Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01165/23.9BEPRT
Data do Acordão:02/08/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CLÁUDIO RAMOS MONTEIRO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P31916
Nº do Documento:SA12024020801165/23
Recorrente:A... E OUTROS
Recorrido 1:MUNICÍPIO DA PÓVOA DE VARZIM
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
I. Relatório

1.A... e B..., UNIPESSOAL, LDA - identificados nos autos - recorreram para este Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do artigo 150º do CPTA, do Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte (TCAN), de 19 de setembro de 2023, que negou provimento ao recurso haviam interposto da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) do Porto, de 13 de julho de 2023, que julgou improcedente o processo cautelar que propuseram contra o MUNICÍPIO DA PÓVOA DO VARZIM, em que pediam a suspensão da eficácia da deliberação da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, de 9 de maio de 2023, que procedeu à resolução sancionatória do contrato de comodato celebrado com o primeiro Requerente em 19 de maio de 2005, e determinou a posse administrativa do Campo de Tiro de ...

....

2. Nas suas alegações, os Recorrentes formularam as seguintes conclusões:

«1. O presente recurso de revista foi interposto contra o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 13/09/2023, que negou provimento ao recurso interposto contra a sentença que indeferira o pedido de suspensão da eficácia do Município da Póvoa de Varzim por entender não ter sido comprovado o fumus boni iuris.

2. Assustadoramente, no século XXI, decorridos mais de quarenta anos sobre a consagração de um direito à tutela judicial efetiva e mais de 15 anos após a consagração de um princípio da igualdade das partes, o Tribunal Central Administrativo Norte, Tribunal de segunda instância, continua a afirmar que "Ainda que assim não fosse, a natureza perfuntória da análise judicial no âmbito de uma providência cautelar desdramatiza [?!] a supressão de algum tipo de prova", negando aos Requerentes o direito à defesa dos seus direitos, à tutela jurisdicional efetiva, tal como constitucionalmente consagrado.

3. Salvo o devido respeito, a decisão alcançada pelo Tribunal a quo é manifestamente errada, suscitando um conjunto de questões que, seja pela sua capacidade expansiva, seja pela sua relevância jurídica e social, seja pela necessidade de assegurar uma melhor aplicação do direito, justifica uma apreciação e uma pronúncia definitiva por parte do Venerando Supremo Tribunal Administrativo sobre as seguintes questões:

- É compatível com o direito fundamental à tutela judicial efectiva e com o princípio da igualdade das partes (cfr. art.º do CPTA) que o Tribunal não permita a uma das partes provar os factos que alegara para fundamentar o vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto que havia sido alegado para comprovar a aparência do bom direito e depois julgue não verificada a aparência desse direito com base nos factos constantes do auto de vistoria?

- Qual a força probatória do auto de vistoria, designadamente se é um documento que faz prova plena dos factos nele relatados ao ponto de tornar desnecessária a realização de qualquer outra prova legalmente admissível que tenha sido requerida e permita comprovar a aparência do bom direito?

- É compatível com o direito fundamental à tutela judicial efectiva e com o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artº 607º do CPC, que o Tribunal considere que os Recorrentes não lograram demonstrar a aparência do fumus bonis iuris quando esse mesmo Tribunal não especificou nem deu por provado qualquer facto que indiciasse a violação do contrato de comodato pelo 1.º Recorrente?

4. Julga-se que todas as questões sujeitas possuem uma inegável capacidade expansiva, justamente por em todos os processos cautelares de suspensão da eficácia de uma decisão se poder colocar a questão de se saber qual o valor processual do auto de vistoria, designadamente se prevalece quando o administrado imputa ao ato o vício de violação de lei por erro nos pressupostos ou se, pelo contrário, nessa hipótese o Tribunal está vinculado a proceder à prova requerida para só depois, em função da mesma, poder aferir se há ou não a probabilidade elevada daquele vício ser julgado procedente.

5. Para além disso, todas as questões suscitadas possuem uma importância jurídica e social de enorme relevo, desde logo por contenderem como direito constitucionalmente consagrado, que se assume como estruturantes de um Estado de Direito democrático - como seja o direito à tutela judicial efetiva, consagrado no 268º/4 da Constituição -, pelo que importa que este Venerando Supremo Tribunal forneça um quadro referencial sobre o valor do processo administrativo e sobre a obrigatoriedade, à face do direito à tutela judicial efetiva, de se apurarem em sede cautelar os factos que integram o vício de violação de lei por erro nos pressupostos que é alegado para fundamentar a aparência do bom direito.

6. Por fim, julga-se ainda que a presente revista é essencial para se proceder a uma melhor aplicação do direito, desde logo por a tese agora sufragada pelo Tribunal a quo estar em manifesta oposição com decisões quer com o decidido pelo STA como quer pelo próprio TCANORTE e pelo TCASUL (identificadas nas alegações deste recurso, para onde se remete), razão pela qual a intervenção deste venerando Supremo Tribunal é absolutamente necessária para que sejam respeitados os mais elementares princípios e direitos constitucionalmente consagrados, particularmente o princípio da igualdade das partes e o direito à tutela judicial efetiva.

Assim,

7. Estão preenchidos os pressupostos tipificados na lei para a admissão do recurso excecional de revista, uma vez que a decisão consubstanciada no Acórdão em recurso suscita um conjunto de questões que possuem uma capacidade expansiva e uma importância social e jurídica que justifica a sua apreciação e resolução por parte deste STA, incluindo para uma melhor aplicação do direito.

8. Para além de estarem preenchidos os pressupostos da admissibilidade do recurso de revista, deverá dizer-se que o aresto em recurso incorreu em erro de julgamento e flagrante violação de lei processual e substantiva, particularmente dos princípios constitucionais da igualdade das partes e tutela judicial efetiva.

