Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0905/09
Data do Acordão:01/27/2010
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:CASIMIRO GONÇALVES
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO FISCAL
RECURSO PARA MELHORIA DA APLICAÇÃO DO DIREITO
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário:I - O nº 2 do art. 73º do RGCO é subsidiariamente aplicável aos recursos jurisdicionais em processo tributário de contra-ordenação, por força do disposto na al. b) do art. 3º do RGIT.
II - O tipo legal da infracção prevista e punida pelas disposições conjugadas do nº 4 do art. 17º do DL nº 40/93, de 18/2 e 108º nºs. 1 e 4, al. a) do RGIT, preenche-se com a não apresentação do respectivo pedido de regularização da situação fiscal, na estância aduaneira competente, no prazo de quatro dias úteis após a entrada do veículo no território nacional.
III - Se a decisão recorrida enfermar de insuficiência factual em ordem à decisão de direito, impõe-se ordenar a ampliação da matéria de facto.
Nº Convencional:JSTA00066240
Nº do Documento:SA2201001270905
Data de Entrada:09/25/2009
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:A... E DG DAS ALFÂNDEGAS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TT1INST LISBOA DE 2009/02/02 PER SALTUM.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR FISC - CONTRA ORDENAÇÃO.
Legislação Nacional:DL 433/82 DE 1982/10/27 ART3 ART10 ART27 ART41 ART73 N2 ART74 N2.
DL 40/93 DE 1993/02/18 ART17 N4.
RGIT01 ART57 N2 C ART60 ART69 N2 ART108.
CPP87 ART283 N3 ART426.
CPC96 ART729 N3.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC529/09 DE 2009/09/30.; AC STA PROC721/09 DE 2009/12/16.
Referência a Doutrina:JORGE DE SOUSA E OUTRO RGIT ANOTADO 2ED.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
RELATÓRIO
1.1. O Magistrado do Ministério Público junto do TT de Lisboa recorre do despacho que proferido pelo Mmo. Juiz do TT de Lisboa, em 2/2/2009, julgou procedente o recurso que tinha sido interposto por A… contra a decisão da Directora Regional de Contencioso e Controlo Aduaneiro de Lisboa, que lhe aplicou a coima de € 1.000,00 pela prática da infracção p. e p. nos arts. 24º, nº 2 e 108º, nº 4, al. a), do RGIT e 17º, nº 4 do DL nº 40/93, de 18/2.
1.2. A recorrente termina as alegações do recurso formulando as Conclusões seguintes:
1ª A douta sentença recorrida absolveu o arguido, por ter considerado que não consta da decisão da autoridade tributária que aplicou a coima a data exacta (dia!) da consumação da contra-ordenação, facto que considerou como elemento objectivo do tipo legal de infracção.
2ª Ora, a lei não exige que da decisão que aplica uma coima, ou de uma acusação criminal pública conste a data exacta da prática da infracção (artigos 79° do RGIT e 283° do CPP).
3ª Por outro lado, a data exacta da prática da infracção não é elemento objectivo do tipo legal da contra-ordenação.
4ª Elemento objectivo da infracção em causa é, no que, agora, interessa, a não apresentação do veículo na estância aduaneira competente no prazo máximo de 4 dias úteis contados da sua entrada em Portugal.
5ª Ora, da decisão da autoridade administrativa que aplicou a coima constam os elementos de facto donde se extrai esse elemento objectivo da infracção.
6ª De facto, ali se refere que o veículo foi introduzido em Portugal em Agosto de 2003 e só em Setembro desse mesmo mês (dia 22- ou 16, de acordo com a participação de fls. 3) foi apresentado na competente estância estação aduaneira para regularização.
7ª Portanto, dessa factualidade conclui-se, com toda a segurança, que o veículo não foi apresentado para regularização no prazo de 4 dias úteis após a sua introdução em Portugal.
8ª É manifesto que o arguido não pode beneficiar da dispensa da coima prevista no artigo 32º/1 do RGIT por não se verificar pressuposto da não existência de prejuízo para a receita tributária.
9ª Houve, de facto, prejuízo que foi, entretanto regularizado.
