Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02575/10.7BEPRT
Data do Acordão:11/07/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:SANÇÃO DISCIPLINAR
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO DISCIPLINAR
INÍCIO DO PRAZO DE PRESCRIÇÃO
Sumário:O conhecimento do dirigente máximo do serviço relevante para efeitos de início do curto prazo da prescrição, previsto no artigo 4º, nº 2 do Estatuto Disciplinar/84, não é o simples conhecimento de uma materialidade dos factos, sendo necessário que o dirigente tome conhecimento de tais factos em termos de os poder enquadrar como ilícito disciplinar.
Nº Convencional:JSTA000P25138
Nº do Documento:SA12019110702575/10
Data de Entrada:06/03/2019
Recorrente:MUNICÍPIO DO PORTO
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo

1. RELATÓRIO
O Município do Porto recorre de revista para este Supremo Tribunal Administrativo, do acórdão do TCAN de 21.12.2018 que negou provimento ao recurso jurisdicional do acórdão do TAF do Porto de 07.12.2011, mantendo, assim, a decisão recorrida que condena o ora Recorrente, Município do Porto, a pagar ao Recorrido, “os vencimentos referentes ao período de suspensão executado, acrescidos dos juros legais, desde a data da execução da pena até integral pagamento, bem como reconstituir a situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado”.
As alegações apresentadas para o efeito comportam conclusões do seguinte teor:
A. A presente Revista é admissível, nos termos do artigo 150.º do CPTA, por ser claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito e, por outro lado, por estar em causa uma questão — a contagem do prazo prescrisional em matéria disciplinar - cuja relevância jurídica se assume de importância fundamental, até pela virtualidade de aplicação futura a uma infinidade de casos;
B. O Acórdão ora posto em crise, proferido pelo Tribunal Central Administrativo do Porto, opondo-se, claramente, à jurisprudência já unânime do próprio Tribunal Central Administrativo e, conforme se viu, deste Supremo Tribunal Administrativo, sobre os mesmos factos, sobre a mesma questão jurídica - e inclusivamente sobre o mesmo procedimento disciplinar - gera incerteza e instabilidade, colocando em causa a certeza e segurança jurídicas, revelando-se, pois, imprescindível a intervenção do “órgão de cúpula da justiça administrativa” (veja-se a este respeito, a título meramente exemplificativo, o acórdão adiante junto);
C. Esta oposição à jurisprudência administrativa, operada pelo Tribunal a quo, é tanto mais preocupante quando está em causa o julgamento dos mesmos factos (porque o procedimento disciplinar foi apenas um, apesar dos inúmeros arguidos envolvidos, pelo que o prazo de prescrição foi o mesmo) e análise das mesmas questões de Direito, imperando, portanto, conforme se vê, a necessidade de uma melhor aplicação do Direito, nos termos do disposto no artigo 150º, nº 1, do CPTA a fim de evitar contradição de julgados;
D. No acórdão ora posto em crise, o Tribunal a quo procedeu, salvo o devido respeito por melhor opinião, a uma análise equivocada da matéria factual que envolve os presentes autos, o que conduziu a uma errónea interpretação aplicação do direito ao caso em concreto;
E. À data da instauração do processo disciplinar, os factos de que o Recorrido vinha acusado eram suscetíveis de aplicação da pena de demissão. Cabia assim ao Recorrente o poder disciplinar sobre o Recorrido;
F. No ano de 2005 tudo quanto se detetou foi uma elevada despesa com cuidados de saúde, sendo parte dessa despesa sustentada em recibos emitidos pela Clínica Dentária B……….. — o que estava longe de poder ser configurado como uma falta disciplinar, tal como preceituava o artigo 4.°, n.° 2 do anterior ED;
G. Em 2005, os SMAS (pertencentes ao Recorrente) desconheciam: (i) se os recibos entregues nos serviços e emitidos por aquela Clínica eram verdadeiros ou falsos, (ii) quais eram verdadeiros e quais eram falsos, (iii) quais os funcionários que eram pacientes naquela clínica e, nestes casos, que tratamentos haviam realizado, (iv) quais os preços praticados pela clínica pelos tratamentos que realizasse, (v) quem emitia os recibos, quem os entregava nos serviços, (vi) quanto era pago à Clínica ou se algo era pago de todo, (vii) se os recibos emitidos tinham subjacente algum tratamento médico efetivamente realizado, do colaborador ou de terceiro, etc. — ou seja, tudo circunstâncias fundamentais para se apurar se existia ou não alguma falta, quem a tinha praticado, como, quando e de que forma, e quais as consequências da mesma;
H. Na denúncia apresentada ao Ministério Público os SMAS dão efetivamente conta das dúvidas existentes quanto aos recibos, sendo que da lista àquela junta constavam todos os colaboradores que apresentaram recibos da Clínica B………… nesse ano, sendo que só parte deles vieram a ser constituídos arguidos (criminal e disciplinarmente), porque somente parte deles tinham apresentados recibos falsos;
I. O prazo de prescrição previsto no artigo 4.°, n,° 2 do anterior ED só começou a correr a partir do momento em que o Senhor Presidente da Câmara Municipal do Porto tomou conhecimento da acusação crime deduzida pelo Ministério Público contra os arguidos - data em que os factos foram conhecidos com todos os elementos bastantes para se saber o que efetivamente havia ocorrido, de que forma e com que extensão e quem eram os seus agentes, assim se podendo finalmente configurar os factos como uma falta disciplinar;
