Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:073/18.0BCLSB
Data do Acordão:05/02/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
DISCIPLINA DESPORTIVA
ERRO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
RELATÓRIO
PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
Sumário:I – A presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP que tenham sido por eles percepcionados, de acordo com o disposto no art. 13º, alínea f) do Regulamento Disciplinar da LPFP, conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não é inconstitucional.
II - O acórdão que revogou a decisão do Tribunal Arbitral do Desporto, considerando que não se podia atender àquela presunção, incorreu em erro de direito.
III – A responsabilidade disciplinar dos clubes e sociedades desportivas pelos comportamentos social ou desportivamente incorrectos dos seus adeptos e simpatizantes não é objectiva, mas subjectiva, por se basear numa violação de deveres legais e regulamentares que sobre eles recaem.
Nº Convencional:JSTA000P24488
Nº do Documento:SA120190502073/18
Data de Entrada:03/27/2019
Recorrente:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
Recorrido 1:FUTEBOL CLUBE DO PORTO-FUTEBOL, SAD
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo

1. Relatório

Futebol Clube do Porto - Futebol, SAD interpôs, no Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS) recurso jurisdicional do acórdão proferido em 20.06.2018 pelo Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), que julgou improcedente o recurso por ele apresentado do acórdão de 2/01/2018 do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que, negando provimento ao recurso hierárquico impróprio interposto em 06.12.2017, manteve a decisão da Secção Profissional do Conselho de Disciplina que aplicou ao recorrente duas sanções disciplinares de multa, nos valores de € 1.148,00 e € 1.720,00, pela prática das infracções previstas e punidas pelo artigo 187.º, n.º 1, als. a) e b) do RDLPFP, por acórdão datado de 22 de Novembro de 2018, este referenciado Tribunal proferiu decisão a julgar procedente o recurso interposto, revogando o acórdão do TAD e, anulando o acórdão de 02.01.2018 do Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol;

A Federação Portuguesa de Futebol, Recorrida no processo em que é Recorrente o FUTEBOL CLUBE DO PORTO – FUTEBOL SAD, não se conformando com o acórdão proferido pelo TCAS, vem recorrer para a Secção do Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal Administrativo apresentando para o efeito alegações com o seguinte quadro conclusivo:
“1. A Recorrente vem interpor recurso de revista para o STA do Acórdão proferido pelo TCA Sul em 22 de novembro de 2018, que revogou o acórdão arbitral proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto. Esta instância, por seu turno, havia decidido confirmar a decisão de aplicação ao FCP de multas por comportamento incorreto do público, punidas através do artigo 187.º do RD da LPFP;
2. A questão em apreço diz respeito à responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorretos dos seus adeptos por ocasião de jogos de futebol, o que, para além de levantar questões jurídicas complexas, tem assinalável importância social uma vez que, infelizmente, os episódios de violência em recintos desportivos têm sido uma constante nos últimos anos em Portugal e o sentimento de impunidade dos clubes dado por decisões como aquela de que agora se recorre nada ajudam para combater este fenómeno;
3. A questão essencial trazida ao crivo deste STA – responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorretos dos seus adeptos - revela uma especial relevância jurídica e social e sem dúvida que a decisão a proferir é necessária para uma melhor aplicação do direito;
4. Assume especial relevância social a forma como a comunidade olha para o crescente fenómeno de violência generalizada no futebol – seja a violência física, seja a violência verbal, seja perpetrada por adeptos, seja perpetrada pelos próprios dirigentes dos clubes;
5. Em causa nos presentes autos estão, essencialmente, comportamentos dos adeptos relacionados com o rebentamento de engenhos pirotécnicos e arremesso de objetos por ocasião de jogos de futebol;
6. São deveres dos clubes assegurar que tais objetos não entram nos estádios de futebol e que os seus adeptos não tenham comportamentos incorretos, o que decorre dos regulamentos federativos, é certo, mas também da lei e da Constituição;
7. Admitir, como fez o TCA Sul, que os clubes devem ser desresponsabilizados pelos comportamentos dos seus adeptos – ao arrepio do entendimento de toda a comunidade desportiva e das instâncias internacionais do Futebol, onde esta questão, de tão clara e evidente que é, nem sequer oferece discussão – é fomentar este tipo de comportamentos o que se afigura gravíssimo do ponto de vista da repercussão social que este sentimento de impunidade pode originar;
8. Esta questão tem conhecido posições contraditórias por parte do TAD, sendo que em catorze processos arbitrais a questão foi decidida de forma contrária à que fez o Tribunal a quo, contra apenas três em sentido coincidente;
9. A questão em apreço é suscetível de ser repetida num número indeterminado de casos futuros, porquanto desde o início de 2017 até à presente data deram entrada no Tribunal Arbitral do Desporto mais de 50 processos relativos a sanções aplicadas ao FCP por comportamento incorreto dos seus adeptos;
10. Tais números não só demonstram de forma incontestável que o FCP nada tem feito ao nível da intervenção junto dos seus adeptos para que não tenham comportamentos incorretos nos estádios, como demonstram que o FCP tem traçado um “plano de ataque” que não verá um fim num futuro próximo;
11. Não existe nenhuma crítica a fazer à decisão proferida pelo TAD, ao contrário do que entendeu o TCA Sul;
12. O FCP não colocou em momento algum em causa que estes factos aconteceram, colocou em causa, sim, que tenham sido adeptos do FCP os responsáveis pelos mesmos e que tenha qualquer responsabilidade sobre o comportamento levado a cabo por outras pessoas;
13. Tal como consta dos Relatórios de Jogo cujo teor se encontra a fls. … do processo arbitral, os Delegados da Liga são absolutamente claros ao afirmar que tais condutas foram perpetradas pelos adeptos do Futebol Clube do Porto, sem deixar qualquer margem para dúvidas;
14. Com base nesta factualidade, o Conselho de Disciplina instaurou os competentes processos sumários ao FCP. Nos termos do artigo 258.º, n.º 1 do RD da LPFP, o processo sumário é instaurado tendo por base o relatório da equipa de arbitragem, das forças policiais ou dos delegados da Liga, ou ainda com base em auto por infração verificada em flagrante delito;
15. Este é um processo propositadamente célere, em que a sanção, dentro dos limites regulamentares definidos, é aplicada no prazo-regra de apenas 5 dias (cfr. artigo 259.º do RD da LPFP) somente por análise do relatório de jogo (e, possivelmente, outros elementos aí referidos) que, como se sabe, tem presunção de veracidade do seu conteúdo (cfr. Artigo 13.º, al. f) do RD da LPFP);
16. Os Delegados da LPFP são designados para cada jogo com a clara função de relatarem todas as ocorrências relativas ao decurso do jogo, onde se incluem os comportamentos dos adeptos que possam originar responsabilidade para o respetivo clube;
17. Assim, quando os Delegados da LPFP colocam no seu relatório que foram adeptos de determinada equipa que levaram a cabo determinados comportamentos, tal afirmação é necessariamente feita com base em factos reais, diretamente visionados pelos delegados no local. Até porque, caso os Delegados coloquem os seus relatórios factos que não correspondam à verdade, podem ser alvo de processo disciplinar;
18. Recorde-se, aliás, que esta forma de processo consta do Regulamento Disciplinar da LPFP, aprovado pelas próprias SAD’s que disputam as competições profissionais em Portugal, entre elas o FCP;
19. Entende o TCA que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta do Relatório de Jogo) que o FCP violou deveres de formação e vigilância, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo, o que, como sabemos, não é possível;
20. Assim, o Relatório de Jogo, atento o seu conteúdo, é perfeitamente suficiente e adequado para sustentar a punição da Recorrente no caso concreto. Ademais, há que ter em conta que no caso concreto existe uma presunção de veracidade do conteúdo de tal documento;
21. Para abalar essa convicção, cabia ao clube apresentar contraprova. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.º do Código Civil;
22. Por seu turno, o TCA Sul nada analisa nem nada fundamenta;
23. Também o FCP nada fez, nada demonstrou, nada alegou, em nenhuma sede;
24. No que diz respeito ao cumprimento ou incumprimento dos seus deveres, o FCP nada refere;
25. Do conteúdo do Relatório de Jogo elaborado pelos Delegados da Liga, é possível extrair diretamente duas conclusões:
(i) que o Futebol Clube do Porto incumpriu com os seus deveres, senão não tinham os seus adeptos perpetrado condutas ilícitas (violação do dever de formação);
(ii) que os adeptos que levaram a cabo tais comportamentos eram apoiantes do Futebol Clube do Porto, o que se depreendeu por manifestações externas dos mesmos;
26. Isto significa que para concluir que quem teve um comportamento incorreto foram adeptos do FCP e não adeptos do clube visitante (e muito menos de um clube alheio a estes dois, o que seria altamente inverosímil), o Conselho de Disciplina tem de fazer fé no relatório dos delegados, o qual tem presunção de veracidade. Posteriormente, o FCP pode fazer prova que contrarie estas evidências, porém, no caso concreto, tal não aconteceu;
27. O próprio Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 730/95, diz claramente que “o processo disciplinar que se manda instaurar (…) servirá precisamente para averiguar todos os elementos da infração, sendo que, por essa via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)”;
28. Neste sentido, veja-se o Acórdão deste STA proferido no âmbito do recurso n.º 297/18, interposto da decisão do TCA Sul tirada no processo n.º 144/17.0BCLSB que dando provimento ao recurso de revista diz que é lícito o uso das presunções judiciais e que cabe ao clube apresentar prova que contrarie a presunção de veracidade dos relatórios, o que no caso, não sucedeu;
29. Ainda que se entenda – o que não se concede – que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir o FCP, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido – a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos do FCP e a violação dos respetivos deveres – foi retirado de outros factos conhecidos;
30. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com o princípio da presunção de inocência, ao contrário do que refere o FCP e do que parece entender o TCA Sul;
31. A tese sufragada pelo TCA é um passo largo para fomentar situações de violência e insegurança no futebol e em concreto durante os espetáculos desportivos, porquanto diminuir-se-á acentuadamente o número de casos em que serão efetivamente aplicadas sanções, criando-se uma sensação de impunidade em que pretende praticar factos semelhantes aos casos em apreço e ao invés, mais preocupante, afastando dos eventos desportivos, quem não o pretende fazer, em virtude do receio da ocorrência de episódios de violência;
32. Face ao exposto, deve o acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado por erro de julgamento, designadamente por errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 13.º, al. f), 127.º, 172.º, 186.º, n.º 1, 187.º, n.º 1, al. a) e b) e 258.º do Regulamento Disciplinar da LPFP.”

