Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:083/10
Data do Acordão:03/11/2010
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:RUI BOTELHO
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO
RESPONSABILIDADE POR ACTO LÍCITO
CULPA DO LESADO
DANO ESPECIAL E ANORMAL
Sumário:I - De acordo com o preceituado no n.º 2 do art. 570º do CC, “Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar”. Se, ocorrendo culpa do lesado, a mera culpa presumida do lesante exclui o dever de indemnizar, a ausência de culpa exclui esse dever com muito maior força, quer se trate de responsabilidade por acto ilícito quer se trate de responsabilidade por acto lícito.
II - Não é anormal, para os efeitos do art. 9º do DL 48051, de 21.11.67, o hipotético prejuízo sofrido em consequência de insatisfatória, insuficiente ou incompleta cobertura compensatória, por eventual imperfeição da lei, do regime ressarcitório contemplado para o caso concreto, sendo, nessa situação, inerente aos riscos normais da vida em sociedade, devendo ser suportado por todos os cidadãos a ele sujeitos, não ultrapassando os limites impostos pelo dever de suportar a actividade lícita da Administração.
Nº Convencional:JSTA00066335
Nº do Documento:SA120100311083
Data de Entrada:02/05/2010
Recorrente:ESTADO PORTUGUÊS
Recorrido 1:A... E MULHER
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF COIMBRA DE 2009/10/30 PER SALTUM.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - RESPONSABILIDADE EXTRA.
Área Temática 2:DIR CIV - DIR OBG.
Legislação Nacional:CCIV66 ART570 ART563.
DL 48051 DE 1967/11/21 ART9 N1.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC688/03 DE 2003/05/29.; AC STA PROC44308 DE 2000/05/02.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
I Relatório
O ESTADO PORTUGUÊS vem recorrer da sentença do TAF de Coimbra, de 30.10.09, que julgou procedente a acção ordinária proposta por A... e B..., e o condenou ao pagamento da quantia de 29.480,80 Euros, acrescida de juros de mora.
Para tanto alegou, vindo a concluir da seguinte forma:
1ª- Tendo em conta a matéria de facto dada como provada, não podem considerar-se verificados os pressupostos da responsabilidade por acto lícito.
2ª- O art.° 9º do Decreto-Lei n° 48051, considera que o prejuízo sofrido na esfera jurídica do particular, para adquirir relevância ressarcitória, tem de configurar-se como especial e anormal, para além do requisito da existência de nexo de causalidade entre o acto lícito e o dano.
3ª- É certo que a causa directa e imediata dos prejuízos foi a eliminação do efectivo total da exploração, efectuado por imposição dos serviços do R.
4ª- Mas a lei exige mais do que uma causa directa e imediata, referindo o art.° 563.° CCivil que “a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”, consagrando assim a teoria da causalidade adequada.
5ª- Ora o abate de todo o efectivo, só ocorreu tendo em conta a contaminação da exploração dos AA com “Brucelose”, pela qual o R Estado não é responsável, antes o são os próprios AA, que não tiveram o devido cuidado com a protecção sanitária da exploração, nomeadamente quando da aquisição de novos animais, uma vez que ficou provado, de acordo com o declarado pelo Veterinário da exploração (al. P da matéria assente e al. O dos factos provados, e doc. 7 da contestação), que a contaminação ocorreu dentro desta, permitindo que o varrasco nº 100, tivesse disseminado a doença.
6ª- Perante essa circunstância se o R nada tivesse feito, seria responsável por não tomar medidas com vista à protecção da saúde pública, e também para evitar a disseminação de uma doença que poderia causar enormes prejuízos aos próprios AA, pois uma vez verificada a existência da doença os animais não poderiam ser abatidos e comercializados como se nada tivesse acontecido.
7ª- Ao fazê-lo, o Estado assumiu as suas responsabilidades, mas em nada contribuiu para a produção do facto, pois não foi responsável pela contaminação da exploração.
8ª- Por outro lado, como resulta da fundamentação das respostas aos quesitos 1º e 2°, e do depoimento da testemunha C..., uma vez declarado o sequestro, estava também imposto o abate, não tendo os AA qualquer alternativa, o que também é reconhecido pela douta sentença.
9ª- Além disso, como resulta da resposta negativa ao quesito 3°, mesmo que tivessem sido feitas análises sorológicas o todo o efectivo, e estas tivessem dado negativo, mesmo assim todos os suínos teriam de ser abatidos, sendo que as análises realizadas após o abate (resposta ao quesito 8º e al. DD dos factos provados), foram efectuadas apenas como método de trabalho, para permitir à autoridade sanitária ajuizar dos efeitos da doença.
10ª- Por isso, a imposição do abate é uma causa naturalística do dano, mas a mesma não contém em si a adequação, entendida esta nos mencionados termos legais, para produzir o dano, pois o mesmo decorre da doença, e da inexistência de alternativa ao abate, sendo que o R Estado em nada contribui para o aparecimento e disseminação da brucelose na exploração dos AA.
