínea u), da CRP], na medida em que viola «as bases gerais do sector empresarial do Estado» definidas no Regime Jurídico do Sector Público Empresarial. Motivo pelo qual será inválida a alteração dos Estatutos da B………….., e, consequentemente, também o será a aquisição de acções da A………… por entidades privadas.

- Porque o DL nº108/2014, de 02.07, ao alterar os estatutos da B……….. viola o artigo 386º, nº3, do Código das Sociedades Comerciais, por força do artigo 56º, nº1 alínea d), do mesmo código, aplicável por remissão do artigo 36º do Regime Jurídico do Sector Público Empresarial, e 6º, nº3, do DL nº68/2010, de 15.06. Motivo pelo qual será inválida a alteração dos Estatutos da B………….., e consequentemente o será a aquisição de acções da A……… por entidades privadas.

- Porque a alienação das acções da A………… constitui, no plano material, um acto de adjudicação de uma «concessão de serviços públicos» [artigo 73º do CCP], sendo que o mesmo não foi precedido do procedimento pré-contratual legalmente previsto, sendo que o acto de adjudicação proferido com preterição de concurso público é nulo porque carece de um elemento essencial [artigo 133º, nº1, 1ª parte, do CPA].

Como tem vindo a ser dito pela jurisprudência deste STA, de formas diversas, o juízo de «evidência» exigido no artigo 120º, nº1 alínea a), do CPTA, é tributário de uma ideia de clareza, por ter carácter inequívoco para qualquer jurista, tal como acontece, nomeadamente, em casos de «acto manifestamente ilegal» [ver, entre muitos outros, AC STA de 24.09.2009, Rº0821/09; AC STA de 09.12.2009, Rº0799/09; AC STA de 18.03.2010, Rº0105/10; AC STA de 25.08.2010, Rº0637/10; AC STA de 27.07.2011, Rº0520/11; AC STA de 25.09.2012, Rº0588/12; AC STA de 26.09.2012, Rº0720/12; AC STA de 06.11.2012, Rº0855/12; AC STA de 30.01.2013, Rº01253/12; AC STA de 20.03.2014, Rº0148/14; e AC STA de 26.06.2014, Rº0500/14].

O carácter manifesto da ilegalidade não se compadece com aturados trabalhos de análise e subsunção jurídica, nem pode derivar da análise aprofundada das teses doutrinais ou jurisprudenciais trazidas aos autos pelas partes, em abono das suas pretensões.

A isso se opõe a natureza urgente do processo cautelar, que apenas impõe uma prova sumária e uma análise perfunctória das questões que suportam o litígio, de modo a poder ser proferida decisão no mais curto período temporal possível, e sem invadir ou esgotar o objecto do processo principal.

Esta análise perfunctória não arreda, porém, um discurso argumentativo, já que o êxito ou malogro da acção principal não deixará de ser evidente ou manifesto por se concluir a partir de raciocínios jurídicos. O que se exigirá, para se poder afirmar o estado de evidência, é que esse discurso seja simples, claro e sólido, eliminando quaisquer dúvidas.

Por sua vez, o requisito da aparência de «bom direito» previsto na alínea b), in fine, do nº1 do artigo 120º do CPTA, consubstancia um critério largo, bastando, para o seu preenchimento, que «não seja manifesta a falta de fundamentação da pretensão a formular no processo principal».

Fixada a pretensão, e o seu enquadramento jurídico, vejamos se assiste razão ao requerente no que concerne à verificação do requisito do «fumus boni juris».

Constatamos que ele desenvolve a sua tese da «manifesta ilegalidade dos actos suspendendos», alicerçadora da verificação do requisito do bom direito previsto na dita alínea a), a título principal, ou alínea b), a título subsidiário, numa assaz extensa exposição argumentativa, com 89 pontos do requerimento cautelar, e, ainda, coadjuvada por um parecer jurídico de 82 páginas.

A essa exposição argumentativa opôs o requerido cautelar, CM, uma ainda mais extensa argumentação, que procurou escudar, também, em parecer jurídico de 111 páginas.

Só por si, a constatação destas teses cruzadas, longas, complexas e eivadas de razoabilidade jurídica, parece impor a conclusão de não ser evidente a razão do requerente cautelar, no sentido da procedência da pretensão que irá deduzir na acção administrativa impugnatória.

As várias «inconstitucionalidades e ilegalidades» que ele imputa aos actos cuja eficácia quer ver suspensa, melhor dito, que ele imputa ao procedimento para a reprivatização da A……………., de que definitivamente discorda, não são manifestas em qualquer dos sentidos referidos. Ou seja, nem são ilegalidades patentes, por si mesmas, nem são demonstráveis através de um discurso simples, claro e sólido de forma a não deixar dúvidas justificadas.