FUTEBOL CLUBE DO PORTO – FUTEBOL SAD, recorrida, vem apresentar as suas contra alegações com as seguintes conclusões:
i. Ainda que a recorrente não a evidencie com clareza e objectividade, a questão normativa que entende mal apreciada e decidida pelo Tribunal a quo parece ser a relativa ao critério de apreciação da prova em processo disciplinar.
ii. Tendo por referência o disposto no art. 150.º-2 e -4 do CPTA, a questão de direito que releva será o critério pelo qual haverão o Conselho de Disciplina o Tribunal Arbitral do Desporto, os Tribunais Administrativos, bem como as demais entidades com poderes sancionatórios e decisórios, de seguir aquando da apreciação da prova respeitante aos comportamentos incorrectos da autoria de espectadores no decorrer de um evento desportivo como o jogo de futebol de onze, concretamente no âmbito de aplicação do RDLPFP.
iii. Parte da alegação do presente recurso exprime a discordância da recorrente sobre os termos em que a instância inferior (TCAS) procedeu à apreciação da matéria em discussão e à valoração dos meios de prova constantes dos autos; alegação essa que, como se referiu já, é insusceptível de ser conhecida e apreciada pelo STA em sede de recurso de revista (art. 150.º, n.º 2 e 4, do CPTA), pelo que nessa parte, em tudo o que no recurso consista na “interpelação” para que a matéria de facto seja alterada com base numa reapreciação das provas carreadas para os autos, deverá o recurso ser não conhecido, por inadmissibilidade legal do juízo requerido pela recorrente.
iv. Sobrará, assim, a parte da alegação em que a recorrente “chama a terreiro” o problema normativo da valoração da prova, designadamente, o critério legal da apreciação da prova em processo disciplinar desportivo, matéria esta susceptível de ser conhecida em sede de revista.
v. Revista que, todavia, deverá improceder, porque fundada numa total desconsideração dos princípios estruturantes do processo disciplinar, que não poderão deixar de abranger o exercício do poder sancionatório previsto no RDLPFP, alguns deles inclusive portadores de estatuto constitucional.
vi. O arguido em processo disciplinar, tal como ocorre em processo penal, não tem de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada, até porque, aliado ao ónus da prova que recai sobre o titular da acção disciplinar (cf. jurisprudência uniforme e pacífica, e reiteradamente afirmada nos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 19/01/95, rec. n.º 031486, de 14/03/96, rec. n.º 028264, de 16/10/97, rec. n.º 031496 e de 27/11/97, rec. n.º 039040), vigora ainda o princípio da presunção de inocência.
vii. O princípio da presunção de inocência do arguido, também presente no âmbito do processo disciplinar, tem como um dos seus principais corolários a proibição de inversão do ónus da prova, não impendendo sobre o arguido – in casu a recorrida – o ónus de reunir as provas da sua inocência (neste sentido, a título de exemplo, veja-se o acórdão do TCA Norte de 02.10.2010, processo n.º 01551/05.8BEPRT, e ainda o acórdão do TCA Norte de 05.10.2012, processo n.º 01958/08.7BEPRT, disponíveis em www.dgsi.pt).
viii. Donde, toda a prova susceptível de conduzir à responsabilidade jurídico-penal do arguido deve ser carreada para os autos pelo titular da acção disciplinar não sendo, por isso, admissível qualquer inversão do ónus da prova em sede disciplinar (cf. Acórdão do STA de 17.02.2008, processo n.º 0327/08, acórdão do STA de 28.04.2005, processo n.º 333/05, bem como o acórdão do STA de 12.01.1998, processo n.º 023940, disponíveis em www.dgsi.pt).
ix. Revela-se, aliás, unânime que o arguido em processo disciplinar tem direito a um “processo justo”, o que passa, designadamente, pela aplicação de algumas das regras e princípios de defesa constitucionalmente estabelecidos para o processo penal, como é o caso do citado princípio da presunção da inocência, acolhido no art. 32.º-2 da CRP (cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 27/11/97, in Rec. n.º 039040; 16.OUT.97, in Rec. nº 031496, de 14/03/96, in Rec. n.º 028264; de 19.JAN.95, in Rec. n.º 031486; de 10.DEZ.98, in Rec. n.º 037808; de 01.MAR.07, in Rec. n.º 01199/06; de 28.ABR.05, in Rec. n.º 333/05; de 17.MAI.01, in Rec. n.º 40528, disponíveis em www.dgsi.pt).
x. É precisamente o princípio de inocência que exige ao Tribunal formular um juízo de certeza sobre o cometimento das infracções para condenar a recorrente, não se bastando com meras ilações, ou uma simples referência geográfica, como, porém, aconteceu.
xi. Portanto, sem que esteja demonstrada e devidamente comprovada, através de robustas provas, a materialidade e autoria da infracção disciplinar fica comprometida qualquer condenação do arguido/recorrida, que deve ter a seu favor a presunção de inocência (cf. Ac. TCAS de 02-06-2010, Proc. 5260/01).
xii. Ainda que os documentos gozem de uma presunção de veracidade e sejam elaborados pelos Delegados presentes ao jogo, não se podem aqui diminuir as exigências de prova e de sua apreciação, bastando-se com simples afirmações vertidas em relatórios.
xiii. Nem mesmo a presunção de veracidade dos relatórios prevista no art. 13.º, f), do RD, pode contrariar o quadro normativo, dado que, mesmo beneficiando de uma presunção de verdade, não se trata de prova subtraída à livre apreciação do julgador.
xiv. Além do mais, apenas os factos que constam dos relatórios, e não outros, gozam da presunção de veracidade, delimitação esta bem vincada pelo acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18-10-2018 (processo n.º 297/18), no seguinte segmento da sua decisão: “(…) o valor probatório dos relatórios dos jogos, além de só respeitarem, como vimos, aos factos que nele são descritos como percepcionados pelos delegados e não aos demais elementos da infracção (…).”.
xv. É óbvio que os ditos relatórios podem fazer um princípio de prova da ocorrência de comportamentos incorrectos ou até de que os autores desses adeptos são adeptos do FC Porto, mas nos factos deles descritos não é possível ir além disto.
xvi. Concretamente, de modo algum decorre do art. 13.º, f), do RD que tais relatórios possam fazer princípio de prova, ao ponto de operar uma autêntica inversão do ónus probatório, relativamente a dados que, pela própria natureza das coisas, são insusceptíveis de percepção sensorial.
xvii. Se do relatório de jogo não consta nenhum facto reportado às circunstâncias (típicas) de i) o clube ter infringido, com culpa, os deveres legais ou regulamentares, a que estava adstrito e de ii) esse comportamento ter permitido ou facilitado as condutas proibidas perpetradas pelos adeptos, só pode concluir-se, como muito bem concluiu o TCA-Sul, que o art. 13.º, f), não impunha, quanto a esses elementos típicos, qualquer inversão do ónus da prova.
xviii. Para efeitos disciplinares, como in casu, é relevante afirmar que a prova dos factos integradores da infracção é determinada face aos elementos existentes no processo e pela convicção do julgador, estando sujeita ao princípio da livre apreciação da prova (cf. art. 127.º do CPP e art. 94.º-4 do CPTA).