J. O “conhecimento da “falta” a que se referia o artigo 4.°, n.° 2 do anterior ED não se confunde com “conhecimento de indícios” ou sequer com o “conhecimento de fortes indícios”, pois que uma coisa é a falta e outra coisa são os indícios;
K. Constitui entendimento jurisprudencial uniforme o de que o conhecimento pelo dirigente máximo do serviço referido no n.° 2 do artigo 4.° do ED/84 se tem de reportar a todos os elementos caracterizadores da situação de modo a poder efetuar-se uma ponderação criteriosa, e para se determinar, de forma consciente, quanto a usar ou não o poder sancionador — cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte de 23 de Setembro de 2010 (processo n.°01599/07.6BEPRT);
L. Como é jurisprudência pacífica dos Tribunais superiores (designadamente do TCAN e do STA), não basta, para esse efeito, o mero conhecimento dos factos na sua materialidade, antes se torna necessário o conhecimento destes e do circunstancialismo que os rodeia, por forma a tornar possível ao dirigente máximo do serviço, o seu enquadramento como ilícito disciplinar. Aliás, a própria lei fala em conhecimento da falta e não dos factos, o que supõe a possibilidade de fazer um juízo fundado sobre a relevância disciplinar de todos aqueles factos e não só de parte deles cfr. acórdão do STA de 9 de Setembro de 2009 (processo n.° 0180/09), e ainda, no mesmo sentido, e a título exemplificativo os acórdãos deste último Tribunal de 22 de Junho de 2006 (processo n.° 02054/02), de 23 de Janeiro de 2007 (processo n.° 021/03), de 19 de Junho de 2007 (processo n.° 01058/06), de 9 de Setembro de 2009 (processo n.° 0180/09), de 14/10/2003 (processo n.º 0586/03), de 20/03/2003 (processo n.° 02017/02), de 10/11/2004 (processo n.° 0957/02), de 16/03/2006 (processo 0141/06), de 29/03/2006 (processo n.° 144/05), de 23/05/2006 (processo n.° 0957/02), de 13/02/2007 (processo n.º 0135/06), de 1/03/2007 (processo 0205/06) e de 14/05/2009 (processo n.° 01012/08);
M. O Acórdão ora colocado em crise afirma, por um lado, que os SMAS tomaram conhecimento da falta em finais de 2005 e, por outro lado, que deveriam ter instaurado um processo de inquérito ou de averiguações para apuramento dos factos que desconheciam - o que se traduz num entendimento contraditório em si mesmo, pois que ou se conhece ou não se conhece a falta;
N. A instauração de um processo de inquérito ou de averiguações é uma faculdade e não um ónus da Administração, sendo que a sua não instauração tem como única consequência a não suspensão do prazo de prescrição mais longo (previsto no artigo 4.°, n.° 1 do anterior ED), não afetando o prazo de prescrição mais curto (previsto no artigo 4.°, n.º 2 do anterior ED), uma vez que este último só inicia a sua contagem a partir do momento em que a falta é conhecida;
O. Não são sequer comparáveis os poderes e capacidades investigatórias legalmente conferidas a um inquiridor nomeado no âmbito de um processo de averiguações ou de inquérito, por um lado, e a entidades como o Ministério Público e a Polícia Judiciária, por outro;
P. Os SMAS tinham consciência que não tinham forma de apurar, através da instauração de um processo de inquérito ou de averiguações, a existência de qualquer falta, uma vez que seria necessário:
(a) Fazer buscas à Clínica para recolha das fichas médicas (protegidas pela Lei n.° 67/98, de 26 de Outubro);
(b) Fazer o levantamento de sigilo bancário em relação às contas dos colaboradores, Clínica e seus sócios gerentes (todas protegidas pelo artigo 78.° do Decreto-Lei n.° 298/92, de 31 de Dezembro);
(c) Chamar a depor pessoas externas ao SMAS, deontologicamente obrigadas a sigilo profissional (como é o caso dos médicos da Clínica, obrigados a sigilo nos termos dos artigos 85.° e ss. do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, aprovado pelo Regulamento n.° 14/2009, de 13 de Janeiro),
Sendo tudo diligências de prova só ao alcance do Ministério Público e Policia Judiciária, e nos estritos termos previstos nos artigos 135.º, 174.°, n.° 2, n.° 3, e nº 4 e 177.º, n.° 5 do Código de Processo Penal, como de facto veio a acontecer;
Q. A instauração de um processo de inquérito ou de averiguações, não estando estes cobertos por segredo de justiça, comportava ainda o risco de prejudicar ou inviabilizar a investigação em curso, uma vez que algumas das pessoas diretamente envolvidas nos esquemas poderiam, em abstrato, eliminar ou provas, preparar depoimentos, fazer desaparecer qualquer elemento que os pudesse vir a incriminar ou combinar reações concertadas face à investigação;
R. A Administração não deve lançar mão de processos de inquérito ou de averiguações que se revelem, desde logo, insuscetíveis de investigar ou descobrir o que quer que seja, como aconteceu no caso em apreço;
S. Com o acórdão ora posto em crise o Tribunal a quo fez uma errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 4.° e 85.° e seguintes do ED, bem como da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro, do Decreto-Lei n.° 298/92, de 31 de Dezembro, do Regulamento n.° 14/2009, de 13 de Janeiro e dos artigos 135.°, 174.°, n.° 2, n.° 3, e 4 e 177.°, n.° 5 do Código de Processo Penal.

Nestes termos, e nos que V. Exas. mui doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se integralmente a decisão recorrida e julgando-se a ação totalmente improcedente e absolvendo-se o R. Município do Porto, com o que V. Exas. farão, como sempre, inteira e sã
JUSTIÇA!”

Não foram apresentadas nos autos contra-alegações.

Por acórdão proferido em 10.05.2019, a revista foi admitida pela formação deste Supremo Tribunal Administrativo a que que alude o art. 150º do CPTA.