9. Ao julgar não demonstrado o fumus boni iuris quando não permitiu aos Recorrentes efetuar a prova dos factos integrantes do vício de violação de lei por erro nos pressupostos em que alicerçavam a comprovação desse mesmo o fumus boni iuris, o aresto em recurso violou frontalmente o princípio da igualdade das partes e o direito à tutela judicial efetiva, dos quais resulta que o relatório de vistoria não passa de um mero documento probatório que não tem força probatória plena nem isenta o Tribunal de permitir ao administrado realizar a prova dos factos integrantes da sua pretensão, designadamente do vício de violação de lei por erro nos pressupostos em que alicerçava o seu fumus boni iuris.

10. Neste mesmo sentido, vem-se pronunciando abundantemente a doutrina e a jurisprudência deste venerando Supremo Tribunal e dos próprios Tribunais Centrais Administrativos, ao salientarem que os tribunais administrativos são verdadeiros tribunais e não podem deixar de proceder ao controlo da materialidade dos factos e à abertura de um período de prova sempre que seja invocado o vício de violação de lei por erro nos pressupostos como fundamento da pretensão anulatória ou para comprovação do fumus boni iuris (identificadas nas alegações deste recurso, para onde se remete).

11. Refira-se, aliás, que o nº 1 do artº 118º do CPTA não pode ser interpretado no sentido de conceder apenas uma mera faculdade ao juiz de, havendo factos controvertidos que seja necessário apurar para comprovar o preenchimento do fumus boni iuris ou do periculum in mora, decidir discricionariamente se tal prova deve ou não ser realizada, justamente por tal interpretação conduzir à inconstitucionalidade material de tal norma por violação do direito à tutela judicial efectiva e do princípio da igualdade das partes, levando a que não se denegue a possibilidade do requerente demonstrar um dos pressupostos de que depende o decretamento da tutela cautelar e impossibilitando-o de demonstrar em sede cautelar a violação de lei pela Administração.

De qualquer modo,

12. O Tribunal a quo errou o julgamento quando à não verificação do fumus bonis iuris no que respeita à resolução do contrato de comodato uma vez que dos factos provados não resulta matéria que possa integrar a previsão das alíneas a) e c) da cláusula terceira do contrato de comodato, inexistindo fundamento para a resolução desse contrato pelo Município.

13. A utilização das instalações do Clube de Tiro pelos militares da GNR no exercício das suas funções não traduz a violação do contrato de comodato a justificar a sua resolução. Não fazendo qualquer sentido argumentação do Tribunal recorrido, de que essa utilização não tem previsão legal, por um lado porque o objeto social não consta "o desenvolvimento de actividades tendentes à valorização profissional ou tirocínio da GNR", por outro, porque "o alvará da titularidade do Clube de Tiro foi emitido nos termos do Decreto-Regulamentar n.º 6/2010, que estabelece as regras previstas para o licenciamento de complexos, carreiras e campos de tiro para a prática de tiro com armas de fogo, com exceção daqueles pertencentes às Forças Armadas e às forças e aos serviços de segurança”.

14. No Campo do Tiro de ..., o que os militares da GNR fazem é o que um qualquer outro utilizador do Campo de Tiro faz, dá tiros, pratica o tiro, para aperfeiçoar a pontaria, como outros grupos profissionais o fazem (remete-se os exemplos para o corpo das alegações).

15. Por outro lado, a utilização do Campo de Tiro pelos militares da GNR não está vedada pelo Decreto Regulamentar n.º 6/2010, como foi entendido pelas instâncias, o qual define as regras aplicáveis ao licenciamento de complexos, carreiras e campos e as regras nele previstas «aplicam-se a todos os complexos, carreiras e campos de tiro, com excepção dos pertencentes às Forças Armadas e às forças e aos serviços de segurança» (artigo 1.º).

16. Ora a exceção prevista na lei, «com excepção dos pertencentes às Forças Armadas e às forças e aos serviços de segurança», apenas quer significar que os complexos, carreiras e campos de tiro pertencentes às Forças Armadas e às forças e aos serviços de segurança não estão sujeitas àquelas regras.

17. E não, como entenderam as instâncias, que as Forças Armadas e as forças e serviços de segurança não podem utilizar os complexos, carreiras e campos de tiro licenciados ao abrigo daquele diploma legal, interpretação que não tem qualquer apoio na letra da lei, nem no seu espírito, pelo que a sentença recorrida padece de erro de julgamento.

18. Errou o Tribunal recorrido o julgamento quando com base neste facto entendeu que estava justificada a resolução do contrato de comodato e por isso não estava preenchido o fumus boni iuris.

19. As instâncias, depois de transcreverem o Relatório da reconhecem que os Requerentes puseram em causa argumentação nele aduzida, para depois concluir que:

«... mas, para além de se limitarem a sublinhar que a presença da B... é pública e notória desde 2013 e defenderem a sua presença no Clube é benéfica para o mesmo, a verdade, é que, como refere a conclusão do relatório, poderá efetivamente ocorrer uma sobreposição de interesses. Com efeito, o facto de a B... desenvolver uma actividade comercial que está relacionada com o objeto, de o seu único sócio ser ... do Clube e da sua secretária corporativa ser também a secretária do Clube, poderão, efectiva e conjuntamente, gerar uma situação de pouca transparência e de eventual conflito de interesses. Para este efeito, relembre-se que do contrato de comodato celebrado entre o Clube de Tiro e o requerido consta que o complexo do Campo de Tiro de ... foi constituído “com o objetivo de dinamizar uma área com fortes tradições neste concelho, desde os anos 30 (...) o objetivo prosseguido com a construção deste equipamento, fortemente ligado com a atividade turística, integra-se na estratégia de transformar a Póvoa de Varzim numa cidade de cultura e lazer". Ora, apesar de os requerentes alegarem que a presença da B... tem tido um papel fundamental na promoção da cidade e, como tal, no cumprimento do contrato, a verdade é que em momento algum do contrato se estatui que a promoção pode ou deve ser feita por terceiras entidades alheias ao contrato».

