Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0452/06
Data do Acordão:10/04/2006
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:PAIS BORGES
Descritores:ACÇÃO PARA RECONHECIMENTO DE DIREITO.
LICENCIAMENTO.
PESCA.
EMBARCAÇÃO DE PESCA.
Sumário:I - A acção para reconhecimento de direito ou interesse legítimo, prevista no art. 69º da LPTA, é um meio processual que pode ser utilizado “por quem invoque a titularidade do direito ou interesse a reconhecer”, cuja procedência pressupõe a existência, na esfera jurídica do peticionante, do direito ou interesse cujo reconhecimento reivindica, soçobrando a acção se o tribunal concluir que ao A. não assiste tal direito ou interesse legítimo.
II - O regime de autorização e licenciamento do exercício da pesca marítima, estabelecido no DL nº 278/87, de 7 de Julho, com a redacção introduzida pelo DL nº 383/98, de 27 de Novembro, veio a ser regulamentado pelo Decreto Regulamentar nº 43/87, de 17 de Julho, com as alterações introduzidas por diversos diplomas regulamentares, o último dos quais o Decreto Regulamentar nº 7/2000, de 30 de Maio, diploma que exige que as embarcações de pesca possuam um livrete de actividade, a emitir pela DGP, e que o exercício da pesca e a utilização de artes de pesca sejam objecto de licenciamento anual pela mesma entidade, tendo as licenças uma vigência de 12 meses (arts. 74º, nºs 1 e 2, 75º, nº 1 e 80º).
Nº Convencional:JSTA00063500
Nº do Documento:SA1200610040452
Data de Entrada:05/08/2006
Recorrente:A...
Recorrido 1:DIRGER DAS PESCAS E AGRICULTURA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAC PORTO.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - RECONHECIMENTO DIRINT LEGIT.
Legislação Nacional:LPTA85 ART69.
DL 278/87 DE 1987/07/07 ART4 N2 ART8.
DL 383/98 DE 1998/11/27.
CONST ART66 N2 D ART202 N2 ART204.
DR 43/87 DE 1987/07/17 ART74 N1 N2 ART75 N1 ART180.
DR 7/2000 DE 2000/05/30 ART1.
CCIV66 ART220 ART280 ART289 ART294.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
( Relatório)
I. “A..., LDA”, com sede na Av. ..., em Barcelos, intentou no Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, contra o DIRECTOR-GERAL DAS PESCAS E AGRICULTURA e o CAPITÃO DO PORTO DE MAR DE VIANA DO CASTELO, acção para reconhecimento de direito ou interesse legítimo, pedindo que lhe seja reconhecido o direito à emissão pelo DGP do livrete de actividade e da licença de pesca de palangreiro polivalente, com artes de palangre e de redes de emalhar e de tresmalhe, bem como o reconhecimento da existência das licenças de pesca industrial não agremiada que a embarcação de pesca “...”, registada em seu nome na Capitania do Porto de Mar de Viana do Castelo, possui, sem interrupção, desde 1982.
Pelo saneador de fls. 160 e segs., não impugnado, foi julgada procedente a excepção de ilegitimidade do 2º Réu, sendo este absolvido da instância, a qual prosseguiu somente contra o 1º Réu.
Por sentença de 15.06.2005 (fls. 354 e segs.), foi a acção julgada improcedente e o Réu absolvido do pedido.