xix. Uma vez que o RDLPFP nada dispõe em contrário, competirá ao julgador - na fixação dos factos e pressupostos da aplicação da pena disciplinar - formular o seu juízo sobre a realidade e sentido dos factos através da apreciação do material probatório, segundo aquela que é a sua livre convicção.
xx. Ainda que as provas coligidas possam, em teoria, ser aptas a determinar a instauração do procedimento disciplinar contra o arguido, por se revelarem suficientes, na óptica da acusação, para o considerar suspeito dos factos em causa, para punir disciplinarmente algum agente sempre será preciso ir mais além, recolhendo e produzindo provas concretas que permitam criar a convicção no julgador de que se mostram preenchidos todos os pressupostos exigidos pelo tipo legal.
xxi. A imputação de todos e cada um dos elementos do tipo “incriminador” deve estribar-se em meios de prova que os sustentem, com a natureza de prova directa ou, pelo menos, de prova indirecta.
xxii. Considerando os pressupostos legais exigidos para a imputação e condenação pela prática das infracções p. e p. pelos arts. 187.º-1, a) e b) do RDLPFP, era necessário que o Conselho de Disciplina da FPF tivesse carreado aos autos prova suficiente de que i) os comportamentos indevidos foram perpetrados por sócio ou simpatizante do Futebol Clube do Porto – Futebol SAD, como ainda que ii) tais condutas resultaram de um comportamento culposo do Futebol Clube do Porto – Futebol SAD.
xxiii. Tal produção de prova jamais podia competir ou ser exigido à arguida, não se podendo neste âmbito admitir – como pretende a recorrente – uma inversão do ónus da prova.
xxiv. Face às normas e princípios que conformam o processo sancionatório, admitir a tese da recorrente equivaleria a uma violação das regras do ónus probatório e do princípio da presunção de inocência¸ o que deverá inevitavelmente conduzir ao repúdio de tal tese.
xxv. Além do mais, não se pode aqui abrir a porta, a uma “prova por presunção” sobre a autoria dos factos e sobre a violação de deveres constitutiva da ilicitude típica.
xxvi. A prova em sede disciplinar, designadamente aquela assente em presunções judiciais, tem de ter robustez suficiente, tem de ir para além do início da prova, para permitir, com um grau sustentado de probabilidade, imputar ao agente a prática de determinada conduta, tendo sempre presente um dos princípios estruturantes do processo sancionatório que é o da presunção da inocência, designadamente: “todo o acusado tenha o direito de exigir prova da sua culpabilidade no seu caso particular” (GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, I, Verbo, 2008, p. 82).
xxvii. Também não se pode aqui admitir a aplicação de acordo com o qual: à recorrente, titular do poder punitivo disciplinar, caberia fazer a prova da primeira aparência da verificação do facto; e à recorrida, uma vez comprovada essa primeira aparência, compete refutá-la, destruindo essa indiciação.
xxviii. Tal critério consubstancia uma clamorosa violação ao princípio da presunção de inocência, direito fundamental de que a recorrida é titular
xxix. E do mesmo passo implica que para a prova dos factos fundamentadores de responsabilidade disciplinar não será necessária uma racional e objectiva convicção da sua verificação, para além de qualquer dúvida razoável, sendo suficiente uma sua simples indiciação.
xxx. Note-se que, tal posição não tem qualquer base legal ou regulamentar: nesta matéria, os regulamentos aplicáveis não estabelecem qualquer presunção da verificação de um elemento constitutivo de uma infracção disciplinar, nem se atribuiu ao arguido qualquer ónus de infirmação do que quer que seja.
xxxi. Trata-se, aliás, de critério decisório incompatível com o princípio da presunção de inocência, por duas ordens de razões: por implicar a imposição de um ónus de prova ao arguido; e por baixar o grau de convicção da verificação do facto para um nível insuportável: não a certeza correspondente à convicção para além de toda a dúvida razoável, mas a suspeita baseada somente na primeira aparência.
xxxii. O critério decisório pelo qual pugna a recorrente – o da prova da primeira aparência, com imposição de ónus da prova ao arguido – contraria jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, a qual representa uma expressão consolidada do cânone da dogmática do princípio da presunção de inocência, constante de todos os tratados e comentários de processo penal e afirmado vezes sem conta pelos nossos tribunais superiores (TC, STJ, Relações e TCA’s) (veja-se, a título de exemplo, (Ac. do Pleno da Secção do CA do STA de 18-04-2002, Proc. 033881; Ac. do STA de 20-10-2015, Proc. 01546/14, Ac. do STA de 18-02-1997, Proc. 033791, Ac. do STA de 28-06-2011, Proc. 0900/10, Ac. do STA de 18-04-2002, Proc. 033881, tirado em Pleno, disponíveis em www.dgsi.pt)
xxxiii. Atendendo aos pressupostos exigidos pelos tipos legais previstos nos arts. 187.º-1, a) e b) do RD sempre se exigirá para a condenação do clube, in casu a recorrida, que se mostrassem suficientemente provados – através da produção de prova que incumbe ao titular do processo disciplinar e a qual será sujeita a uma livre apreciação - os factos consubstanciadores da prática das infracções disciplinares; não se tendo verificado tal prova nos autos, e considerando o quadro normativo aplicável ao caso, fica necessariamente prejudicada a alegação da recorrente.
xxxiv. A pretensão da recorrente está claramente condenada ao fracasso, pois que, mesmo atentando ao descrito nos relatórios de jogo percebe-se que nenhum facto neles é sequer descrito em favor do preenchimento de pressuposto essencial dos tipos legais: uma actuação culposa da recorrida.
xxxv. Porquanto se mostram por preencher todos os elementos das infracções e não tendo o titular da acção disciplinar carreado aos autos algum elemento de prova que depusesse em favor do preenchimento de pressuposto essencial exigido pelos tipos legais – uma actuação culposa por parte do clube – sempre se impunha resolver “em favor do arguido por efeito da aplicação dos princípios da presunção de inocência do arguido e do “in dubio pro reo”.
xxxvi. Face ao exposto, não padece o acórdão recorrido de qualquer erro de julgamento, tendo subsumido correctamente os factos alegados ao direito aplicável.
xxxvii. Se, por mera hipótese de raciocínio, proceder a tese da recorrente, reputa-se como inconstitucional – por violação do princípio da presunção de inocência de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente no seu direito de defesa (art. 32.º, n.ºs 2 e 10 da CRP), ao direito a um processo equitativo (art. 20.º-4 da CRP) e ao princípio do Estado de direito (art. 2.º da CRP) – a interpretação dos artigos 222.º-2 e 250.º-1 do RDLPFP de 2016 segundo a qual a comprovação de um elemento constitutivo de uma infracção disciplinar está sujeita a um ónus da prova imposto ao arguido, podendo ser dado como provado se, resultando simplesmente indiciado através de uma prova de primeira aparência, o arguido não demonstrar a sua não verificação.
xxxviii. O douto acórdão do Tribunal a quo não merece qualquer reparo ou censura, devendo manter-se “in totum”.

