Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0245/11
Data do Acordão:01/18/2012
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Descritores:COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA HIERARQUIA
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
IRS
COMPENSAÇÃO
CRÉDITO TRIBUTÁRIO
EMBARGOS DE TERCEIRO
Sumário:I – Sendo o acto de compensação de créditos, praticado no âmbito do processo executivo, um acto jurídico de extinção do crédito tributário, o mesmo não representa nem consubstancia um acto de penhora ou de apreensão de bens, nem desempenha, sequer, esse papel, pelo que não pode ser objecto de embargos de terceiro por parte do cônjuge do executado.
II – Esse acto deve ser atacado através de reclamação para tribunal, nos termos previstos no artigo 276.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, uma vez que este meio processual pode ser utilizado por qualquer interessado afectado nos seus direitos ou interesses legítimos pelos actos que são praticados na execução fiscal.
Nº Convencional:JSTA00067346
Nº do Documento:SA2201201180245
Data de Entrada:03/16/2011
Recorrente:A...
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA E B...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF PORTO PER SALTUM
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL
Legislação Nacional:CPPTRIB99 ART89 ART90 ART90-A ART237 N1 ART276 ART277 ART279
CPC96 ART137
CCIV66 ART847
LGT98 ART40 N2 ART95 N1 ART103 N2
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC189/10 DE 2010/04/21; AC STA PROC1/10 DE 2010/04/14; AC STA PROC950/09 DE 2010/01/20
Referência a Doutrina:JOSÉ LEBRE DE FREITAS ACÇÃO EXECUTIVA PAG177
MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA ESTUDOS SOBRE O NOVO PROCESSO CIVIL 2ED PAG187
JORGE DE SOUSA CODIGO PROCEDIMENTO E DE PROCESSO TRIBUTARIO ANOTADO E COMENTADO 6ED PAG269
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1. A………., com os demais sinais dos autos, recorreu para o Tribunal Central Administrativo Norte da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que absolveu a Fazenda Pública da instância de embargos de terceiro deduzidos contra o acto de compensação realizado no âmbito do processo de execução fiscal n° 3506199701004573 e apensos que reverteu contra o cônjuge da embargante, B………., para cobrança de dívidas de IVA dos anos de 1996 a 2000.
Terminou a sua alegação enunciando as seguintes conclusões:
1. A Recorrente é casada em regime de separação absoluta de bens. E, tempestivamente, apresentou a declaração de IRS, conjuntamente com a do seu marido, conforme era exigido pela F.P. relativa ao ano de 2004. Os rendimentos mencionados nessa declaração, foram exclusivamente auferidos, nesse ano, pela Recorrente. Feita a liquidação, a F.P. reconheceu, em notificação adrede remetida à Recorrente, a obrigação de reembolsar a Recorrente - ou ela e seu marido - em quantia de 4.873,47 (quatro mil oitocentos e setenta e três euros, e quarenta e sete cêntimos), correspondente a retenção de IRS, pago em excesso, no ano de 2004. Entretanto, no Serviço de Finanças da Maia-2, corria (e corre) uma execução fiscal contra o marido da Recorrente, instaurada por reversão contra ele de uma dívida de uma sociedade da qual foi gerente. Com base no crédito da F.P. contra o marido da Recorrente, cuja satisfação a F.P. exige nesse processo contra o marido da Recorrente, a F.P. não reembolsou a Recorrente daquela quantia, comunicando-lhe que a afectou, por compensação, ao pagamento da dívida fiscal do seu marido.
2. Ao receber tal comunicação, a Recorrente apresentou tempestivamente embargos de terceiro contra o acto que a privou daquela quantia, que lhe pertence por inteiro (ou, pelo menos, na proporção de metade ou como meeira). Na decisão de que se recorre, e com base na posição intentada pela F.P., foi considerado que o acto não era passível de impugnação por embargos de terceiro, mas de reclamação nos termos do art.° 279.° do CPPT, e a F.P. foi absolvida da instância.