10ª A norma em causa visa, tão-somente, as situações em que não chegou a produzir-se prejuízo antes de ocorrer a regularização, como acontece, v. g., com a falta de nomeação de representante p. p. no artigo 124º do RGIT.
11ª É, também certo que se verificam os pressupostos da atenuação especial da coima uma vez que o arguido reconhece a sua responsabilidade ao admitir que apresentou o veículo na estância aduaneira, para regularização, para além do 4º dia útil após a introdução do mesmo em Portugal e regularizou a situação tributária até à decisão do processo.
12ª Em abstracto a coima imputada ao arguido é punida entre € 150,00 e € 75.000,00. (artigos 108º e 24º/2 do RGIT).
13ª Por aplicação do instituto da atenuação especial, nos termos do estatuído no artigo 32º/2 do RGIT, os limites mínimos e máximos são reduzidos e metade, pelo que a coima, abstractamente, é punível entre 75,00 e € 37.500,00.
14ª A autoridade administrativa aplicou a coima de € 1.000,00, pelo que por aplicação do instituto da atenuação especial da coima atentos os demais elementos constantes da decisão que aplicou a coima afigura-se razoável a redução da coima para € 500,00
Termina pedindo que seja revogada a decisão de 1ª instância, reduzindo-se a coima aplicada pela autoridade administrativa para €500,00.
1.3. Não foram apresentadas contra-alegações.
1.4. Não foi colhido parecer do Exmº Procurador-Geral Adjunto, dado que o recurso foi interposto pelo Ministério Público.
1.5. Foram colhidos os Vistos legais e cabe decidir
FUNDAMENTOS
2.1. No despacho recorrido julgaram-se provados os factos seguintes:
A) — Em 17/10/2003, foi elaborada a participação de fls. 3 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzida, imputando ao arguido, ora recorrente, a prática da infracção prevista e punida nos arts. 17°, n° 4, do D.L. n° 40/93 de 18/02 e 108°, n° 4, al. a), do RGIT, porquanto, declarou à Alfândega do Jardim do Tabaco, em 16/09/2003, o veículo marca Audi, modelo A4, matrícula …, de que era proprietário, quando o mesmo já se encontrava em Portugal desde Agosto de 2003;
B) — O arguido foi notificado, nos termos e para os efeitos do art. 70° do RGIT, em 02/12/2003;
C) — Por despacho da Directora Regional de Contencioso e Controlo Aduaneiro de Lisboa, datado de 22/12/2003, foi proferida a decisão que consta de fls. 15 a 17 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, a qual aplicou ao arguido a coima de € 1.000,00;
D) — O arguido foi notificado da decisão, referida em C), em 14/01/2004.
3. Questão prévia da admissibilidade do recurso
Sendo o recurso interposto pelo EMMP ao abrigo do disposto no nº 2 do art. 73º e do nº 2 do art. 74º, ambos do Regime Geral das Contra-ordenações (DL 433/82, de 27/10), subsidiariamente aplicável, importa apreciar, antes de mais se, no caso, se verifica uma situação enquadrável no referido nº 2 do art. 73º do RGCO, onde se estabelece que poderá ser aceite o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
Vejamos.
No requerimento a que alude o nº 2 do art. 74º do RGCO e que acompanhou o recurso, o MP invoca que este «deve ser aceite por se mostrar, manifestamente, necessário à melhoria da aplicação do direito», pois que, tendo o Mmo. Juiz absolvido o arguido da prática da contra-ordenação em questão, por não constar da decisão da autoridade administrativa que aplicou a coima a data exacta (dia) em que se consumou a infracção, o que é certo é que a data da consumação da infracção não é elemento objectivo do tipo, sendo-o, antes, o facto de o veículo não ser apresentado para regularização na estância aduaneira competente no prazo de 4 dias úteis após a entrada do veículo em Portugal, sendo que tais elementos constam, claramente, da decisão da autoridade administrativa que aplicou a coima.