A manifesta ilegalidade dos actos não é, pois, apreensível com os instrumentos próprios do processo cautelar, isto é, mediante avaliação sumária e perfunctória das várias e complexas questões suscitadas, cuja apreciação profunda deve ser realizada na acção impugnatória que o ora requerente irá instaurar.

Porém, e como já ressuma do que vimos dizendo, apesar das questões jurídicas em que se baseiam os fundamentos de inconstitucionalidade e ilegalidade que o requerente cautelar suscita não serem de solução simples, e pacífica, mostram-se, em abordagem perfunctória, perfeitamente razoáveis e defensáveis, como, aliás, o atesta os pareceres jurídicos apresentados em abono das duas teses.

Não é «manifesta», por conseguinte, a falta de fundamento da pretensão que o requerente cautelar vai formular na AAE, nem a existência de circunstâncias que obstem ao conhecimento do seu mérito.

Em suma: verifica-se no caso, e apenas, o «fumus non malus juris» previsto na alínea b), in fine, do nº1 do artigo 120º do CPTA.

7. O requerente cautelar, MA, pretende ver decretada a providência cautelar de natureza conservatória porque, em seu entender, se verifica, ainda, o requisito do «periculum in mora» previsto na parte inicial da alínea b), do nº1, do artigo 120º do CPTA.

Alega que não suspender o procedimento de formação do contrato de compra e venda das acções representativas do capital social da A…………., levará, com toda a certeza, à adjudicação da celebração desse contrato a um dos concorrentes, o que lesará, diz, os seus interesses legalmente protegidos, e provocará danos de impossível ou muito difícil reparação na sua esfera jurídica.

Explica que, uma vez operada a reprivatização, a A………. e as concessionárias em que participa, entre as quais a B……………, passarão para a esfera privada, o que acarretará uma «quebra na relação de confiança institucional» existente entre o accionista público maioritário[A………..] e os accionistas públicos minoritários [municípios], que nesta situação têm tido assento no Conselho de Administração da B………., e aí têm defendido os seus direitos e acautelado os seus interesses.

Além disso, haverá, também, uma quebra na expectativa de que a B………. se mantivesse com um estatuto exclusivamente público, situação essa que ajudou, em muito, a determinar os municípios a aderir ao projecto da sua constituição.

O processo de reprivatização da A…….. fez «tábua rasa» do direito de preferência que assistia aos municípios abrangidos pela B……… quanto à transmissão de acções por parte dos restantes accionistas, e, consumado tal processo, com a privatização indirecta da B……………, fica impossibilitado o exercício de tal direito de preferência.

Conclui que todos estes prejuízos, que ele pretende evitar com a concessão da providência de suspensão de eficácia em apreço, se mostram de «impossível ou muito difícil reparação», de tal modo que, produzindo-se ao longo da pendência da acção principal, o seu ganho de causa nesta enfrentaria a impossibilidade de reintegrar a sua esfera jurídica de acordo com a legalidade.

Efectivamente, este requisito do «periculum in mora» visa apurar se a prolação tardia de um juízo definitivo na causa principal é susceptível de promover danos em grau tão elevado, ou de produzir uma situação de tal modo irreversível, que a eficácia reintegratória da decisão principal já não assegure a plena reconstituição anterior, por a mesma ser muito difícil ou impossível.

Na economia do requisito em análise, tal como está consagrado na alínea b) do artigo 120º do CPTA, o «facto» é havido como «consumado» por referência ao fim a que se destina a acção principal de que o processo cautelar depende. Isto significa que ocorrerá «situação de facto consumado» quando, a não se deferir a pretensão cautelar, «o estado de coisas que a acção quer influenciar ganhará, entretanto, a irreversível estabilidade inerente ao que já está terminado»[ver AC STA de 31.10.2007, Rº0471/07; e AC STA de 02.12.2009, Rº0438/09].

Ora, como aliás já salientamos, o que o requerente cautelar realmente pretende com esta sua pretensão, é impedir a reprivatização da A………., e, com ela, impedir, na sua perspectiva, a «privatização» indirecta da B………., já que tal operação fere, alegadamente, os seus interesses enquanto entidade autárquica, e os seus direitos enquanto accionista da B………..

Verdade é que a acção principal, ou melhor, a eficácia reintegratória da decisão nela a proferir, se favorável ao ora requerente cautelar, deixará de ter grande utilidade face à concretização da venda das acções da A…….. [do Estado] a entidades privadas, à transformação jurídico-societária da mesma empresa, e à alteração e privatização da B………. enquanto concessionária do sistema multimunicipal para valorização e tratamento de resíduos sólidos das regiões de Lisboa e Oeste.

