Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0940/14
Data do Acordão:11/06/2014
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:SUSPENSÃO DE EFICÁCIA
ACTO ADMINISTRATIVO
ACTO NORMATIVO
INCOMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Sumário:I - O DL nº 108/2014, de 2/7, que alterou o DL nº 68/2010, de 15/6, não é um acto administrativo, mas um acto normativo.
II - Nos termos do disposto nos arts. 4º, nº 2, al. a), e 24º, nº 1, al. c) do ETAF, o STA não tem competência, em razão da matéria, para conhecer do pedido de suspensão de eficácia daquele DL nº 108/2014.
Nº Convencional:JSTA000P18197
Nº do Documento:SA1201411060940
Data de Entrada:07/30/2014
Recorrente:MUNICÍPIO DE LOURES E MUNICÍPIO DE ODIVELAS
Recorrido 1:PRESIDÊNCIA DO CM E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal
Administrativo:

1. Relatório
O Município de Loures veio requerer contra o Conselho de Ministros e Outros, identificados nos autos, providência cautelar de suspensão de eficácia, “do ato administrativo formalizado no Decreto-lei nº 108/2014, de 2 de Julho que procede à alteração do Decreto-lei nº 68/2010, de 15.06 que criou o sistema multimunicipal de triagem, recolha seletiva, valorização e tratamento de resíduos sólidos urbanos das regiões de Lisboa e do Oeste, a sua entidade gestora, a A……………, SA aprovou os respetivos estatutos”.
Pediu o decretamento da providência, nos termos da alínea a) do nº 1 do art. 120º do CPTA, por evidente procedência da pretensão a formular no processo principal, ou, pelo menos, por se mostrarem preenchidos os requisitos de que depende o decretamento da providência, nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 120º do CPTA e a ponderação dos interesses em presença revelar que “a defesa dos interesses e direitos do requerente enquanto acionista da A………., S.A. sofrerão lesão irreparável com a alteração dos estatutos da sociedade A………, S.A., merecendo, pois tutela do direito”.

O Conselho de Ministros contestou, a fls. 127 a 218, suscitando a incompetência absoluta da jurisdição administrativa, face à natureza legislativa do acto, e alegando que, de todo o modo, não se verificam os requisitos de que depende a concessão da providência.

A B………, SA e A……….., SA, também deduziram oposição a fls. 345 a 392, invocando a excepção da incompetência absoluta da jurisdição administrativa, e, defendendo que a providência deve improceder, nos termos do art. 120º, nº 1, al. b) e nº 2 do CPTA.

O Município de Loures, para tanto notificado, pronunciou-se no sentido da improcedência da excepção deduzida pela entidade requerida e pelas contra-interessadas acima indicadas.

Por despacho de fls. 430 e verso foi admitida a intervenção espontânea do Município de Odivelas, considerando-se que carecia de legitimidade passiva, como contra-interessado, detendo um interesse igual ao do requerente.

2. Os Factos
Uma vez que o acto suspendendo é constituído pelas disposições constantes no Decreto-Lei nº 108/2014, de 2 de Julho e que nos autos está em causa a discussão deste e outros diplomas legais, o único facto assente com interesse para a decisão a proferir consiste na “Deliberação do Conselho de Ministros”, de 14 de Agosto de 2014, que “delibera aprovar essa resolução fundamentada, que fica a fazer parte integrante da presente deliberação”, de fls. 333, dando-se aqui por integralmente reproduzido o teor da “Resolução Fundamentada” de fls. 334 a 342.

3. O Direito
Vem requerida a suspensão de eficácia “do ato administrativo formalizado no Decreto-lei nº 108/2014, de 2 de Julho que procede à alteração do Decreto-lei nº 68/2010, de 15.06 que criou o sistema multimunicipal de triagem, recolha seletiva, valorização e tratamento de resíduos sólidos urbanos das regiões de Lisboa e do Oeste, a sua entidade gestora, a A………, SA a aprovou os respetivos estatutos”.

