Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0665/13
Data do Acordão:05/15/2013
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FERNANDA MAÇÃS
Descritores:REJEIÇÃO LIMINAR
COIMA
EFEITO SUSPENSIVO
DIREITO A TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA
Sumário:I - O art. 84º do RGIT ao não estatuir de forma automática que o recurso de decisão de aplicação de coima não tem efeito suspensivo, antes se limitando a condicionar o efeito suspensivo do recurso à prestação de garantia ou demonstração da impossibilidade de o fazer devido à insuficiência total ou parcial de meios económicos, não é em abstracto inconstitucional.
II - Eventualmente só num caso concreto em que se discuta a dificuldade ou onerosidade da prestação de garantia, por exemplo, pela dificuldade de satisfazer o ónus de prova da insuficiência de meios económicos, poderá o tribunal ser confrontado com a necessidade de formular um tal juízo, que se reconduzirá à avaliação da adequação de tal ónus, à luz das exigências do princípio da proporcionalidade, tendo em conta o interesse público que presidiu à adopção de tal solução.
III - Uma interpretação conforme à Constituição do art. 84º do RGIT, mediada pelo direito à tutela judicial efectiva, leva-nos a concluir que, em caso de rejeição liminar do recurso de decisão de aplicação de coima tributária, a Administração Tributária só pode prosseguir a execução, na pendência de recurso da mesma, depois de notificar o recorrente para prestar garantia ou demonstrar que a não pode prestar por insuficiência de meios económicos, nos termos gerais, sob pena de em caso de eventual provimento do recurso o mesmo se tornar inútil, com violação do direito à tutela judicial efectiva (cfr. os arts. 20º e 268º, nº 4, da CRP).
Nº Convencional:JSTA00068259
Nº do Documento:SA2201305150665
Data de Entrada:04/24/2013
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A..., LDA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF SINTRA
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL - RECL
Legislação Nacional:RGIT01 ART84 ART79 N2 ART83 N3
RGCO ART74 N4 ART88 ART89
CPPTRIB99 ART169
CONST76 ART32 N2 ART20 ART268 N4 N5
Referência a Doutrina:JORGE DE SOUSA E SIMAS SANTOS - REGIME GERAL DAS INFRACÇÕES TRIBUTÁRIAS 4ED 2010 PAG582/583
GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA - CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA ANOTADA 4ED 2007 PAG515/516
SOARES MARTINEZ - DIREITO FISCAL 1995 PAG444
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

I-RELATÓRIO

1. A………., Lda., identificada nos autos, deduziu no TAF de Sintra, reclamação do despacho de 11/09/2012 do Adjunto do Chefe de Serviço de Finanças de Cascais 1, por delegação, que indeferiu o pedido de suspensão dos autos executivo.