3. A decisão é insustentável, e assenta na confusão entre decisões interlocutórias, proferidas no decurso do processo de execução pelo órgão de execução fiscal, que podem afectar interesses do executado ou de terceiros que já passaram a ser intervenientes no processo (cônjuge, credores com garantias reais, preferentes, adquirentes de bens penhorados, etc.), e actos administrativo-tributários ou executivos que afectem o património de pessoas que não são parte - a qualquer título - no processo executivo.
4. A serem as coisas como a Recorrida pretende, e o Tribunal corroborou, o património de qualquer pessoa, que não é executada nem parte no processo de execução fiscal, pode ser violado, e as suas garantias de defesa, em meios e tempo, serão muito menores que as do executado.
5. Na verdade, as normas que a seguir se invocam (do CPPT) revelam que o património do devedor tributário só pode ser penhorado depois de observado o seguinte:
i) Ser determinado um crédito tributário nos termos do art. 148° e aberto o respectivo processo de execução, com base em título que determine os fins e limites da execução, nomeadamente a natureza e montante do crédito, e identifique o credor e correlativo devedor (arts. 148°, 152°, 153° e segs. e 162°);
ii) Ser proferido despacho pelo funcionário competente do órgão de execução que aprecie a validade do título e os pressupostos relativos à identificação do credor e devedor, e no qual ordene a citação do devedor, de modo a que este fique ciente da natureza e em montante da dívida e da identidade do credor, e que também fique ciente de que tem 30 dias para pagar a dívida ou opor-se à execução, sob pena de nulidade insanável, se a citação não respeitar os tais requisitos previstos na lei e o titulo enfermar de vícios (arts. 188º, 35°, 189°, 190° e 203° e 165°).
iii) A penhora só pode ser feita após o transcurso do prazo para o executado fazer o pagamento e para se opor (art. 215º). Estas normas consubstanciam garantias legais do executado.
6. A penhora em processo executivo pode lesar (nomeadamente pelo facto de constituir desapossamento e cisão do poder de disposição) os direitos do cônjuge do executado sobre esses bens, porque esse cônjuge é meeiro desses bens, comproprietário ou contitular ou seu exclusivo titular, ou até de bens de terceiros, em relação a ambos os cônjuges. (Mutandis mutandis, a lesão pode ser feita através de outro acto que não a penhora, sendo certo que o acto de compensação de créditos do executado ou de terceiro na satisfação do crédito do credor tributário é uma penhora efectiva). Nestas circunstâncias, o lesado - cônjuge ou terceiro - ou tem garantias processuais idênticas às do executado ou não tem. Obviamente, sob pena de crassa inconstitucionalidade, estes não podem deixar de ter as mesmas garantias, sendo por isso que o cônjuge meeiro tem direito à citação, para defender os seus interesses, previsto no art. 239° do CPPT, enquanto o terceiro tem o direito a embargos de terceiro, nos termos do art.° 237° e segs.
7. Quando a F.P. penhora, apreende ou subtrai, por qualquer modo ou acto, bens comuns do casal e não cita o cônjuge do executado, o cônjuge não executado tem o direito de defesa do seu direito pela via de embargos de terceiro, e será também essa a via, quando o bem é exclusivamente seu ou em contitularidade com o cônjuge executado.
8. Por isso, a interpretação sistemática e teleológica da lei revela que o art. 279° do CPPT apenas se aplica a situações em que o executado ou terceiro já são parte interessada nos autos, quer porque para ele foram citados ou porque nele já intervieram espontaneamente.
Como a decisão recorrida violou as normas invocadas nestas conclusões, bem como aquela em que louva, deverá ser revogada e os autos prosseguirem os seus termos.