Sobre a questão em causa nos presentes autos já se pronunciou este Supremo Tribunal, no acórdão de 09.10.2014, proferido no processo nº 951/14 (em que era requerente o Município de Lisboa, aqui contra-interessado), em termos que merecem a nossa total concordância, pelo que passamos a transcrevê-lo:
«Na análise deste meio cautelar – que visa suspender a eficácia do acto administrativo alegadamente «formalizado» através do DL n.º 108/14, de 2/7 – a questão que primeiramente se coloca respeita à competência absoluta do tribunal, negada pelos requeridos que deduziram oposição. E convém precisar já o âmbito do conhecimento do assunto.
Essa excepção dilatória de incompetência «ratione materiae» assume-se, virtualmente, como uma circunstância obstativa «ao conhecimento do mérito da pretensão formulada ou a formular» no processo principal (cfr. art. 120º, n.º 1, al. b), «in fine», do CPTA). Mas tal excepção não foi assim apresentada nas contestações, já que estas directamente a assumiram como impeditiva do conhecimento da própria providência.
Isto significa que os contestantes, ao arguirem a incompetência do tribunal em razão da matéria, quiseram que o STA se declarasse incompetente para conhecer do meio cautelar, em vez de se limitar a indeferi-lo por causa de uma incompetência localizada na acção principal.
E, tendo a excepção dilatória estes contornos, logo se vê que a averiguação da sua existência pode realizar-se para além de um campo demarcado pelo que pareça evidente ou manifesto.
E deve mesmo realizar-se assim, por força da própria índole da excepção. Nos tribunais especializados, os problemas de competência resolvem-se sempre pela afirmativa; pois seria absurdo que um desses tribunais, permanecendo na dúvida sobre a sua competência, superasse esse «non liquet» afirmando-se competente. É claríssimo que um tribunal administrativo não pode decidir um meio cautelar sem antes se ter assegurado de que, ao menos provavelmente, dispõe da competência necessária para o efeito. O que reclama uma pesquisa susceptível de exceder, até em muito, a imediação da evidência.
Esclarecida a amplitude do quadro cognitivo em que nos moveremos, há que averiguar se o acto suspendendo é um acto administrativo vero e próprio, como sustenta o requerente, ou se é, antes, um acto normativo - pressuposto donde flui a excepção de incompetência «ratione materiae», deduzida nas contestações.
O requerente vislumbra tal acto administrativo no DL n.º 108/2014, de 2/7, tomado na sua globalidade. E este modo de identificação do acto - que nada tem a ver com a sua prova, questão que o Conselho de Ministros colocou e agora não releva - põe-nos imediatamente de sobreaviso; pois, se é indiscutível a possibilidade dum decreto-lei conter actos administrativos («vide» os arts. 268º, n.º 4, da CRP, e 52º, n.º 1, do CPTA), já começa a ser assaz improvável que um diploma desse tipo, que se espraia por quinze artigos, se reconduza à definição inserta no art. 120º do CPA.
Mas deixemos as probabilidades e procuremos as certezas. O DL n.º 108/2014, isto é, o acto ora suspendendo, alterou o DL n.º 68/2010, de 15/6, e o seu anexo. Este diploma incidira fundamentalmente sobre quatro pontos: criara o sistema multimunicipal de triagem, recolha selectiva, valorização e tratamento de resíduos sólidos urbanos das regiões de Lisboa e do Oeste; constituíra a sociedade A………., SA; atribuíra a concessão da exploração e gestão do sistema a essa sociedade; e, em anexo, aprovara os estatutos da A……….. Todos esses pontos persistem no regime trazido pelo DL n.º 108/2014, embora com alterações várias em que avulta uma, que especialmente desagrada ao requerente - a possibilidade, antes excluída, do capital social da A………. ser maioritariamente detido por entidades privadas. Assim, o DL n.