Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0403/14
Data do Acordão:10/09/2014
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MADEIRA DOS SANTOS
Descritores:RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
ACTO LEGISLATIVO
INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
Sumário:I – Não é nula, por omissão de pronúncia, a decisão que enfrentou a primeira questão de direito que se lhe colocava e cuja resolução prejudicou o conhecimento de todas as demais.
II – O art. 75° da Lei do Orçamento de Estado para 2014 tem natureza normativa, pois está dotado dos atributos de generalidade e abstracção.
III – Nenhuma inconstitucionalidade há em considerar legislativos os actos normativos enunciados sob essa forma.
IV – Dado o que se dispõe no art. 4°, n.º 2, al. a), do ETAF, a jurisdição administrativa é incompetente em razão da matéria para conhecer da acção em que se impugne o acto incluso naquele art. 75°.
Nº Convencional:JSTA000P18041
Nº do Documento:SA1201410090403
Data de Entrada:04/01/2014
Recorrente:A............ E OUTROS
Recorrido 1:ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:
A………… e os demais autores na acção destes autos, nela identificados, vieram reclamar para a conferência da decisão do relator, de fls. 756 e ss, que julgou a jurisdição administrativa incompetente, em razão da matéria, para conhecer do pleito e absolveu da instância as entidades demandadas - a Assembleia da República, o Ministério das Finanças, o Ministério da Economia e ainda, como contra-interessado, o Metropolitano de Lisboa, EPE.
Os reclamantes concluíram essa sua peça com as conclusões seguintes, expressivas das razões por que se insurgem contra o despacho «sub specie»:
A) Entende o Despacho/sentença que o artigo 75° do OE 2014, “pelas suas características de generalidade e abstracção é uma norma, uma regra de conduta, que não corresponde ao conceito de ato administrativo do artigo 120° do CPA, uma vez que este exige a produção de efeitos jurídicos numa situação individual e concreta”;
B) Tal conclusão baseou-se na simples apreciação dos diversos números do artigo 75° do OE 2014, sem atender a tudo o que foi dito pelos Autores e que evidencia que tal artigo encerra uma medida concreta e individualizada, completamente delimitada no tempo;
C) Ao longo da petição inicial demonstraram os Autores que o artigo 75° do OE 2014 mais não é do que uma medida materialmente administrativa que tem unicamente por destinatários os trabalhadores de empresas de transportes urbanos de Lisboa, visando diminuir os custos operacionais de tais empresas a fim de ser dada a concessão da sua exploração a privados, processo esse que, aliás, se encontra em curso, como tem sido sobejamente publicitado;
D) Demonstraram ainda, através de prova documental, que tal medida visa atingir certo e determinado objetivo e que se esgota logo que o mesmo seja cumprido, ou seja, logo que ocorra a concessão dos transportes urbanos de Lisboa a entidades privadas;
E) O Despacho/sentença não aborda um único dos fundamentos de facto e de direito invocados pelos Autores e limita-se a analisar, superficialmente, a redação do artigo 75° para daí concluir, sem mais, pela “natureza normativa do artº. 75º da Lei nº 83-C/2013”
F) O próprio Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 413/2014, coloca a questão de saber qual o âmbito de aplicação subjetivo do artigo 75º do OE, sem chegar a uma conclusão por não dispor de “informação suficiente para determinar quais as empresas e, no âmbito destas, quais os trabalhadores e ex-trabalhadores que serão afetados e em que termos”
G) Ora, o STA intervém neste processo em primeira instância, razão pela qual podia e devia ter procurado conhecer todos os factos necessários à decisão da causa, máxime os que foram carreados para os autos pelos Autores;
H) Contudo, o Despacho/sentença em causa limitou-se a fazer uma interpretação literal do artigo 75° do OE 2014, constatando ainda que os destinatários do “acto jurídico em causa não são concretamente identificados, mas definidos por referência às categorias universais de «trabalhadores no activo» e de «antigos trabalhadores aposentados, reformados e demais pensionistas»”;
I) Não obstante terem os Autores explicado longamente que os requisitos de aplicação do artigo 75º eram de tal forma restritivos que só duas empresas os preenchiam, Metropolitano de Lisboa e Carris, o que foi totalmente ignorado pelo Despacho/sentença sub judice;
J) Concluiu ainda o referido Despacho/sentença que a aplicação da “norma” aos trabalhadores no ativo implica, por si só, “que não sejam determináveis todos os destinatários do comando”;
K) Tal é desmentido pelos Autores, e consta do Acordo de Empresa de 2004, já que a cláusula relativa aos complementos de reforma foi alterada e passou a ser aplicada apenas aos trabalhadores do Metropolitano de Lisboa que haviam sido admitidos na empresa até 31 de Dezembro de 2003;
L) Ainda que assim não fosse, com a tão propalada denúncia dos contratos coletivos de trabalho, a questão deixa de se colocar já que, após caducarem, não se vislumbra que possam vir algum dia a ser repostas as cláusulas que os contemplam;
M) Segundo o Despacho/sentença, o art. 75º é ainda dotado de abstração “pois que não determina a produção de um único efeito jurídico, com o qual se esgota, mas é passível de aplicação ao longo do tempo (vide nº 6)”;
N) Contudo, na sua petição inicial, os Autores demonstraram abundantemente, invocando factos concretos (v. arts. 27º a 77º), que tal medida é definitiva, e não provisória, como pretende fazer crer o nº 6 do artigo 75º;
O) Por outro lado, é de realçar que a “norma” em causa só se aplica a situações ocorridas no passado já que o seu n.º 1 é claro ao especificar que apenas estão abrangidas “(N)as empresas do sector público empresarial que tenham apresentado resultados líquidos negativos nos três últimos exercícios apurados, à data da entrada em vigor da presente lei, ...”