11ª- Além disso, provou-se ainda que, o matadouro onde se realizaram os abates foi previamente seleccionado pelos AA, com a ajuda dos serviços do R (vide fundamentação da resposta ao quesito 3.°), e que a calendarização dos abates foi também determinada por estes, em função da melhor altura para a comercialização dos suínos, o que, por via de regra, ocorre por volta dos 6 meses e aos 100 kg de peso (resposta aos quesitos 6.° e 7.° e als. BB e CC dos factos provados), o que quer dizer que, ficaram com uma grande margem de manobra para efectuar os abates.
12ª- Falece pois o nexo causal, em termos de causalidade adequada, pelo que ao decidir pela verificação deste requisito, a douta sentença viola o disposto no art.° 563.° do CCivil.
13ª- Por outro lado, para que um prejuízo se possa ter por especial é necessário que se prove que um cidadão ou grupo de cidadãos tenha sido, através de um encargo público, colocado em situação desigual em relação à generalidade das pessoas.
14ª- E para que um prejuízo possa considerar-se anormal, é necessário que ultrapasse o carácter de um ónus natural decorrente da vida em sociedade, mesmo no âmbito de um Estado intervencionista como é o Estado moderno.
15ª- Traduzindo verdadeiros conceitos indeterminados, a “especialidade” e a “anormalidade” de um prejuízo, representam antes de tudo, realidades cuja exacta determinação depende da situação factual e concreta que lhes está subjacente.
16ª- Ora, no que respeita ao primeiro requisito, a situação em causa não pode considerar-se especial, pois embora a medida tinha sido imposta apenas aos AA, o certo é que também será aplicada a todos os outros criadores de suínos, em cujas instalações, se venham a verificar contaminações com brucelose.
17ª- Ou seja, a ordem determinando o abate, não se dirige apenas a um criador, mas a todos aqueles onde se venham a verificar casos de contaminação de animais com esta doença, pelo que pode dizer-se que a medida não visou uma pessoa certa e determinada em função de uma específica posição relativa, nem um grupo específico de pessoas, antes recaiu sobre um grupo indeterminado e abstracto, os criadores de suínos, em cujas pocilgas se verifiquem contaminações com brucelose.
18ª- Para além disso, há que ter em conta que, a medida decorre, do comportamento dos AA quando permitiram a contaminação da exploração com “Brucelose”, situação pela qual o R Estado não é responsável, antes o são os próprios AA, que não tiveram o devido cuidado com a protecção sanitária da exploração, nomeadamente quando da aquisição de novos animais, uma vez que ficou provado, de acordo com o declarado pelo Veterinário da exploração (al. P da matéria assente e al. O dos factos provados, e doc. 7 da contestação), que a contaminação ocorreu dentro desta, permitindo que o varrasco n.° 100, tivesse disseminado a doença.
19ª- Ou seja, a medida advém do comportamento dos próprios AA, e destina-se, não só a restabelecer a confiança no sector, que de outra forma, se não tivesse sido tomada levaria à desconfiança dos consumidores, por saberem que existiam explorações com animais contaminados com brucelose, sem que tivessem sido tomadas medidas de controle da doença, mas também a evitar a disseminação de uma doença que poderia causar enormes prejuízos aos próprios AA, pois uma vez verificada a existência da doença os animais não poderiam ser abatidos e comercializados, no circuito normal, como se nada tivesse acontecido.
20ª- Pelo que os prejuízos invocados pelos AA, não podem deixar de ser entendidos como integrados naquele número de sacrifícios que têm de suportar para restabelecer a confiança dos consumidores, ou seja, não podem considerar-se anormais, sendo certo que a medida, como se referiu, decorreu do comportamento destes e não de qualquer outro elemento estranho nomeadamente do Estado, que não é o responsável pela contaminação da exploração.
21ª- Ao decidir em sentido contrário a douta sentença viola o disposto no art.° 9.° do DL 48.051.
22.ª- Termos em que, por violação dos art.°s 563.° do CCivil e 9.° do DL 48.051, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida, com a consequente absolvição do R. Estado do pedido.
Os Recorridos contra-alegaram como segue:
1- O recorrente R. Estado Português interpõe recurso da douta sentença que o condenou a pagar aos AA. a quantia €29.480,80, acrescida de juros (...), alegando, em síntese, que, contrariamente ao acolhido na sentença, não se verifica o nexo causal adequado, nem podem os prejuízos ser considerados especiais e anormais, pelo que, ao decidir como decidiu, a douta sentença viola o disposto no art. 563.° do C.Civil e art 9.° do DL 48.051, de 21.11.67.
2- No recurso jurisdicional interposto, o recorrente discute e impugna, pois, a caracterização dos danos sofridos pelos recorridos como especiais e anormais e do nexo de causalidade adequada entre o acto e o prejuízo, pressupostos da responsabilidade por parte do Estado por actos lícitos, que na douta sentença são tidos por preenchidos.
3- Ora, com o mui devido respeito, a fundamentação expandida e conclusões elencadas no recurso jurisdicional carecem de sustentação fática e vão ao arrepio da vasta e diversa doutrina e jurisprudência que abordam e decidiram da responsabilidade civil extracontratual do Estado por actos lícitos, designadamente acórdãos desse Venerando Tribunal.
4- Com efeito, não assiste razão ao recorrente e bem andou o Meritíssimo Juiz, atenta a matéria provada, ao considerar preenchidos os referidos pressupostos.