º 108/2014 cumpriu uma função alteradora, e substitutiva, relativamente à versão original do DL n.º 68/2010. Ora, tendo em conta as características dessa função, o DL n.º 108/2014 só poderá ser um acto administrativo se o DL n.º 68/2010 o for também. E isto não decorre de meros ideais de simetria lógica, aliás merecedores de atenção; pois funda-se na própria natureza das coisas, que há-de ser idêntica em dois diplomas que intentaram reger sucessivamente o mesmo assunto, tratando-o num único e mesmo plano. Portanto, a resposta ao problema de saber se o DL n.º 108/2014 é, ou não, um acto administrativo tanto pode ser dada a partir deste diploma como a partir do DL n.º 68/2010 - posto que a natureza de ambos tem de ser idêntica.
É significativo que o requerente não tenha ousado dizer que o DL n.º 68/2010 era, já, um acto administrativo - revogado, por substituição, pelo DL n.º 108/2014. Mas isso, que o requerente silenciou, concorda, «ex necessitate», com a ideia exposta no requerimento inicial. Com efeito, já acima dissemos que as preocupações do requerente se centram na recomposição da estrutura accionista da A………., operada pelo DL n.º 108/2014. Ora, tenderíamos a aceitar que a qualificação deste diploma, como acto administrativo, estava certa se o DL n.º 68/2010, ao constituir a A…….. tal e qual fez - isto é, com os estatutos aprovados em anexo e alterados pelo acto suspendendo - contivesse logo um acto administrativo.
Em tese, não é absolutamente impossível que a lei preveja que uma sociedade venha a constituir-se por acto administrativo, pois até já se reconheceu que uma hipótese desse género existira no passado (cfr. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, pág. 353). Mas, à resolução do problema presente, interessa, não o que a lei poderia ter previsto, mas o que efectivamente previu - o que nos remete para a pesquisa do título jurídico que legitimou a edição do DL n.º 68/2010.
Ora, esse título não está no regime jurídico do sector público empresarial, que constou do DL n.º 558/99, de 17/12, e está hoje vertido no DL n.º 133/2013, de 3/10 - como alvitra o requerente; nem está noutros diplomas que as partes exuberantemente convocaram. O dito título constava, sim, do DL n.º 379/93, de 5/11 - aliás, citado no preâmbulo do DL n.º 68/2010, de 15/6 - cujo art. 3º, n. 2, impusera que a «criação e a concessão» dos sistemas multimunicipais do sobredito género fossem «objecto de decreto-lei». E é óbvio que, ao prever a «criação e a concessão» desses sistemas por «decreto-lei», o legislador do DL n.º 379/93 estava a impor a concomitante constituição, subordinada à mesma forma, das sociedades concessionárias que haveriam de geri-los, se elas ainda não existissem; pois seria impossível passar-se à concessão do sistema criado por decreto-lei sem aí se constituir também, e «uno actu», a sociedade concessionária.
A imposição de que tais matérias se regulassem por decreto-lei não era insignificante nem casual - e, tanto assim, que persiste no art. 3º, n.º 1, do DL n.º 92/2013, de 11/7, cujo art. 13º revogou o referido DL n.º 379/93. Se o legislador impôs essa forma - legislativa - de expressão é porque a considerou mais adequada ao caso que previu (art. 9º, n.º 3, do Código Civil); e essa melhor adequação só poderia advir do facto de, nos decretos-leis criadores dos mencionados sistemas multimunicipais, se corporizarem opções de índole normativa, em vez de pronúncias que pudessem ser assimiladas a actos administrativos.
Ora, quando o próprio legislador qualifica as suas intervenções de um certo tipo como legislativas, fica, «ipso facto», autenticado o género de actuação que ele realizará. Persiste, evidentemente, a possibilidade de, dentro dessa actividade legislativa, se ter anomalamente insinuado a prática de algum acto administrativo «próprio sensu». Mas a insistência em olhar-se todo um diploma legal, cuja produção foi prevista noutro, como um acto administrativo esbarra num decisivo obstáculo - o dessa qualificação ser imediatamente «contra legem».