P) Contrariamente à conclusão retirada no Despacho/sentença, os factos carreados para os autos pelos Autores, demonstram claramente que o artigo 75° do OE 2014 não é dotado de generalidade, nem de abstração, antes é dirigido a resolver um problema concreto de natureza político-administrativa - visa criar as condições necessárias à concessão da exploração de certas e determinadas empresas de transportes urbanos que integram o setor público empresarial;
Q) O Despacho/sentença, ao ignorar todas as questões relevantes para a apreciação da causa que foram suscitadas pelos Autores, incorreu em omissão de pronúncia pelo que enferma da nulidade prevista no art. 615º, nº 1, alínea d) do CPC, aplicável por força do art. 1º do CPTA;
R) Por outro lado, o referido Despacho/sentença defende igualmente que “são legislativos, independentemente do seu conteúdo, todos os actos normativos que provenham de um órgão com competência legislativa, que assumam as formas de lei, decreto-lei ou decreto legislativo regional (artº. 112º/1 CRP), e tenham sido elaborados de acordo com os respectivos procedimentos constitucionalmente prescritos”;
S) Ora, a interpretação segundo a qual o artigo 112°, n° 1 da CRP consagra um critério formal de lei, decreto-lei ou decreto legislativo regional, sendo suficiente apurar se o diploma em causa foi emitido pelo órgão legislativo competente e obedeceu aos procedimentos instituídos na Constituição, tal interpretação tem, ela própria, de ser considerada inconstitucional por contrária aos princípios subjacentes a um Estado de direito democrático, como proclamado para a República Portuguesa no artigo 2º da Lei Fundamental;
T) Para além disso, tal interpretação normativa é igualmente inconstitucional por pôr em causa o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º, nº 1 e ainda por violar o disposto no artigo 18º, nº 3, ambos da Lei Fundamental.

O Ministério da Economia respondeu, concluindo do seguinte modo:
a) Bem se decidiu, no despacho reclamado, ao considerar-se que o art.º 75º da Lei n.º 83-C/2013, não é um ato administrativo, mas um ato normativo praticado no exercício da função política e legislativa;
b) No despacho reclamado, o referido art.º 75.º da LOE 2014 foi analisado face aos vários critérios de definição de lei e ato administrativo – orgânico, formal, e sobretudo à luz do critério material, que é decisivo;
c) A sua natureza de ato normativo resulta do facto de ter por características a generalidade e a abstração, pelo que é indubitável que os comandos dispositivos contidos no referido artigo 75º o configuram como um verdadeiro ato legislativo;
d) Na realidade, a previsão e estatuição do artigo 75.º é típica de atos normativos de natureza legislativa, porquanto os seus destinatários são indeterminados, não existe uma individualização ou concretização, pelo que a norma é, como se disse, geral e abstrata;
e) Contrariamente ao alegado pelos reclamantes, o art.º 75.º da LOE 2014 não tem unicamente por destinatários os trabalhadores de empresas de transportes de Lisboa;
f) Aliás, no Acórdão n.º 413/2014, considerou o Tribunal Constitucional que “o Tribunal não dispõe de informação suficiente para determinar quais as empresas e, no âmbito destas, quais os trabalhadores e ex-trabalhadores que serão afetados e em que termos”.