20. O raciocínio das instâncias neste ponto está repleto de afirmações conclusivas, sem qualquer suporte na factualidade provada (indiciariamente).

21. Desde logo é conclusiva a afirmação segundo a qual a existência da B... "poderão" gerar uma situação de pouca transparência e eventual conflito de interesses.

22. Pergunta-se: pouca transparência relativamente a quê? E conflito de interesses de quem?

23. E pergunta-se, basta, para dar como não verificado o fumus boni iuris neste ponto a mera possibilidade ("poderão") de tal vir a acontecer (o Tribunal a quo não afirma, nem isso resulta da matéria de facto provada, indiciariamente, que alguma vez tenha acontecido — a falta de transparência e conflito de interesses - e quais as "nefastas" consequências).

24. E respondemos: entendemos que não.

25. Teria de resultar da matéria de facto provada que essa falta de transparência e esse conflito de interesses tem tradução na vida real e que não são apenas conjeturas, afirmações conclusivas, desagarradas da realidade, uma vez que tudo quanto consta do Relatório de Vistoria foi impugnado, com a apresentação de factos, que o Tribunal recorrido, sem fundamentar, refugiando-se na perfuntoriedade da prova, não entendeu relevantes, embora sem justificar.

26. Por último, diz o Tribunal recorrido que «a verdade é que em momento algum do contrato se estatui que a promoção pode ou deve ser feita por terceiras entidades alheias ao contrato», afirmação que embora seja verdadeira, dela não resulta que o contrato de comodato não estava a ser cumprido pelo primeiro Requerente.

27. Dir-se-á, desde logo, que se é verdade que no contrato não consta aquela estatuição, também é verdade que nele não existe qualquer cláusula que o proíba, isto é, não existe no contrato de comodato qualquer cláusula que proíba que o 1.º Requerente promova os objetivos definidos no contrato através de terceiros.

28. De qualquer modo, em lado algum do alegado pelos Requerentes/Recorrentes, nem da matéria de facto provada, resulta que o 2.º Requerente substitui o 1º Requerente nas obrigações que este assumiu no contrato que celebrou com o Município Requerido.

29. O que se descreve no Requerimento Inicial, é a mais-valia que resulta para a atividade associativa levada a cabo pelo 1.º Requerente/Recorrente, da atividade exercida no Campo de Tiro pelo 2.º Requerente/Recorrente, e que torna o Campo de Tiro mais atraente e o distingue dos demais, o que acaba por valorizar, ser uma mais valia também para o Município da Póvoa de Varzim.

30. Também aqui errou o Tribunal recorrido o julgamento quando com base neste facto entendeu que estava justificada a resolução do contrato de comodato e por isso não estava preenchido o fumus boni iuris.

31. Errou o julgamento o Tribunal a quo quando decidiu que relativamente ao direito à audiência prévia não havia fumus boni iuris, por estar em causa a resolução unilateral do contrato de comodato, esquecendo-se que também tinha sido pedida a suspensão de eficácia da decisão (segunda) de tomada de posse administrativa do Campo de Tiro.

32. E esquecendo-se também que o segundo Recorrente, que não é parte no contrato de comodato, tem as suas instalações no Campo de Tiro, o que acontece ao logo de anos com o consentimento do Município Recorrido, e reconhecimento, e não foi ouvido antes da decisão que o prejudica diretamente.

33. Assim tendo sido violado o direito de audição prévia previsto no artigo 121.º do CPA.

34. O Tribunal recorrido errou o julgamento quando negou qualquer direito procedimental ao segundo Recorrente, designadamente o de ser notificado das decisões suspendendas que o afetam diretamente.

35. Errou o Tribunal recorrido o julgamento ao considerar que o Município Recorrido não violou o princípio da boa fé ao ignorar em toda a situação a existência do segundo Recorrente, quando, está já provado que:

- O SEGUNDO REQUERENTE PELO MENOS DESDE ../../2013 ESTÁ INSTALADO NO CAMPO DE TIRO DE ... (FACTO PROVADO G).

- PELO MENOS DESDE ../../2013 QUE O REQUERIDO TEM CONHECIMENTO DE QUE O SEGUNDO REQUERENTE TEM INSTALAÇÕES NO CAMPO DE TIRO DE ... (FACTO PROVADO H).

- EM 09/05/2016, O REQUERIDO [MUNICÍPIO DA PÓVOA DE VARZIM] DELIBEROU PROCEDER A OBRAS DE REESTRUTURAÇÃO DO CAMPO DE TIRO, EM ESPECIAL DA AMPLIAÇÃO DO EDIFÍCIO E ESPAÇOS INTERIORES, DESTINANDO PARTE DESTES À OFICINA DE C..., LDA (FACTO PROVADO 1).

36. A deliberação de tomada de posse administrativa tem dois destinatários distintos, abrange não só o Campo de Tiro de ..., como as instalações do segundo Requerente, que naquele estão integradas.

37. Também neste ponto se mostra relevante o erro de julgamento quanto à matéria de facto.

38. Como pode o Município da Póvoa de Varzim, que antes consentiu e reconheceu a atividade do segundo Recorrente, determinar o encerramento das suas instalações sem antes o ouvir?

39. Manifestamente o encerramento das instalações do segundo Recorrente, sem mais, de imediato, quando antes consentiu a atividade, reconheceu o seu mérito, fez obras de acomodação, viola o princípio da boa-fé.