Assim, tanto o DL n.º 68/2010 como o DL n.º 108/2014 assumiram forma legislativa porque havia leis anteriores que a impunham. E tal imposição, por si só, descaracteriza logo tais diplomas como actos administrativos e insta a encará-los como actos normativos.
E, contra isto, é vão argumentar - como faz o requerente - em torno das características de generalidade e abstracção. Estas são, decerto, duas notas que normalmente acompanham a normatividade e habilitam a distinguir entre actos e normas. Mas nem sempre, já que é sabido que o intervencionismo estatal opera hoje frequentemente através de comandos que incidem sobre realidades particularizadas ou determinadas e que, não obstante, adoptam e possuem o valor de lei. E os diplomas legais dotados dessas especiais características têm sido agrupados num conceito significativamente designado como «leis-medida» ou «leis-providência» (cfr., v.g., o acórdão do STA de 12/1/99, proferido no recurso n.º 44.490).
Aliás, parece ter sido isso que ocorreu «in casu», com os DL's ns.º 68/2010 e 108/2014 - enquanto actuantes no plano da constituição e da modificação da estrutura accionista de uma sociedade anónima. Seja qual for o grau de generalidade e de abstracção que divisemos nesses diplomas, é inequívoco - até pelo que sucessivamente dispuseram os DL's ns.º 379/93 e 92/2013 quanto à necessidade do assunto ser «objecto de decreto-lei» - que as pronúncias vertidas no «acto» suspendendo e no decreto-lei que ele modificou se pretenderam normativas e foram-no na realidade.
Ademais, se dúvidas houvesse, elas haveriam de resolver-se em favor da normatividade - como este STA já decidiu («vide» o acórdão de 3/11/2004, proferido no proc. n.° 678/04).
Face à índole normativa do DL n.º 108/2014, é ocioso averiguar se ele foi o fruto de uma opção política ou meramente administrativa. É que, nesta última hipótese - a que tomasse o DL n.º 108/2014 como uma mera particularização modal de uma escolha política de fundo - continuaríamos a ter de afirmar a natureza legislativa do acto suspendendo, visto que não há regulamentos sob forma legislativa. Neste ponto, a doutrina e a jurisprudência são unânimes no sentido de que as normas formalmente legislativas emanadas do Governo são havidas como tal, não sendo possível negá-lo a pretexto de que elas seriam materialmente administrativas (cfr. v.g., o acórdão do Pleno do STA, proferido em 7/6/2006 no recurso n.º 1257/05).
Consequentemente, o acto suspendendo não é administrativo, mas legislativo. Ora, está excluída do âmbito da jurisdição administrativa a impugnação - e, nessa medida, também o conhecimento de algum meio cautelar que a prepare (art. 24º, n.º 1, al. c), do ETAF) - de actos praticados no exercício da função legislativa («vide» o art. 4º, n.º 2, al, a), do ETAF). E essa incompetência «ratione materiae» do STA - inicialmente indiciada no facto da providência ter por alvo todo um decreto-lei e que, agora, consideramos demonstrada e manifesta - prejudica a apreciação do mérito da providência, nos termos gerais (art. 278º, n.º 1, al. a), do CPC).»

Pelo exposto, acordam em:

a) – declarar a jurisdição administrativa incompetente, em razão da matéria, para conhecer da providência cautelar e em absolver da instância as entidades demandadas;
b) condenar os requerentes Município de Loures e Município de Odivelas nas custas do procedimento cautelar.

Lisboa, 6 de Novembro de 2014. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – José Francisco Fonseca da Paz – Alberto Acácio de Sá Costa Reis.