A formação de apreciação preliminar do Supremo Tribunal Administrativo, a que alude o art. 150º, nº 6 do CPTA, admitiu a Revista, por Acórdão datado de, 01.03.2019.

O Exmo Procurador-Geral Adjunto junto deste STA emitiu parecer no sentido de ser de conceder provimento ao recurso, revogando-se o acórdão do TCAS, de 22.11.2018, mantendo-se o acórdão do TAD, de 20.06.2018.

Cumpre apreciar e decidir.


2. Os Factos
O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
a) No dia 25/11/2017, disputou-se no Estádio do clube desportivo das Aves o jogo de futebol entre as equipas do Futebol Clube do Porto - Futebol SAD ("FCP") e do CD das Aves (“Aves”), a contar para a 12.ª jornada da Liga NOS.
b) Na bancada nascente do estádio do Aves adeptos afetos à Demandante (equipa visitante) entraram e fizeram uso de materiais pirotécnicos.
c) No início da referida partida, aquando da entrada das equipas em campo deflagrou na bancada nascente do estádio do Aves - afeta aos adeptos da Demandante - um pote de fumos e um flash light.
d) Aos minutos 1, 27 e 63, adeptos afetos à Demandante entoaram em direção ao guarda-redes do clube visitado a expressão “Filhos da Puta”.
e) No “Relatório de Delegado” relativo ao jogo referido em a) são descritas as seguintes ocorrências (cfr. doc. de fls. 116/117 do processo n.º 2/2018 apenso, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido):
“Ocorrência:
Os adeptos do FC Porto instalados na Bancada Nascente acenderam um pote de fumo ao minuto 6 e deflagraram um flash-light ao minuto 6.
Ocorrência:
Os adeptos do FC Porto instalados na Bancada Nascente gritaram “Filho da Puta” dirigido ao guarda-redes da equipa visitada ao minuto 1, 27 e 63 respectivamente.
Ocorrência:
Os adeptos do FC Porto instalados na Bancada Nascente aos 55 minutos lançaram moedas na direcção do banco da equipa visitada sem acertarem em ninguém.
Ocorrência:
Os adeptos do FC Porto instalados na Bancada Nascente aos 51 minutos atiraram cerveja sobre um apanha-bolas quando este se dirigia aos mesmos solicitando a devolução de uma bola, tendo mesmo sido molhado pela mesma.
Ocorrência:
Os adeptos do FC Porto instalados na Bancada Nascente aos 90+5 minutos, que coincidiu com o final do jogo arremessaram isqueiros para o terreno de jogo sem atingirem ninguém.
Ocorrência:
Os adeptos do FC Porto instalados na Bancada Nascente aos 90+3 minutos cantaram em uníssono “Palhaços joguem à bola” dirigidos aos jogadores do CD Aves.”
f) Na “Súmula de Ocorrências em Recintos Desportivos” elaborada pela Guarda Nacional Republicana, Comando Territorial do Porto, Destacamento de Santo Tirso, relativo ao jogo referido em a) são descritas as seguintes ocorrências (cfr. doc. de fls.124/125 do processo n.º 2/2018 apenso, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido):
“No primeiro golo do FC Porto, no sector destinado aos adeptos da equipa visitante, ocorreu a deflagração um engenho pirotécnico, vulgo potes de fumo e outro engenho designado “flash stobscops”, não provocando qualquer tipo de ferimento nos adeptos que se encontravam nesse sector.
Não foi possível por parte da força policial identificar os responsáveis pelo acto.
Nesse sector apenas se encontravam adeptos simpatizantes do FC Porto, designadamente os adeptos afectos aos Grupos Organizados de adeptos (GOA).
Após o final do jogo, quando a equipa de arbitragem se deslocava para as escadas de acesso aos balneários, no sector destinado aos adeptos da equipa visitante foram arremessados alguns objectos, designadamente moedas e isqueiros, não tendo estes atingido qualquer interveniente no evento desportivo.
Não foi possível por parte da força policial identificar os responsáveis pelo lançamento dos objectos.
Nesse sector apenas se encontravam adeptos simpatizantes do FC Porto."
g) Por deliberação de 28/11/2017 do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol foram aplicadas ao Futebol Clube do Porto, Futebol SA, no âmbito de processo sumário, as seguintes sanções disciplinares:
- Multa de € 1.148,00, nos termos do artigo 187º, n.º 1, al. a) do RDLPFP; e
- Multa de € 1.720,00, nos termos do artigo 187º, n.º 1, al. b) do RDLPFP (cfr. doc. de fls. 107/108 do processo n.º 2/2018 apenso, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
h) O Futebol Clube do Porto, Futebol SA interpôs recurso para o Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (cfr. doc. de fls. 88/105 do processo n.º 2/2018 apenso, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
i) Por acórdão de 2/01/2018, o recurso referido em h) foi julgado improcedente e foi confirmada a decisão disciplinar recorrida (cfr. doc. de fls. 165/199 do processo n.º 2/2018 apenso, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

3. O Direito
A aqui Recorrida impugnou junto do TAD o acórdão do Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina (CD) da FPF, datado de 02.01.2018, que negara provimento ao recurso hierárquico que interpusera do acórdão, de 28.11.2017, da mesma Secção do CD, que lhe aplicara as seguintes sanções:
i) multa de € 1.148,00, por força do art. 187º, n.º 1, alínea a) do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (doravante RD);
ii) multa de € 1720,00, por força do art. 187º, nº 1, alínea b), do RD;
iii) multa de € 306,00, por aplicação do art. 119º, n.º 2, do RD.