É desta decisão que vem interposto o presente recurso jurisdicional, em cuja alegação a recorrente formula as seguintes conclusões:
1.Com a aquisição da embarcação de pesca ... em processo de liquidação de património, a recorrente sucedeu à sociedade liquidada em todos os seus direitos e obrigações relacionados com aquela embarcação, e invocou a usucapião quanto ao seu direito de propriedade e todos os seus correspondentes direitos acessórios sobre a referida embarcação;
2.Resulta do facto provado em 3) da sentença que, por despacho de 07-1-1983, proferido pelo Comandante da Capitania do Porto de Mar de Viana do Castelo, onde se encontrava registada aquela embarcação sob o nº ... , foi cancelado o seu registo por ter sido vendida à sociedade luso-marroquina ".... SARL";
3.Por sentença proferida em 29-05-1997, o Tribunal Judicial de Viana do Castelo declarou a nulidade, por falta de escritura pública, da venda da ... à ... ;
4.Esta nulidade, por um lado, é a que resulta dos artigos 220°, 280° nº 1 e 294° todos do CC, cujos efeitos estão consagrados no artigo 289° do mesmo diploma legal e, por outro lado, o acto nulo não produz quaisquer efeitos jurídicos – artigo 134º n° 1 do CPA;
5.Tal declaração de nulidade tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente;
6.A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado, pode ser declarada oficiosamente pelo Tribunal, e impede a produção de efeitos jurídicos nos casos de ilegitimidade, vício de forma, ilicitude da motivação, coacção física, falta de consciência da declaração, falta de seriedade da declaração, reserva mental conhecida, vício da causa e inidoneidade do objecto;
7.Não se verificam quaisquer outras situações de facto decorrentes daquele acto nulo, que por força do simples decurso do tempo, e de harmonia com os princípios gerais do direito pudessem atribuir-lhe certos efeitos jurídicos;
8.O despacho do Capitão do Porto de Mar de Viana do Castelo datado de 07-01-1983, que cancelou o registo da ... , não pode produzir ab initio o efeito jurídico que lhe foi atribuído de retirar as licenças de pesca de palangreiro polivalente, com artes de palangre e de redes de emalhar e de tresmalhe e de pesca industrial não agremiada;
9.A embarcação . .. era titular das referidas licenças à data daquele despacho (e antes dele), como resulta provado em 12), 13), 14) e 15), a fls. 356-357, com base no depoimento das testemunhas ... , ... e ... ;
10.Mal andou o tribunal a quo quando atribuiu efeitos jurídicos ao despacho de 07-01-1983 do Capitão do Porto de Mar de Viana do Castelo, retirando todas as licenças de pesca que a embarcação ... possuía antes de tal despacho;
11.Não é pelo facto da competência para atribuição das licenças de pesca terem passado da esfera dos Capitães dos Portos de Mar para a Direcção Geral das Pescas por força do Decreto-Regulamentar nº 43/87, de 17 de Julho, que constitui uma situação de facto à qual possam ser atribuídos efeitos jurídicos pelo decurso do tempo, nos termos do nº 3 do artigo 134º do CPA;
12.A não produção ab initio dos efeitos jurídicos do despacho em mérito, que retirou as licenças de pesca à ..., obriga o recorrido, que foi a entidade que sucedeu na competência ao Capitão do Porto de Mar de Viana do Castelo, por efeitos do DR 43/87, de 17 de Julho, a repor a situação anterior à data daquele despacho;
13.O que está em causa para a recorrente não é um novo processo de licenciamento, mas antes, o direito que para si deriva da lei ao licenciamento existente à data do acto declarado nulo, devendo ser necessariamente reposta a situação anterior ao acto declarado nulo;
14.A forma como se vai proceder para que o Director-Geral das Pescas emita tais licenças é uma questão meramente formal;
15.A recorrente tem o direito substantivo à emissão, que lhe deriva da lei, das licenças de pesca referidas, as quais se destinam a reconstituir a situação existente antes do acto declarado judicialmente nulo;
16.O não reconhecimento pelo recorrido desse referido direito às licenças de pesca da embarcação ..., que surge ex lege, obrigou a recorrente a instaurar o processo judicial subjacente a este recurso;