O Exmo Procurador-Geral Adjunto, junto deste Tribunal Supremo Administrativo, emitiu Parecer, a fls. 813 e 814, no sentido do provimento da revista.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

2. Os Factos
As instâncias fixaram a seguinte factualidade:
1) O Autor foi funcionário dos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento (SMAS) do Porto, e desde Outubro de 2006 pertence aos quadros da Águas do Porto E.M. pela deliberação da Câmara Municipal do Porto, que concretizou o protocolo celebrado entre o Município do Porto e aquela empresa municipal,
2) O A. era beneficiário da ADSE;
3) Por volta de Setembro de 2005, a então Chefe de Divisão dos Recursos Humanos dos SMAS tomou conhecimento que nos meses imediatamente anteriores surgiu um excessivo volume de despesas com dentistas, para comparticipação da ADSE;
4) A referida chefe de Divisão, no exercício das suas funções, consultou as pastas mensais, as quais continham recibos de despesas médicas dos trabalhadores e seus familiares;
5) Como resultado dessa consulta, constatou de imediato que, das centenas recibos que a pasta continha, uma percentagem muito significativa era de serviços prestados pela Clínica Dentária B…………
6) Mais constatou que tais recibos, na sua maior parte, se encontravam rasurados com tinta correctora;
7) A referida chefe de Divisão dos Recursos Humanos comunicou à sua superior hierárquica, Directora do Departamento dos Serviços Centrais e Jurídicos dos SMAS do Porto, os factos constatados;
9) Esta, por sua vez, deu conhecimento ao Director Delegado de então dos SMAS das suspeitas que se haviam levantado;
10) Em 02/12/2005 o Director Delegado dos SMAS efectuou a seguinte participação à Policia Judiciária do Porto “…Os Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento do Município do Porto, contribuinte n,° 680023747, com sede na Rua Barão de Nova Sintra (...) vêm participar os seguintes factos: 1.° Em sede de análise das comparticipações pagas em matéria de despesas de saúde aos funcionários destes Serviços abrangidos pelo sistema de protecção social da ADSE, verificámos a existência de factos que indiciam a prática de ilícitos criminais, desde falsificação de documentos e burla. 2.° Analisando todas as comparticipações pagas aos funcionários em despesas de saúde na especialidade de Estomatologia, por actos médicos efectuados no ano de 2004, até esta data, na Clínica Dentária B…………., Lda., contribuinte n.°………, com sede na Rua ……….., …. …., 4000-….. Porto, detectamos: existência de rasuras grosseiras em alguns recibos; Omissão de data em alguns recibos; Discrepância entre o número sequencial dos recibos e as datas constantes dos mesmos; Existência de número anormal de actos médicos, por sessão e por funcionário; Actos médicos temporalmente próximos e que, julgamos, de natureza incompatível; Processamento de comparticipações para além dos limites legalmente estabelecidos para cada tipo de intervenção; Aceitação e processamento de comparticipações com base em recibos que não cumprem os requisitos legais; Em inumeras situações, verifica-se que os valores lançados no sistema informático relativos aos pagos pelos funcionários são superiores aos constantes dos recibos apresentados. Esclarecemos que esta participação se baseou na análise apenas no período acima indicado e exclusivamente no tocante àquele prestador de serviços de saúde, pelo que desconhecemos a extensão e os contornos exactos do problema, designadamente, anos anteriores, outras especialidades médicas, ou a mesma especialidade (estomatologia) noutros prestadores de serviços. Igualmente, não temos meios para avaliar outros benefícios obtidos pelos funcionários relativamente aos valores não comparticipados, nomeadamente em sede de IRS e complementos de comparticipação efectuados pela Casa do Trabalhador existente nos SMAS do Porto. Anexamos cópias dos recibos em causa e listagens que sistematizam informação por nós recolhida. Destes factos e nesta data será dado conhecimento à Direcção Geral de Protecção Social aos Funcionários e Agentes da Administração Pública (ADSE)...” - cfr. doc. de fls. 484 a 485 do PA..- D/1/09,Vol.VII;
11) Na mesma data, O Director Delegado dos SMAS participou os factos supra relatados à Direcção-Geral de Protecção Social aos Funcionários e Agentes da Administração Pública essas ocorrências;
12) Com data de 28/6/2006, lia-se no site da Câmara Municipal do Porto, o seguinte:
“A prioridade geral definida por ……… de combate à fraude e à corrupção, designadamente no que concerne à articulação com o Conselho de Administração dos SMAS nomeado após as eleições de Outubro e presidido por ……….., tem já um primeiro resultado em condições de divulgação pública. (...) Em face da gravidade do que foi descoberto e da prioridade definida de permanente e redobrada atenção no que toca ao combate à fraude e à corrupção, o Presidente da Câmara solicitou ao Conselho de Administração dos SMAS a participação detalhada de todos os factos apurados. (...) nesse sentido foi, em 2 de Dezembro de 2005, feita participação oficial à Policia Judiciária”
13) O “Jornal ……….”, nas suas edições on line de 2006.06.29 noticiava um comunicado da Câmara do Porto, onde referia a acção policial surgida na sequência da referida participação, elaborada com base num levantamento das situações iniciado em Novembro de 2005, e que teria levado à constituição de mais de 30 arguidos.
14) Em 30 de Setembro de 2008, pelo Departamento de Investigação e Acção Penal do Porto, no processo de Inquérito n.° ………, foi deduzida a acusação criminal contra, entre outros, o representado do A., de fls. 1885 a 2121 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
15) Em 10/12/2008 foi elaborada proposta pelo Presidente do Conselho de Administração das Águas do Porto, E.M de instauração de processos disciplinares a, entre outros, o A. cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais - cfr. PA apenso;
16) Por despacho de 11/12/2008 da autoria do Presidente da Câmara Municipal do Porto foi determinada a instauração de processo disciplinar contra, entre outros, ao A. - cfr.doc. de fls. 1 a 4 do PA-D/1/09;
17) Por despacho de 06/01/2009 da autoria da Directora de Departamento de Contencioso e Serviços Jurídicos da Câmara Municipal do Porto, foi nomeado o Dr……….. como instrutor do processo disciplinar - cfr.doc. de fls. 1, verso, do PA-D/1/09.
18) No processo disciplinar instaurado ao A. foi deduzida acusação que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais;
19) A Directora dos Serviços Centrais e Jurídicos, Dra C……….. prestou o depoimento de fls.554 a 556 do PA-D/1/9, Vol. I cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, do qual consta, designadamente, que: “Em finais de 2005 exercia nos então SMAS do Porto o cargo de Directora dos Serviços Centrais e Jurídicos, tendo a seu cargo a gestão dos Recursos Humanos; “Nessa altura detectou, através das contas, que os valores das comparticipações da ADSE abonadas pelos SMAS aos seus funcionários eram muito elevados face ao número de funcionários; “(...) “(…)Os recibos eram entregues na Divisão de Recursos Humanos, eram processados por esses serviços (…); “(…) Dirigiu-se aos Serviços dos Recursos Humanos e foi buscar os recibos de 2005 que estavam arquivados por meses; “Face aos recibos detectou a existência de recibos rasurados, de recibos com números não compatíveis com as datas apostas nos mesmos, actos médicos incompatíveis e praticados relativamente aos mesmos dentes, bem como às próteses; “...a referida discrepância era entre as datas e os números de série dos recibos o que levava à existência de recibos com números posteriores a actos médicos praticados em datas anteriores, constantes de outros passados em datas posteriores e vice-versa; “(...) Face à constatação dos factos atrás mencionados, comunicou ao Senhor Director Delegado de então (...); “Comunicou, também, que face aos indícios era necessário proceder à verificação dos recibos da ADSE relativos a anos anteriores, tendo ficado decidido que o trabalho de investigação seria sobre os anos de 2001 a 2005; “Começou a investigar com a colaboração da Chefe de Divisão e com o apoio dos funcionários …………. e …………; “(...) “Concluída a investigação, e face à constatação de indícios da prática de ilícitos disciplinares, compilou todos os dados que anexou a uma participação, por si elaborada, à Policia Judiciária; “Seguidamente, apresentou este documento ao Director Delegado e ao Presidente do Conselho de Administração (.3 tendo o mesmo sido assinado e por si entre a Directoria Geral da Polícia Judiciária do Porto; “(…) “Quando a existência do Inquérito se tornou, pública, o impacto da noticia foi brutal nos Serviços, tendo havido consequências, mesmo através da prática de ilícitos criminais, contra a sua pessoa; “(…) Esclarece ainda que o esquema existente era do conhecimento de grande parte dos funcionários dos SMAS; “(À data, os SMAS tinham cerca de 600 trabalhadores, e os 90% que não beneficiavam do esquema montado consideraram a actuação da declarante da mais elementar”.