Ora, reportando ao que se dispõe no nº 2 daquele citado art. 73º do RGCO, a jurisprudência deste Tribunal tem entendido, na esteira de Jorge de Sousa e Simas Santos, RGIT, Anotado, 2ª edição, que a aceitação do recurso visando a melhoria da aplicação do direito «não deve restringir-se, ao contrário do que parece resultar da sua letra, aos casos em que apenas estejam em causa questões de interpretação ou aplicação da regra jurídica, propriamente dita. Antes deve admitir-se em termos de “permitir o controle jurisdicional dos casos em que haja erros claros na decisão judicial ou seja comprovadamente duvidosa a solução jurídica” ou em que “se esteja perante uma manifesta violação do direito”.» (cfr., entre outros, o ac. de 30/9/09, rec. nº 0529/09).
No caso vertente, afigura-se-nos, como melhor se verá adiante, que (para além da questão da condenação da Fazenda Pública nas custas, embora o processo seja anterior a 2004 – questão que, todavia, não fazendo parte do objecto do recurso, não cabe aqui ser conhecida) estamos, pelo menos, perante uma solução jurídica comprovadamente duvidosa, quanto à questão atinente ao preenchimento do tipo legal da infracção [sendo que até o próprio arguido aceitara ter ultrapassado (embora em um dia apenas) o prazo de quatro dias úteis fixado no nº 4 do art. 17º do DL nº 40/93, de 18/2], pelo que, de acordo com o ficou dito, se entende que se verificam os pressupostos da admissão do recurso.
Acresce, aliás, que dado o montante da coima aplicada (1.000 Euros) ser superior à alçada dos tribunais tributários (935,25 Euros, à data dos factos imputados ao arguido), sempre seria admissível recurso nos termos gerais.
E assim sendo, é de admitir o recurso, ao abrigo do citado artigo 73º, nº 2 do RGCO.
4. Quanto ao mérito do recurso
4.1. O nº 4 do art. 17° do DL nº 40/93 de 18/02, dispõe:
«4 - Os operadores, registados ou não, com sede ou residência no território nacional, que adquiram num outro Estado membro, ou importem, veículos automóveis matriculados definitivamente na Comunidade ou num país terceiro ficam obrigados a apresentar o respectivo pedido de regularização da situação fiscal na estância aduaneira competente, no prazo máximo de quatro dias úteis após a entrada do veículo no território nacional, instruído com os seguintes documentos:
a) (...).»
Por sua vez, no art. 108° do RGIT, estabelece-se:
«1 - Os factos descritos nos artigos 92°, 93° e 95° da presente lei que não constituam crime em razão do valor da prestação tributária ou da mercadoria objecto da infracção são puníveis com coima de € 150 a €150 000.
2 - (...)
4 - A mesma coima é aplicável a infracções praticadas no âmbito dos seguintes regimes especiais:
a) De admissão ou importação de veículos automóveis pertencentes a particulares, por ocasião da transferência da sua residência normal para Portugal,
(...).»
4.2. Da conjugação destes preceitos resulta que, tal como a decisão recorrida entendeu e tal como o MP alega, o tipo legal em questão se preenche com a não apresentação do respectivo pedido de regularização da situação fiscal, na estância aduaneira competente, no prazo de quatro dias úteis após a entrada do veículo no território nacional.
E desde logo há que referir que (independentemente de saber se a invocada omissão da referência à data concreta da entrada do veículo em território nacional configura nulidade da decisão administrativa de aplicação de coima ou, como entendeu a decisão recorrida, falta de cometimento da infracção e consequente absolvição do arguido), temos para nós que as circunstâncias de tempo e lugar só revestem significado essencial nos casos em que apenas em razão dessas circunstâncias o facto seja lesivo do bem jurídico tutelado pela norma, reconduzindo-se, nos demais casos, a meros elementos acidentais do facto, sendo que, neste caso, não há, relativamente ao arguido, situação de surpresa ou violadora das garantias de defesa, uma vez que a infracção por que vinha acusado não podia ser outra.
Na verdade, o momento da prática da infracção releva para efeitos de aplicação da lei no tempo (cfr. art. 3º do RGCO) bem como para efeitos de imputabilidade (art. 10°), de prescrição do procedimento (art. 27º) e até de aplicação de amnistias, sendo elemento que, se possível (cfr. al. c) do nº 2 do art. 57º do RGIT e al. b) do nº 3 do art. 283º do CCPenal), deve constar da acusação (ou equivalente).