17.O recorrido recusou-se a cumprir o ordenamento jurídico vigente e a decisão judicial do Tribunal Judicial de Viana do Castelo, cujas consequências jurídicas das suas respectivas decisões obrigam o Capitão do Porto de Mar de Viana do Castelo (e o R., por força das competências atribuídas pelo DR 43/87) a repor a situação em sede de licenciamento de pescas que a embarcação ... possuía antes do despacho em crise;
18.A atribuição das licenças em mérito não depende da vontade do recorrido, como também decidiu mal o tribunal a quo, pois, se a emissão das licenças de pesca da embarcação ..., a que a recorrente tem legalmente direito, exige ou não a prévia emissão do livrete, essa é uma questão meramente formal;
19.Nos autos ficou provado que, antes do referido despacho de 07-01-1983 a embarcação de pesca ... era titular de várias licenças de pesca e exerceu de facto a actividade de pesca, pelo que, ex lege, aquela embarcação tem direito às licenças que lhe foram retiradas em consequência dos actos do recorrido, cujas decisões também estão feridas de nulidade;
20.Todas as decisões do recorrido que recusaram a atribuição das licenças de pesca à embarcação ... são nulas ab initio por manifesta falta de competência daquele para decidir sobre um acto jurídico que deriva da lei;
21.A embarcação ... tem direito às licenças de pesca, não por vontade do recorrido, mas antes, porque tal deriva da Lei e, se assim não for, a recorrente tem direito a ser indemnizada pelos danos patrimoniais, entre danos emergentes e lucros cessantes, sofridos em consequência dos actos praticados pelo recorrido;
22.Todas as decisões do recorrido sobre a emissão das licenças de pesca a que a recorrente por lei tem direito devem ser consideradas nulas e de nenhum efeito, porque são consequentes de um acto nulo, sendo nulos os actos consequentes de actos administrativos anteriormente anulados ou revogados (alínea i) do nº 2 do artigo 133º do CPA), assim como determina o regime geral da nulidade dos actos a anulação dos termos subsequentes que dependam em absoluto dos actos anulados (artigo 201º n° 2 do CPC);
23.Não compete à recorrente requerer a emissão de licenças ou de livretes, pois é a entidade marítima (ou sejam, o Capitão do Porto de Mar de Viana do Castelo ou o recorrido, que lhe sucedeu nessa competência legal) que está obrigada por lei a emitir os documentos de que a recorrida era já titular, antes do despacho referido, de acordo com os princípios gerais do Direito que obrigam à reparação da ofensa dos direitos da recorrente;
24.Andou, por isso, mal o tribunal a quo ao reconhecer valor jurídico à decisão do recorrido que condiciona a aquisição da embarcação ... pela recorrente;
25.Por força também do disposto na al. i) do nº 2 do artigo 133º do CPA e no artigo 201º n° 2 do CPC, todas as decisões substantivas sobre a emissão de licenças proferidas pelo recorrido são nulas e de nenhum efeito, podendo a todo o tempo ser declaradas nulas, e até oficiosamente por qualquer tribunal;
26.Perdeu a recorrente, em consequência da sentença a quo, o direito potestativo de anualmente proceder à renovação das licenças de pesca em causa;
27.A sentença recorrida ofende o disposto nos artigos 202º nº 2 e 204º da Constituição da República Portuguesa (CRP) porquanto, ao decidir da forma como decidiu, o tribunal a quo não assegurou a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos da recorrente, pelos quais pugna neste recurso e, nos factos submetidos a julgamento, aplicou normas que infringem a lei fundamental e os seus princípios, pois, a interpretação que delas fez quanto aos factos dos autos é ilegal e consubstancia a violação das referidas normas fundamentais.
28.A sentença a quo violou as normas jurídicas constantes dos artigos 220º, 280º nº 1, 289º e 294º do Código Civil, 201º nº 2 do Código de Processo Civil, 133º nº 2 alínea i) e 134º n° 1 e 3 do Código de Procedimento Administrativo, e 202º nº2 e 204º da Constituição da República Portuguesa;
29.O tribunal recorrido deveria ter julgado procedente o pedido da recorrente.
Termos em que, deve o recurso ser julgado procedente, por provado, bem como as suas respectivas conclusões, com as legais consequências.