1.1. Naquele tribunal decidiu-se julgar a reclamação totalmente procedente.

2. Não se conformando, a Fazenda Pública veio interpor recurso para este STA, apresentando as seguintes Conclusões das suas alegações:
“I - Da leitura da sentença recorrida constata-se que a mesma não fixou o valor da causa, quando o deveria ter feito nos termos do art. 97°-A n.° 2 do CPPT, na redacção à data da entrada em juízo dos presentes autos, cf. art. 8° n.° 6 da Lei 7/2012 de 13 de Fevereiro.
II - Aquele normativo, como se refere no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo referente ao processo n.° 099/12 de 15/02/2012, consultável integralmente in www.dgsi.pt, foi aditado pelo DL n° 34/2008, de 26/2 e é aplicável a processos (e respectivos incidentes, recursos e apensos) iniciados a partir de 20/4/2009 (cfr. os arts. 26° e 27° desse DL, na redacção dada pela Lei n° 64-A/2008, de 31/12).
III - Ora, a presente reclamação de actos do órgão da execução fiscal foi intentada em 2012, sendo-lhe aplicável aquele regime.
IV - Assim, como bem se decidiu no citado acórdão: “(…) havemos, pois, de concluir que no presente caso, porque estamos face a um processo impugnatório de acto do órgão de execução fiscal, é aplicável o regime previsto no citado art. 97°-A do CPPT, nomeadamente o seu n° 2, dado que a reclamação não é no caso subsumível a nenhuma das alíneas do n° 1; ou seja, o respectivo valor, para efeitos de custas, há-de encontrar-se de acordo com a regra constante deste n° 2: o valor do processo é fixado pelo juiz, tendo em conta a complexidade do processo, a condição económica do impugnante, tendo como limite máximo o valor da alçada da 1ª instância dos tribunais judiciais (Euros 5.000).”
V - Deste modo, deverá o valor da causa ser fixado, “tendo em conta a complexidade do processo, a condição económica do impugnante, tendo como limite máximo o valor da alçada da 1ª instância dos tribunais judiciais (Euros 5.000)”
VI — Por outro lado, como decorre do art. 84° do RGIT, o recurso só tem efeito suspensivo se o arguido prestar garantia no prazo de 20 dias, por qualquer das formas previstas nas eis tributárias, salvo se demonstrar em igual prazo que a não pode prestar, no todo ou em parte, por insuficiência de meios económicos.
VII - Assim, no caso dos autos existe uma norma específica no RGIT que regulamenta o efeito suspensivo do recurso.
VIII - E, como se estabelece no art. 3° do RGIT, o RGCO é apenas aplicável a título subsidiário, quando estejam em causa contra ordenações às quais seja aplicável o regime previsto no RGIT.
IX - Pelo que existindo norma que expressamente regulamenta as condições de que depende o efeito suspensivo do recurso, não tem aplicação, nem a título complementar, no caso dos autos, a regulamentação estatuída no RGOC.
X - A ser como advoga a douta sentença, nenhum efeito útil teria a norma do art. 84° do RGIT, pois que, com prestação de garantia ou sem essa prestação de garantia, sempre teria efeito suspensivo o recurso, por aplicação do regime do RGOC.
XI - Ora, na fixação do sentido e alcance da lei, como se estabelece no art. 9° n.° 3 do Código Civil, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
XII - Deste modo, terá de se concluir que o legislador ao condicionar o efeito suspensivo do recurso, nos moldes estabelecidos no art. 84° do RGIT, quis efectivamente excluir o efeito suspensivo do recurso quando aquelas condições não se verificassem, não podendo, sem mais, afastar-se esta norma apenas por não corresponder ao regime que o RGOC estabelece para outras infracções.
XIII - A sentença recorrida ao assim não entender apresenta-se legal por desconformidade com os preceitos atrás mencionados, não merecendo por isso ser confirmada.
Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve ser fixado valor à causa nos termos legais e deve ainda a decisão recorrida ser revogada.
PORÉM V. EXAS. DECIDINDO FARÃO A COSTUMADA JUSTIÇA”.