5- E pelo contrário não podem proceder os fundamentos alegados pelo recorrente e, consequentemente, as respectivas conclusões.
6- Assim, quanto ao nexo de causalidade, muito embora o recorrente, salvo o devido respeito, tenha procurado “destruir” a relação directa efectivamente verificada entre o facto (actuação do R. Estado) e o dano (prejuízo), ao alegar que “a causalidade adequada não se refere ao facto isoladamente considerado, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu ao dano”, para afastar a causalidade adequada, ter-se-ia sempre de caminhar para trás até apurar todo, mas todo, o início desse processo factual.
7- Nos autos, tal não foi feito, e também não será nesta fase processual que formal e substantivamente é possível e legal fazê-lo. Por conseguinte, não constitui facto provado “que a contaminação é da responsabilidade dos próprios AA., que não tiveram o devido cuidado com a protecção sanitária da exploração”, como se afirma.
8- Desta forma, temos de ater-nos, como bem o faz no ponto 6 das doutas alegações, “na situação em apreço é verdade que a actuação do R. Estado foi a causa directa e imediata dos prejuízos dos AA. pois ficou provado (...) que o abate de todo o efectivo em sequestro desde 7-2-2000 foi efectuado por imposição dos serviços do R.”
15- Os prejuízos não podem deixar e ser qualificados como anormais. Na verdade, embora, pudesse ter acontecido, o que se afasta liminarmente, que os AA, de alguma forma pudessem ter contribuído para a contaminação da doença, nem mesmo assim os danos sofridos podem ser tidos como inerentes e normais aos riscos da actividade e da prática de suinicultura.
16- Ou “normais” entendidos no sentido de habituais e aceitáveis como risco usual próprio da vida em sociedade.
17- Aliás, no caso em apreço, a anormalidade do prejuízo melhor se pode abstractamente aferir, se tivermos em conta que à data dos factos, a brucelose suína tão pouco tinha plano de erradicação, sendo aplicável para efeitos de indemnização tabela e regime da peste suína,
18- Atenta a matéria de facto dada como provada, todos os pressupostos em que assenta a responsabilidade civil extracontratual do estado estão verificados e preenchidos nos autos, designadamente existência do nexo de causalidade entre o acto e o prejuízo sofrido e que se assume como especial e anormal.
19- A douta sentença não viola o disposto no art° 563° do C. Civil e art.° 9º do DL 48.051, de 21.11.67. Termos em que deve negar-se provimento ao recurso e confirmar-se a douta decisão recorrida, como é de JUSTIÇA.”
Sem vistos, mas com distribuição prévia do projecto de acórdão, cumpre decidir:
II Factos
A sentença recorrida considerou assente a seguinte factualidade:
A. Os A.A. dedicam-se à actividade de reprodução, criação e engorda de suínos;
B. Actividade desenvolvida numa exploração de suinicultura de que são donos, sita em ..., Évora de Alcobaça;
C. Exploração classificada pelo ex-Instituto de Protecção da produção Agroalimentar desde 01-06-94 como unidade de produção em regime intensivo, licenciada e detentora da marca RG6E3 nos competentes serviços da Direcção Regional da Agricultura do Oeste e Ribatejo;
D. Uma das obrigações decorrentes de legislação aplicável aos sectores da suinicultura e pecuária é a imposição de regular e periodicamente serem apresentadas nos competentes Serviços Regionais de Agricultura as Declarações das Existências de Suínos, em conformidade com o Plano de Erradicação da Peste Suína Africana;
E. No cumprimento dessas obrigações os A.A., trimestralmente, apresentam as Declarações de Existências, com indicação das quantidades e categorias de suínos existentes na exploração nos períodos a que se reportam;
F. Entre outras, os A.A. em 21-12-99, apresentaram a Declaração referente a Dezembro de 1999, com indicação da Existência de 1.079 suínos;
G. O médico veterinário assistente da exploração dos A.A., em 13-01-2000, enviou para o Laboratório de Veterinária de Santarém dois fetos de suínos abortados, com cerca de 100 dias, os quais, tendo sido remetidos ao Laboratório Nacional de Investigação Veterinária de Lisboa, aí foram submetidos a exame bacteriológico que isolou “Brucella suis biovar”;
H. Perante este resultado aquele veterinário elaborou, em 07-02-2000, um relatório circunstanciado fazendo uma descrição da situação da exploração nos últimos meses e terminava referindo que, à data, mais de 50% das reprodutoras e um varrasco apresentavam já sintomatologia da doença;
I. E a Direcção Regional de Agricultura do Ribatejo e Oeste, na mesma data (07-02- 2000) determinou o sequestro da exploração, tendo para o efeito emitido o Aviso de sequestro n° 1/2000 sobre o efectivo total de 998 suínos à data existentes na exploração e solicitou à Direcção Geral de Veterinária informação sobre os procedimentos a tomar;
J. A Direcção de Serviços de Saúde Animal da Direcção Geral de Veterinária em 10-02- 2000, respondeu nos seguintes termos: “1- Não existe Plano de Erradicação relativamente à Brucelose Suína. 2- A Direcção Geral de Veterinária tem efectuado abate de suínos com Brucelose na Região do Alentejo na sequência de solicitações devidamente fundamentadas que nos têm sido apresentadas pela respectiva Direcção Regional de Agricultura. Aos animais abatidos aplica-se … a Tabela de Indemnização da Peste Suína Africana. Os animais são abatidos em Matadouros e o valor da carne é deduzido ao montante da indemnização. Face ao exposto anteriormente essa Direcção Regional de Agricultura deve proceder à avaliação epidemiológica da situação e propor a esta Direcção Geral eventuais medidas de profilaxia e polícia sanitária”