Como já disse este Supremo Tribunal, noutro aresto relativo ao caso em análise, «sem o decretamento das providências cautelares, na hipótese de ganho de causa no processo principal, tendo em conta os interesses envolvidos […] há uma forte probabilidade de se constituir uma situação que retire a possibilidade ou torne improvável, em sede executiva, a reintegração específica da ordem jurídica violada, mediante a reposição do status quo ante-periculum in mora - comprometendo a satisfação dos interesses que os requerentes visam assegurar na acção» [AC STA de 09.07.2014, Processo nº561/14].

A situação de «facto consumado», como a própria expressão indica, faz apelo à realidade empírica, e não necessariamente à realidade jurídica, pelo que cremos que a sua verificação não se poderá limitar a casos de «impossibilidade jurídica» de reintegração, abrangendo também os casos em que essa impossibilidade se configura como meramente empírica, casos em que a situação que se pretendia evitar ganhou a irreversibilidade própria daquilo que está acabado, terminado, e se mostra praticamente impossível de reverter.

Porque é precisamente isso que acontece com a reprivatização da A………., é nossa convicção que se verifica, in casu, o requisito do «periculum in mora» exigido na parte inicial da alínea b) do nº1 do artigo 120º do CPTA.

8. Verificados os requisitos do «fumos Bona júris» e do «percutem ir mora», diz o nº2 do artigo 120º do CPTA que «a adopção da providência ou das providências será recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados, em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adopção de outras providências».

A este respeito, o requerente cautelar remete, fundamentalmente, para aquilo que articulou para efeitos do preenchimento do «percutem ir mora».

Alega que a não suspensão da eficácia dos actos em causa conduzirá à extinção ou transformação extintiva da B……….., pois que deixará de ser uma empresa pública e de perseguir, nessa perspectiva, os respectivos fins societários, com o que isso significa de frustração das expectativas dos municípios integradores do pertinente sistema multimunicipal.

Alega que a passagem da A…………., e B……………., para o sector privado, acarreta uma quebra de confiança entre o accionista maioritário desta e os municípios, e que poderá prejudicar a posição destes no respectivo Conselho de Administração, bem como a defesa dos seus direitos e interesses.

Alega que a reprivatização da A…………, e a consequente privatização da B…………., tal como vai ser feita, o impossibilita definitivamente de exercer o seu direito de preferência relativamente à transmissão das acções de outros accionistas dessa empresa.

Ou seja, este tipo de alegação realça sobretudo «interesses do requerente», em manter no sector público a empresa A………., e, por via dela, a B…………, em não ver frustrada a sua expectativa nessa manutenção, por achar que lhe é benéfica, em manter a confiança institucional alegadamente existente entre o Estado [A…….] e os municípios e manter invocado o seu direito de preferência na aquisição das acções dos restantes accionistas da B…………

Quanto a danos, apenas alega o requerente cautelar que o desrespeito por tais interesses, decorrente da não suspensão dos actos em causa, e da consequente reprivatização da A……….., através da venda das suas acções, «provocará danos de impossível ou muito difícil reparação na sua esfera jurídica».

Ora, a imposição da «recusa» da adopção da providência requerida, tal como é consagrada pelo nº2 do artigo 120º do CPTA, emerge de três juízos que, apesar de interactivos, são metodologicamente distintos: - o juízo de ponderação sobre os interesses públicos e privados, em presença; - o juízo sobre a superioridade dos danos que resultariam da concessão da providência, em face daqueles que podem resultar da sua recusa; - e o juízo sobre a possibilidade de evitar ou de atenuar aqueles primeiros danos, através da adopção de outras providências.

Como vemos, para realizar esta «avaliação complexa» certo é que para além da alegação dos interesses presentes no caso, e a ponderar pelo julgador, deverão também ser alegados danos concretos que resultariam da concessão e da recusada providência, de modo a habilitar o julgador a concluir pela superioridade ou não dos primeiros.

Os danos resultantes da recusa deverão ser alegados, por regra, pelo respectivo requerente cautelar, dado integrarem a respectiva causa de pedir, enquanto os danos que podem resultar da concessão deverão ser alegados, isto também por regra, pelo requerido cautelar [artigo 342º do CC].

Acontece que no presente caso, como ressuma do que ficou dito, o requerente cautelar não concretiza quaisquer danos, para além dos interesses referidos, que nos permitam realizar aquele «juízo de superioridade» que é indispensável à dita avaliação interactiva e complexa exigida pelo nº2 do artigo 120º do CPTA.