40. Errou o julgamento o Tribunal recorrido ao decidir também quanto a este aspeto não existe fumus boni iuris, que o segundo Recorrente não tem qualquer direito procedimental e sem que tenha produzido prova da qual resultaria a violação do princípio da boa-fé pelo Município Recorrido, a qual já se encontra, ainda assim, indiciada pelos factos acima referidos e que constam do probatório.

SUBSIDIARIAMENTE:

41. Os requerentes arguiram a nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto ao direito de audiência prévia relativamente a um dos atos impugnados - o que determinou a posse administrativa do Campo de Tiro - e o TCAN fala da omissão de pronúncia relativamente a factos (!), trecho do acórdão que os Recorrentes, com o devido respeito, têm mesmo dificuldade em entender a razão de ser da escrita. E daí o espanto dos Recorrentes quanto ao decidido neste ponto pelo TCAN.

42. Apesar da prolixidade, o TCAN não apreciou a nulidade da sentença da 1.ª instância apontada pelo Recorrente.

43. Os Requerentes arguiram a nulidade da sentença por omissão de pronúncia no que respeita à preterição do direito de audiência prévia antes da decisão da tomada de posse administrativa do Campo de Tiro.

44. A sentença recorrida apenas se pronunciou sobre o direito de audiência prévia relativamente à resolução do contrato de comodato.

45. Por seu turno, o acórdão recorrido não apreciou essa nulidade da sentença arguida pelos Recorrentes (apreciou uma outra que não foi alegada).

46. Há manifesta omissão de pronúncia do acórdão recorrido - artigos 615º, nº 1, alínea d), do CPC - aqui aplicável ex vi artigos 666º, do CPC, e 1º do CPTA.

47. No que respeita à nulidade da sentença por falta de fundamentação do julgamento da matéria de facto, carece o TCAN de razão quando decide que tal nulidade não se verifica, servindo-lhe de fundamentação o despacho da 1.ª instância que transcreve.

48. Entendeu a primeira instância, no despacho que o TCAN subscreveu, que não há falta de fundamentação dos factos não provados, porque não há factos não provados.

49. Verdade, na sentença não foram indicados/identificados factos não provados. Apenas ficou dito "Não se provaram indiciariamente quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa”.

50. A arguição dos Recorrentes no que respeita à falta de fundamentação dos factos não provados foi feita com base na jurisprudência das cautelas, não fosse entendido pelo TCAN que todos os factos alegados pelos Recorrentes estavam, A CONTRARIO, não provados, uma vez que não constavam dos factos provados e o Tribunal inicia a sua frase que acima transcrevemos com "Não se provaram…".

51. Esclarecidos pelo TCAN, VIA 1.ª INSTÂNCIA, que afinal a afirmação constante da sentença "Não se provaram indiciariamente quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa”, não significa que tivesse havido qualquer julgamento quanto aos factos alegados no requerimento inicial da providência cautelar,

52. Ficam os Recorrentes sem saber, porque é que esses factos praticamente todos os factos alegados no Requerimento Inicial (os controvertidos), são irrelevantes para aferir do fumus bonis iuris.

53. E QUANTO A ESTE ASPETO, DAS DUAS UMA, OU HÁ ERRO DE JULGAMENTO POR SE TER CONSIDERADO TAIS FACTOS IRRELEVANTES, COMO ACIMA VIMOS DEFENDENDO, OU HÁ FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DA IRRELEVÂNCIA DOS FACTOS, o que agora se alega à cautela.

54. O Tribunal de 1.ª instância indeferiu a produção de prova indicada/peticionada no Requerimento Inicial assim fundamentando: "Importa considerar que estamos no âmbito de um processo urgente, que se caracteriza por uma apreciação sumária do direito que os requerentes pretendem acautelar e em que a prova se apresenta como indiciária. Assim, e considerando a causa de pedir, a prova documental constante dos autos e a posição assumida pelas partes no processo, julgo desnecessária a produção de prova testemunhal e por declarações de parte, pelo que a indefiro".

55. Por seu turno o TCAN a respeito considerou que aquele escrito “… é reconhecidamente bastante - e, aliás, vendo prática jurisprudencial - para dar respaldo e pleno cumprimento à letra de mens legis traçadas no artigo 118.º n.º 5 do CPTA”.

56. Salvo o devido respeito, tal prática jurisprudencial só se pode aceitar quando os factos relevantes para a decisão da causa estejam já provados, por outros meios de prova, designadamente, por documentos ou confissão, tornando desnecessária a produção de diferente prova. Salvo o devido respeito, tal prática jurisprudencial não é aceitável quando há ainda factos controvertidos, como é o caso, relevantes para a decisão da causa.

57. De qualquer modo: a fundamentação da 1.ª instância não se reporta à irrelevância da factualidade, não é dito, por exemplo que ainda que a mesma se provasse não iria alterar a solução do caso.

58. E porque assim é, há falta de fundamentação do julgamento dos factos, mais concretamente, da irrelevância dos factos alegados pelos Recorrentes para prova do seu bom direito.

59. O TCAN errou o julgamento ao decidir que a sentença não padecia da nulidade apontada.

60. Ocorreu incorrecta interpretação e aplicação dos comandos legais acima citados, que aqui damos por integralmente reproduzidos».

3. O Recorrido MUNICÍPIO da PÓVOA DO VARZIM não contra-alegou.

4. O recurso de revista foi admitido por Acórdão da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal Administrativo, em formação de apreciação preliminar, de 14 de dezembro de 2023, considerando que «convém que o Supremo reanalise o caso para uma melhor apreciação e, eventualmente uma melhor decisão, num assunto que suscita interrogações jurídicas e que é facilmente repetível».

