Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0510/17.0BEALM
Data do Acordão:07/09/2020
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CA
Relator:CLÁUDIO RAMOS MONTEIRO
Descritores:UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
NULIDADE
INTEMPESTIVIDADE
CADUCIDADE DO DIREITO DE ACÇÃO
ORDEM
CESSAÇÃO
UTILIDADE
IMÓVEL
LIBERDADE RELIGIOSA
Sumário:I – Não envolve o conhecimento do mérito a afirmação de que, uma ordem de cessação da utilização de um imóvel, com fundamento na falta de licença ou autorização de utilização para o fim ao qual está afeto, não é, em abstrato, suscetível de ofender o conteúdo essencial da liberdade religiosa.
II – No julgamento da exceção de intempestividade, o Tribunal pode formular um juízo hipotético, sob forma condicional, segundo o qual, ainda que aquele título existisse, e que aquela ordem fosse ilegal, tal ilegalidade não configuraria uma ofensa ao conteúdo essencial do direito fundamental em questão.
Nº Convencional:JSTA000P26219
Nº do Documento:SAP202007090510/17
Data de Entrada:11/06/2019
Recorrente:A............
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE ALCOCHETE
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NO PLENO DA SECÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO


I. Relatório

1. A…………… – ……………….. - identificada nos autos – recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo, para uniformização de jurisprudência, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 152.º do CPTA, do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), de 8 de novembro de 2018, que confirmou a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Almada, de 20 de abril de 2018, que absolveu o MUNICÍPIO DE ALCOCHETE da instância na ação que contra ele propôs a Recorrente, tendo em vista a anulação do despacho do Vereador …………, de 23 de dezembro de 2016, que ordenou a cessação da utilização como local de culto do prédio sito na Rua ……….., n.º …….., em Alcochete.

Nas suas alegações formulou as seguintes conclusões:
« – Recorre-se do Acórdão proferido pelo TCAS em 08.11.2018 que, confirmando a decisão proferida no saneador-sentença pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada julgou procedente a exceção de caducidade do direito de ação com consequente absolvição da Entidade Demandada da instância;
As instâncias decidiram o mérito da ação – saber se ocorreu ou não violação do conteúdo essencial do direito fundamental de liberdade de religião e de culto – antes de apreciarem a exceção. Melhor ainda, decidiram a exceção em razão do juízo formulado a respeito do mérito da ação;
O conhecimento da exceção não pode implicar o conhecimento do mérito da ação. Ao decidir desta forma, “confundiu” o Tribunal a quo o plano da apreciação da suscitada exceção de caducidade do direito de ação com a apreciação do próprio mérito da causa.
– A questão fundamental de direito que se traz ao julgamento do STA é esta: saber se uma vez invocada na p.i. a nulidade do ato, tal impede que a ação seja julgada intempestiva por caducidade do direito de ação;
– Estão plenamente reunidos os pressupostos de admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência.
– O Acórdão recorrido está em notória contradição com um conjunto de arrestos do mesmo Tribunal Central Administrativo transitados em julgado (artigo 152.º, n.º 1, a), do CPTA);
Desde logo,
– Entra em contradição com o Acórdão do TCAS de 18.10.2007 (Proc. 02399/07, Fonseca da Paz), aqui designado Acórdão fundamento, e, bem assim, com os Acórdãos proferidos pelo TCAS, em 29.04.2010 (Proc. 05972/10, Paulo Carvalho) e pelo TCAN em 05.04.2013 (Proc. 00503/04.8BEVIS, Carlos Luís Medeiros de Carvalho);
– Em todos aqueles arestos fez-se constar, de forma inequívoca, que “invocada na p.i. a nulidade do acto (...) tal impede que a ação seja julgada intempestiva por caducidade do direito de acção” (cf. Ac. Do TCAS de 20.04.2010 – Proc. 05972/10, Paulo Carvalho);
9.º De um modo mais desenvolvido, e conforme resulta do Acórdão fundamento: “(...) tendo a recorrente imputada esta nulidade ao acto impugnado, não pode proceder a excepção da caducidade do direito de acção com o fundamento que esta estava sujeita ao prazo de impugnação de actos anuláveis.
A decisão recorrida, para chegar a esta conclusão, considerou que o conteúdo do acto era claro, não se prestando a mais do que uma interpretação, o que se traduziu no conhecimento do vício em causa. Quer dizer: conheceu-se do vício gerador de nulidade ou seja, do mérito da acção, e concluiu-se, em face da sua improcedência, pela verificação da excepção de caducidade.
Ora, ao conhecimento da aludida excepção não pode implicar um conhecimento do mérito da acção (...).
Portanto, considerando que foi arguido um vício cuja procedência era geradora da nulidade do acto impugnado, não poderia proceder a exceção da caducidade do direito de acção.
Assim;
10ª – E como ficou patente, a contradição resultada da diferente resposta dada à questão fundamental de direito aqui trazida;
11ª – As decisões contraditórias foram inquestionavelmente proferidas pelo mesmo Tribunal (Tribunal Centra Administrativo), no domínio da mesma legislação (regime de impugnação dos atos administrativos na vigência do CPTA, em linha de concordância com o regime substantivo do CPA, que nesta matéria não sofreu alteração) e, como já se deixou dito, sobre a mesma questão fundamental de direito;
12ª – Não tem a Recorrente conhecimento da jurisprudência mais recentemente consolidada do STA em sentido favorável ao Acórdão recorrido (artigo 152.º, n.º 3, do CPTA). Nunca tal jurisprudência, a existir, foi invocada nos presentes autos;
13ª – A aferição do tribunal, na fase de saneamento, deve cingir-se à verificação da cominação do vício invocado.
Dito de outra maneira;
14ª – E tal como foi feito em todos e cada um dos acórdãos aqui invocados, trata-se de saber se ao vício invocado faz ou não a lei corresponder o regime da nulidade. Nos casos em que assim seja, não pode a exceção ser julgada procedente, relegando-se a apreciação do vício para final. É que persiste uma clara e marcada distinção entre o conhecimento das exceções dilatórias e do mérito da causa, continuando a estar vedada – como a jurisprudência ora invocada bem faz notar – a “mistura” entre umas e outras.
15ª – A intervenção do Ministério Público no caso dos autos reforça, como se torna evidente, o erro de julgamento do Acórdão recorrido;
16ª – Se não é possível, no entendimento que se tem por mais correto, antecipar generalizadamente o julgamento do mérito da ação a propósito da decisão da exceção, menos ainda o deverá ser nas situações em que a procedência do vício invocado na p.i. se torna mais patente, em razão da pronúncia do Ministério Público sobre o mérito da ação, como sucede no caso dos autos.»