K. Porque os Autores apenas procedem à venda dos animais quando estes atingem a idade adulta, dado que todos os suínos são criados para engorda, e estando muitos deles no crescimento ideal para venda, em 18-02-2000 pediram à Direcção Regional da Agricultura do Ribatejo e Oeste uma resolução o mais rápida possível da situação de sequestro;
L. A Direcção Regional de Agricultura do Ribatejo e Oeste, em 28-02-2000 elaborou informação, que remeteu à DGV propondo a seguinte metodologia:
- Efectuar colheita de sangue para sorologia a todo o efectivo reprodutor na exploração;
- Os animais positivos seriam abatidos e destruídos no matadouro da área;
- Os reprodutores com sorologia negativa iriam, também, para abate em matadouro da área, sendo introduzidos no consumo todas as carcaças que merecessem a aprovação da inspecção sanitária;
- O restante efectivo que estivesse em condições de abater deveria ser encaminhado para um matadouro da área. Dever-se-á efectuar colheita de sangue para sorologia. Destes as carcaças com resultados positivos, deverão ser inutilizadas e destruídas, conjuntamente com os respectivos despojos. As carcaças com resultados negativos e com aprovação da inspecção seguiriam o encaminhamento do consumo;
- Todos os animais da exploração deverão ser identificados, de forma a poder-se individualizar cada um, com o respectivo material colhido para análise laboratorial.”
M. Em 13/03/2000 foi enviado ao Pólo de Apoio Administrativo da D.I.V. do Oeste em Caldas da Rainha, pelo Director de Serviços da Direcção dos Serviços de Veterinária documento com o seguinte teor: “(...) entendo determinar a V Exª. que providencie ao seguinte: - Manutenção do sequestro da exploração em causa; - Efectivação através do responsável sanitário da exploração de um rasteio sorológico a todo o efectivo reprodutor, com prévia identificação de cada animal. O sangue colhido em tubos de hemólise, também, individualmente identificados de acordo com o respectivo animal dador, deve ser enviado logo após a colheita, em mala térmica, ao L. N. L. V., para diagnóstico da brucelose. Tudo acompanhado do inerente Boletim de análise, donde conste menção expressa, nomeadamente, da identificação da cada animal e de cada um dos respectivos tubos. Anexo ao dito boletim seguirá uma fotocópia do presente texto. A medida que vão sendo conhecidos os resultados laboratoriais, estes terão que me ser remetidos para posterior decisão; - O efectivo que esteja em condições de abate deve ser encaminhado para o matadouro com prévia emissão de guia de trânsito para abate imediato (Mod. 249/DGV) emitida por esses serviços e subscrita por V. Exª. a dita guia deverá ser junta fotocópia do presente documento. Anteriormente a cada operação de abate e sempre antes da saída dos animais da exploração serão os mesmos identificados individualmente. O protocolo da colheita de sangue seu acondicionamento, remessa e acompanhamento documental é em tudo idêntico ao atrás afirmado. Ainda aquando do abate no matadouro deverá ser colhido a 10% dos suínos abatidos uma porção de pulmão, fígado e baço que devidamente acondicionados, identificados e embalados, serão na mesma altura enviados ao já referido laboratório; - Para efeitos de eventual pagamento de indemnização ao suinicultor, por quem de direito, solicito que sejam colhidos atempadamente todos os dados constantes da respectiva documentação que permitam a esta Direcção de Serviços o seu adequado preenchimento e também a efectivação do cálculo do valor da dita indemnização conforme prescreve o ponto 2 do fax 478/DSSA de 00.03.06 da D.G.V. (…)”
N. Foi efectuada análise laboratorial a 100 suínos reprodutores, análise essa com o n° 3039, sendo o resultado sorológico o seguinte: (...) Pesquisa de anticorpos anti-Brucella (Rosa de Bengala): Amostra Aglutinantes: 1, 2, 3, 4, 5, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 17, 18, 21, 22, 24, 25, 27, 28, 29, 30, 31, 33, 35, 36, 37, 38, 40, 41, 44, 45, 46, 47, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 60, 61, 62, 63, 65, 66, 68, 69, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 62, 85, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99 e 100. Negativo nas restantes amostras”
O. Em consequência, pelo Veterinário da exploração foi proposto: Tendo recebido o resultado da sorologia ao respectivo reprodutor, que junto envio, e perante a extensão do número de animais positivos, entre eles o varrasco n° 100 - que naturalmente disseminou a infecção, julgo por mim que todo o efectivo estará contaminado, e que brevemente seria 100% serologicamente positivo, pelo que penso que a única atitude tecnicamente correcta a propor será o abate total do efectivo reprodutor, com a maior brevidade possível, para que seja possível efectuar vazio sanitário. Em termos económicos toda esta situação será a provocar prejuízos gravíssimos, pelo que solicito a maior brevidade possível na resolução deste caso. D..., 4 de Abril de 2000 “(...)”