Nem sequer invoca, neste caso, que a reprivatização da A……….. poderá resultar no decréscimo de qualidade de um serviço público essencial às populações, ou no aumento do seu custo, mediante a inflação das respectivas taxas.

Efectivamente, não basta ao tribunal, para fazer o julgamento imposto por essa norma, ficar-se pela ponderação dos interesses em presença, sejam públicos ou privados, pois que a recusa tem como causa próxima o juízo sobre os danos e a possibilidade de os evitar ou atenuar pela adopção de outras providências.

Pelo que restam, apenas, as alegações a respeito feitas pelo requerido cautelar, o CM.

Este, por entre uma oposição cerrada aos «interesses» privados e público-locais invocados pelo município requerente cautelar, densifica alguns danos que, pelo que alega, resultariam da concessão da providência requerida.

Segundo diz, e em síntese, a reprivatização da A……….. é necessária para garantir a sustentabilidade económico-financeira do sector dos «resíduos sólidos urbanos» num tempo em que o Estado tem escassos recursos, e em que, para garantir a estabilidade orçamental, tem que reduzir a despesa pública.

Só a reprivatização da A………. permitirá, pelo que diz, viabilizar o esforço financeiro associado ao cumprimento de metas nacionais e europeias de índole ambiental, e promover soluções de maior eficiência, e eficácia, que assegurem a prestação aos utilizadores de um serviço de excelência.

Esse esforço financeiro depende em parte de financiamento comunitário, sendo que as condicionantes do «Programa de Apoio a Portugal» impõem a necessidade de novo modelo de gestão, que favoreça a estabilidade económica dos sistemas de infra-estruturas existentes no sector.

E, conclui, suspender o concurso de reprivatização seria inviabilizar a venda da A……… tanto agora como no futuro, já que nenhum investidor arriscaria participar em concurso com tal grau de incerteza, seria inviabilizar o esforço financeiro de que o sector necessita, acarretaria, também, o incumprimento do «Memorando de Entendimento» e a destruição do clima de retoma da confiança na economia nacional, o que seria grave para o interesse público, local e nacional.

Assim, quer porque o requerente cautelar não concretizou quaisquer danos que possam resultar da recusa da providência, limitando-se a invocar interesses, e, quando muito, temores e perigos cuja probabilidade de ocorrência nem sequer ficou sumariamente demonstrada, quer porque a alegação feita pelo requerido, neste aspecto, se mostra mais densificada e consistente, permitindo uma melhor avaliação por parte do julgador cautelar, resulta que o julgamento realizado nos termos do nº2 do artigo 120º do CPTA deve reverter em desfavor da concessão da providência requerida.

É que nem se vê que outra providência pudesse vir a ser adoptada em ordem a evitar ou atenuar esses danos resultantes da sua concessão. Significativamente, nem o requerente a sugere.

9. Deverá, por conseguinte, tal como aconteceu com o incidente de declaração de ineficácia de actos de execução alegadamente indevida, ser improcedente o pedido cautelar deduzido pelo MA contra o CM.

IV. Decisão

Nestes termos, julgamos procedente a questão da incompetência material da jurisdição administrativa, absolvendo da instância os requeridos quanto a tal pretensão, e julgamos improcedentes o incidente e a pretensão cautelar, desses pedidos absolvendo os requeridos.

Sem custas [artigo 4º, nº1 alínea g) do RCP, sem prejuízo do disposto nos nºs 6 e 7 do mesmo].

Lisboa, 13 de Novembro de 2014. - José Augusto Araújo Veloso (relator) - Vítor Manuel Gonçalves Gomes - Alberto Augusto Andrade de Oliveira. Com a declaração de que acompanho toda a decisão mas não o segmento fundamentador da verificação do “periculum in mora”.
Sinteticamente e tal como na declaração de voto que subscrevi no acórdão desta mesma data, em Pleno, no processo 561/14, também aqui entendo que “não apenas as eventuais ilegalidades são imputadas ao quadro jurídico decorrente da decisão de reprivatização, como também o alegado prejuízo de difícil reparação que o Requerente pretende evitar não vem imputado directamente aos actos impugnados e objecto da providência, mas tão só como resultado da sua discordância quanto à opção política de reprivatização.
Dito por outras palavras, e em suma, os alegados prejuízos que o Requerente pretende evitar decorrem tão só da concretização/consolidação do processo de reprivatização da A………., SA, opção político legislativa constante do Decreto-Lei nº 45/2014, que não podem ser tidos em conta na presente providência cautelar”.