5. Notificado para o efeito, o Ministério Público deu parecer no sentido de «que deverá ser concedido parcial provimento ao recurso, revogando-se parcialmente o acórdão recorrido, com a consequente baixa dos autos à 1.ª instância, para prosseguimento, com vista à apreciação da verificação dos demais requisitos cumulativos do decretamento da pretendida suspensão de eficácia da deliberação em causa, na parte em que nela foi decidido tomar imediata posse administrativa do Campo de Tiro de ... (…)» - artigo 146.º/1 do CPTA.

6. O Recorrido MUNICÍPIO DA PÓVOA DO VARZIM respondeu ao parecer do Ministério
Público, pugnado pela total improcedência do recurso.

7. Sem vistos, dada a natureza urgente do processo – artigo 36.º/1/f e 2 do CPTA.

II. Matéria de facto

8. As instâncias deram como provados os seguintes factos:

«A. Em reunião ordinária da Câmara Municipal de Póvoa de Varzim de 09.05.2023 foi deliberado o seguinte:
“(...) resolver sancionatoriamente o Contrato de Comodato celebrado com o A... em 19 de maio de 2005, com os fundamentos elencados no mesmo relatório de vistoria e nos termos consignados nas als. a) e c) da Cláusula Terceira do Contrato de Comodato. (...) Tomar imediata posse administrativa do Campo de Tiro de ... (...)” - cfr. doc. 19 junto com o r.i..

B. O 1.º requerido foi notificado da deliberação referida por email, no dia 11.05.2023 cfr. doc. 20 junto com o
r.i..

C. O 1.º requerente é uma associação desportiva que tem por objecto a prática de tiro desportivo com armas de caça, tiro com arco tiro desportivo e tiro prático, gerir zonas de caça de interesse associativo e participar na gestão de zonas de caça de interesse nacional ou municipal, prosseguindo, neste domínio, as seguintes finalidades: desenvolver actividades recreativas e formativas dos caçadores, contribuindo para o fomento dos recursos cinegéticos e para a prática ordenada e melhoria de exercício da caça; fomentar e zelar pelo cumprimento das normas legais sobre a caça; promover ou apoiar cursos ou outras acções de formação tendentes à apresentação dos candidatos associados aos exames para a obtenção da carta de caçador; promover ou apoiar curso outras acções de formação ou reciclagem sobre gestão de zonas de caça e conservação da fauna e dos seus habitat; procurar harmonizar os interesses dos caçadores com os proprietários, agricultores, produtores florestais ou outros cidadãos interessados na conservação da fauna, preconizando as acções que para o efeito tenham por convenientes — cfr. doc. 2 junto com o r.i..

D. A 2.ª requerente é uma sociedade unipessoal por quotas que tem por objecto social o comércio, fabrico, importação, exportação, reparação de uma grande variedade de produtos, nomeadamente artigos de caça, artigos de desporto, de campismo, lazer, coronhas por medida e similares, actividade de processamento de materiais e operações de tecnologia laser, fabricação de outros componentes e acessórios, concepção e fabrico de estruturas metálicas, serviços de estampagem de metais, de peças de aço, de peças de aço inoxidável, de peças de ligas leves, serviço de brasagem de peças metálicas e/ou tratamento de superfícies em metal, ligas leve e aço, serviços de soldagem de precisão, serviços de gravação dos metais, gravação a laser dos metais, serviços de corte dos metais, a laser tridimensional, de alta precisão, serviço de perfuração dos metais e perfuração de precisão dos metais, exploração de estabelecimento de restauração e bebidas, nomeadamente bar, snack-bar, cafetaria, salão de chá, restaurante, pizzaria, churrascaria e gelataria - cfr. doc. 4 junto com o r.i..

E. Em 19.05.2005, o 1.º requerente e o requerido celebraram, por escritura pública, um contrato de comodato, através do qual este entregou àquele o Campo de Tiro de ..., pelo prazo de 25 anos, contados desde a data da assinatura da escritura e todos os objectos, máquinas, mobiliário e demais equipamento, como mencionado na cláusula primeira do contrato, para o prosseguimento dos fins de interesse público que lhe estão subjacentes - cfr. doc. 5 junto com o r.i..

F. Consta da cláusula terceira do supra referido contrato que "O presente contrato poderá ser resolvido, pelo Município da Póvoa de Varzim, a todo o tempo e sem dependência de aviso prévio, nos seguintes casos: a) quando ocorra incumprimento de obrigações constantes deste contrato, por parte do A... ou dos seus empregados; b) quando haja reclamações, queixas ou quaisquer actos ou factos que revelem deficiências reiteradas nos serviços prestados; c) se o Campo de Tiro de ..., for utilizado para fins diferentes dos que justificaram a sua construção." - cfr. doc. 5 junto com o r.i..

G. Pelo menos desde ../../2013 que a B... está instalada no Campo de Tiro de ... - cfr. doc. 8 junto com o r.i..

H. Pelo menos desde ../../2013 que o requerido tem conhecimento de que B... tem instalações no Campo de Tiro de ... - cfr. doc. 12 junto com o r.i..

I. Em 09.05.2016, o requerido deliberou proceder a obras de reestruturação do Campo de Tiro, em especial da ampliação do edifício e espaços interiores, destinando parte destes à Oficina de C..., Lda - cfr. doc. 29 junto com o r.i..

J. Desde ../../2018, o A... é titular de alvará para instalação e gestão de carreira de tiro exterior para tiro de precisão - cfr. docs. 30 e 31 juntos com o r.i..

K. Por requerimento datado de 12.02.2020, o 1.º requerente comunicou ao requerido a sua situação financeira em virtude da supressão da modalidade de tiro ao voo - cfr. doc. 28 junto com o r.i..