II. Contra-alegou a entidade recorrida, concluindo do seguinte modo:
1.A declaração de nulidade da compra e venda da embarcação proferida pela sentença do Tribunal Judicial de Viana do Castelo, de 29 de Maio de 1997, não tem a virtualidade ou efeitos pretendidos pela agravante;
2.De tal declaração apenas resultaram os efeitos nela expressos, ou seja, que a embarcação "... " faz (fazia) parte do património da ... , S.C.R.L., condenando-se o réu à entrega efectiva da mesma à cooperativa, o que aconteceu, acompanhado do inerente registo na Capitania de Viana do Castelo;
3.Efeitos que não diziam directamente ou indirectamente respeito ao ora agravado;
4.A agravante apenas adquiriu a citada embarcação àquela cooperativa em 2 de Julho de 2001, aquisição que, nos termos da lei, foi precedida de autorização do agravado;
5.Por força do despacho do Capitão do Porto de Viana do Castelo datado de 07.01.1983, que cancelou o registo da ... , não foram retiradas quaisquer licenças de que tal embarcação fosse à data possuidora, já que, relativamente ao ano de 1983, aquela não detinha qualquer licença de pesca;
6.Acresce que a licença de pesca era já antes de 1987, como depois, de validade anual, não conferindo quaisquer direitos aos seus possuidores;
7.Efectivamente, decorre do regime legal da pesca em vigor, vertido no Decreto. Lei n° 278/87, de 7 de Junho, e sua regulamentação postulada no Decreto Regulamentar n° 43/87, de 17 de Julho (red. do Decreto Regulamentar n° 7/2000) que, o exercício da pesca está sujeito a licenciamento anual, a requerer pelos interessados;
8.Constituindo este mesmo licenciamento, o instrumento que, por excelência, a Administração das Pescas tem ao seu dispor para dar execução à Política Comum de Pescas e aos interesses nacionais em sede de gestão e conservação dos recursos da pesca;
9.Licença que, por definição, é um título precário que habilita o seu possuidor ao exercício da actividade da pesca;
10.Título que até hoje não foi requerido pela agravante, pelo que nunca houve qualquer decisão do agravado;
11.Como, igualmente, nunca a agravante requereu a emissão de livrete de actividade para a embarcação, inexistindo, pois, qualquer decisão do agravado;
12.Não pode a agravante invocar quaisquer danos patrimoniais de que deva ser ressarcida, quer porque tal matéria é nova, quer porque não existe fundamento para o fazer, dado não lhe poder ser reconhecido direito inexistente.
Termos em que, não merecendo a sentença censura, deve a mesma ser confirmada, julgando-se o recurso improcedente, por não provado.
III. O Exmo magistrado do Ministério Público neste Supremo Tribunal emitiu o seguinte parecer:
“O presente recurso jurisdicional vem interposto de sentença do TAF do Porto constante de fls 354/362, que julgou improcedente, por não provada, a acção para reconhecimento de direito instaurada pela ora recorrente.
Para a recorrente, o decidido incorre em erro de julgamento na medida em que não atendeu a que lhe assiste o direito à emissão pela Direcção Geral das Pescas do livrete de actividade e de licença de pesca reportados à embarcação de que é proprietária, direito fundado, em seu entender, na declaração de nulidade (de negócio) constante da sentença proferida em 29.05.97 pelo Tribunal Judicial de Viana do Castelo.
Pensamos que sem razão.
A questão objecto do presente recurso passa pela questão de saber se a recorrente é detentora de um direito ou interesse legalmente protegido que lhe garanta tutela jurisdicional, nomeadamente através do seu reconhecimento pelo meio processual a que lançou mão nos autos.
No acórdão deste STA de 28.03.2001, proferido no rec n° 27016, citando o Prof. Freitas do Amaral, in Direito Administrativo, dá-se a seguinte definição de direito e de interesse legítimo, que inteiramente subscrevemos:
"Está-se perante um direito subjectivo dos particulares perante a Administração quando estes têm interesses próprios protegidos directamente pela lei como interesses individuais, atribuindo-lhe o poder de exigirem da Administração o comportamento necessário para a satisfação desses interesses.