O TAD, por acórdão de 20.05.2018, negou provimento ao recurso e manteve as referidas sanções.
Para o efeito, após fundamentar a prova dos factos que considerou assentes com o relatório elaborado pelo delegado da LPFP para o jogo em causa, cuja presunção de veracidade [estabelecida pelo art.º 13.º, al. f)] não fora ilidida e era compatível com o princípio “in dubio pro reo”, considerou que as als. a) e b) do art.º 187º, n.º 1, do RD, não padeciam de inconstitucionalidade material, por violação dos princípios da culpa e da “intransmissibilidade da responsabilidade penal” (art.º 30.º, n.º 3 da CRP), dado que, como já se decidira no Ac. do TC nº 730/95, de 14.12.95, subjacente a esses preceitos encontrava-se “uma responsabilidade dos clubes de futebol baseada em culpa, concretamente na denominada culpa in vigilando e na culpa in formando e não, portanto, uma responsabilidade objectiva”.
Além de que as infracções abrangidas pelo art. 187º do RD, quando interpretado conjuntamente com os artigos 34º e 36º do Regulamento das competições da LPFP, bem como no art. 6º, al. g) e 9º, nº 1, alíneas m) e vi) do Anexo VI do referido Regulamento, “não são casos de responsabilidade objetiva, e qualquer aplicação de uma sanção que corresponda a esses tipos de ilícito disciplinar tem de advir da demonstração de que o arguido deixou de cumprir os deveres emergentes nestas disposições”. Quanto à culpa do clube, entendeu que estava demonstrada, por não ter demonstrado a inexistência da negligência que o rebentamento do petardo traduz, através da prova, designadamente, “de um razoável esforço no cumprimento dos deveres de formação dos adeptos”. Considerou, pois, que recai sobre os clubes um conjunto de deveres in vigilando e in formando relacionados com a temática da violência no desporto e comportamentos dos seus adeptos, não assentando, desse modo, a violação daqueles deveres necessariamente numa valoração social, moral ou cultural da conduta do infractor, mas no incumprimento de uma imposição legal, traduzida na violação de um dever de cuidado.
Finalmente, atribuindo à acção o valor de € 30.000,01, condenou a ora recorrida nas custas e entendeu que a FPF não beneficiava de isenção de custas nos processos que corriam no TAD.

A aqui Recorrida interpôs recurso para o TCAS, o qual, pelo acórdão objecto da presente revista, revogou esta decisão.
O acórdão recorrido entendeu que os factos dados como provados na decisão punitiva de 28.11.2017, do Conselho de Disciplina da FPF, respeitam unicamente aos acontecimentos que tiveram lugar no jogo de futebol em causa, nada revelando acerca da actuação culposa da então recorrente, “pois que se limitam a descrever de forma objectiva os comportamentos adoptados pelos adeptos do Futebol Clube do Porto”. Mais entendendo que não pode considerar-se que “(…) a culpa da então recorrente está implícita e pode ser presumida em face de tais comportamentos, concluindo que se os adeptos se comportaram de forma como o fizeram é porque aquele não observou os deveres que sobre si impendem de segurança e de prevenção da violência (que o Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol considerou terem sido violados)”.
Referindo que, para que se pudesse concluir pela prática das infracções disciplinares em causa era necessário que a entidade detentora do poder disciplinar conseguisse provar factos dos quais se pudesse retirar que o recorrente violou os deveres que sobre ele recaem de forma culposa, ou seja, que omitiu um comportamento que podia e devia ter adoptado e que só não o foi por razões merecedoras de censura.
Entendeu que só em sede de recurso tendo sido dado como provados os factos que permitiram concluir pela existência de culpa, estes são factos novos, ao não terem sido considerados na primeira decisão, pelo que o recorrente não se pode pronunciar sobre os mesmos e contraditá-los, tendo sido violado o seu direito de audiência e defesa (art. 32º, nº 10 da CRP).

Na presente revista, a Recorrente, alega que o relatório de ocorrências elaborado pelo Delegado da LPFP era claro, ao afirmar que as condutas punidas haviam sido perpetradas por adeptos do Futebol Clube do Porto, pelo que, gozando ele da presunção de veracidade e invertendo o ónus da prova (art. 344º do C. Civil), era perfeitamente adequado e suficiente para fundamentar a punição da recorrida que se limitou a pôr em dúvida a autoria daquelas condutas. E, para além do que constava desse relatório, não incumbia ao CD provar que a recorrida violara o dever de vigilância e de formação dos seus adeptos, por essa violação se extrair do seu conteúdo, cabendo a esta demonstrar que cumprira tais deveres, o que nem sequer alegou.

Vejamos se lhe assiste razão.
Começaremos por referir que, no recurso de revista, este Supremo só conhece de direito (cf. art. 12., n.º 4, do ETAF), pelo que o juízo formulado pelo TCA quanto à matéria de facto apenas pode ser censurado na medida em que se traduza numa questão de direito.
Como já se disse o acórdão recorrido entendeu que os factos dados como provados na decisão punitiva de 28.11.2017, do Conselho de Disciplina da FPF, respeitam unicamente aos acontecimentos que tiveram lugar no jogo de futebol em causa, nada revelando acerca da actuação culposa da então recorrente, não podendo considerar-se que a culpa da então recorrente está implícita e pode ser presumida em face dos comportamentos dos adeptos.
A esta apreciação probatória, a recorrente aponta um erro de direito, resultante de não se ter tomado em consideração a presunção de veracidade legalmente estabelecida para os relatórios dos delegados da Liga.
Com efeito, enquanto as decisões do CD e do TAD se fundaram na referida presunção, o acórdão recorrido desconsiderou-a, como se viu.
Ora, no domínio do direito disciplinar desportivo, vigora o princípio geral da “presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e dos delegados da Liga, e por eles percepcionado no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posto em causa” (cfr. art. 13º, al. f), do RD).
Esta presunção de veracidade, que se inscreve nos princípios fundamentais do procedimento disciplinar, confere, assim, um valor probatório reforçado aos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP relativamente aos factos deles constantes que estes tenham percepcionado.
E não se vê que o estabelecimento desta presunção seja inconstitucional, quando o Tribunal Constitucional, no Ac. n.º 391/2015, de 12/8 (publicado no DR, II Série, de 16/11/2015), considerou que, mesmo em matéria penal, são admissíveis presunções legais, desde que seja conferida ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que a presunção se sustente e desde que para tal baste a contraprova dos factos presumidos, não se exigindo a prova do contrário.
Aliás, tal como o Tribunal Constitucional entendeu para a situação idêntica da fé em juízo dos autos de notícia (cf., entre muitos, o Ac. de 6/5/87 in BMJ 367.º-224; o Ac. de 9/3/88 in DR, II Série, de 16/8/88; o Ac. de 30/11/88 in DR, II Série, de 23/2/89; o Ac. de 25/1/89 in DR, II Série, de 6/5/89; o Ac. de 9/2/89 in DR, II Série, de 16/5/89; e o Ac. de 23/2/89 in DR, II Série, de 8/6/89), cremos que a presunção de veracidade em causa – que incide sobre um puro facto e que pode ser ilidida mediante a criação, pelo arguido, de uma mera situação de incerteza – não acarreta qualquer presunção de culpabilidade susceptível de violar o princípio da presunção de inocência ou de colidir com as garantias de defesa do arguido constitucionalmente protegidas (art.º 32.º, nºs. 2 e 10, da CRP). Com efeito, o valor probatório dos relatórios dos jogos, além de só respeitarem, como vimos, aos factos que nele são descritos como percepcionados pelos delegados e não aos demais elementos da infracção, não prejudicando a valoração jurídico-disciplinar desses factos, não é definitiva mas só “prima facie” ou de “ínterim”, podendo ser questionado pelo arguido e se, em face dessa contestação, houver uma “incerteza razoável” quanto à verdade dos factos deles constantes, impõe-se, para salvaguarda do princípio “in dubio pro reo”, a sua absolvição (cfr. neste sentido o Ac. deste STA de 04.04.2019, Proc. nº 40/18.3BCLSB, que aqui seguimos de perto).
Isto é, para se estar perante responsabilidade disciplinar subjectiva (já que sempre baseada no pressuposto da verificação da culpa do clube punido), é sempre necessário que a entidade detentora do poder disciplinar dê como provados factos dos quais se possa concluir que o clube violou os deveres que sobre ele recaem de forma culposa, pela omissão de um comportamento que podia e devia ter adoptado e que só não o foi por razões merecedoras de censura.
No caso concreto, foi a partir dessa ponderação dos factos verificados e expostos no “Relatório de Ocorrências”, pelos Delegados da LPFP e no “Relatório das forças policiais”, nos termos do art. 13º, al. f), aliada à ponderação da (falta) da defesa por parte do clube arguido, que a entidade detentora do poder disciplinar deu como provada a culpa do clube em causa, através de meio de prova aceitável para tal fim - presunções judiciais -, as quais são deduções lógicas baseadas nas regras de experiência, que o acórdão do TAD considerou aceitáveis e das quais se serviu para considerar provada a culpa do clube e manter as sanções aplicadas.
Já o acórdão recorrido, ao considerar que não se poderia atender à prova por presunção que resultava do citado art. 13º, al. f), para os relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP, incorreu no erro de direito que lhe é imputado (cf. neste sentido, os Acs. deste STA de 18.10.2018 – Proc. nº 0144/17.0BCLSB, de 20.12.2018 – Proc. nº 08/18.0BCLSB, de 21.02.2019 – Proc. nº 033/18.0BCLSB e de 21.03.2019 – Proc. nº 75/18.6BCLSB).
Nestes termos, e atento aos factos constantes do probatório, não pode deixar de se concluir que os comportamentos em causa foram levados a cabo por adeptos do Futebol Clube do Porto.
Quanto à questão de saber se a ora Recorrida pode ser responsabilizada a título de culpa por esses comportamentos, entendemos que a resposta deve ser afirmativa, pelas razões que constam do Ac. deste Supremo Tribunal de 21.02.2019, com o qual concordamos e que, julgando um caso idêntico ao aqui em causa, referiu:
“(…).
51. O conceito de «infração disciplinar» mostra-se definido no n.º 1 do art.º 17.º do referido RD ali se preceituando que se considera «infração disciplinar o facto voluntário, por ação ou omissão, e ainda que meramente culposo, que viole os deveres gerais ou especiais previstos nos regulamentos desportivos e demais legislação aplicável», elencando-se nos artºs. 29.º e 30.º o leque de sanções disciplinares (principais e acessórias) e quais aquelas que são aplicáveis aos clubes.