20) A Chefe de Divisão de Recursos Humanos dos ex SMAS, Dra. D……….. prestou o depoimento que consta de fls.571 a 576 do PA 071/9. Vol. III, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, do qual consta que “juntamente com a Dra. C……… passaram uma semana a analisar todas as pastas de recibos do ano de 2005 passando toda a informação para uma base de Excel donde constava o nome dos funcionários números e os valores dos recibos que diziam respeito aos mesmos e a familiares; um dos objectivos… era ter uma ideia do número de funcionários em questão bem como os respectivos valores que cada funcionário alegadamente teria pago à clínica de B……….. ...resumidamente o movimento do processamento das remunerações e abonos processava-se da seguinte forma: a informação era transmitida em papel e portanto sujeita a controlo da depoente à divisão de informática pela Divisão de Recursos Humanos outras informações respeitantes a despesas médicas eram transmitidas por via de ficheiros informáticos sem que a depoente tivesse qualquer controlo sobre esta informação, carregado na secção de salários e transferido para a divisão de informática...
21) Em Março de 2010 foi elaborado o relatório final de procedimento disciplinar, do qual consta quanto ao A. o seguinte:
4.60 A………..
4.60.1 Factos Provados
1) O arguido, com o n.° Mecanográfico ………, entre Janeiro de 2001 e 24 de Outubro de 2006 foi funcionário dos SMAS, que depois deram origem à AdP, aí exercendo as funções de ………………….;
2) O arguido, ao ser funcionário dos SMAS deste Município. Era funcionário público (artigo 237.° e seguintes, 243°, n°2 da Constituição da República Portuguesa, artigo 5.° do D.L. 116/84, de 6 de Abril, artigos 1.º, 3.º e 4.°, 5.º do D.L. n.° 427/89 de 7 de Dezembro e artigos 1°. 5°-A e seguintes e 8° do D.L. n.º 409/91 de 17 de Outubro, então em vigor):
3) Os SMAS, não tendo personalidade jurídica, mas apenas autonomia administrativa e financeira estavam integrados na pessoa colectiva - Município do Porto (alínea l) do n.° 2 do artigo 53.° e alínea i) do n° 1 do artigo 64.° da Lei n.° 169/99, de 18 de Setembro. Deliberações, da Assembleia Municipal, da macroestrutura dos referidos Serviços - Avisos n.° 4634/99 e o 1952/2004. Diário da República, II Série, respectivamente de 3 de Julho de 1999 e 19 de Março de 2004);
4) A partir de 26 de Outubro de 2006, por deliberação camarária de 30 de Maio de 2006, nos termos do protocolo celebrado entre o Município do Porto e a AdP, ao abrigo do n.° 6.º do artigo 37.º, da Lei n.° 58/98, de 18 de Agosto. O arguido foi integrado nos quadros deste Município, pelo que ficou seu funcionário;
5) Por ser funcionário, o arguido era beneficiário da ADSE, gozando dos benefícios por esta concedida, nos termos da alínea b) do artigo 3.º e do artigo 5.º do D.L. n.° 118/83, de 25 de Fevereiro, actual redação;
6) A ADSE é um organismo público, tutelado por lei, que tem por objectivo a protecção social, entre outros, em cuidados de saúde aos funcionários públicos, inclusive os das autarquias locais:
7) Através da ADSE, o arguido podia receber comparticipação em despesas com a saúde, no que aqui interessa, com cuidados de medicina dentária, ou com meios de correcção estomatológicos:
8) Relativamente às despesas incorrida vários cenários eram possíveis, sendo que entre os mais habituais deve destacar-se, desde logo, aquele em que, no caso de assistência em médico ou Clínica, ao funcionário era logo descontada a comparticipação legal pagando este apenas a parte não comparticipada, bem como aquele em que o funcionário pagava a totalidade do preço e apresentava o respectivo recibo, emitido por médico ou Clínica na Secção de Salários da Divisão dos Recursos Humanos dos SMAS, deixando-os numa caixa, lá colocada para o efeito;
9) Nesta última hipótese, - apresentação do recibo nos SMAS - estes Serviços suportando a parte comparticipada pela ADSE, creditavam tal quantia ao funcionário num dos meses seguintes, da mesma forma que se creditava o respectivo vencimento, ou seja, na conta bancária do funcionário titular;
10) A funcionária da Secção de salários, encarregada do movimento dos recibos deixados pelos trabalhadores para posterior processamento, verificava se o nome do beneficiário ou do familiar estava correcto, bem como se os mesmos correspondiam aos respectivos números de beneficiários;
11) Por volta de Setembro de 2005, a então Chefe de Divisão dos Recursos Humanos dos SMAS tomou conhecimento que, nos meses imediatamente anteriores, surgiu um excessivo volume de despesas com dentistas, para comparticipação da ADSE:
12) Nesse sentido, e no exercício das suas funções, consultou as pastas mensais, as quais continham recibos de despesas médicas dos trabalhadores e seus familiares;
13) A referida Chefe de Divisão constatou de imediato que, das centenas de recibos que a pasta continha, uma percentagem muito significativa era de serviços prestados pela Clinica, cujo objecto social consistia na prestação de serviços clínicos de boca e dentes e próteses dentárias;
14) Mais constatou a Chefe de Divisão que tais recibos, na sua maior parte, se encontravam rasurados com tinta correctora;
15) Na Clínica, a cada um dos actos médicos praticados, correspondia um determinado código para fins de comparticipação (o Código das Tabelas da ADSE) e, mediante o tratamento efectuado, a Clínica cobrava um determinado preço;
16) Entre 2001 e 2005, os Códigos ali existentes, constam do Anexo 1 da acusação a si proferida;
17) Na sequência desses tratamentos e serviços, cada um dos funcionários dos SMAS tinha direito às respectivas comparticipações da ADSE que, entre 2001 e 2005, vigoraram através das Tabelas de Comparticipação da ADSE de cuidados de saúde, regime livre, que resultaram da publicação dos Avisos números:
• 12433/2000 (de 1 de Setembro de 2000 a 1 de Outubro de 2001);
• 11730/2001 (de 1 de Outubro de 2001 a 31 de Dezembro de 2002);
• 12737/2002 (de 1 de Janeiro de 2003 a 31 de Maio de 2004);
• Despacho n.º 8738/200-1 (a partir de 1 de Junho de 2004); publicados no Diário da República, lI Série, respectivamente no 187, de 14 de Agosto de 2000, n.° 224, de 26 de Setembro de 2001, n.° 279, de 3 de Dezembro de 2002 e n.º 103, de 3 de Maio de 2004;