3. Não houve contra-alegações.

4. O Magistrado do Ministério Público pronunciou-se no sentido de o recurso não merecer provimento.

5. Com dispensa de vistos, por o processo ser urgente, cumpre apreciar e decidir.

II-FUNDAMENTOS

1-DE FACTO
A sentença recorrida deu como provada a seguinte factualidade:
“1. Em 13.08.2012 a Administração Fiscal instaurou contra a ora Reclamante o processo de execução fiscal n.° 1503201201222945, que tramita pelo Serviço de Finanças de Cascais 1, para cobrança de dívida de Coimas e Encargos de processos de Contra-Ordenação, no montante de € 10.138,22;
2. A decisão de aplicação da coima que originou a instauração dos presentes autos de execução foi objecto de recurso judicial, o qual, foi liminarmente indeferido por despacho de 08.02.2012 deste tribunal;
3. A ora Reclamante interpôs em 29.02.2012 recurso jurisdicional, para o STA, desta decisão liminar;
4. Em 10.09.2012 a ora Reclamante requereu ao Chefe do Serviço de Finanças de Cascais 1 a suspensão da execução fiscal;
5. Com referência ao requerimento referido em 4. foi no Serviço de Finanças de Cascais 1 prestada a seguinte Informação:
“INFORMAÇÃO
Pedido: suspensão do processo executivo por decorrer recurso judicial
Quanto à suspensão
É de indeferir o pedido de suspensão por existir recurso do indeferimento liminar de sentença judicial, visto que apenas após prestação efectiva de garantia, nos termos do art° 199° do CPPT, é que será permitida a suspensão da tramitação de processo executivo, seja qual for o tipo de processo de contencioso tributário deduzido. No caso, nem se trata de recurso de acto da AT, mas sim de sentença de Tribunal.
E isso é o que precisamente diz o art° 84° do RGIT: “O recurso (em sede de acto tributário, caso da fixação de coima) só tem efeito suspensivo se o arguido prestar garantia no prazo de 20 dias, por qualquer das formas previstas nas leis tributárias, salvo se demonstrar em igual prazo que a não pode prestar, no todo ou em parte, por insuficiência de meios económicos”.
Não o tendo feito oportunamente, o processo de contra-ordenação foi findo com extracção de certidão de dívida, tendo dado origem ao actual processo executivo.
E no âmbito deste, é aplicável como já se mencionou no primeiro parágrafo, o art° 52° n° 2 da LGT e o art° 199º n° 1, n° 7 e n° 8 do CPPT, e ainda o disposto no art° 196° do CPPT no que refere ao pagamento em prestações: em qualquer destes casos, é obrigatória a prestação efectiva de garantia para obtenção de efeito suspensivo do processo executivo.
Quanto ao pedido de pagamento em prestações
Por não ter sido junta procuração para intervenção no processo de execução fiscal, deverá o executado vir formalizar o pedido de pagamento em prestações.
E para efeitos suspensivos, deverá o requerente constituir hipoteca voluntária sobre o veículo que pretende dar como garantia, no âmbito de pedido de pagamento em prestações, caso o valor do veículo seja suficiente para esse efeito (pelas fotocópias anexas ao requerimento, o veículo tem matrícula de 2002, tem já 10 anos. Poderá anexar, aquando da junção do comprovativo de constituição de hipoteca avaliação comercial do veículo).
À consideração superior”;
6. A Informação transcrita em 5. mereceu o seguinte despacho de concordância, datado de 11.09.2012, do Adjunto do Chefe do Serviço de Finanças de Cascais 1, por delegação:
“DESPACHO
Concordo com o informado, pelo que indefiro o pedido de suspensão por correr recurso de sentença em tribunal, não existir nenhum meio de contencioso susceptível de suspender o processo de execução fiscal nos termos do art° 169° do CPPT, com a fundamentação constante na informação que antecede.
No âmbito do processo de execução fiscal os autos só ficam suspensos até à decisão do pleito em caso de reclamação graciosa, impugnação ou recurso judicial que tenham por objecto a legalidade da dívida, mediante a prestação de garantia idónea.
No caso em apreço, o recurso judicial de sentença pro ferida pelo Tribunal não configura nenhum dos meios contenciosos enunciados no parágrafo anterior, pelo que não há base legal para a suspensão do processo executivo nos termos do art° 169° do CPPT.
Notifique para formalizar o pedido de pagamento em prestações, visto que nestes autos não existe qualquer procuração a mandatários, pelo que o pedido não é vinculativo, sendo necessário para obtenção do efeito suspensivo que o executado pretende, a prestação efectiva de garantia suficiente e idónea art° 196° e 199° do Cod. Procedimento e Processo Tributário””.