P. Face ao que consta no ponto anterior, em 18/04/00 o Director Geral da DGV declarou que “concorda esta Direcção com o abate total do efectivo reprodutor da exploração de A... - ... - Évora - Alcobaça”.
Q. Consequentemente foram emitidas as guias de trânsito n°s 169782 e 214374, correspondentes a 50 e 49 animais respectivamente, com a finalidade de permitir o transporte dos citados animais da exploração dos Autores para o Matadouro E..., S.A.;
R. Da exploração dos Autores foram conduzidos e abatidos no Matadouro E..., S.A., no total, os seguintes animais:
-12/04/2000, 247 animais; -17/05/2000, 96 animais; -18/05/2000, 49 animais;-31/05/2000, 99 animais; -28/08/2000, 117 animais; -12/07/2000, 79 animais; -10/08/2000, 95 animais; -13/09/2000, 120 animais; -20/09/2000, 99 animais; -27/09/2000, 104 animais.
S. Os animais abatidos, referidos no ponto anterior, tanto os que registaram resultados positivos como os que revelaram não estar infectados com Brucelose, foram introduzidos no mercado, uma vez que a inspecção sanitária os considerou aptos para o consumo;
T. Porque não existia plano de erradicação para a brucelose dos suínos, de acordo com a informação descrita no ponto J da matéria assente, ao efectivo reprodutor referido nos pontos P), Q), R) e S) foi aplicada a tabela de indemnização da peste suína africana;
U. Por esse facto, foi paga aos Autores a quantia de 3.260.322$00, a título de ajuda nacional, correspondente aos 80 animais reprodutores com resultados sorológico positivo;
V. O preço/valor de mercado do suíno é regulada semana a semana, pela Bolsa do Porco, com sede em Montijo.
W. Os animais referentes ao efectivo reprodutor e cujo transporte foi titulado pelas guias descritas em O) da matéria assente, pesavam 7757 kg e 7075 kg respectivamente.
X. Ao efectivo de animais para engorda (excluindo o efectivo reprodutor) não foram efectuadas análises sorológicas anteriores ao abate, mas apenas posteriormente ao abate.
Em função dos depoimentos prestados na audiência de discussão e julgamento foram considerados provados os seguintes factos (as remessas para os pontos da matéria assente encontram-se actualizadas em função da diferença na ordem alfabética ora atribuída):
Y. O abate de todo o efectivo em sequestro desde 07/02/2000, foi efectuado por imposição dos serviços do Réu;
Z. O abate abrangeu todos os suínos existentes na exploração à data do sequestro, mais os que nasceram posteriormente, independentemente de estarem ou não infectados com a brucelose no momento do abate;
AA. O efectivo de animais para engorda foi abatido no Matadouro E..., S.A., de acordo com o descrito em Q) e R) da matéria assente;
BB. Os Autores estavam obrigados a efectuar o abate no matadouro que previamente seleccionaram e que acedeu a efectuar o abate;
CC. A calendarização dos abates descritos em R) da matéria assente foi determinada pelos Autores, em função da melhor altura para comercialização dos suínos, o que, por via de regra, ocorre por volta dos 6 meses e aos 100 kg de peso;
DD. As análises sorológicas referidas em X) da matéria assente foram efectuados apenas como método de trabalho, de modo a permitir que a autoridade sanitária pudesse ajuizar dos efeitos da doença, bem como facilitar a inspecção sanitária no matadouro;
EE. O abate dos animais referidos em S) da matéria assente gerou um peso total de 104. 093kg;
FF. Pela compra de 104.093 quilogramas, a F... pagou aos Autores a quantia de Esc. 25.936.481$00 (129.370,62 €);
GG. Ao preço da Bolsa do Porco, de acordo com os valores de referência semanais praticados no mercado, o valor do peso descrito em S seria de 35.107.165$00;
III Direito
1. A presente acção foi intentada pelos autores, em primeiro lugar, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual decorrente de actos ilícitos praticados por órgãos e agentes do Estado integrados na Direcção Geral de Veterinária. Os factos tradutores da ilicitude da conduta desses elementos e da culpa foram alegados nos artigos 7 a 20 da petição inicial e traduziram-se, essencialmente, na circunstância de os animais sequestrados, por suspeita de brucelose suína, com excepção de 99 reprodutores, terem sido analisados após o abate e não antes, daí decorrendo um prejuízo proveniente de um mais baixo preço a que tiveram de vender os animais abatidos - por não lhes ter sido permitida a sua venda livre - em consequência do momento da introdução no mercado da carne obtida e da consequente sujeição aos preços oferecidos. Depois, em segundo lugar, numa petição com 57 artigos inseriram um artigo, o 57.º, com o seguinte teor: “Mas mesmo que se entendesse que a actuação da Administração foi legal – e não foi – estariam os RR. igualmente obrigados a indemnizar os AA. nos termos do art. 9.º do citado Dec. Lei.” (DL 48051, de 22.11.67), assim invocando, com suporte nos mesmos factos, uma causa de pedir subsidiária, assente em responsabilidade extracontratual por acto lícito.