18) Para utilização das referidas Tabelas, os cuidados, actos e apoios em relação aos quais os funcionários beneficiam de comparticipação da ADSE são identificados através de um código a que, por seu turno, corresponde uma designação;
19) A Clínica possuía, para fins de gestão, uma “Tabela” de Honorários (média de preços) à qual correspondiam determinados códigos, consoante os tratamentos efectuados, sendo que a cada tratamento correspondia um código que uma vez finalizada a consulta (se esta se chegasse sequer a realizar) era inscrito na ficha individual de cada paciente:
20) Todos os tratamentos e actos médicos eram inscritos nas fichas individuais dos clientes, mediante a menção dos códigos, e, quando a ficha se mostrasse completa, era agrafada à mesma uma nova ficha para prosseguimento das anotações:
21) De acordo com os preços médios facturados pela Clínica, entre 2001 e 2005, os serviços e tratamentos médicos aos funcionários/beneficiários dos SMAS deveriam ter sido cobrados nos termos constantes do Anexo 2 da acusação contra si proferida;
22) Entre 2001 e 2005, o arguido não recebeu quaisquer tratamentos ou serviços na Clínica;
23) Porém, a pedido da colega e co-arguida neste processo. E………. emprestou-lhe o seu cartão de beneficiário da ADSE para a mesma o utilizar para fins de comparticipação da ADSE, na sequência de combinação entre o arguido, a E………… e os sócios e gerentes da Clinica – F…………, odontologista e sua mulher G………... Gerente,
24) Foi ao arguido emitido e entregue o recibo com a descrição, data e valor, constante do Anexo 3 da sua acusação;
25) Entretanto, na sequência da entrega desse recibo pelo alegado tratamento estomatológico nos serviços da secção de salários dos SMAS, o arguido recebeu a título de comparticipação da ADSE, em Julho de 2004, apesar de saber que não lhe era devido, o valor de 480 €, que posteriormente não entregou à E………….. quando, na realidade, não tinha direito a quaisquer comparticipações da ADSE por causa dos recibos referidos no Anexo 3 da sua acusação:
26) Com este comportamento, o arguido recebeu dos SMAS, indevidamente, a título de comparticipação da ADSE, o montante total 480 €, ao qual não tinha direito, ficando os serviços, consequentemente, desembolsados de tal quantia, a qual se considera dinheiro público;
27) De facto, o arguido quis e conseguiu receber aquele montante à custa daquela entidade, bem sabendo que o mesmo não lhe pertencia que era dinheiro público, mais sabendo que estava a prejudicar, dessa maneira, o erário público.
28) Através do estratagema aqui descrito e dado como provado, o arguido recebeu quantias que não lhe pertenciam e que sabia não lhe pertencerem:
29) Sabia o arguido que, com o seu comportamento ao ter recebido o aludido montante se aproveitava ilícita e abusivamente do, facto de ser funcionário dos SMAS e dos direitos que a ADSE legalmente lhe concedeu para à custa da qualidade de funcionário e daqueles direitos se enriquecer, com o consequente empobrecimento dos SMAS e do erário público;
30) Conseguiu o arguido ter vantagens patrimoniais a que não tinha direito, enganando conscientemente os SMAS, a sua entidade patronal, que sempre cumprira as suas obrigações que sobre si impendiam no contexto do vínculo público que o ligava aquela;
31) Com o seu comportamento o arguido contribuiu para envergonhar os SMAS e o Município do Porto, porquanto a sita conduta foi idêntica à de muitos colegas, co-arguidos no presente processo;
32) Aquando da denúncia criminal, e da dedução da acusação em processo-crime, em Outubro de 2008, tais factos vieram amplamente noticiados na comunicação social, aparecendo os SMAS e a edilidade no papel de entes enganados anos a fio por dezenas e dezenas de funcionários e pessoas terceiras, o que em muito manchou em especial a imagem dos SMAS que se viu “nas bocas” do mundo pelos piores motivos;
33) E com grave ameaça do bom dos funcionários não esquema em causa nos autos;
34) O vergonhoso esquema subjacente aos autos levou a que a comunidade tomasse naturalmente a parte pelo todo no que concerne à seriedade dos trabalhadores dos SMAS, que entre 2001 e 2005 rondavam os 600 funcionários;
35) Com o comportamento do arguido, os trabalhadores dos ex-SMAS, não arguidos, ficaram envergonhados e consternados pela sua ligação àquela entidade, situação agravada quando começaram a ser publicadas notícias do caso na comunicação social;
36) O arguido praticou os factos aqui descritos e dados como provados sempre voluntária, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei:
37) O arguido tem instrução, formação e experiência profissional mais do que bastantes para configurar e representar tudo o que fez, bem como o esquema de que foi peça integrante, o qual abrangeu, quase sem excepção, quadros administrativos, superiores e/ou funções de responsabilidade da AdP, antes SMAS;
38) O próprio ambiente de trabalho dos SMAS foi gravemente comprometido, pois que os trabalhadores com menor categoria profissional ficaram com a inaceitável sensação que os serviços administrativos e alguns dos seus dirigentes estavam envolvidos em actos ilícitos;
39) Com o comportamento ora descrito e dado como provado, o arguido, como funcionário, faltou ao respeito aos SMAS, ao serviço público, ao Município e aos colegas, sendo desleal para com os mesmos, atentando contra os deveres funcionais, que lhe são exigidos como trabalhador da administração pública;
40) O arguido sabia que estava ao serviço público e com o seu comportamento prestou-lhe um péssimo serviço, degradando a confiança do público - que ao invés deveria sempre salvaguardar e promover, ofendendo e violando, desse modo, a imparcialidade, a legalidade e a transparência da administração pública e, consequentemente o bom andamento da administração dos ex-SMAS e do Município do Porto e os fins de ordem pública que este devia e deve satisfazer
4.60.2 Tipificação da Infracção disciplinar e eventuais Circunstâncias Agravantes e Atenuantes
Os factos descritos constituem a prática, pelo arguido, de uma infracção disciplinar, pois violou alguns dos deveres gerais inerentes à função que exercia e exerce (artigo 3°, n° 1 do ED).