Há um interesse legalmente protegido quando a lei não protege directamente um interesse particular, mas um interesse público que, se for correctamente prosseguido, implicará a satisfação simultânea do interesse individual; nesse caso o particular não pode exigir da Administração a satisfação do seu interesse, apenas podendo exigir-lhe que não o prejudique ilegalmente..."
À luz destas definições e em face da factualidade dada como assente, não vemos como poderia considerar-se a recorrente titular de um direito ou de um interesse legítimo, atentas as razões explanadas na sentença recorrida, pelo que sempre seria de concluir que se não mostram reunidos os pressupostos da acção a que lançou mão, por falta de um seu elemento integrador – a existência de um direito ou interesse juridicamente tutelados.
Nestes termos, e louvando-nos na resposta apresentada pela entidade recorrida às alegações da recorrente, somos de parecer que o recurso não merece provimento.”
*
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
( Fundamentação )
OS FACTOS
A sentença impugnada considerou provados, com relevância para a decisão, os seguintes factos:
1)A embarcação de pesca denominada ... , está registada na Capitania do Porto de Mar de Viana do Castelo (CVC) sob o nº ... – alínea A) da especificação;
2)A ... , SCRL (SCP) – na qualidade de proprietária – vendeu a ... à sociedade luso-marroquina ... SARL – alínea B) da especificação;
3)Por despacho de 7 de Janeiro de 1983, a CVC cancelou o registo da ... por ter sido vendida à ... – alínea C) da especificação;
4)Entre 7 de Janeiro de 1983 e 16 de Agosto de 1999, a ... esteve em Marrocos ao serviço da ... – alínea D) da especificação;
5)Por sentença proferida em 29 de Maio de 1997, do Tribunal Judicial de Viana do Castelo, foi declarada a nulidade, por falta de escritura pública, da venda da ... à ... – alínea E) da especificação;
6)Em 16 de Agosto de 1999, a CVC, com base na referida decisão judicial, anulou o cancelamento do registo da ... e declarou que esta continuaria registada sob o mesmo nº ... e com a mesma denominação – alínea F) da especificação;
7)Em 25 de Janeiro e 13 de Dezembro de 2000, o liquidatário judicial da SCP informou o DGP de que já tinha procedido ao registo da ... em seu nome e solicitou-lhe a concessão de licenças e alvarás que a ... possuía à data da venda declarada nula – alínea G) da especificação;
8)Por ofício de 15 de Março de 2001, o DGP indeferiu estes requerimentos – alínea H) da especificação;
9)Por ofício de 29 de Maio de 2001, o DGP autorizou a autora A...a adquirir a ..., mas alertou-a para a circunstância de não poder vir a obter uma licença de pesca inicial que lhe permita exercer a actividade da pesca, conforme consta de folhas 64 dos autos, dada por reproduzida – alínea I) da especificação;
10)Em 2 de Julho de 2001 – e por escritura pública lavrada no âmbito da liquidação do património da SCP – a autora comprou a ... pelo preço de 380.000$00 – alínea J) da especificação;
11)Em 27 de Julho de 2001, a autora solicitou ao Secretário de Estado das Pescas a emissão, pela DGP, da licença de pesca em nome da ... – alínea K) da especificação;
12)Entre 17 de Junho de 1982 e 7 de Janeiro de 1983, a ... esteve registada na CVC em nome da ... – resposta positiva dada ao quesito 1º do questionário, com fundamento nos documentos de folhas 12 (frente e verso), 300 e 301, 311 a 314 e 323;
13)E tinha licença para utilizar redes de emalhar – resposta parcialmente positiva dada ao quesito 2º do questionário, com fundamento nos documentos de folhas 58 (ponto 3) e 59 (ponto 7), 198, 200, 219, 222, 311 e 320, e nos depoimentos das testemunhas ..., ....e ... ;
14)Desde 17 de Junho de 1982, e com excepção do período referido em D) supra, a SCP – por si mesma ou através de liquidatário judicial – deteve e usou a ... como sua, utilizando-a com redes de emalhar – resposta parcialmente positiva dada ao quesito 3º do questionário, na decorrência da resposta anterior, e com fundamento nos depoimentos das testemunhas ..., .... e ...;
15)Fazendo-o à vista de todos e sem qualquer tipo de oposição – resposta positiva dada ao quesito 4º do questionário, com fundamento nos depoimentos das testemunhas ..., ... e... ;
16)Não provado – resposta dada ao quesito 5º do questionário, imposta devido à total falta de prova sobre o assunto.