Ora, no caso, na participação da Fazenda Pública consta que o arguido «declarou à Alfândega do Jardim do Tabaco, em 16/09/2003, o veículo marca Audi, modelo A4, matrícula …, de que era proprietário, quando o mesmo já se encontrava em Portugal desde Agosto de 2003» (cfr. al. a) do Probatório).
E essa factualidade assenta no doc. de fls. 20 [no qual a anterior proprietária do veículo declara que este chegou a Portugal em Agosto, como meio de deslocação em Portugal nas férias (documento esse que foi entregue pelo próprio arguido juntamente com o seu requerimento de fls. 19, no qual invocava que o prazo de 4 dias úteis terminara em 15/9/2003, porque o conta a partir da data de cancelamento da matrícula anterior definitiva na Alemanha) e, assim, partindo desse termo inicial, tal prazo teria sido ultrapassado apenas em 1 dia].
Nas alegações de recurso para a 1ª instância (fls. 29), o arguido, reiterando a invocação de que o termo inicial daquele prazo de 4 dias úteis começaria a contar no dia seguinte a 9/9/2003, continuou, aliás, a sustentar que esse mesmo prazo de 4 dias úteis só foi ultrapassado em 1 dia.
E relevando também para a questão, consta na Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) junta a fls. 23, que a data de transmissão do veículo foi a de 9/9/2003.
Ora, considerando, por um lado, que os factos imputados ao arguido constam da mencionada participação (art. 60º do RGIT) e não de auto de notícia (não gozando aquela do especial valor probatório deste – cfr. art. 69º, nº 2 do RGIT), considerando, por outro lado, o teor do referido doc. de fls. 23 e considerando, finalmente, que não pode em processo penal e, em geral, no domínio do direito sancionatório, falar-se rigorosamente de um ónus de prova ou de provas pré-constituídas, antes vigorando o princípio da verdade material e recaindo sobre o Tribunal o poder-dever de investigar, devendo a apreciação da prova fazer-se por convicção do julgador face aos elementos probatórios recolhidos (cfr. ac. do STA, de 16/12/09, rec. nº 0721/09, bem como os autores ali citados), então, no presente caso, atendendo ao tipo contra-ordenacional imputado ao arguido (cujas normas incriminadoras se substanciam no nº 4 do art. 17º do DL nº 40/93, de 18/2 e 108º do RGIT), e atendendo aos factos levados ao Probatório [cuja al. a) se limita, no essencial, a reproduzir o teor da Participação apresentada], há, pelo menos, que apurar a que título é que o veículo foi trazido em Agosto de 2003 pela anterior proprietária, se ocorreu, ou não a transferência da residência normal desta para Portugal, bem como a data da transmissão do mesmo; com efeito, só assim se poderá alcançar, além do mais, quer o esclarecimento sobre a imputação da autoria da infracção em causa ao arguido, quer, se for caso disso, a factualidade indispensável à determinação da medida concreta da coima que, eventualmente, possa ser aplicável, aí se incluindo as questões referentes ao regime da dispensa de coima ou ao regime da atenuação especial desta, também invocadas no recurso.
E não tendo tal factualidade sido apurada em sede de instrução dos autos, nem sendo possível supri-la com recurso aos documentos juntos, havemos de concluir que a decisão recorrida enferma de insuficiência de factos, o que significa que há necessidade de ampliar a matéria de facto, com vista a obter a factualidade que suporte a decisão de direito, conforme o disposto no art. 426º do CPP, aplicável por força do disposto nos arts. 41º e 74º do RGCO, e visto, ainda o disposto no art. nº 3 do art. 729º do CPC.
DECISÃO
Nestes termos, acorda-se em, dando provimento ao recurso com a presente fundamentação, anular a decisão recorrida e ordenar a baixa dos autos para ampliação da matéria de facto nos termos acima indicados.
Sem custas.
Lisboa, 27 de Janeiro de 2010. – Casimiro Gonçalves (relator) – Dulce Neto – Pimenta do Vale.