Com efeito, o arguido, com o comportamento descrito, incorreu na violação dos deveres de isenção e zelo, previstos nas alíneas h) e e) do n°2, n°4 e do citado artigo 3° do ED).
Face à factologia dada como provada, a violação:
a) Do dever de isenção está sancionada com a pena de demissão, como previsto no artigo 9.°, nº 1, alínea d) e 18º, n.°1, m);
b) Do dever de zelo está sancionada com a pena de suspensão, nos termos do artigo 9.°, n° 1, alínea e) e do artigo 17.º (corpo da norma: “os trabalhadores que actuem com grave negligência ou com grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres funcionais e àqueles cujos comportamentos atentem gravemente contra a dignidade e o prestigio da função”), mas a censurar numa única medida disciplinar nos termos do n° 3 do artigo 9°, tudo do E.D.
As referidas penas estão previstas nas alíneas e) e d) do artigo 9°, a sua caracterização e efeitos estão estatuídos nos artigos 10.º e 11.° do ED).
A responsabilidade disciplinar do arguido é agravada pela circunstância prevista na alínea d) do artigo 24.° do ED, nomeadamente por haver “comparticipação com outros indivíduos para a sua prática”
O arguido tem mais de 10 anos de serviço como funcionário público, no entanto, não ficou provado que tenha desempenhado as suas funções, ao longo desses anos, “com exemplar comportamento e zelo”.
Veja-se, a este propósito, o acórdão do STA de 14 de Março de 2001 (processo n.° 38664), onde se pode ler que “Para que exista atenuante especial derivada de exemplar comportamento e zelo, prevista na alínea d) do art. 29.º”, do E.D, [corresponde, ipsis verbis, à actual alínea a) do artigo 22° do novo E.D.] é necessário não só que esse comportamento e zelo se prolonguem por mais de 10 anos, mas também que possam ser considerados um modelo para os restantes funcionários, o que supõe que sejam qualitativamente superiores aos deveres gerais destes” (sublinhado nosso).
No mesmo sentido, veja-se o acórdão do STA de 9 de Dezembro de 1998 (processo n.° 38100), o qual nos indica que “a circunstância atenuante especial prevista no artigo 29.°. Alínea a), do citado diploma (...) exige mais do que a simples ausência de anteriores punições disciplinares, postula antes que o currículo anterior do arguido denote elementos que permitam qualificá-lo como modelar” (sublinhado nosso).
Por tal facto, não se aplica ao caso a circunstância atenuante prevista na alínea a) do artigo 22.º do E.D., bem como qualquer outra.
4.60.3 Gravidade, Culpa e Personalidade do Arguido
A conduta infractora do arguido teve como consequência o empobrecimento indevido dos SMAS, sua entidade empregadora, em €480,00.
De facto, ficou demonstrado que o arguido nunca efectuou qualquer tratamento na clínica mas, mesmo assim, em conluio com a sua colega e co-arguida E…………., bem como com os gerentes da clinica viu ser-lhe emitido um recibo no valor de € 750,00, o qual foi entregue nos SMAS para que lhe fosse depositada na conta a comparticipação respectiva, no valor de € 480,00.
O resultado pretendido veio efectivamente a ocorrer em Julho de 2004, data em que o arguido recebeu a comparticipação de € 480,00 por um alegado tratamento que, na verdade, nunca ocorreu.
Assim, através do esquema descrito, o arguido enriqueceu-se conscientemente à custa dos SMAS, sua entidade empregadora, causando o necessário prejuízo indevido desta entidade e, consequentemente, do erário público.
Por sua vez, o comportamento do arguido traduziu uma manipulação fraudulenta dos seus direitos enquanto beneficiário da ADSE, de forma que, à custa dos mesmos, e de uma forma absolutamente ilegal, se enriquecer.
O arguido não praticou aqui os actos isoladamente, tendo contado com a ajuda da co-arguida E…………..
Não obstante, não pode deixar de se ter em linha de conta o facto de este último ter tido um papel activo e determinante para a prática dos factos, bem sabendo que os mesmos implicavam um uso fraudulento dos direitos que a ADSE legalmente lhe concede e consequentemente um empobrecimento ilícito e indevido dos SMAS.
Face ao exposto, resulta claro que a conduta do arguido é de elevada gravidade, muito embora seja especialmente atenuada por algumas circunstâncias que vale a pena indagar.
Em primeiro lugar, importa sublinhar que os montantes envolvidos na conduta infraccional ora descrita não se revelam excepcionalmente elevados.
Por outro lado, importa ainda notar que o comportamento do arguido se circunscreveu a um episódio isolado, não havendo quaisquer sinais de reincidência.
De qualquer das formas, importa sublinhar que todos estes factos são absolutamente contrários às normas legais vigentes, bem como às regras internas dos SMAS e aos próprios objectivos daquela entidade - regras essas conhecidas do arguido mas que, mesmo assim, aquele aplicou de forma fraudulenta, para se enriquecer.
No que à culpa diz respeito, esta traduz-se, in casu na existência de dolo directo por parte do arguido.
Com efeito, o arguido tinha perfeito conhecimento da ilicitude do seu comportamento, bem como das consequências que o mesmo acarretaria para os SMAS e para o interesse público que sempre deveria salvaguardar e promover. Ora, consciente de tudo isto, mesmo assim o arguido quis e conseguiu consumar a sua conduta infractora, permitindo um uso fraudulento do seu cartão de beneficiário e assim atingindo o resultado desvalioso pretendido. O arguido entrou para a administração pública em 1978, o que lhe acarreta uma exigência comportamental a que não soube ou não conseguiu corresponder, já que na esteira de Marcelo Caetano é “um veterano da função pública”, pelo que se devia tornar num exemplo para os seus restantes colegas. Fazendo retroagir a missão dos SMAS à data da prática dos factos, como consta dos factos provados, tal entidade visava prestar serviços de águas e saneamento aos cidadãos, pelo que a sua missão se relacionava com a defesa e prossecução do interesse público. Por tal facto, o arguido estava vinculado a deveres profissionais, não só para com a sua dignidade pessoal e profissional mas também para com um ente público e para com os cidadãos.
4.60.4 Pena Proposta
Orientado pelos princípios da justiça e da proporcionalidade, conforme exige o n.° 2 do artigo 265.º da Constituição da República Portuguesa, tendo em conta a gravidade objectiva, grau de culpa, a personalidade do arguido, no âmbito funcional, e a sua categoria profissional, e bem assim, os acima especificados contornos concretos da infracção e sua expressão, há que ponderar a pena adequada e justa, tendo sempre em conta a finalidade característica das medidas disciplinares.
Propõe-se a aplicação da pena de suspensão por 60 (sessenta) dias ao arguido A………..