1.2. Não foram apresentadas contra-alegações.

1.3. Por acórdão proferido a fls. 135/138, o Tribunal Central Administrativo Norte declarou-se incompetente em razão da hierarquia para o conhecimento do recurso, no entendimento de que este se restringia exclusivamente a matéria de direito, sendo, assim, da competência da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.

1.4. Remetidos os autos ao STA, veio o Exm.º Procurador Geral Adjunto emitir parecer no sentido da incompetência, em razão da hierarquia, deste Tribunal para o conhecimento do recurso, com o argumento de que a recorrente invoca na 1ª conclusão um facto não contemplado no probatório da sentença, do qual pretende extrair relevantes consequências jurídicas - no sentido da ilegalidade do acto de compensação de créditos efectuado na execução fiscal.
Notificadas as partes do teor deste parecer, nada disseram.

1.5. Colhidos os vistos dos Exmºs Juízes Conselheiros Adjuntos, cumpre decidir, em conferência, as questões colocadas.

2. A sentença recorrida considerou provada a seguinte matéria de facto:
a) Foi instaurado o processo de execução fiscal nº 3506199701004573 e Aps. contra “C………., Ldª” a correr termos no Serviço de Finanças de Maia 2, por dívida de IVA, no valor total de 180.503,03 euros — cfr. informação de folhas 20 dos presentes autos;
b) A execução identificada na alínea a) foi revertida contra B………. e outros — cfr. informação de folhas 39 dos autos;
c) A agora embargante, A………. contraiu matrimónio com o revertido, identificado na alínea anterior, sob o regime de separação absoluta de bens — cfr. folhas 2 dos autos;
d) Tendo por base a declaração de rendimentos de IRS, relativa ao ano de 2004, apresentada pelos sujeitos passivos identificados nas alíneas b) e c) desta matéria de facto, foi emitida a liquidação n° 20054003091829, da qual resultou um reembolso no montante de 4.873,47 euros — cfr. informação de folhas 39 dos autos.
e) O valor do reembolso foi aplicado por compensação das dívidas do revertido identificado na alínea b), no processo executivo identificado na alínea a) — cfr. informação de folhas 39 e 39 v. dos autos.
f) O revertido e a agora embargante foram notificados da compensação efectuada em 23.09.2005 — cfr folhas 36 e 36v. dos autos;
g) Os presentes embargos foram deduzidos em 21.10.2005 — cfr. folhas 2 dos autos.
3. Em face do teor das conclusões da alegação e da posição adoptada pelo Ministério Público, as questões que se colocam são as de saber se este Tribunal é competente, em razão da hierarquia, para conhecer do presente recurso e, no caso afirmativo, se a sentença padece de erro de julgamento por ter considerado que a embargante, ora recorrente, incorreu em erro na forma de processo que utilizou para obter a revogação do acto de compensação efectuado no processo de execução fiscal instaurado contra o seu cônjuge.
3.1. Importa conhecer, em primeiro lugar, a questão de incompetência suscitada pelo Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal, já que esse conhecimento precede o de qualquer outra (artigo 16.º do CPPT e artigos 101.º e 102.º do CPC), prejudicando, se procedente, a apreciação e julgamento das demais questões suscitadas no recurso.
Aquele Ilustre Magistrado defende que este Tribunal deve ser julgado incompetente em razão da hierarquia para o conhecimento do recurso porquanto a embargante, ora recorrente, invoca na 1ª conclusão um facto não contemplado no probatório da sentença – traduzido na alegação de que os rendimentos indicados na declaração de IRS foram exclusivamente auferidos por si - do qual pretende extrair relevantes consequências jurídicas - no sentido da ilegalidade do acto de compensação de créditos efectuado na execução fiscal – existindo, assim, divergência com o decidido em sede de matéria de facto.
Vejamos.
Tal como resulta da normatividade inserta no ETAF, aprovado pela Lei nº 107-D/2003, de 31 de Dezembro, a competência do Supremo Tribunal Administrativo para apreciação dos recursos jurisdicionais interpostos de decisões dos Tribunais Tributários restringe-se, exclusivamente, a matéria de direito [artigo 26.º, alínea b)], constituindo, assim, uma excepção à competência generalizada do Tribunal Central Administrativo, ao qual compete conhecer “dos recursos de decisões dos Tribunais Tributários, salvo o disposto na alínea b) do artigo 26.º” [artigo 38.º, alínea a)].