O DIREITO
A sentença impugnada julgou improcedente a acção para reconhecimento de direito ou interesse legítimo intentada pela ora recorrente contra o Director-Geral das Pescas e Agricultura (e outro, entretanto absolvido da instância no saneador, como atrás se deixou referido), na qual pedia que lhe fosse reconhecido o direito à emissão pelo DGP do livrete de actividade e da licença de pesca de palangreiro polivalente, com artes de palangre e de redes de emalhar e de tresmalhe, bem como o reconhecimento da existência das licenças de pesca industrial não agremiada que a embarcação de pesca “...” , registada em seu nome na Capitania do Porto de Mar de Viana do Castelo, possui, sem interrupção, desde 1982.
Considerou a sentença, em suma, que não assiste à A., ora recorrente, o direito cujo reconhecimento peticiona, uma vez que, nos termos da legislação aplicável, as licenças de pesca devem ser requeridas anualmente, conferindo pois ao seu titular um direito precário, sujeito a reapreciação pela Administração, pelo que a aquisição da embarcação “...” não conferiu à A. o direito à emissão da licença inicial que a embarcação detinha antes da referida aquisição, facto de que, aliás, fora advertida pelo Réu aquando da autorização da aquisição.
E, por outro lado, que não ficou provado que a A. tenha requerido o livrete de actividade da embarcação (ponto 16 da matéria de facto).
Decisão que, naturalmente, a recorrente pretende ver revogada, sustentando que, ao contrário do que foi decidido, lhe deve ser reconhecido o peticionado direito (à emissão da referida licença de pesca e do livrete de actividade), uma vez que, com a aquisição da referida embarcação em processo de liquidação de património, a recorrente sucedeu à sociedade liquidada em todos os seus direitos e obrigações relacionados com aquela embarcação, e, por outro lado, que, tendo o registo da embarcação sido cancelado por virtude da sua venda à “... ”, e tendo esta venda sido posteriormente declarada nula por sentença judicial, o cancelamento do registo ficou sem efeito.
Vejamos.
Como resulta da factualidade apurada, a embarcação de pesca “... ” (...) foi registada na Capitania do Porto de Mar de Viana do Castelo, em nome da Cooperativa ... , a 17/06/1982.
Por despacho do Comandante da Capitania, de 07/01/1983, foi cancelado aquele registo, por a embarcação ter sido vendida à sociedade luso-marroquina ... , ao serviço da qual a embarcação passou a operar em Marrocos.
Entretanto, por decisão do TJ de Viana do Castelo, de Maio de 1997, foi declarada a nulidade daquela venda, por falta de escritura pública, em consequência do que a Capitania do Porto de Viana do Castelo, a 16.08.1999, anulou o cancelamento do registo da ..., mantendo a embarcação registada em nome da Cooperativa ... , com o mesmo número e designação.
Tendo, entretanto, a Cooperativa ... entrado em liquidação judicial, o liquidatário judicial, por duas vezes (Janeiro e Dezembro de 2000), informou o DGP de que já tinha procedido ao registo da ... em seu nome e solicitou-lhe a concessão de licenças e alvarás que a embarcação possuía à data da venda declarada nula, pedidos estes que foram indeferidos por despacho de 15/03/2001.
Em Maio de 2001, o DGP autorizou a A. , ora recorrente, a adquirir a ... no âmbito da liquidação do património da Cooperativa ... , mas alertou-a desde logo para a circunstância de não poder vir a obter uma licença de pesca inicial que lhe permita exercer a actividade da pesca, tendo essa aquisição sido formalizada por escritura pública de 02/07/2001.