L. AA é sócio da B... e ... do Clube de Tiro - acordo.

M. Os militares da GNR utilizam as instalações do Clube de Tiro para treino no exercício das suas funções - acordo.

N. A secretaria corrente do Clube de Tiro é assegurada pela B... - acordo.

O. Em 09.01.2023, tendo por base uma alegada denúncia por parte da Sociedade de D..., o requerido, por despacho da presidência n.º 5/GR/2023 determinou uma vistoria ao Campo de Tiro de ... - acordo.

P. Foi realizada uma visita ao local em 02.02.2023 - acordo.

Q. Na sequência da visita que antecede foi apresentado um relatório de vistoria, onde se lê, além do mais, o seguinte:

"(...) "Incompatibilidade do objeto do protocolo com a realidade encontrada (...) toda a publicidade existente a competições data 2018; (...) Pastas e documentos existentes na secretaria — com características de abandono - já se encontram obsoletas, não existindo qualquer registo do ano de 2022. Após solicitações do número de sócios e a composição dos órgãos sociais do Clube, a secretária da Assembleia Geral utilizou o material informático da empresa C... (...) Por outro lado, é visível cisão do edifício em duas vertentes: Clube de Tiro, onde se vislumbra uma verdadeira falta de manutenção do espaço - nenhuma casa de banho, por exemplo, está em perfeito estado -, secretaria com clara falta de utilização, arrecadações sem organização; - C…, dotada de todos os componentes essenciais, espécie de esplanada à porta (entrada inferior), ampla receção (entrada superior), sala de espera, mini-bar, entre outros. Destarte, vislumbra-se a secundarização do objetivo inerente ao Clube, em detrimento do desenvolvimento da C…, no tocante à utilização do edifício - cedido pelo Município, de forma gratuita, ao clube. (...) existe uma sala de tiro de precisão instalada no antigo restaurante. Pela disposição da mesma, não parece que a mesma reúna todos os requisitos de segurança necessários para a sua utilização. (...) Análise patrimonial Estado geral do património Visitadas as instalações, verificou-se o seguinte: Aparência geral dos compartimentos que compõem o edifício principal demostra estar sem manutenção e bens em geral sem utilização; (...) Compartimento destinado à sala do Restaurante está totalmente inativo, e as mesas e cadeiras existentes estão sem manutenção / pouco cuidadas. A cozinha encontra-se aparentemente sem utilização, não obstante existirem alguns bens alimentares. Pelos bens utilizados, poder-se-á afirmar que será utilizada como refeitório, provavelmente dos funcionários de C... (...) Existência de uma empresa denominada "C…" a laborar dentro das instalações do edifício do campo de tiro. Observação de diversa maquinaria (CNC, tornos mecânicos, etc), e cerca de 11 pessoas a desenvolver tarefas. (...) O corredor onde estavam expostos os troféus do Clube transformado em repositório / expositor de material (madeira) para confeção de coronhas para armas. A empresa não efetua nenhum pagamento pela utilização das instalações, mas assegura a manutenção dos custos associados às instalações; (...) Na receção/ secretaria do campo de tiro, não se vislumbram indícios de atividade administrativa (sem computador, sem telefone, sem multibanco, etc). Num dos compartimentos do edifício, encontram-se bens "amontoados" sem utilização ou colocados em caixas (medalhas e outros troféus); Existência de depósitos de bens inutilizados, fora do edifício, alguns não identificáveis (partes de aparelhos eletrónicos) Fim / objetivo da utilização De uma forma geral, não se encontram indícios de uma atividade regular no funcionamento do Clube. Os compartimentos e bens em geral apresentam um estado de "abandono". (...) o clube de tiro perdeu cerca de 200 sócios, alegadamente devido ao aumento de quotas. Atualmente conta com 9496 sócios. Edifício principal (...) constata-se que ocorreram alterações no edifício, nomeadamente na construção e eliminação de várias paredes, tanto no primeiro como no segundo piso. (...) no geral o edifício principal apresenta-se num estado razoável de conservação. Nas áreas ocupadas pela empresa C…, verifica-se um maior cuidado no estado de conservação e apresentação, nomeadamente onde supostamente seria a zona social do Clube que se confunde com a receção da empresa. (...) O campo n.º 1 e 6 apresentam-se desativados. Os campos n.ºs 2, 3, 4, e 5 estão ativos, sendo que se verifica a falta de equipamentos instalados tanto de tiro aos pratos como de tiro às hélices. (...) vislumbra-se a falta de vegetação anteriormente existente (...) verificou-se ainda que nos espaços exteriores, arrecadações, zonas técnicas e pombais se encontram, na sua maioria, ocupados pela empresa C… (...) os restantes espaços estão ocupados com equipamentos e mobiliário do campo de tiro, onde se verifica falta de zelo (...) Conclusões Com a vistoria ao local e o trabalho desenvolvido, preliminarmente e posteriormente, é facto que o atual Campo de Tiro não é utilizado de forma exclusiva e permanente pelo A..., como ficou estipulado e fundamentou a celebração do contrato de comodato do equipamento por parte do Município. Tendo em consideração o objetivo do Clube, o número de sócios é escasso. De um universo de 200 associados e praticantes federados, hoje contamos com cerca de 94 a 96 atletas - sem conhecimento se existe situação contributiva regularizada - apontando como motivo a alteração de valor de quotização anual - de 90,00 € para 240,00 €. Não se realiza, no Campo de Tiro, desde 2018, qualquer competição desportiva. Por outro lado, a última convocatória para a Assembleia Geral Ordinária foi marcada para o dia 21 de dezembro de 2021. Relativamente ao edifícios e zona evolvente, é notória a monopolização por parte da empresa C... Todas as áreas de arrecadação em zonas exteriores ao edifício encontram-se apetrechadas de materiais de apoio à construção de coronhas, bem como da matéria-prima utilizada, madeira. No interior do edifício vislumbra-se duas realidades, a zona afeta ao Clube completamente abandonada e sem manutenção, e a zona que alberga a empresa, completamente ornamentada para um atendimento de excelência aos seus clientes. Nesta medida, ocorre uma clara sobreposição de interesses no desenvolvimento da atividade do Clube e a permanência da empresa no Campo de Tiro. Ora, o ... do Clube, AA é sócio unitário da C... e a secretária da Assembleia Geral, BB, é secretária da C…. Destarte, poderá não existir transparência e equidade nas deliberações do Clube e os interesses prosseguidos pela C... Por outro lado, é um facto que os fins de natureza desportiva, vocacionada para a prática do tiro, que fundamentaram a criação do Clube, bem como o contrato de comodato e os protocolos existentes, não se vislumbram nos dias de hoje. É perfeitamente visível o desgaste dos equipamentos existentes, bem como a quase inexistente utilização dos mesmos. Em suma, existe uma clara utilização do Campo de Tiro para fins diversos dos que justificaram a sua entrega ao A..., suscetível de justificar, e fundamentar, a resolução do contrato de comodato, nos termos da al. c) da Cláusula Terceira do título contratual. Acresce que são visíveis algumas alterações executadas nas instalações cedidas, sem prévia autorização do Município, o que consubstancia, também, fundamento para a resolução do contrato, por força do consignado na alínea a) da referida Cláusula Terceira". " - cfr. doc. 18 junto com o r.i..