2.Não foram apresentadas contra-alegações.

3. O Ministério Público não se pronunciou – artigo 146.º/1 do CPTA.

4. Colhidos os vistos legais, sendo dispensados os vistos dos Senhores Juízes Conselheiros que, entretanto, tomaram posse neste Tribunal, cumpre apreciar e decidir.


II. Matéria de facto

5. Dão-se por inteiramente reproduzidos os factos dados como provados no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, em ambos os casos por remissão para as correspondentes sentenças proferidas em primeira instância – artigo 663.º/6 do CPC, aplicável ex-vi do disposto nos artigos 1.º e 140.º/ 3 do CPTA.


6. Sem prejuízo da fixação da matéria de facto, nos termos legais, considerando que a questão fundamental de direito que se discute no presente recurso é de natureza estritamente processual, relevam ainda para a presente decisão os seguintes elementos que se extraem da tramitação dos respetivos autos.
- Nos presentes autos, a A. alegou a nulidade do ato impugnado por «violação do núcleo essencial de um direito constitucionalmente protegido, a liberdade religiosa (art. 41.º)» - cfr. artigo 89.º da P.I..
A ação foi julgada por meio de um saneador-sentença, em que foi julgada procedente a exceção perentória da caducidade do direito de ação, absolvendo-se a R. da instância. Para o efeito, o juiz a quo considerou, quanto à aludida exceção da caducidade, que a ação foi intentada para além do prazo de 3 meses previsto na alínea b) do nº. 2 do artigo 58º. do CPTA, e que o vício de violação de lei invocado não é suscetível de ofender o conteúdo essencial daquele direito fundamental.
- Nos autos do Acórdão fundamento, o A. alegou a nulidade do ato impugnado, imputando-lhe vícios de forma, por o mesmo não ter sido precedido da instauração de um procedimento administrativo e ter sido preterida a audiência prévia do interessado; e a sua inexistência ou nulidade por impossibilidade e ininteligibilidade do seu objeto.
A ação também foi julgada por meio de um saneador-sentença, em que foram julgadas procedentes as exceções perentórias da caducidade do direito de ação e da prescrição do direito de indemnização, absolvendo o R. da instância. Para o efeito, o juiz a quo considerou, quanto à aludida exceção da caducidade, que a ação foi intentada muito depois de decorrido o prazo de 3 meses previsto na alínea b) do nº. 2 do artigo 58º. do CPTA e que os vícios invocados de preterição do procedimento administrativo e falta de audiência prévia são geradores de mera anulabilidade do ato, e não da sua nulidade, enquanto que a alegada impossibilidade ou ininteligibilidade do objeto do ato impugnado não se verificava.