52. Resulta, por sua vez, do capítulo IV do RC/LPFP-2017 o elenco de infrações disciplinares, prevendo-se na sua secção I as «infrações específicas dos clubes», as quais podem ser «muito graves» (cfr. subsecção I, artºs. 62.º a 83.º), «graves» (cfr. subsecção II, artºs. 84.º a 118.º) e «leves» (cfr. subsecção III, artºs. 119.º a 127.º), seguindo-se depois as infrações de dirigentes, de jogadores, de delegados dos clubes e dos treinadores, e na secção VI o regime das «infrações dos espetadores», resultando enunciado no art.º 172.º, como princípio geral, o de que os «clubes são responsáveis pelas alterações da ordem e da disciplina provocadas pelos seus sócios ou simpatizantes nos complexos, recintos desportivos e áreas de competição, por ocasião de qualquer jogo oficial» (n.º 1) e de que «[s]em prejuízo do acima estabelecido, no que concerne única e exclusivamente ao autocarro oficial do clube visitante, o clube visitado será responsabilizado pelos danos causados em consequência dos atos dos seus sócios e simpatizantes praticados nas vias públicas de acesso ao complexo desportivo» (n.º 2).

53. Também as «infrações dos espetadores» se mostram qualificadas como podendo ser «muito graves» (cfr. subsecção II, artºs. 173.º a 178.º), «graves» (cfr. subsecção III, artºs. 179.º a 184.º) e «leves» (cfr. subsecção IV, artºs. 185.º a 187.º), estipulando-se, no que releva para o litígio, no seu art.º 187.º, respeitante a «comportamento incorreto do público», que «[f]ora dos casos previstos nos artigos anteriores, o clube cujos sócios ou simpatizantes adotem comportamento social ou desportivamente incorreto, designadamente através do arremesso de objetos para o terreno de jogo, de insultos ou de atuação da qual resultem danos patrimoniais ou pratiquem comportamentos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina é punido nos seguintes termos: a) o simples comportamento social ou desportivamente incorreto, com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 5 UC e o máximo de 15 UC; b) o comportamento não previsto nos artigos anteriores que perturbe ou ameace a ordem e a disciplina, designadamente mediante o arremesso de petardos e tochas, é punido com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 15 UC e o máximo de 75 UC» (n.º 1).

54. Decorre, por outro lado, do art.º 34.º do RC/LPFP-2017, relativo à segurança e utilização dos espaços de acesso público, que os «clubes estão obrigados a elaborar um regulamento de segurança e utilização dos espaços de acesso ao público relativo ao estádio por cada um utilizado na condição de visitado e cuja execução deve ser concertada com as forças de segurança, a ANPC e os serviços de emergência médica e a Liga» (n.º 1), e que tal regulamento deverá conter, designadamente, medidas relativas à «a) separação física dos adeptos, reservando-lhes zonas distintas, nas competições desportivas consideradas de risco elevado;… d) instalação ou montagem de anéis de segurança e adoção obrigatória de sistemas de controlo de acesso, de modo a impedir a introdução de objetos ou substâncias proibidas ou suscetíveis de possibilitar ou gerar atos de violência, nos termos previstos na lei» (n.º 2).

55. Resulta do art.º 35.º do mesmo RC que «[e]m matéria de prevenção de violência e promoção do fair-play, são deveres dos clubes: a) assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança; b) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados; c) aplicar medidas sancionatórias aos seus associados envolvidos em perturbações da ordem pública, impedindo o acesso aos recintos desportivos nos termos e condições do respetivo regulamento ou promovendo a sua expulsão do recinto; (…) f) garantir que são cumpridas todas as regras e condições de acesso e de permanência de espetadores no recinto desportivo; (… k) não apoiar, sob qualquer forma, grupos organizados de adeptos, em violação dos princípios e regras definidos na Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, com a redação dada pela Lei n.º 52/2013, de 25 de julho; i) zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube participem do espetáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas, xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos; (…) o) desenvolver ações de prevenção socioeducativa, nos termos da lei; (…) s) reservar, nos recintos desportivos que lhe são afetos, uma ou mais áreas específicas para os filiados dos grupos organizados de adeptos» (n.º 1), e que «[p]ara efeito do disposto na alínea f) do número anterior, e sem prejuízo do estabelecido no artigo 24.º da Lei n.º 39/2009 (…) e no Regulamento de prevenção da violência constante do Anexo VI, são considerados proibidos todos os objetos, substâncias e materiais suscetíveis de possibilitar atos de violência, designadamente: (…) f) substâncias corrosivas ou inflamáveis, explosivas ou pirotécnicas, líquidos e gases, fogo-de-artifício, foguetes luminosos (very-lights), tintas, bombas de fumo ou outros materiais pirotécnicos; g) latas de gases, aerossóis, substâncias corrosivas ou inflamáveis, tintas ou recipientes que contenham substâncias prejudiciais à saúde ou que sejam altamente inflamáveis», sendo que «[p]ara além do disposto nos números anteriores, os clubes visitados, ou considerados como tal, devem proceder à colocação, em todas as entradas do estádio, de um mapa-aviso, de dimensões adequadas, com a descrição de todos os objetos ou comportamentos proibidos no recinto ou complexo desportivo, nomeadamente invasões do terreno de jogo, arremesso de objetos, uso de linguagem ou cânticos injuriosos ou que incitem à violência, racismo ou xenofobia, bem como a introdução (…) material produtor de fogo-de-artifício ou objetos similares, e quaisquer outros suscetíveis de possibilitar a prática de atos de violência» (n.º 6).