R. Em 15.05.2023, a Direcção do Clube de Tiro enviou um e-mail ao requerido, imputando-lhe a falta de envio de cópia do relatório referido no ponto anterior, a preterição de audição prévia e a falta de fundamentação da deliberação suspendenda - cfr. doc. 20 junto com o r.i..

S. Em resposta à solicitação que antecede, o requerido, através de e-mail de 15.05.2023, remeteu cópia do relatório de vistoria, informou o Clube de Tiro que a cláusula terceira do contrato dispensava a audiência prévia, que a deliberação tomada se enquadrava numa relação contratual e não num procedimento administrativo e do adiamento da posse administrativa de 16.05.2023 para 23.05.2023 - cfr. doc. 21 junto com o r.i..

T. No dia 23.05.2023, o requerido tomou posse do complexo que lhe havia comodatado - cfr. doc. 27 do r.i..

U. Em 31.05.2023, o requerido remeteu ao 1.º requerente email dando-lhe conta da tomada de posse - cfr. doc. 27 do r.i..

V. Consta do relatório da direcção do Clube de Tiro que, para o ano de 2023, o Clube de Tiro tem agendadas provas de tiro nas modalidades de Compak Sporting, Fosso Universal, Hélices e Tiro à bala FITASC - cfr. doc. 34 junto com o r.í.

W. O 1.º Requerente recebe da Sociedade de D... a quantia anual de € 2.500,00 para comparticipação nas despesas de manutenção e limpeza do espaço - cfr. doc. 32 junto com o r.i.

X. Em Março de 2023, a B... empregava 12 funcionários - cfr. doc. 40 junto com o r.i..

Y. A B... recebeu madeira importada da ... que se encontra no Campo de Tiro num valor comercial de € 100.000,00 - cfr. fls. 386 do SITAF».

III. Matéria de direito

9. A questão de fundo que se discute no presente recurso, e que determinou a sua admissão, é a de saber se, como se decidiu no TAF do Porto, a circunstância de nos situarmos «no âmbito de um processo urgente, que se caracteriza por uma apreciação sumária do direito que os requerentes pretendem acautelar e em que a prova se apresenta como indiciária», dispensa o juiz de promover a realização da produção da prova testemunhal requerida, ou de alguma forma aligeira o seu dever de fundamentar a desnecessidade da mesma, nos termos do número 5 do artigo 118.º do CPTA.
O acórdão recorrido entendeu que a invocação da urgência, e do carácter indiciário da prova em processo cautelar, são suficientes para fundamentar a recusa de inquirição das testemunhas apresentadas pelos Requerentes, ou da sua audição em depoimento de parte.
Naquele acórdão, afirma-se, inclusive, que «como resulta expressamente do preceito, a promoção de tais diligências constitui uma mera possibilidade (um poder/dever), não uma obrigatoriedade ou, em rigor, um poder legal de exercício judicialmente vinculado», concluindo-se, mais adiante, que «ainda que assim não fosse, a natureza perfunctória da análise judicial no âmbito de uma providência cautelar desdramatiza a supressão de algum tipo de prova».
Os Recorrentes opõem-se a esse entendimento, alegando, essencialmente, que «ao julgar não demonstrado o fumus boni iuris quando não permitiu aos Recorrentes efetuar a prova dos factos integrantes do vício de violação de lei por erro nos pressupostos em que alicerçavam a comprovação desse mesmo fumus boni iuris, o aresto em recurso violou frontalmente o princípio da igualdade das partes e o direito à tutela judicial efetiva, dos quais resulta que o relatório de vistoria não passa de um mero documento probatório que não tem força probatória plena nem isenta o Tribunal de permitir ao administrado realizar a prova dos factos integrantes da sua pretensão (...)».

Vejamos.