E daí que, para aferir da competência, em razão da hierarquia, do STA, importe olhar para as conclusões da alegação do recurso e verificar se, perante elas, as questões controvertidas se resolvem mediante uma exclusiva actividade de aplicação e interpretação de normas jurídicas, ou se, pelo contrário, implicam a necessidade de dirimir questões de facto - seja porque o recorrente defende que os factos levados ao probatório não estão provados, seja porque diverge das ilações de facto que deles se devam retirar, seja porque invoca factos que não foram dados como provados e que não são, em abstracto, indiferentes para o julgamento da causa.
Por conseguinte, a actual jurisprudência deste Tribunal entende que, mesmo no caso de serem invocados factos novos, há que ponderar se eles são ou não, em abstracto, relevantes para a decisão da questão colocada em sede de recurso, não bastando invocar factos que o tribunal recorrido não estabeleceu para se concluir, de forma imediata, que o recurso não tem por exclusivo fundamento matéria de direito. Se esses factos forem, em abstracto, irrelevantes para a decisão da questão decidenda ou meras ilações jurídicas retiradas dos factos fixados, e a matéria colocada for exclusivamente de direito, o Supremo Tribunal Administrativo será ainda competente para conhecer do recurso (Cfr, entre outros, os acórdãos de 21 de Abril de 2010, no proc. n.º 189/10, de 14 de Abril de 2010, no proc. n.º 1/10 e de 20 de Janeiro de 2010, no proc. n.º 950/09.).
No caso dos autos, a factualidade vertida na 1ª conclusão – de que os rendimentos mencionados na declaração de IRS relativa ao ano de 2004 foram auferidos exclusivamente pela embargante – embora não conste do probatório fixado, nenhum relevo tem para o conhecimento da questão colocada neste recurso, que se traduz unicamente em saber se ocorreu ou não erro na forma de processo utilizada para atacar o acto de compensação.
Com efeito, de acordo com o quadro conclusivo da recorrente, a única questão colocada é a de saber se, tendo-se efectuado, no âmbito de execução fiscal, a compensação da dívida exequenda com um crédito proveniente de reembolso de IRS, o cônjuge do executado pode utilizar o meio processual dos embargos de terceiro para combater e anular esse acto de compensação de créditos tributários. Trata-se, portanto, de desenvolver uma mera actuação em sede de interpretação e aplicação de normas jurídicas, e a factualidade alegada na conclusão 1ª é, em abstracto, indiferente para o julgamento dessa questão, não tendo quaisquer consequências jurídicas para a sua decisão (o que já não aconteceria se a questão decidenda residisse na legalidade desse acto de compensação).
A matéria em discussão neste recurso resolve-se, pois, mediante uma exclusiva actividade de interpretação e aplicação de comandos legais, não se vislumbrando necessidade de dirimir qualquer tipo de controvérsia factual.
Improcede, pois, a questão prévia suscitada, declarando-se este Tribunal competente para conhecer do recurso, pois que versa exclusivamente matéria de direito.
3.2. A questão fulcral do presente recurso consiste em saber se a sentença recorrida padece de erro de julgamento por ter considerado que a embargante incorreu em erro na forma de processo utilizada para obter a pretendida anulação do acto de compensação efectuado no processo de execução fiscal que contra o seu cônjuge reverteu.
Segundo a decisão recorrida, «Resulta do alegado que a embargante pretende questionar os fundamentos da compensação efectuada. (...) Acto de compensação, que mais não é do que uma causa de extinção de obrigações, de acordo com a jurisprudência dominante (...).
A embargante veio pedir a revogação do acto de compensação. (...)
Tal pedido é compatível com o processo de “reclamação dos actos do órgão da execução fiscal”, e não o processo de embargos de terceiro. De acordo com o ínsito no artigo 276° do CPPT “As decisões proferidas pelo órgão da execução fiscal outras entidades da administração tributária que no processo afectem os direitos e interesses legítimos do executado ou de terceiro são susceptíveis de reclamação para o tribunal tributário de 1ª instância”. Incorreu-se, pois, em erro na forma de processo.»
E tendo concluído que era inviável a convolação na forma processual adequada, por «resultar da matéria de facto dada como provada que a agora embargante foi notificada em 23.09.2005 do acto de compensação efectuado e que os presentes embargos foram apresentados em 21.10.2005 — cfr. alíneas f) e g). Ou seja, muito tempo após o término do prazo que a Lei dá para deduzir reclamação do acto do órgão da execução fiscal. A convolar-se os presentes embargos em reclamação do acto do órgão da execução fiscal seria de concluir que a mesma era extemporânea, por interposta fora dos 10 dias de prazo para a deduzir, o que se traduziria num acto inútil que a lei proíbe – artigo 137º do CPC», decidiu absolver a Fazenda Pública da instância.