22) Em reunião de 04/05/2010, a Câmara Municipal do Porto deliberou, em escrutínio secreto, aplicar ao A. a pena disciplinar proposta – doc. 1 junto com a p.i.
23) Dá-se aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais o PA apenso.


3. O Direito
O presente recurso de revista foi interposto pelo Município do Porto do acórdão do TCAN de 21.12.2018, que negou provimento ao recurso interposto do acórdão do TAF do Porto de 07.12.2011, havendo este julgado a presente acção administrativa especial procedente, anulando o acto impugnado e condenando o aqui recorrente a pagar ao autor, aqui recorrido “os vencimentos referentes ao período de suspensão executado, acrescidos de juros legais, desde a data da execução da pena até integral pagamento, bem como reconstituir a situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado”.
No acórdão recorrido o decidido em 1ª instância, quanto à prescrição do direito de instaurar o procedimento disciplinar e à anulabilidade do acto impugnado, foi mantido.
Assim, o acórdão recorrido o TCAN refere, nomeadamente, o seguinte: «(…) tudo indica que, à data em que foi elaborada a participação criminal, já o serviço dispunha de elementos indiciadores da prática de ilícitos disciplinares, como expressamente refere a Directora do Departamento dos Serviços Centrais e Jurídicos dos ex SMAS; pelo que mal se compreende que o dirigente máximo do serviço tenha aguardado a dedução de acusação no processo crime e deixado decorrer três anos para mandar instaurar o procedimento disciplinar sem que, nesse período, face à pretensa indefinição dos factos integradores de ilícito disciplinar de que havia notícia, os tenha mandado apurar

O ora Recorrente sustenta que o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento, por errada interpretação e aplicação do disposto nos arts. 4º e 85º e seguintes do Estatuto Disciplinar (ED) de 1984, bem como da Lei nº 67/98, de 26/10, do DL nº 298/92, de 31/12, do Regulamento nº 14/2009, de 13/1 e dos arts. 135º, 174º, nºs 2, 3 e 4 e 177º, nº 5 do CPP.
Alega que o prazo previsto no art. 4º, nº 2 do ED84 só começou a correr a partir do momento em que o Presidente da Câmara Municipal do Porto (CMP) tomou conhecimento da acusação deduzida pelo Ministério Público (MP) contra os arguidos, “data em que os factos foram conhecidos com todos os elementos bastantes para saber o que efectivamente havia ocorrido, de que forma e em que extensão e quem eram os seus agentes, assim se podendo finalmente configurar os factos como falta disciplinar” (cfr. conclusão I do recurso).
Mais referindo que o conhecimento da falta a que se refere aquele preceito do ED não se confunde com o “conhecimento de indícios” ou mesmo com o “conhecimento de fortes indícios”, sendo uma coisa a falta e outra os indícios (cfr. conclusão J).

A questão suscitada nesta revista não é nova, como, aliás, bem salientou o acórdão da formação que admitiu a revista, proferido em 10.05.2019, sendo certo que, como ali se refere, o acórdão recorrido “…se afasta – em casos idênticos quanto à matéria controvertida – da decisão proferida em dezenas de processos”.

Vejamos então.
Estabelecia o art. 4º, nº 2 do ED84 que o procedimento disciplinar “prescreverá igualmente se, conhecida a falta pelo dirigente máximo do serviço, não for instaurado o competente procedimento disciplinar no prazo de 3 meses”.
As instâncias consideraram que, no caso, o titular do poder disciplinar teve conhecimento, em finais de 2005, da falta que conduziu à aplicação da sanção disciplinar, sendo que a instauração do procedimento disciplinar apenas foi determinada pelo Presidente da CMP em 11.12.2008.
No entanto, da factualidade dada por provada não resulta que a “falta” que determinou o acto impugnado tenha sido conhecida pelo dirigente máximo do serviço em finais de 2005, sendo que “…não basta para efeitos do n.º 2 do art.º 4.º do ED/84, o mero conhecimento dos factos na sua materialidade, antes se torna necessário o conhecimento destes e do circunstancialismo que os rodeia, por forma a tornar possível ao dirigente máximo do serviço, o seu enquadramento como ilícito disciplinar (cfr. Ac. deste STA de 09.09.2009, Proc. nº 0180/09 e jurisprudência nele indicada).
Ora, o que se mostrou provado foi que «por volta de Setembro de 2005, a então Chefe de Divisão dos Recursos Humanos dos SMAS tomou conhecimento que nos meses imediatamente anteriores surgiu um excessivo volume de despesas com dentistas, para comparticipação da ADSE»; tendo a mesma comunicado «à sua superior hierárquica, Directora do Departamento dos Serviços Centrais e Jurídicos dos SMAS do Porto, os factos constatados». A qual, por sua vez, deu conhecimento dos factos e das suspeitas aos mesmos associados ao Director Delegado de então dos SMAS, o qual, em 02.12.2005, fez a participação à Polícia Judiciária do Porto, nos termos indicados no ponto 10) do probatório (cfr., igualmente, os pontos 3) a 9) dos FP).
E dessa factualidade e, mais concretamente, do teor da participação feita pelo referido Director Delegado à Polícia Judiciária não é possível considerar que a “falta” que veio a ser apurada já fosse conhecida em finais de 2005.
De facto, perante os factos constatados e participados criminalmente era necessário apurar as concretas circunstâncias em que os mesmos tinham ocorrido, bem como definir os contornos fáctico-jurídicos das situações e à individualização e identificação dos funcionários infractores.
Sobre esta concreta questão, em situações em tudo idênticas à presente, estando em causa a mesma factualidade, já se pronunciou este STA considerando que o conceito de “conhecimento da falta” tem por base todos os elementos caracterizadores da situação, de modo a ser possível formular uma ponderação criteriosa sobre o uso do poder disciplinar.
Assim, se decidiu no recente acórdão de 12.07.2018, tendo por objecto situação idêntica (respeitante a outro funcionário no âmbito do mesmo circunstancialismo fáctico respeitante ao recebimento de comparticipações pela ADSE), no qual se escreveu, nomeadamente, o seguinte: «A orientação seguida pelo TCAN não difere daquela que foi defendida, em relação a idêntica questão, em dois acórdãos deste STA que, inclusive, diziam respeito à aplicação de penas disciplinares pela Câmara Municipal do Porto a outros funcionários que praticaram ou beneficiaram do mesmo esquema fraudulento envolvendo comparticipações da ADSE.