56. E quanto aos regulamentos de prevenção da violência (cf. art.º 36.º daquele RC) a matéria surge regulada nos referidos RD/LPFP e no anexo VI ao RC/LPFP [o RPV/RC/LPFP – adotado ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 05.º da Lei n.º 39/2009 (cfr. art.º 02.º do mesmo RPV - «norma habilitante»)], extraindo-se do seu art.º 04.º que «[c]ompete à Liga e as seus associados, incentivar o respeito pelos princípios éticos inerentes ao desporto e implementar procedimentos e medidas destinados a prevenir e reprimir fenómenos de violência, racismo, xenofobia e intolerância nas competições e nos jogos que lhes compete organizar», constituindo deveres do «promotor do espetáculo desportivo» [no caso os «clubes» - cfr. art.º 05.º, al. h), do referido RPV], no que aqui ora releva, os de «(…) b) assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança; c) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados; (…) l) não apoiar, sob qualquer forma, grupos organizados de adeptos, em violação dos princípios e regras definidos na Lei n.º 39/2009 (…); m) zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube, associação ou sociedade desportiva participem do espetáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos; p) desenvolver ações de prevenção socioeducativa, nos termos da lei; (…) t) reservar, nos recintos desportivos que lhe são afetos, uma ou mais áreas específicas para os filiados dos grupos organizados de adeptos; u) instalar e manter em funcionamento um sistema de videovigilância, de acordo com o preceituado nas leis aplicáveis» (cfr. art.º 06.º do mesmo Regulamento).

57. Constituem, por último, condições de acesso dos espetadores ao recinto desportivo definidas no art.º 09.º do referido Regulamento, nomeadamente, o: «f) não entoar cânticos racistas ou xenófobos ou que incitem à violência; (…) l) consentir na revista pessoal e de bens, de prevenção e segurança, com o objetivo de detetar e/ou impedir a entrada ou existência de objetos ou substâncias proibidos ou suscetíveis de possibilitar atos de violência; m) não transportar ou trazer consigo objetos, materiais ou substâncias suscetíveis de constituir uma ameaça à segurança, perturbar o processo do jogo, impedir ou dificultar a visibilidade dos outros espetadores, causar danos a pessoas ou bens e/ou gerar ou possibilitar atos de violência, nomeadamente: (…) vi. Substâncias corrosivas ou inflamáveis, explosivas ou pirotécnicas, líquidos e gases, fogo-de-artifício, foguetes luminosos (very-lights), tintas, bombas de fumo ou outros materiais pirotécnicos; vii. Latas de gases, aerossóis, substâncias corrosivas ou inflamáveis, tintas ou recipientes que contenham substâncias prejudiciais à saúde ou que sejam altamente inflamáveis», sendo que o acesso e permanência dos grupos organizados de adeptos (cfr. art.º 11.º) se mostra disciplinado pelo estabelecido, nomeadamente, no art.º 09.º, sendo sempre obrigatória a revista pessoal aos mesmos e seus bens.

58. Encerrando-se aqui o elencar do quadro normativo tido por pertinente para a análise do litígio temos que a previsão do ilícito desportivo disciplinar em questão, no caso o inserto no art.º 187.º do RD/LPFP-2017, mostra-se clara e perfeitamente integrada naquilo que, por um lado, são os deveres legais e regulamentares atrás aludidos e que nesta matéria impendem, nomeadamente, sobre os clubes e sociedades desportivas, e, por outro lado, no que, mais vastamente, constituem os objetivos e os fins da política de combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança e desportivismo, prevenindo a eclosão e reprimindo a existência ou a manifestação de tais fenómenos.

59. Através da previsão do referido ilícito desportivo disciplinar visa-se a prossecução e realização daqueles objetivos e fins, prevenindo e reprimindo os comportamentos e as condutas que nele se mostram tipificados e que são atentatórios e desconformes com aqueles objetivos e fins, fazendo responder clubes e sociedades desportivas por tais condutas e comportamentos incorretos, tidos pelo público aos mesmos afetos ou simpatizante, enquanto reveladores da inobservância por estes, por ação ou por omissão, do que constituem os seus deveres legais e regulamentares gerais e especiais constantes dos comandos normativos atrás convocados.

60. Na formulação do que constitui o tipo de ilícito disciplinar inserto no art.º 187.º do RD/LPFP-2017 e do que, em decorrência, se exige para o seu preenchimento em concreto, estão subjacentes, tão-só, as condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube/sociedade desportiva e pelos quais os mesmos respondem, porquanto decorrentes ou fruto do que constitui o incumprimento pelos mesmos, por ação ou omissão, do dever in vigilando que têm sobre as suas claques e adeptos, nomeadamente e no que releva para a discussão objeto dos autos sub specie, de que houve alguma falha no dever de revista dos adeptos, no dever de revista do estádio, no dever de controlar os adeptos dentro do estádio, no dever de demover os adeptos de praticarem ou desenvolverem tal tipo de comportamentos e condutas.

61. Ora no caso vertente inexiste, por não aportado aos autos, um qualquer elemento densificador e revelador do cumprimento por parte da demandante dos deveres a que está subordinada no que respeita aos deveres de formação, controlo e vigilância do comportamento dos seus adeptos e espectadores, bem sabendo que estava obrigada a cuidar dos mesmos e que eram os seus adeptos que ocupavam a denominada «bancada sul», onde se verificaram as ocorrências registadas no Relatório.

62. Sobre os clubes de futebol e as respetivas sociedades desportivas, como é o caso da demandante aqui recorrida, recaem especiais deveres na assunção, tomada e implementação de efetivas medidas não apenas dissuasoras e preventivas, mas, também, repressoras, dos fenómenos de violência associada ao desporto e de falta de desportivismo, de molde a criar as condições indispensáveis para que a ordem e a segurança nos estádios de futebol português sejam uma realidade.

63. Neste contexto, ao invés do sustentado pela demandante na sua impugnação e que veio a ter acolhimento no acórdão recorrido, não estamos em face de uma qualquer situação de responsabilidade disciplinar objetiva violadora dos princípios e comandos constitucionais.

64. Com efeito, mostra-se ser in casu subjetiva a responsabilidade desportiva na vertente disciplinar da demandante aqui recorrida, já que estribada naquilo que foi uma violação dos deveres legais e regulamentares que sobre a mesma impendiam neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido.

65. É que se no domínio da prevenção da violência associada ao fenómeno desportivo o quadro normativo impõe deveres a um leque alargado de destinatários, nomeadamente, aos clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, é porque lhes reconhece capacidade para os cumprir e também para os violar, pelo que apurando-se a violação de deveres legalmente estabelecidos os destinatários dos mesmos serão responsáveis por essa violação.

66. Socorrendo-nos e transpondo para o caso vertente a jurisprudência do TC expendida no acórdão n.º 730/95 [consultável in: www.tribunalconstitucional.pt/tcacordaos e que foi firmada no quadro da apreciação da conformidade constitucional da sanção de interdição dos estádios por comportamentos dos adeptos dos clubes prevista nos artºs. 03.º a 06.º do DL n.º 270/89, de 18/8 (diploma no qual se continham medidas preventivas e punitivas de violência associada ao desporto) e 106.º do Regulamento Disciplinar da FPF], temos que os ilícitos disciplinares ou disciplinares desportivos imputados e pelos quais a demandante aqui recorrida foi sancionada resultam de «condutas ilícitas e culposas das respetivas claques desportivas (assim chamadas e que são sócios, adeptos ou simpatizantes, como tal reconhecidos) – condutas que se imputam aos clubes, em virtude de sobre eles impenderem deveres de formação e de vigilância que a lei lhes impõe e que eles não cumpriram de forma capaz», «[d]everes que consubstanciam verdadeiros e novos deveres in vigilando e in formando», presente que cabe a cada clube desportivo o «dever de colaborar com a Administração na manutenção da segurança nos recintos desportivos, de prevenir a violência no desporto, tomando as medidas adequadas», concluindo-se no sentido de que [n]ão é, pois (…) uma ideia de responsabilidade objetiva que vinga in casu, mas de responsabilidade por violação de deveres».