III. Matéria de Direito


7. A admissibilidade dos recursos para uniformização de jurisprudência previstos no artigo 152.º do CPTA depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos – cfr. n.ºs 1 e 3:
a) Existirem decisões contraditórias entre acórdãos do STA, ou entre um acórdão deste e outro do TCA, ou entre acórdãos do TCA;
b) Que a contraditoriedade entre as decisões se verifique sobre a mesma questão fundamental de direito;
c) Que as decisões em causa - acórdão recorrido e acórdão fundamento - tenham transitado em julgado, e o respetivo recurso tenha sido interposto no prazo de trinta dias, após o trânsito do acórdão recorrido;
d) Que a orientação perfilhada no acórdão recorrido não esteja de acordo com a jurisprudência mais recentemente consolidada no STA.

8. A questão fundamental de direito sobre a qual a Recorrente alega existir uma oposição de julgados entre dois acórdãos do TCAS é a de «saber se uma vez invocada na p.i. a nulidade do ato, tal impede que a ação seja julgada intempestiva por caducidade do direito de ação» - cfr. conclusão 4º.
A questão assim colocada não é rigorosa, pois como resulta das suas alegações, e demais conclusões, o que a Recorrente verdadeiramente questiona – e alega estar em contradição com o decidido no acórdão fundamento - é que o tribunal a quo possa absolver o R. da instância com fundamento na improcedência dos vícios geradores de nulidade alegados, antecipando assim, a propósito do julgamento das exceções, juízos que estão reservados ao conhecimento do mérito da causa. A Recorrente reconhece, no entanto, que, naquele âmbito, o Tribunal pode e deve cuidar de «saber se ao vício invocado faz ou não a lei corresponder o regime da nulidade» – cfr. conclusões 13ª e 14ª –, pelo que a invocação da nulidade, por si só, não impedirá que a ação seja julgada intempestiva.
A questão fundamental de direito é, pois, a de saber se, uma vez invocados vícios que a lei comine com a nulidade, tal impede que a ação seja julgada intempestiva por caducidade do direito de ação.