São eles o Acórdão de 19.06.14, Proc. n.º 1471/13, e o Acórdão de 03.12.15, Proc. nº 1888/13, tendo este último acolhido a orientação defendida no primeiro. A ideia base a reter pode extrair-se do seguinte trecho do aresto de 19.06.14:
“O TCA entendeu, todavia, que, quer o dirigente máximo do serviço fosse a Câmara Municipal, fosse o seu Presidente ou fosse o Conselho de Administração dos SMAS, a verdade é que só podiam ter tido conhecimento da falta quando foram notificados de que foi deduzida acusação em processo-crime contra a autora (e outras pessoas).
Apreciaremos este aspecto da questão, em primeiro lugar, pois se o TCA tiver razão é irrelevante saber quem era o dirigente máximo do serviço, na medida em que entre a acusação em processo criminal e a abertura do procedimento disciplinar não decorreram 3 meses.
Podemos colocar a questão nestes termos: os factos participados à PJ, em 2 de Dezembro de 2005, eram bastantes para se poder falar em conhecimento da falta imputada à autora?
O TCA respondeu negativamente e que só com a acusação em processo crime era possível ao dirigente máximo do serviço conhecer “da relevância disciplinar”, na medida em que se impunha “…no caso, proceder à definição dos contornos fáctico-jurídicos e à individualização dos funcionários infractores, ou presumivelmente infractores (determinar do confronto de todos os recibos entregues por todos os funcionários dos SMAS que recorreram aos serviços da clínica em referência no período temporal em questão quais haviam incorrido em “falta disciplinar”) apurando e determinando, nomeadamente se havia falsificação de recibos (…) quem os havia falsificado/rasurado e como os mesmos haviam sido apresentados nos serviços e se procedeu ao seu pagamento (…), que tipo de conduta ou “esquema” estariam por detrás ou sequer se estes existiam”.
Julgamos que o conceito “conhecimento da falta” tem o sentido e alcance que o TCA lhe deu, quando entendeu que o mesmo tem de reportar-se aos elementos caracterizadores da situação, de modo a poder efectuar-se uma ponderação criteriosa sobre o uso do poder disciplinar, citando nesse sentido a jurisprudência deste STA no ponto IX.
Efectivamente, como se diz no acórdão do Pleno (CA) de 22/6/2006, proferido no processo 02054/02: “(…) Entendeu-se ainda no acórdão recorrido que «a jurisprudência tem entendido que este conhecimento pelo dirigente máximo do serviço tem de se reportar a todos os elementos caracterizadores da situação de modo a poder efectuar uma ponderação criteriosa para se determinar de forma consciente quanto a usar ou não o poder sancionador».
Efectivamente, tem sido este o entendimento deste Supremo Tribunal Administrativo, como se pode ver pela jurisprudência citada no acórdão recorrido, sobre este ponto. (Designadamente, os acórdãos de 14-10-2003, recurso n.º 586/2003, e de 20-3-2003, recurso n.º 2017/02) (…)”.
Também no acórdão do Pleno do STA (Pleno CA) de 23-1-2007, processo 021/03, se decidiu (sumário): “Como conhecimento relevante para efeitos de prescrição não é suficiente o mero conhecimento de uma certa materialidade dos factos, sendo necessário que o dirigente tome conhecimento de tais factos em termos de os poder enquadrar como ilícito disciplinar.
No mesmo sentido o acórdão de 19-6-2007, proferido no processo 01058/06: “Refira-se ainda que a jurisprudência deste STA tem entendido que este conhecimento pelo dirigente máximo do serviço tem de se reportar a todos os elementos caracterizadores da situação, de modo a poder efectuar uma ponderação criteriosa para se determinar, de forma consciente, quanto a usar ou não do poder sancionador. Cf. acs. 14.10.03, rec. 586/03, de 20.03.03, rec. 2017/02, de 16.03.06, rec. 141/06 e de 22.06.06, rec. 2054/02”.
Como se vê o entendimento do acórdão recorrido está em plena sintonia com o entendimento deste STA generalizadamente acolhido e que não se vê qualquer razão para dele nos afastarmos. Por outro lado, conforme se pode ver do facto X a participação à PJ é sobre uma situação geral dos serviços relativa a actos médicos praticados com uma clínica Dentária, e falhas detectadas em recibos relativos a comparticipações da ADSE. Perante esta participação concluiu o TCA (e trata-se de uma conclusão sobre matéria de facto) não ser possível saber, desde logo, se havia alguma “falta” da ora autora.
Não existe, por um lado, qualquer disposição legal exigindo, a instauração de inquérito prévio, pelo que é inócuo o facto do mesmo não ter sido ordenado – cfr. art. 4º do ED – pelo que não pode inferir-se de tal omissão qualquer consequência para a prescrição do procedimento disciplinar.
Deste modo, o prazo de três meses apenas começou a contar quando o dirigente máximo do serviço tomou conhecimento de que foi deduzida acusação contra a autora – pois só nessa altura podia saber a sua efectiva participação no conjunto de factos denunciados. Como a acusação foi deduzida em 30-9-2008 e o processo disciplinar foi instaurado à autora em 11-12-2009, portanto antes de decorrido o prazo de três meses”».
Esta jurisprudência deste STA é igualmente aplicável ao presente caso, o qual respeita à mesma questão em casos idênticos à destes autos, estando em causa os mesmos factos, nomeadamente, a deliberação da CMP de 04.05.2010, pela qual foram aplicadas as penas disciplinares e o despacho do Presidente da CMP de 11.12.2008 [que determinou a instauração de processo disciplinar contra, entre outros, ao autor], tendo a acusação em processo-crime sido deduzida em 30.09.2008, sendo este, no caso, o facto que determina o conhecimento relevante para efeitos do nº 2 do art. 4º do ED. Ou seja, o processo disciplinar contra o autor foi instaurado antes de decorrido o prazo de 3 meses previsto no referido preceito.
Assim, uma vez que ainda não se tinha esgotado o prazo para a instauração do processo disciplinar, não operou a prescrição a que alude a norma, sendo certo, por outro lado, que nenhuma relevância assume no caso não se ter instaurado um processo de inquérito, o qual corresponde a uma faculdade da Administração e não um ónus que a lei lhe imponha, e que, no caso não se considerou necessário instaurar.
Termos em que, procede o recurso interposto pelo Município do Porto, devendo o acórdão recorrido ser revogado ao haver incorrido no erro de julgamento que lhe é imputado.

Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogar o acórdão recorrido e julgar improcedente a acção.
Custas pelo Autor nas instâncias e neste STA.

Lisboa, 7 de Novembro de 2019. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – José Francisco Fonseca da Paz – Maria do Céu Dias Rosa das Neves.