A embargante, ora recorrente, continua, porém, a sustentar que o acto de compensação levado a cabo na execução (pela aplicação de crédito/reembolso de IRS no pagamento da dívida exequenda) é incompatível com o direito a que se arroga sobre esse reembolso, representando uma penhora ou um acto que, tal como a apreensão ou a penhora, a priva de um bem que lhe pertence, afectando o património de uma pessoa que não é parte na execução, sendo, por isso, passível de impugnação por embargos de terceiro. E defende que a reclamação prevista artigo 279.° do CPPT só se aplica quando o executado ou o terceiro já é parte no processo executivo, pois, se assim não for aquele que é estranho ao processo e vê o seu património violado gozará de menores garantias de defesa que o executado ou os intervenientes no processo.

Todavia, e salvo o devido respeito, não lhe assiste razão.
Estabelece o n.º 1 do artigo 237.º do CPPT que «Quando o arresto, a penhora ou qualquer outro acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular um terceiro, pode este fazê-lo valer por meio de embargos de terceiro».
Donde resulta que os embargos de terceiro são o meio processual adequado para fazer a defesa dos direitos de quem for ofendido - na sua posse ou em qualquer direito cuja manutenção seja incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial - por um acto de arresto, penhora ou outro acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens.
E, por isso, os actos lesivos da posse ou do direito de que o terceiro seja titular são, inevitavelmente, o arresto, a penhora ou outro acto judicialmente ordenado de apreensão ou de entrega de bens, permitindo-se, desse modo, que os direitos atingidos ilegalmente por esses actos possam ser invocados pelo lesado no próprio processo em que a diligência ofensiva teve lugar – em vez de o obrigar à propositura de acções possessórias ou de reivindicação – com o que se pretende obstar, no caso de os embargos se revelarem fundados, à venda de bens de um terceiro e prevenir a necessidade de ulterior anulação da venda no caso de procedência da reivindicação.
Tudo isto melhor se compreende quando se atenta que, processo executivo, a satisfação do direito do exequente é conseguida através da transmissão de direitos do executado, mediante a qual se irá proceder ao pagamento da dívida exequenda, havendo que proceder previamente, para que essa transmissão se realize, à apreensão dos bens que constituem o objecto desses direitos. «É nessa apreensão judicial de bens do executado que se traduz a penhora, que é assim o acto judicial fundamental do processo de execução para pagamento de quantia certa, aquele em que é mais manifesto o exercício do poder coercitivo do tribunal: perante uma situação de incumprimento, o tribunal priva o executado do pleno exercício dos seus poderes sobre um bem que, sem deixar ainda de pertencer ao executado, fica a partir de então especificamente sujeito à finalidade última da satisfação do crédito do exequente, a atingir através da disposição do direito do executado nas fases subsequentes da execução.» - cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS, inA Acção Executiva”, pág.177.
E, por isso, como escreve MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, 2ª ed., pág. 187, os embargos de terceiro «destinam-se a permitir a reacção de um terceiro contra um acto judicial que ordena a apreensão ou entrega de bens e que ofende a sua posse ou qualquer direito incompatível com a realização do âmbito da diligência».

Ora, no caso em apreço, não foi praticada na execução fiscal qualquer diligência de arresto, penhora ou apreensão de bens. O que foi praticado foi um acto de compensação de créditos, um acto jurídico que se pode chamar de “encontro de contas” e que constitui uma forma jurídica de extinção da obrigação tributária.