9. Assim colocada a questão, verifica-se que não há uma identidade substancial entre as decisões proferidas nos dois acórdãos em confronto relativamente à caducidade do direito de ação.
Desde logo, porque, no primeiro segmento decisório do saneador-sentença revogado pelo acórdão fundamento, o Tribunal limitou-se a verificar que aos vícios de forma invocados – de preterição de um procedimento administrativo e de falta de audiência prévia do interessado –, a lei não faz corresponder o desvalor da nulidade, nada tendo decidido sobre a sua procedência ou improcedência. O acórdão fundamento, aliás, não censurou a decisão recorrida a esse respeito.
O fundamento do presente recurso respeita, pois, ao segundo segmento decisório do referido saneador-sentença, relativo à alegação de impossibilidade (física ou jurídica) e ininteligibilidade do objeto, que o acórdão fundamento considerou corresponder a um caso de expressa cominação legal da nulidade – artigo 133.º/2/c) do CPA91 –, e decidiu que, «tendo a recorrente imputado esta nulidade ao acto impugnado, não pode proceder a excepção da caducidade do direito de acção com o fundamento que esta estava sujeita ao prazo de impugnação de actos anuláveis».
Ora, quanto à ilegalidade invocada pela A. e ora recorrente nos presentes autos, o acórdão recorrido concluiu que «a arguição da violação do mencionado vício não se encontra abrangida pelo regime previsto para a arguição dos actos administrativos nulos (...) mas sim pelo regime da arguição da anulabilidade dos actos administrativos», pelo que, em rigor, o Tribunal a quo limitou-se, também, a verificar que ao vício invocado a lei não faz corresponder o desvalor da nulidade, nada tendo decidido sobre a sua procedência ou improcedência. A situação não é, por isso, equivalente à do acórdão fundamento, porque o acórdão recorrido não reconheceu, como se fez naquele, que tenha sido realmente imputada uma nulidade ao ato impugnado.
É certo que, para chegar a essa conclusão, o acórdão recorrido fez uma extensa análise da garantia constitucional da liberdade religiosa, na sua dimensão de liberdade de culto, mas fê-lo apenas para evidenciar que a mesma «não pode servir de suporte para isenção de uma associação religiosa das obrigações ou deveres que são impostos à generalidade dos cidadãos, designadamente da observância das regras do ordenamento urbanístico e das que visam satisfazer s ambientais», e que «a ordem de cessação de utilização, alicerçada no facto de o seu uso não estar em conformidade com o fim previsto no respetivo alvará de licença de utilização (...) não ofende o núcleo essencial da liberdade de culto».
Ou seja, o que o acórdão recorrido afirmou foi que, em abstrato, uma ordem de cessação da utilização de um imóvel com fundamento na falta de licença ou autorização de utilização para o fim ao qual está afeto não é suscetível de ofender o conteúdo essencial da liberdade religiosa, mesmo que aquele fundamento não se verifique. Não afirmou que, no caso concreto dos autos, a A. e ora Recorrente não dispunha de um título urbanístico válido para a utilização do imóvel, limitando-se a formular um juízo hipotético, sob forma condicional, segundo o qual, ainda que esse título existisse, e que aquela ordem fosse ilegal, tal ilegalidade não configuraria uma ofensa ao conteúdo essencial do direito fundamental em questão.
Neste sentido já se pronunciou este Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão do Pleno da sua Secção de Contencioso Administrativo, de 13 de outubro de 2004, proferido no Processo n.º 0424/02, onde se concluiu como se sumariou:
«I – O conhecimento da extemporaneidade do recurso contencioso tem precedência sobre a apreciação “de meritis”;
II – Se o recorrente assevera que os vícios por si arguidos acarretam a nulidade do acto, deve a extemporaneidade do recurso averiguar-se através da formulação de um juízo hipotético, sob forma condicional, em que se determine qual é, na eventualidade de os vícios existirem, a forma de invalidade que lhes corresponde;
(...)
VI – Assente que a hipotética existência dos vícios invocados pelas recorrentes, encarados segundo as únicas perspectivas em que eles são minimamente possíveis, só poderá acarretar a anulação do acto contenciosamente recorrido, e assente que o recurso contencioso foi interposto mais de dois anos depois de as recorrentes terem sido notificadas do acto, há que rejeitar o recurso contencioso, por extemporaneidade na sua interposição».
No mesmo sentido, aliás, também se pronunciou o Acórdão de 14 de dezembro de 2005, proferido no Processo n.º 0807/05, segundo o qual, «assente que a hipotética existência dos vícios invocados, encarados segundo a única perspectiva possível e adequada (e não na perspectiva erradamente delineada pelo recorrente, e que o tribunal não tem que atender), só poderão acarretar a anulação do acto contenciosamente recorrido, é inequívoco, face à inobservância do prazo legal de interposição do recurso, que este é intempestivo e deve ser rejeitado».

10. Em face do exposto, tem de se concluir que as decisões proferidas pelos acórdãos recorridos e fundamento não se contradizem sobre a mesma questão fundamental de direito, não se verificando, assim, um dos requisitos de que depende admissibilidade dos recursos para uniformização de jurisprudência, tanto bastando, nos termos do número 1 do artigo 152.º do CPTA, para que o presente recurso não possa ser conhecido.


IV. Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, reunidos em Pleno, em não admitir o presente recurso para uniformização de jurisprudência.

Custas pelo recorrente. Notifique-se

O relator consigna e atesta que, nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo artigo 3.º do DL n.º 20/2020, de 1 de maio, tem voto de conformidade com o presente Acórdão de todos os restantes juízes que integram a presente formação julgamento, nomeadamente os Conselheiros Teresa de Sousa, Madeira dos Santos, Carlos Carvalho, José Veloso, Fonseca da Paz, Maria Benedita Urbano, Ana Paula Portela, Maria do Céu Neves, Suzana Tavares da Silva e Adriano Cunha.


Lisboa, 9 de julho de 2020. – Cláudio Ramos Monteiro (relator) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa – Jorge Artur Madeira dos Santos – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – José Augusto Araújo Veloso – José Francisco Fonseca da Paz – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano – Ana Paula Soares Leite Martins Portela – Maria do Céu Dias Rosa das Neves – Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva – Adriano Fraxenet de Chuquere Gonçalves da Cunha.