2- DE DIREITO

2.1. Das questões a apreciar e decidir

A………., Lda., executada nos autos de execução fiscal nº 1503201201222945, notificada da decisão de aplicação de coima por não entrega atempada de IVA, no montante de €10.138, 22, recorreu judicialmente daquela decisão, recurso que veio a ser liminarmente indeferido por alegada intempestividade, por sentença que lhe foi notificada a 13 de Fevereiro de 2012.
Desta decisão a ora recorrente interpôs, nos termos conjugados do nº 2 do art. 63º e da alínea d) do nº 1 do art. 73º, do RGCO, aplicável ex vi alínea b) do art. 3º do art. 83º do RGIT, e do art. 280º do CPPT, recurso per saltum para o Supremo Tribunal Administrativo, que se encontra por decidir.
Independentemente do efeito suspensivo daquele recurso a ora recorrida tentou constituir garantia para suspender a execução, tendo a sua pretensão sido indeferida por despacho do órgão de execução fiscal de 11/9/2012, com base na seguinte fundamentação:
· “No âmbito do processo de execução fiscal os autos só ficam suspensos até à decisão do pleito em caso de reclamação graciosa, impugnação ou recurso judicial que tenha por objecto a legalidade da dívida, mediante a prestação de garantia idónea.
· “No caso em apreço, o recurso judicial da sentença proferida pelo tribunal não configura nenhum dos meios contenciosos enunciados no parágrafo anterior, pelo que não há base legal para a suspensão do processo executivo nos termos do art. 169º do CPPT.”
Deste despacho apresentou a recorrida reclamação, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, alegando, em síntese, que:
· “(…) notificada do indeferimento liminar do recurso de aplicação da coima interpôs recurso para o STA, tendo desde o primeiro momento, e sem prejuízo de, como adiante se demonstrará, o efeito suspensivo operar ope legis, procurado exercer a sua faculdade de prestação de garantia nos moldes constantes do artº 84º do RGIT de modo a assegurar o efeito suspensivo da execução fiscal do montantes da coima originadora dos presentes autos”;
· “(…) A Reclamante procurou tempestivamente prestar garantia nos termos do disposto no art. 84º do RGIT tal como se pode comprovar pela leitura do recurso junto como Documento 4..;
· “(…) Deveria a reclamante ter sido notificada para vir aos autos proceder à efectiva prestação de garantia indicando-se o valor indicativo actualizado para esse propósito;
· “(…) A decisão de aplicação da coima não é definitiva visto não ter transitado em julgado, não possuindo dessa forma força executiva na medida em que, em direito processual penal (…) os recursos de decisões condenatórias têm efeito suspensivo, pelo que o processo deve ter-se por suspenso independentemente da prestação de garantia”.
Por sentença proferida, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, 31/1/2013, foi decidido julgar a reclamação totalmente procedente, uma vez que, não tendo ocorrido o trânsito em julgado da decisão da 1ª instância, não é, como tal, exequível e não legitimando, consequentemente, a instauração de execução fiscal, pois esta deve assentar em “certidão de decisão exequível proferida em processo de aplicação das coimas” (artigo 162º alínea b) do CPPT), que no caso não existe”.
Contra este entendimento se insurge a recorrente, argumentando, em síntese, que:
· “(…) como decorre do art. 84° do RGIT, o recurso só tem efeito suspensivo se o arguido prestar garantia no prazo de 20 dias, por qualquer das formas previstas nas leis tributárias, salvo se demonstrar em igual prazo que a não pode prestar, no todo ou em parte, por insuficiência de meios económicos”, pelo que existindo uma norma específica no RGIT que regulamenta o efeito suspensivo do recurso, não é aplicável o RGCO, dada a sua natureza de direito subsidiário, quando estejam em causa contra ordenações às quais seja aplicável o regime previsto no RGIT.
Em face das conclusões, que são as relevantes para aferir o objecto e âmbito do recurso [cfr. arts. 684º, nº 3, e 685º-A/1, do CPC, e o art. 2º, alínea e), do CPPT], o objecto do presente recurso consiste em saber se a sentença recorrida fez correcto julgamento quando decidiu pela procedência de reclamação.