Na verdade, a compensação constitui um instituto jurídico que nasceu no seio do direito civil (cfr. artigo 847.º do Código Civil) (Onde se estabelece que “Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor (...)”.) e encontra previsão no âmbito tributário (cfr. artigo 40.º n.º 2 da LGT e artigos 89.º, 90.º e 90.º-A do CPPT), onde se estabelece que um débito do contribuinte pode ser compensado com um crédito do mesmo perante a Administração Fiscal e que a compensação pode ter lugar de duas formas: ou por iniciativa do contribuinte, ou oficiosamente pela administração fiscal.
Sendo o acto de compensação um acto jurídico de extinção do crédito tributário, o mesmo não representa nem consubstancia um acto de penhora ou de apreensão de bens, nem desempenha, sequer, esse papel. Pelo que não pode ser objecto de embargos de terceiro, pois, como se viu, esse meio processual destina-se a reagir contra um acto de arresto, penhora ou diligência, judicialmente ordenada, de apreensão ou entrega de bens, e fundamenta-se numa posse ou direito incompatível com a realização ou o âmbito dessa diligência.
Assim sendo, o acto lesivo de compensação de créditos, praticado no âmbito do processo executivo, deve ser atacado através de reclamação para tribunal, nos termos previstos no artigo 276.º do CPPT, segundo o qual «As decisões proferidas pelo órgão da execução fiscal e outras autoridades da administração tributária que no processo afectem os direitos e interesses legítimos do executado ou de terceiro são susceptíveis de reclamação para o tribunal tributário de 1ª instância».
Na verdade, o artigo 276.º não restringe nem limita o uso desse meio processual ao executado, antes indica, de forma expressa, que a reclamação pode ser utilizada por quem não seja executado, desde que o acto afecte os seus direitos ou interesses legítimos.
Por outro lado, e como é sabido, as normas dos artigos 95.º n.º 1 e 103.º n.º 2 da Lei Geral Tributária – que garantem aos interessados o direito de impugnar ou recorrer de todo o acto lesivo dos seus direitos e interesses legalmente protegidos – conferem legitimidade para reclamar de actos praticados na execução fiscal a todo e qualquer interessado que veja os seus direitos e interesse legítimos lesados nesse processo (Sobre a matéria, veja-se, na jurisprudência, o acórdão proferido pelo STA em 7.07.2010, no Proc. n.º 532/10 e, na doutrina, JORGE LOPES DE SOUSA, in “Código de Procedimento e de Processo Tributário”, Anotado e Comentado, 6ª Edição, pág. 269.). Aliás, se a norma contida no artigo 267º do CPPT fosse interpretado no sentido de não conferir legitimidade a terceiros, designadamente ao cônjuge do executado, para reclamar de actos que afectam os seus direitos e interesses legítimos, ela seria, na referida interpretação, inconstitucional por violação do artigo 268.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, dado que este preceito garante a qualquer pessoa o direito de impugnação contenciosa de quaisquer actos da administração que lesem os seus direitos ou interesses legítimos. Razão por que JORGE LOPES DE SOUSA defende, na obra citada, que “a expressão «terceiro» utilizada neste art.º 276.º deve ser entendida com o alcance de referenciar qualquer interessado no processo de execução fiscal que não seja o próprio executado”.
E dispondo tanto o executado como todos os interessados de igual prazo para utilizar este meio de defesa (10 dias contados da data da notificação do acto lesivo ao interessado – cfr. art.º 277.º do CPPT), não se vislumbra como pode ocorrer a invocada inconstitucionalidade por diminuição de garantias do terceiro relativamente ao executado.

A decisão recorrida decidiu, pois, de acordo com a lei aplicável, não merecendo, quanto a este aspecto, qualquer censura.
E porque também ajuizou bem quando conclui que era inviável a convolação na forma processual adequada, na medida em que essa convolação representaria um acto inútil face à extemporaneidade da reclamação – [segundo a materialidade fáctica apurada e que não vem questionada, a ora recorrente foi notificada em 23.09.2005 do acto de compensação e deduziu os embargos em 21.10.2005, ou seja, muito tempo após o término do prazo de 10 dias que a lei dá para deduzir reclamação do acto do órgão da execução fiscal] – não pode obter qualquer provimento o recurso.

4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso.
Custas a cargo da recorrente, com procuradoria que se fixa em 1/6.
Lisboa, 18 de Janeiro de 2012. – Dulce Manuel Neto (relatora) – João Valente Torrão – Pedro Delgado.