2. A sentença recorrida, tendo reconhecido que detectada a doença na exploração, todo o efectivo animal tinha que ser abatido, julgou improcedente a primeira causa de pedir essencialmente pelo seguinte: “Os Autores, pretendendo que todos os animais deveriam ter sido submetidos a análise sorológica prévia ao abate, extraem da respectiva preterição a omissão ilícita de um comportamento exigível à Administração, em consequência da qual, se viram irrecusavelmente compelidos a aceitar o preço oferecido pela empresa que introduziu a carne de animais saudáveis no consumo, quando poderiam comercializá-la livremente, por valores francamente superiores, variáveis diariamente apenas em função do mercado. Encurtando razões, pode afirmar-se desde já, que não se verificou qualquer ilicitude no comportamento dos serviços públicos competentes, uma vez que, verificada a existência da doença, competia à Divisão de Intervenção Veterinária do Oeste o decretamento do sequestro da exploração, determinante inapelavelmente da eliminação de todos animais real ou virtualmente infectados, única garantia de combate eficaz à disseminação de potencial epizootia, pelo que, com análises positivas ou negativas, as boas práticas não aconselhariam a circulação dos animais vivos, impedindo a livre comercialização pretendida pelos Autores. Considerando a imprescindibilidade da verificação cumulativa dos pressupostos supra enumerados, atento o explanado supra, inexistindo ilicitude e, consequentemente, culpa, no facto que os Autores elegeram causa do prejuízo sofrido, falha um dos elementos constitutivos da obrigação de indemnizar a este título”.
Todavia, julgou procedente a acção, com base em responsabilidade civil por acto lícito, argumentando do seguinte modo: “Contudo, tal não implica o naufrágio da pretensão dos Autores. Segundo o Prof. Marcelo Caetano, in Manual de Direito Administrativo, vol. II 10ª edição, pág. 1239, a responsabilidade do Estado pelos prejuízos causados na esfera jurídica dos particulares funda-se no princípio da igualdade dos cidadãos na repartição dos encargos públicos, de acordo com o qual “se um direito tem de ser sacrificado ao interesse público, torna-se necessário que esse sacrifício não fique iniquamente suportado por uma pessoa só, mas que seja repartido pela colectividade.” A obrigação de indemnizar na decorrência da actividade da Administração, para além de constituir imperativo constitucional vertido no artigo 22.° da Lei Fundamental, encontrava ao tempo da ocorrência em que os Autores fundam o pedido formulado, quanto à pratica de factos lícitos, regulação no n.° 1 do artigo 9º Dec.-Lei n.° 48051, de 21 de Novembro de 1967, segundo o qual o Estado e as demais pessoas colectivas públicas indemnizarão os particulares a quem, no interesse geral, mediante actos administrativos legais ou actos materiais lícitos, tenham imposto encargos ou causado prejuízos especiais e anormais. Nesta perspectiva, são diferentes os pressupostos em que assenta a responsabilidade extracontratual do Estado, por actos lícitos praticados no domínio da gestão pública, tal como se considerou no Acórdão do STA, tirado em 02/02/2004, no Proc. 0670/04: a) A prática de um acto lícito do Estado (ou de outra pessoa colectiva pública); b) Por motivo de interesse público; c) Causador de um prejuízo especial e anormal; d) A existência de um nexo de causalidade entre o acto e o prejuízo. Do probatório supra resulta iniludivelmente que as entidades competentes para o efeito, perante a notícia de que na exploração suinícola dos Autores foi detectada a existência de Brucelose, decretaram o respectivo sequestro, determinando o abate total do efectivo reprodutor, bem como dos animais em fase de criação e engorda, deixando apenas aos Autores a possibilidade de determinar o momento do abate, quanto a estes últimos. Visavam as medidas implementadas alcançar o vazio sanitário na exploração de forma a evitar a propagação da doença. É evidente que a diferença entre os valores que os Autores obteriam com a venda livre dos animais, e aquele que perceberam se deve exclusivamente à posição dominante que na respectiva transacção ficaram a deter os matadouros autorizados para efectuar o abate, que, não foram livremente escolhidos pelos Autores, já que era restrito o número daqueles que aceitaram abater os animais procedentes da exploração sequestrada, o que significa que lhes foi infligido um prejuízo. Não há dúvida, também, de que o sacrifício imposto aos Autores visou o benefício da generalidade dos suinicultores e, consequentemente da economia do sector, impedindo a propagação da doença. Verifica-se assim a existência de uma actuação lícita por parte da Administração, motivado por razões de saúde pública, constatação que leva a considerar preenchidas as duas primeiras condições acima referidas. Por outro lado, à luz da factualidade apurada, verifica-se ainda que se encontra preenchido o pressuposto referente à alínea d), ou seja, a existência de nexo de causalidade, apurado de acordo com a teoria da causalidade adequada que encontra expressão legal na letra do artigo 563° do CC, onde se refere que “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”. Com efeito, da matéria de facto dada como provada verifica-se que os prejuízos que os Autores invocam constituem resultado indirecto da ordem de sequestro e directo da de eliminação do efectivo total da exploração, visando alcançar o vazio sanitário, oriundas dos órgãos competentes do Ministério da Agricultura Desenvolvimento Rural e Pescas, e cuja execução foi por estes totalmente controlada. Verificou-se até aqui, que da actuação lícita da Administração, por motivos de interesse público, resultou para os Autores um prejuízo quantificado, pelo que resta averiguar se tal prejuízo deve qualificar-se de especial e anormal, único pressuposto de que depende agora o provimento do pedido. Extrai-se do sumário do Acórdão do STA, tirado no processo n.