2.1.1.Quanto ao erro de julgamento: sentido e alcance do art. 84º do RGIT

Para a Mmª Juíza “a quo” a questão sub judice “(…) consiste unicamente em saber se, interposto recurso jurisdicional de decisão proferida em primeira instância em sede de recurso judicial de decisão de aplicação de coima, deve haver lugar a suspensão do processo de execução fiscal, que entretanto tenha sido instaurado para a cobrança da coima”.
E a decisão recorrida, ao julgar pela procedência da reclamação, tem implícito um juízo de inconstitucionalidade do art. 84º do RGIT, por permitir a execução de decisão condenatória, no caso, de coima tributária, sem ter ocorrido o trânsito em julgado da mesma.
Salvo o devido respeito, não podemos acompanhar esta fundamentação.
Vejamos.
Decorre do art. 84° do RGIT que o recurso só tem efeito suspensivo se o arguido prestar garantia no prazo de 20 dias, por qualquer das formas previstas nas leis tributárias, salvo se demonstrar em igual prazo que a não pode prestar, no todo ou em parte, por insuficiência de meios económicos.
Esta regra da subordinação do efeito suspensivo do recurso de aplicação de coima à prestação de garantia, no prazo de 20 dias, não tem paralelo no Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO).
De acordo com o artº. 74º, nº 4, do RGCO, segundo o qual ao recurso seguirá “a tramitação do recurso em processo penal, tendo em conta as especialidades que resultam deste diploma”, cuja regra é a de que o recurso das decisões condenatórias tem sempre efeito suspensivo em relação à condenação, apenas se reconhece, por conseguinte, eficácia executiva às decisões condenatórias transitadas em julgado.
No mesmo sentido, vãos os 79º, nº 2, do RGIT e arts. 88º e 89º do RGCO quando se estabelece que as decisões exequíveis em processo de contra-ordenações tributárias são as proferidas por tribunais tributários ou pelas autoridades administrativas que se tornem definitivas, quer pelo trânsito em julgado, quer por não interposição de recurso judicial.
O art. 84º do RGIT, ao condicionar o efeito suspensivo do recurso de decisão condenatória tributária à prestação de garantia, ou demonstração de insuficiência de meios económicos para a prestar, vai, desta forma, contra esta regra geral quanto ao regime dos recursos em matéria sancionatória.
Em anotação ao referido preceito, JORGE LOPES DE SOUSA / SIMAS SANTOS (Cfr. Regime Geral das Infracções Tributárias, 4ª ed., Áreas Editora, 2010, pp. 582-583.) ponderam que se torna necessário interpretar o preceito tendo em conta os princípios constitucionalmente consagrados, designadamente o da presunção de inocência (art. 32º, nº 2, da CRP).
Segundo os ilustres Autores, “a possibilidade de antecipação da execução de uma hipotética condenação não se compagina com a presunção de inocência, até ao trânsito em julgado da decisão condenatória, consagrada pelo artº 32º, nº 2, da CRP (Cfr. ob. cit., p. 583.)”, sendo de recusar a aplicação do art. 84º do RGIT, na parte em que estabelece casos em que o recurso de decisões condenatórias não tem efeito suspensivo a menos que se preste garantia ou demonstre a insuficiência de meios para tal.
Por sua vez, segundo GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA (Cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp.515 a 516.) o princípio da presunção de inocência pertence àquela classe de princípios materiais do processo penal que, enquanto constitutivos do Estado de direito democrático, são extensíveis ao direito sancionatório público, incluindo o processo de contra-ordenação e disciplinar.
Note-se, porém, que, no caso em apreço, um juízo sobre a eventual desconformidade constitucional do art. 84º do RGIT terá de ter em conta que o mesmo não se limita a estatuir de forma automática que o recurso não tem efeito suspensivo.
Com efeito, o legislador não se limita pura e simplesmente a admitir a executoriedade da decisão de aplicação de coima tributária antes da decisão transitada em julgado. O que faz é condicionar o efeito suspensivo do recurso à prestação de garantia ou demonstração da impossibilidade de o fazer devido à insuficiência total ou parcial de meios económicos. O que significa que a prestação de garantia emerge como um ónus para o recorrente que pretenda obter o efeito suspensivo do recurso, que leva a questão da eventual desconformidade do preceito a transferir-se para um juízo sobre a avaliação da adequação de tal ónus, à luz das exigências do princípio da proporcionalidade, tendo em conta o interesse público que presidiu à adopção de tal solução.
De todo o modo, vistas as coisas sob este prisma, afigura-se que, tendo em conta os interesses em jogo e fundamentalmente os que presidem ao regime da execução fiscal (SOARES MARTINEZ realça as características da celeridade e simplicidade instituídas no interesse do credor (Administração Tributária) que promove a execução e podem estender-se à execução coerciva das próprias coimas tributárias (cfr. Direito Fiscal, Almedina, Coimbra, 1995, p. 444). ), num juízo formulado em abstracto, o preceito se não afigura só por si inconstitucional.
Eventualmente só num caso concreto em que se discuta a dificuldade ou onerosidade da prestação de garantia, por exemplo, pela dificuldade de satisfazer o ónus de prova da insuficiência de meios económicos, poderá o tribunal ser confrontado com a necessidade de formular um tal juízo.
Mas não é o que se passa nos autos.
Como vimos, não vem questionada a eventual inconstitucionalidade do preceito nem o recorrido se escusou a prestar garantia.
A resposta à questão que vem posta há-de resultar da análise do enquadramento fáctico e jurídico que caracteriza a situação, tal como vem fixada.