Em 27 de Julho de 2001, a autora solicitou ao Secretário de Estado das Pescas a emissão, pela DGP, da licença de pesca em nome da ....
Como se disse já, a sentença impugnada considerou que não assiste à A., ora recorrente, o direito cujo reconhecimento peticiona.
Perante os factos que se deixaram descritos, e à luz do quadro legal e regulamentar aplicável, não vemos que outra pudesse ser a decisão.
A acção para reconhecimento de direito ou interesse legítimo, prevista no artº 69º da LPTA, é um meio processual que pode ser utilizado “por quem invoque a titularidade do direito ou interesse a reconhecer”.
Obviamente que a sua procedência pressupõe a existência, na esfera jurídica do peticionante, do direito ou interesse cujo reconhecimento reivindica, soçobrando a acção se o tribunal concluir que ao A. não assiste tal direito ou interesse legítimo.
O DL nº 278/87, de 7 de Julho, com a redacção introduzida pelo DL nº 383/98, de 27 de Novembro, veio consagrar uma nova regulação do exercício da pesca marítima, ditada por necessidades de preservação dos recursos marinhos, sistematizando os princípios enquadradores do exercício da actividade piscatória.
Nessa perspectiva, veio estabelecer a “sujeição das actividades das embarcações de pesca e da utilização de artes e outros instrumentos de pesca a regimes de autorização e licenciamento”, da competência do membro do Governo que tutela o sector das pescas (artº 4º, nº 2, al. b), e artº 8º).
É, aliás, a concretização do comando constitucional ínsito no artº 66º, nº 2, al. d) da CRP, que diz incumbir ao Estado “promover o aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica, com respeito pelo princípio da solidariedade entre gerações”.
O referido regime de autorização e licenciamento do exercício da pesca marítima veio a ser regulamentado pelo Decreto Regulamentar nº 43/87, de 17 de Julho, com as alterações introduzidas por diversos diplomas regulamentares, o último dos quais o Decreto Regulamentar nº 7/2000, de 30 de Maio (cfr. preâmbulo do diploma e parte final do artº 1º).
Este diploma regulamentar exige que as embarcações de pesca possuam um livrete de actividade, a emitir pela DGP, e que o exercício da pesca e a utilização de artes de pesca sejam objecto de licenciamento anual pela mesma entidade (arts. 74º, nºs 1 e 2, 75º, nº 1 e 80º).
Refere expressamente o artº 74º que “o exercício da pesca e a utilização de artes ou utensílios com ou sem o auxílio de embarcações … estão sujeitos a licenciamento a requerer anualmente” (nº 1), e que “as licenças de pesca têm uma vigência de 12 meses” (nº 2), prevendo-se ainda, em determinadas situações, a concessão de “licenças excepcionais, a todo o tempo revogáveis” (nº 3).
É certo que, no caso de ter havido autorização prévia para aquisição de uma embarcação de pesca, nos termos do artº 70º, nº 1 (como aqui sucedeu), isso envolve automaticamente a “autorização para o exercício da pesca pelas embarcações ali mencionadas” (art. 73, nº 1).
Mas disso não decorre necessariamente, e sem mais, a titularidade da licença, como sustenta a recorrente, pois que se trata de realidades e conceitos legais distintos, como observa a entidade recorrida: a licença para o exercício da actividade da pesca não se confunde com a autorização para o exercício dessa actividade pelas embarcações.
Enquanto a autorização é concedida pela Administração aquando da aquisição da embarcação, permitindo que esta possa, em abstracto, exercer a actividade da pesca, a licença é o título que, em concreto, e em cada ano, habilita a mesma embarcação a exercer essa mesma actividade, nela se fixando as artes que nesse ano podem ser usadas.
A não ser assim, a licença seria uma formalidade irrelevante, sendo certo que, bem pelo contrário, ela é o instrumento detido pela Administração para efectivar o controlo e regulação atrás referidos, com vista à manutenção dos níveis de sustentabilidade das espécies e recursos marinhos, progressivamente mais escassos, como se sublinha nos diplomas legais e regulamentares citados.