° 0688/03, em 29/5/2003: “I- Os pressupostos em que assenta a responsabilidade civil do Estado por actos lícitos são os seguintes: i) a prática de um acto lícito; ii) para satisfação de um interesse público; (iii) causador de um prejuízo “especial” e “anormal”; (iv) existência de nexo de causalidade entre o acto e o prejuízo. II- Prejuízo especial é aquele que não é imposto à generalidade das pessoas, mas a pessoa certa e determinada em função de uma relativa posição específica; prejuízo anormal o que não é inerente aos riscos normais da vida em sociedade, suportados por todos os cidadãos, ultrapassando os limites impostos pelo dever de suportar a actividade lícita da Administração. III- É especial e anormal, nos termos referidos, o dano decorrente da apreensão preventiva de carne, importada no respeito pela legalidade vigente, levada a cabo pela Administração em cumprimento de determinação de organização da Comunidade Europeia para prevenir a importação de carnes infectadas por dioxinas se não se demonstra que essa carne esteja afectada, por incapacidade de realização de tais exames, e se tem de proceder à sua destruição causando-se ao importador um prejuízo de 121.806,45 E., para além de outros a apurar posteriormente. Tem, nesta perspectiva, de considerar-se que a actuação dos órgãos competentes do Ministério da Agricultura do Desenvolvimento Rural e das Pescas, teve como destinatária exclusiva e exploração suinícola dos Autores, e não aos cidadãos em geral, nem sequer a generalidade dos suinicultores portugueses, sendo que a especialidade do dano para efeito da previsão vertida no n.° 1 do art.° 9.° do Dec.-Lei n.° 48051, deve ser aferida em relação à generalidade das pessoas, como se refere no acórdão cujo sumário se transcreveu supra. Tem assim de considerar-se, necessariamente, que a Administração, ao ter sequestrado a exploração suinícola dos Autores, determinando a eliminação do efectivo reprodutor e condicionando o abate deste, bem como dos animais em criação e engorda, exclusivamente em matadouros determinados, tudo por motivos de saúde pública, lhe impôs um dano anormal e especial. Especial porque incidiu exclusivamente sobre os Autores e não sobre os cidadãos em geral, nem sobre qualquer outro suinicultor, anormal, porquanto não decorre do risco normal da vida em sociedade, suportado por todos os cidadãos, nem sequer por aqueles que se dedicam à mesma actividade económica e ultrapassa os limites impostos pelo dever de suportar a actividade lícita da Administração (vd. Ac. cit). Estar-se-ia perante um risco normal se os Autores, por exclusivas razões de mercado, tivessem de abater todo o efectivo, de reprodução e engorda, por exemplo em consequência de prejuízo na exploração, função da descida de preço por excesso de oferta. Ora, o abate compulsivo do efectivo por razões de saúde pública, não pode ser considerado um risco normal da vida em sociedade, nem sequer do sector suinícola. Conclui-se, assim, que os prejuízos invocados pelos Autores têm de ser qualificados como especiais e anormais. E, assim sendo, verificando-se preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade por parte do Estado por actos lícitos, e tendo sido provado que a Autora teve prejuízos no valor de €29.480,80 (pontos “U”, “FF” e “GG” do probatório), deve a presente acção proceder, devendo os Autores serem indemnizados do montante em causa”.
3. A sentença, contudo, não pode manter-se. Os autores não imputaram ao réu qualquer desrespeito por normas jurídicas que devesse cumprir nem sequer identificaram o quadro legal a que os seus actos devessem obediência. Limitaram-se a invocar o regime jurídico do DL 48051, de 21.11.67. Observe-se que constituindo a ilicitude da conduta imputada aos agentes do Estado, na causa de pedir principal, a não realização, prévia ao abate dos animais sequestrados, das análises necessárias à comprovação da doença, conduta essa dada como legal e sem culpa, acaba por ser essa mesma conduta a servir de fundamento à condenação do Estado, agora por responsabilidade assente na prática de actos lícitos. Mas sem que se diga, em momento algum, donde resultava essa obrigação (vê-se na matéria contida na alínea DD dos factos provados que mesmo as análises feitas posteriormente ao abate só o foram “apenas como método de trabalho, de modo a permitir que a autoridade sanitária pudesse ajuizar dos efeitos da doença, bem como facilitar a inspecção sanitária no matadouro” e na resposta dada ao quesito 3.º que se não deu como provado que se as análises tivessem sido prévias ao abate os animais saudáveis não teriam sido abatidos nas mesmas circunstâncias). Por outro lado, ainda que esse comportamento houvesse sido ilícito e culposo não poderia olvidar-se a matéria contida na alínea O dos factos provados donde resulta - reconhecimento assumido pelo veterinário da exploração pecuária dos autores - que o efectivo pecuário foi infectado pela introdução na exploração do varrasco Porco adulto ainda não utilizado para reprodução. n.º 100 que já se encontrava contaminado e que, naturalmente, disseminou a doença na exploração. Foi essa conduta negligente que causou os danos ou, pelo menos, contribuiu seriamente para o seu agravamento, o que sempre acarretaria consequências legais, excluindo a indemnização ou reduzindo seriamente o seu montante - art. 570º do CC. Assim, afigura-se evidente que se a culpa do lesado para a eclosão do dano, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, sempre seria relevante para efeitos de exclusão ou diminuição da indemnização devida é obvio que sempre teria de ter consequências, também, no contexto da responsabilidade por facto lícito. A sentença esqueceu claramente esse aspecto não tendo feito intervir no seu discurso jurídico esse elemento essencial. E a verdade é que a própria lei resolve expressamente a questão ao estatuir, no n.º 2 do mesmo preceito, que “Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar”. Ora, se ocorrendo culpa do lesado a simples culpa presumida do lesante exclui o dever de indemnizar, a ausência de culpa exclui esse dever com muito maior força quer se trate de responsabilidade por acto ilícito quer se trate de responsabilidade por acto lícito. Falece, assim, o nexo de causalidade entre a lesão e o dano (art. 563º do CC). Só por esta razão a acção já teria de improceder.