67. É, por conseguinte, neste ambiente de proteção, salvaguarda e prevenção da ética desportiva, bem como do combate a manifestações de violência associadas ao desporto, que incidem ou recaem sobre vários entes e entidades envolvidos, designadamente sobre os clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, um conjunto de novos deveres in vigilando e in formando e em que a inobservância destes deveres assenta necessariamente numa valoração social, moral ou cultural da conduta do infrator, mas antes no incumprimento de uma imposição legal, sancionando-se aqueles por via da contribuição omissiva, causal ou co causal que tenha conduzido a um comportamento ou conduta dos seus adeptos.

68. Na verdade, não estamos in casu, pois, perante uma responsabilidade objetiva já que o regime previsto nos artºs. 17.º, 19.º, 20.º, 127.º, 187.º, als. a) e b), do RD/LPFP-2017 em articulação, nomeadamente, com os artºs. 06.º, al. g), e 09.º, n.º 1, al. m), do RPV/LPFP-2017 e com o que resulta do demais quadro normativo atrás convocado, observa o princípio da culpa, tanto mais que em sua decorrência apenas se sancionam os clubes de futebol ou as suas sociedades desportivas pelos comportamentos incorretos do seu público havidos em violação por aqueles dos deveres que sobre os mesmos impendiam.

69. Daí que, no contexto, o princípio constitucional da culpa, enquanto servindo, igualmente, de elemento conformador e basilar ao Estado de direito democrático, e tendo como pressuposto o de que qualquer sanção configura a reação à violação culposa de um dever de conduta, considerado socialmente relevante e que foi prévia e legalmente imposto ao agente, não se mostra minimamente infringido, tanto mais que será no quadro do processo disciplinar a instaurar (cfr. artºs. 212.º e segs., 225.º e sgs., do RD/LPFP-2017) que se terão de averiguar e apurar todos os elementos da infração disciplinar, permitindo, como se refere no citado acórdão do TC, que «por esta via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)».

70. Frise-se que é na e da inobservância dos deveres de assunção da responsabilidade pela segurança do que se passe no recinto desportivo e do desenvolvimento de efetivas ações de prevenção socioeducativa que radica ou deriva a responsabilidade disciplinar desportiva em questão, dado ter sido essa conduta que permitiu ou facilitou a prática pelos seus adeptos dos atos ou comportamentos proibidos ou incorretos.

71. E que cabe aos clubes de futebol/sociedades desportivas a demonstração da realização por parte dos mesmos junto dos seus adeptos das ações e dos concretos atos destinados à observância daqueles deveres e, assim, prevenirem e eliminarem a violência, e isso sejam esses atos e ações desenvolvidos em momento anterior ao evento, sejam, especialmente, imediatamente antes ou durante a sua realização.

72. Para o efeito, aportando prova demonstradora, designadamente, de um razoável esforço no cumprimento dos deveres de formação dos adeptos ou da montagem de um sistema de segurança que, ainda que não seja imune a falhas, conduza a que estas ocorrências e condutas sejam tendencialmente banidas dos espetáculos desportivos, assumindo ou constituindo realidades de carácter excecional.

73. A previsão no quadro disciplinar do ilícito desportivo em crise mostra-se, assim, devidamente legitimada já que encontra ou vê radicar, repousar os seus fundamentos não apenas naquilo que é a necessária prevenção, mas, também, na culpa, sancionando-se o que constitui um negligente cumprimento dos deveres supra enunciados, sem que, de harmonia com o exposto, um tal entendimento atente ou enferme de violação dos princípios da culpa e do Estado de direito, ou constitua um entorse aos direitos de defesa e a um processo equitativo, dado que assegurados e garantidos em consonância e adequação com o entendimento e interpretação fixados.

74. E também não vemos que tal entendimento e interpretação possam envolver uma pretensa violação dos princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo, pois, não estamos em face da assunção duma presunção de culpa da arguida ou de regra que dispense, libere ou inverta o ónus probatório que colida com o mesmo princípio, nem, como atrás referido, no caso em presença somos confrontados com uma situação de inexistência de prova relevante de que foi cometido ilícito e de quem é o sujeito responsável à luz da prova produzida para, mercê da existência de legítima dúvida, fazer apelo ao segundo princípio.

75. Assiste, por conseguinte, razão à recorrente, não podendo, assim, manter-se o juízo firmado neste segmento do acórdão recorrido”.
Nestes termos, o acórdão recorrido, ao considerar insuficiente o relatório de ocorrências elaborado pelo delegado da LPFP para servir de base ao uso de presunções judiciais nos termos em que o TAD o faz, enferma do erro de julgamento que a Recorrente lhe imputa.

Mas, como bem se refere no Acórdão que admitiu a presente revista no caso existe ainda uma segunda questão a resolver que corresponde à alegação da Recorrida, acolhida pelo acórdão recorrido, nos seguintes termos, “só em sede de recurso é que foram dados como provados os factos que permitiram concluir pela existência de culpa” e que “por isso, o recorrente não teve a possibilidade de sobre eles se pronunciar e de os contraditar. Resulta, assim, violado o direito de audiência e defesa do ora recorrente (cfr. artigo 32º nº 10 CRP), o que determina a anulação do acórdão de 2/01/2018 do Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF que julgou improcedente o recurso interposto da decisão punitiva de 28/11/2017 do Conselho de Disciplina da FPF”.
Tais “factos novos” em causa (aditados pelo Pleno em sede de julgamento do recurso interposto do acto punitivo do CD da FPF), foram os seguintes: “A recorrente não adoptou as medidas preventivas adequadas e necessárias para evitar os acontecimentos à frente relatados protagonizados pelos seus adeptos”; “A recorrente agiu de forma livre, consciente e voluntária bem sabendo que ao evitar a ocorrência dos referidos acontecimentos incumpriu deveres legais e regulamentares de segurança e de prevenção da violência que sobre si impendiam, enquanto entidade participante no dito jogo de futebol”.
Ora, se por um lado, tais factos explicitados pelo Pleno em sede de recurso, não podem ser considerados novos, por a decisão do CD se haver fundamentado na dedução lógica que a partir dos factos objectivos descritos nos Relatórios de Ocorrências e Policiais lhe permitiu chegar à verificação da “culpa” da aqui Recorrida, pelo não cumprimento dos deveres legais e regulamentares a que estava obrigada; por outro lado, o clube pôde defender-se no recurso que interpôs da decisão punitiva ciente da acusação de omissão de cumprimento dos deveres de prevenção que lhe foi formulada em consequência da constatação dos factos descritos em tais Relatórios.
Ao que acresce que o acórdão do TAD não elencou tais factos [nesse acórdão no seu ponto 5., apenas foram dados como provados os acima indicados sob as alíneas a) a d), sendo os restantes aditados pelo acórdão recorrido] o que não o impediu de através das deduções lógicas implícitas nos factos estabelecidos concluir no sentido em que o fez, sendo ele e não a decisão do Pleno do CD o objecto do recurso de que conheceu o acórdão recorrido.
Assim, o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento ao considerar violado o direito de audiência e defesa da aqui recorrida.

Quanto à inconstitucionalidade a que a recorrida alude na conclusão xxxvii das suas contra-alegações (e no nº 115 das alegações), com referência à interpretação dos arts. 222º, nº 2 e 250º, nº 1, do RDLPFP 2016, sendo a alegação efectuada de uma forma genérica e onde não é fornecida ao tribunal uma justificação mínima para a desconformidade constitucional que se pretendeu arguir, não se descortina o fundamento com que ela é invocada, nem, consequentemente, se este reveste autonomia face àquele que atrás ficou analisado quando se apreciou a violação do princípio da presunção de inocência.
Assim, não pode proceder a invocada inconstitucionalidade.


Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido e mantendo o acórdão do TAD.
Custas no TCA e neste STA pela ora recorrida.


Lisboa, 2 de Maio de 2019. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – José Francisco Fonseca da Paz – Maria do Céu Dias Rosa das Neves.