Aliás, esta perspectiva sai claramente reforçada pelo confronto do citado artº 73º, nº 1 com o disposto no artº 76º do mesmo diploma regulamentar, no qual se dispõe que a renovação das licenças de pesca será sempre concedida aos que a requererem nos termos previstos no art. anterior, “salvo recusa expressa da DGPA …com fundamento nos critérios e condições fixados no despacho previsto no artigo 74º-A”, justamente o preceito em que se fixam os critérios e condições aos quais a Administração deve atender para o referido licenciamento anual do exercício da pesca.
De tudo isto decorre, como bem se decidiu, que o licenciamento do exercício da pesca marítima, da actividade das embarcações e da utilização das artes de pesca, não confere ao seu titular um direito intemporal e permanente, mas antes um direito precário, sujeito a reapreciação anual pela Administração à luz de critérios e condições legalmente definidos, vigentes à data da sua apreciação.
Ora, na situação sub judice, entre a venda da embarcação pela primitiva proprietária à ... (em data anterior a 07/01/1983) e a anulação do cancelamento do registo da embarcação (em 16.08.89), mediaram mais de 6 anos, durante os quais a embarcação passou a operar em Marrocos, tendo posteriormente (em Janeiro e Dezembro de 2000) o liquidatário judicial da Sociedade ... solicitado a concessão de licenças e alvarás que a embarcação possuía à data da venda declarada nula, pedidos estes que foram indeferidos por despacho do DGP de 15/03/2001.
Tanto basta para concluir que a A., ora recorrente, que entretanto veio a adquirir a embarcação ... em Julho de 2001, após autorização prévia (para a aquisição, sublinhe-se) concedida pelo DGP, não detém, só por virtude dessa aquisição, os invocados direitos à emissão do livrete de actividade e da licença de pesca cujo reconhecimento peticiona na presente acção.
Atento o regime de licenciamento atrás descrito, nada em contrário pode resultar da anulação do cancelamento do registo da embarcação, em consequência da declaração judicial da nulidade da venda.
A consequência natural e imperiosa dessa declaração de nulidade, nos termos do invocado artº 289º do C.Civil, foi o cancelamento da anulação do registo da embarcação pelo DGP.
Nunca poderia ser o da concessão de um licenciamento que é precário e sujeito a reapreciação anual pela Administração, à luz de critérios actuais legalmente definidos, e com base nos quais, naturalmente, o pedido do liquidatário judicial da ... fora já anteriormente indeferido.
A sentença sob recurso não violou pois os arts. 220º, 280º, 289º e 294º do C.Civil.
Como não violou os invocados dispositivos constitucionais.
A recorrente visiona, sem qualquer apoio legal conferido pelo diploma regulamentar analisado, um “direito potestativo de anualmente proceder à renovação das licenças de pesca”, quando o que lhe assiste é um direito de anualmente requerer a concessão de tais licenças, nos termos do já citado artº 74º, nº 1 do Decreto Regulamentar nº 43/87.
Não tem pois qualquer consistência a alegação de que foram violados os arts. 202º, nº 2 e 204º da CRP, uma vez que os tribunais só podem, naturalmente, “assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos” quando esses direitos ou interesses existam e se configurem radicados na esfera jurídica do peticionante, o que, in casu, como vimos, não sucede.
Há, assim, que concluir, que a A., ora recorrente, não é titular do direito que pretende ver reconhecido, pelo que a sentença recorrida, ao decidir nessa conformidade, fez correcta aplicação das disposições legais atrás citadas, não merecendo a censura que a recorrente lhe dirige.
( Decisão )
Com os fundamentos expostos, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça e a procuradoria, respectivamente, em 400 Euros e 200 Euros.
Lisboa, 4 de Outubro de 2006. – Pais Borges (relator) – Adérito Santos – Freitas Carvalho.