10. Com a aprovação do CPTA, pela Lei n.º 15/2002, de 22 de fevereiro, foram revogados os artigos 12.º e 24.º da LPTA, deixando de existir quaisquer limitações quanto aos meios de prova admissíveis nas ações administrativas, os quais passaram a ser disciplinados, por remissão do número 2 do artigo 90.º do CPTA, pela lei processual civil.
Nessas ações, passaram a poder ser utilizados todos os meios de prova que se encontram previstos nos artigos 410.º a 526.º do CPC, designadamente a prova testemunhal, embora o juiz disponha do poder de indeferir, mediante despacho fundamentado, os requerimentos probatórios das partes quando os considere claramente desnecessários.
Ficou, assim, afastado o entendimento assente numa conceção monista do processo administrativo, que atribuía ao processo jurisdicional uma função meramente revisora das decisões da Administração. Pelo contrário, passou a considerar-se que o controlo jurisdicional dos factos que serviram de fundamento às decisões da Administração se faz, não apenas através da apreciação da prova disponível no respetivo procedimento administrativo, mas também através da prova a produzir no âmbito do próprio processo judicial - neste sentido, v. Carlos Fernandes Cadilha: "A prova em contencioso administrativo" in CJA, n.º 69, pág.48
Neste sentido, aliás, se afirmou no Acórdão de 11 de março de 2021 deste Supremo Tribunal Administrativo, que «os tribunais, excecionados os casos em que estão legalmente impedidos de o fazer, não só podem, como devem reapreciar o julgamento de facto realizado pela Administração em toda a sua extensão, ou seja, devem reapreciar todos os elementos de prova que foram produzidos nos autos. Não aceitar isto equivale a deixar os particulares nas mãos da Administração, assim se esvaziando ou mesmo privando de sentido o direito de acesso à justiça e aos tribunais, constitucionalmente consagrado no artigo 20.º da CRP» - v. Processo n.º 0301/14.0BEBRG.
11. É nesse quadro que se insere o regime de produção de prova nos processos cautelares, previsto no artigo 118.º do CPTA, que admite, genericamente, a produção de qualquer meio de prova, com exceção da prova pericial (n.º 3).
O juiz da causa pode, nos termos do número 5 do referido artigo, recusar a produção de prova que considere desnecessária, sendo certo que só pode fazer «mediante despacho fundamentado», e apenas quando considere «assentes» ou «irrelevantes» os factos sobre os quais os meios de prova requeridos recaem, ou quando entenda que os mesmos são «manifestamente dilatórios».
O critério determinante da dispensa de prova é, pois, o da sua desnecessidade, e não o da urgência na decisão.

12. Do exposto resulta que, nada na letra da lei permite concluir que o carácter urgente dos processos cautelares, ou a natureza indiciária da prova nele produzida, sejam, por si só, fundamento bastante para a dispensa da prova testemunhal.
Nem, muito menos, nada na letra da lei permite afirmar que «a promoção de tais diligências constitui uma mera possibilidade (um poder/dever), não uma obrigatoriedade ou, em rigor, um poder legal de exercício judicialmente vinculado».

Não obstante a margem de livre apreciação de que o juiz dispõe na integração dos conceitos vagos e indeterminados com que o legislador construiu a previsão normativa do número 5 do artigo 118.º do CPTA, dele resulta claro que a recusa da utilização dos meios de prova requeridos é um ato vinculado, que apenas pode ocorrer quando (i) os factos cuja prova se requer já estejam assentes, (ii) quando os mesmos sejam irrelevantes para a decisão da causa, ou ainda, (iii) quando a utilização de meios de prova requeridos seja manifestamente dilatória. E tanto assim é que o despacho do juiz que recusa a utilização dos meios de prova requeridos é suscetível de impugnação autónoma, nos termos da alínea d) do número 2 do artigo 644.º do CPC, podendo, por isso, a insuficiência da matéria de facto ser sindicada em apelação ou revista, ao abrigo do número 2 do artigo 662.º e número 3 do artigo 682.º do CPC - neste sentido, reiterando o carácter vinculado da decisão, v. Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentários ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4a edição, 2017, p. 123.
Ora,

13. No caso dos autos, nada é invocado no despacho da Juíza do TAF do Porto, que dispensou a prova testemunhal requerida, que seja suscetível de justificar a sua desnecessidade, ou o seu carácter dilatório. Apenas o carácter urgente do processo, e a natureza indiciária da respetiva prova.
E não se vê como aquele despacho poderia justificar a desnecessidade da prova, tendo em conta que, no seu requerimento inicial, os Requerentes, ora Recorrentes, imputaram à deliberação suspendenda o vício de violação de lei por erro nos pressupostos de factos, alegando, a esse respeito, um conjunto de factos que, na sua perspetiva, contradizem as conclusões do relatório da vistoria realizada pela entidade requerida em 17 de fevereiro de 2023.
Ora, os Requerentes não se podem ver impedidos de provar os factos que integram o vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto da deliberação suspendenda, sob pena de violação do direito ao contraditório, e do direito à prova, elementos indispensáveis à caracterização do processo como equitativo, e nessa medida indispensáveis também à garantia de uma tutela jurisdicional efetiva, à luz do número 1 do artigo 2.º do CPTA, do número 4 do artigo 20.º da CRP, e do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

14. Assim, e sem necessidade de mais considerações, conclui-se que o acórdão recorrido fez errada interpretação e aplicação do número 5 do artigo 118.º do CPTA, pelo que deve ser revogado, revogando-se, em consequência, a sentença do TAF do Porto, e o despacho que a antecedeu, que dispensou a realização da prova testemunhal requerida pelos Requerentes.
Fica, assim, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no presente recurso, na medida em que o processo deve baixar ao tribunal a quo para ser refeito o julgamento de facto e de direito, com recurso aos meios de prova ilegalmente recusados.

IV. Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, reunidos em conferência, em conceder provimento ao recurso, e em revogar o acórdão recorrido, ordenando a baixa do processo ao TCAN para a repetição do julgamento de facto e de direito.

Custas pelo Recorrido. Notifique-se.

Lisboa, 8 de fevereiro de 2024. – Cláudio Ramos Monteiro (relator) – Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva – Ana Celeste Catarilhas da Silva Evans de Carvalho.