2.1.2. Do efeito suspensivo do recurso jurisdicional interposto da rejeição liminar do recurso da decisão de aplicação da coima tributária
Como ficou dito, no ponto 2.1., a reclamante ora recorrida, recorreu da decisão de aplicação de coima por não entrega atempada de IVA, no montante de € 10.138,22, recurso que foi liminarmente rejeitado, por alegadamente o mesmo ter sido apresentado fora de prazo. Contra esta rejeição liminar interpôs a recorrida, em 29/2/2012, recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, que se encontra pendente.
Por outro lado, entretanto citada no processo de execução fiscal tendente à execução coerciva do valor da coima e acrescido, a recorrida apresentou junto da Administração Tributária requerimento pedindo que fosse reconhecido o efeito suspensivo do recurso que havia interposto para o STA ou que fosse aceite a prestação de garantia.
Este requerimento veio a ser indeferido por se ter entendido, recorde-se, entre o mais, que:
“(…) indefiro o pedido de suspensão por correr recurso de sentença em tribunal, não existir nenhum meio de contencioso susceptível de suspender o processo de execução fiscal nos termos do art° 169° do CPPT, com a fundamentação constante na informação que antecede.
“No âmbito do processo de execução fiscal os autos só ficam suspensos até à decisão do pleito em caso de reclamação graciosa, impugnação ou recurso judicial que tenham por objecto a legalidade da dívida, mediante a prestação de garantia idónea.
“No caso em apreço, o recurso judicial de sentença proferida pelo Tribunal não configura nenhum dos meios contenciosos enunciados no parágrafo anterior, pelo que não há base legal para a suspensão do processo executivo nos termos do art° 169° do CPPT”.
Nas alegações de recurso para este Supremo Tribunal sublinha a Administração Tributária que “decorre do art. 84° do RGIT, o recurso só tem efeito suspensivo se o arguido prestar garantia no prazo de 20 dias, por qualquer das formas previstas nas leis tributárias, salvo se demonstrar em igual prazo que a não pode prestar, no todo ou em parte, por insuficiência de meios económicos”.
A Administração Tributária, sem atender às circunstâncias do caso, parte do pressuposto de que não estando prestada garantia, encontra-se violado o art. 84º do RGIT, uma vez que o mesmo fixa o prazo de vinte dias para esse efeito.
Ora, o que cabe resolver é se, encontrando-se pendente recurso para o Supremo Tribunal Administrativo da decisão do Tribunal de primeira instância que rejeitou liminarmente o recurso da decisão administrativa de aplicação da coima, é legítimo que a Administração Tributária prossiga a execução ou o faça sem, no mínimo, dar oportunidade à recorrida de prestar garantia, nos termos gerais.
Afigura-se que não basta a Administração Tributária alegar que o recurso não tem efeito suspensivo por incumprimento do disposto no art. 84º do RGIT, sem ter em conta que a prestação de garantia só tem sentido se o recurso for admitido, o que ainda não aconteceu. Ou seja, a Administração Tributária adianta-se na execução coerciva da coima, sem averiguar se foi dada oportunidade ao recorrido de prestar garantia.
A este propósito realce-se que o regime do RGIT não é muito claro.