Mas há mais. A sentença julgou a acção procedente invocando para o efeito um acórdão deste tribunal que relatámos. Só que, procede à aplicação da doutrina que dele emerge de uma forma incorrecta. Desde logo, esquece que enquanto ali A acção foi proposta, apenas, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual emergente de facto lícito, o que constitui, também, um elemento distintivo. se não previa, nem se concedeu, qualquer indemnização decorrente da importação e posterior destruição de carne importada no respeito pela legalidade vigente, ficando os interessados desapossados da carne (e da quantia paga por ela) sem que nada se tivesse provado de relevante quanto ao seu estado, aqui, pelo contrário, provou-se que a generalidade do efectivo estava contaminada (e os restantes iriam ficar a breve prazo), que a contaminação sobreveio à introdução na exploração de um animal infectado, da responsabilidade dos autores, e que a Administração pública, na ausência de um regime jurídico específico para a brucelose suína, indemnizou-os, aplicando ao abate o regime contemplado para a peste suína africana DL 39209, de 14.5.53 e Portaria n.º 419/79, de 11.8. (reprodutores) e, ainda assim, os autores puderam dispor da carne proveniente dos animais abatidos e vendê-la (alínea S dos factos provados), introduzindo-a no mercado para consumo (a congelação das carcaças elimina o elemento causador da doença, tornando-a inócua para os seres humanos). Portanto, estamos perante situações completamente diversas a merecerem tratamento distinto. Relembre-se que não existe no sistema jurídico civilístico português um princípio geral de ressarcibilidade dos danos decorrentes de actos lícitos, estando apenas previstas no Código Civil diversas situações indemnizáveis por força de intervenções lícitas na esfera jurídica de particulares. Já no âmbito da responsabilidade estadual esse princípio, embora excepcional - excepcionalidade determinada pela especialidade e anormalidade do prejuízo - existe e observa-se no n.º 1 do art. 9º DL 48051, de 21.11.67, segundo o qual o “Estado e as demais pessoas colectivas públicas indemnizarão os particulares a quem, no interesse geral, mediante actos administrativos legais ou actos materiais lícitos, tenham imposto encargos ou causado prejuízos especiais e anormais” (sobre este assunto veja-se o acórdão de 29.5.03, proferido no recurso 688/03, que a sentença identifica, e a doutrina e jurisprudência aí citadas), traduzindo-se num encargo imposto a toda a comunidade. Todavia, este regime só é susceptível de operar na ausência de um sistema indemnizatório previsto - ou aplicado - para a situação carente de indemnização e já nunca como regime indemnizatório complementar para suprir eventuais falhas ou omissões legais do regime ressarcitório contemplado para o caso concreto. É que, nesse caso - de insatisfatória, insuficiente ou incompleta cobertura compensatória, por eventual imperfeição da lei - o hipotético prejuízo não é, pelo menos, anormal (por ser, nesse caso, de pouca gravidade), sendo inerente aos riscos normais da vida em sociedade, devendo ser suportado por todos os cidadãos a ele sujeitos, não ultrapassando os limites impostos pelo dever de suportar a actividade lícita da Administração. Justamente por isso, como se vê no sumário do acórdão deste STA de 2.5.00 proferido no recurso 44308, “O proprietário das reses assume riscos específicos em relação a doenças animais, ao mesmo tempo que espera benefícios da exploração pecuária. Estes riscos não têm de ser cobertos pelo ente público que determina o abate, a título de responsável pelo ressarcimento do sacrifício que a destruição das reses acarreta, porque é exterior a este facto, não se confunde com ele em termos de imputação, ainda que concorra na situação e nos danos. É um ónus que diz respeito e recai sobre o proprietário da exploração. Daí que a indemnização justa possa ser numa parte inferior ao valor de mercado do gado abatido”.
Procede, assim, o presente recurso.
IV Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos acordam em conceder provimento ao recurso, em revogar a sentença recorrida e em julgar a acção improcedente.
Custas a cargo dos autores no TAF e neste STA.
Lisboa, 11 de Março de 2010. – Rui Botelho (relator) – Freitas Carvalho – Pais Borges.