Com efeito, no art. 83º, nº 3, do RGIT, estabelece-se que “O recurso é interposto no prazo de 20 dias a contar da notificação do despacho, da audiência do julgamento ou, caso o arguido não tenha comparecido, da notificação da sentença”.
Por sua vez, diz-se no art. 84º do RGIT que o recurso só tem efeito suspensivo se o arguido prestar garantia no prazo de 20 dias.
Por conseguinte, neste último caso, embora se perceba que o prazo de 20 dias se refere ao relativo à prestação de garantia, a lei nada adianta a partir de que momento o mesmo se deve contar, nem como, isto é, se depende do impulso do tribunal ou da Administração Tributária.
Em anotação ao preceito, JORGE LOPES DE SOUSA/ SIMAS SANTOS escrevem que o prazo para a prestação de garantia é de 20 dias a contar da notificação do seu montante.
Por conseguinte, na interpretação do art. 84º do RGIT deve ter-se em conta que o contribuinte tem de ser notificado para a prestação de garantia e de que montante, não dependendo dele esse impulso.
No caso dos autos, o que se verifica é que a Administração Tributária actuou como se o contribuinte, notificado para prestar garantia, o não tivesse feito, e como se não se encontrasse pendente a apreciação de um recurso liminarmente rejeitado, solução que não podemos corroborar como correcta.
Perante o circunstancialismo do caso, impunha-se que a Administração Tributária ao pretender prosseguir a execução da coima devesse notificar a contribuinte para prestar garantia, nos termos gerais, ou aceitar a prestação da mesma conforme requerimento apresentado nesse sentido.
O que está vedado à Administração Tributária é, prevalecendo-se dos seus poderes coercivos, fazer tábua rasa de um recurso jurisdicional pendente em que se discute a admissibilidade da recorrida recorrer jurisdicionalmente da decisão de aplicação de coima e que ainda pode vir a ter efeito suspensivo.
Acresce que, nas circunstâncias dos autos, a admitir-se a continuação da execução da coima, caso o recurso viesse a obter provimento, o mesmo tornar-se-ia inútil e irremediavelmente comprometido, com a consequente violação do direito à tutela judicial efectiva (arts. 20º e 268º, nº 5, da CRP).
Assim sendo, por tudo o que vai exposto, uma interpretação conforme à Constituição do art. 84º do RGIT, mediada pelo direito à tutela judicial efectiva, leva-nos a concluir que, em caso de rejeição liminar do recurso de decisão de aplicação de coima tributária, a Administração Tributária só pode prosseguir a execução, na pendência de recuso daquela rejeição, depois de notificar o recorrente para prestar garantia ou demonstrar que a não pode prestar, por insuficiência de meios económicos, nos termos gerais, sob pena de em caso de eventual provimento do recurso o mesmo se tornar inútil, com violação do direito à tutela judicial efectiva (cfr. os arts. 20º e 268º, nº 4, da CRP).
Não encontrando a interpretação sufragada pela Administração Tributária apoio legal, improcedem as alegações da recorrente, devendo confirmar-se a sentença “a quo”, ainda que com distinta fundamentação.


III- DECISÃO

Termos em que os Juízes Conselheiros da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida, com distinta fundamentação.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 15 de Maio de 2013. - Fernanda Maçãs (relatora) - Casimiro Gonçalves - Francisco Rothes.