g) No entanto, reconheceu o mesmo Tribunal que, o âmbito de aplicação do art.º 75º da LOE 2014 é mais amplo, não se circunscrevendo às empresas do Metropolitano de Lisboa e Carris. Este preceito aplica-se a todas as empresas do sector público empresarial, desde que o pressuposto específico da apresentação consecutiva de resultados líquidos negativos nos três últimos exercícios apurados, à data da entrada em vigor da Lei n.º 83-C/2013, se verifique;
h) Acresce que, também não assiste razão aos reclamantes quando alegam que, a “norma” em causa só se aplica a situações ocorridas no passado já que o seu n.º 1 é claro ao especificar que apenas estão abrangidas “[N]as empresas do setor público empresarial que tenham apresentado resultados líquidos negativos nos últimos três exercícios apurados, à data da entrada em vigor da presente lei;
i) Porquanto, na mesma “norma”, no seu n.º 6, por seu turno, dispõe para o futuro quando consagra que: “O pagamento de complementos de pensão é retomado num contexto de reposição do equilíbrio financeiro das empresas do setor público empresarial, após a verificação de três anos consecutivos de resultados líquidos positivos.”;
j) O despacho reclamado, na apreciação do litígio dos presentes autos, seguiu a jurisprudência do STA que tem lançado mão de um critério operativo formal, igualmente defendido na doutrina, segundo o qual são legislativos, independentemente do seu conteúdo, todos os atos normativos que provenham de um órgão com competência legislativa, que assumam as formas de lei, decreto-lei, ou decreto legislativo regional (art.º 112.º/1CRP), e tenham sido elaborados de acordo com os respetivos procedimentos constitucionalmente prescritos;
k) Pelo que, à luz deste critério, só se poderia considerar que as normas em causa são normas legislativas, pois, estão inseridas em lei da Assembleia da República, praticado no exercício da função política e legislativa;
l) Neste sentido, e de acordo com o disposto no artigo 40, nº 2, al. a) do ETAF, está expressamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de conflitos cujo objeto seja a impugnação de atos/normas praticados no exercício da função política e legislativa;
m) O despacho reclamado não ignorou as questões suscitadas pelos ora reclamantes, e o facto de não as considerar relevantes para a decisão da causa não consubstancia a alegada omissão de pronúncia, pelo que, o despacho reclamado não enferma da alegada nulidade prevista no art.º 615º, n.º 1, alínea d) do CPC, aplicável por força do art.º 1.º do CPTA;
n) Por último, quanto às alegações de que a interpretação segundo a qual o art.º 112.º, 1 da CRP consagra um critério formal de lei, decreto-lei ou decreto legislativo regional, sendo suficiente apurar se o diploma em causa foi emitido pelo órgão legislativo competente e obedeceu aos procedimentos instituídos na constituição, tal interpretação tem, ela própria, de ser considerada inconstitucional, por contrária aos princípios subjacentes a um Estado de direito democrático, e pôr em causa o princípio da igualdade, consagrado, respetivamente, nos art.º 2.º, 13.º e 18.º da CRP;
Refira-se que,
o) No despacho reclamado, a apreciação da norma em causa não se bastou pelo critério formal, para além deste analisou-se a norma sob a perspetiva material e no que respeita ao seu conteúdo.

Respondeu também a Assembleia da República, oferecendo as seguintes conclusões:
1) A omissão de pronúncia que os Reclamantes apontam ao Despacho/Sentença reclamado não é uma omissão de pronúncia — vício que só tem lugar quando a sentença não conhece de questão que devia ter conhecido — mas o de não ter relevado (eventualmente rebatido) os argumentos que os Autores aduziram no intuito de demonstrarem que o artigo 75.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, não é uma norma, por não ser dotado de generalidade e de abstracção, antes encerra um ato materialmente administrativo (concreto e individualizado) que tem unicamente por destinatários os trabalhadores de duas empresas de transportes urbanos de Lisboa (Metropolitano de Lisboa e Carris) — cf. conclusões A a Q da Reclamação;
2) O despacho reclamado apreciou e decidiu, fundamentadamente, a questão atinente à natureza jurídica do ato jurídico impugnado e o facto de não ter eventualmente dissecado um a um todos os argumentos que foram invocados pelos Autores em abono da tese de que se está perante um ato (individual e concreto) materialmente administrativo praticado sob a forma legislativa não constitui a alegada omissão de pronúncia;
3) O despacho reclamado não enferma, pois, da nulidade prevista no artigo 615.º, nº 1, alínea d), do CPC, aplicável por força do artigo 1.º do CPTA;
4) Certo é que o artigo 75º da Lei n° 83-C/2013, de 31 de Dezembro, como bem se decidiu no despacho reclamado, não contém um qualquer ato administrativo praticado sob a forma legislativa uma vez que não se destina a produzir efeitos jurídicos, directamente, numa determinada situação individual e concreta, mas sim, genericamente, em todas as situações, não pré-individualizadas, que nele se subsumam;
5) Certo é também que para além de ter carácter normativo e não conter qualquer ato administrativo, não foi o mencionado preceito emitido no exercício da função administrativa – caso em que poderia efectivamente ser impugnada nos tribunais administrativos (cf. artigo 49, n.º 1, alínea b), do ETAF e 72°, n.º 1, do CPTA) - mas sim no exercício da actividade legislativa cometida à Assembleia da República pelo artigo 161.º, alínea g), da CRP;
6) E assim sendo, bem andou o Ilustre Conselheiro Relator ao julgar a jurisdição administrativa incompetente, em razão da matéria, para conhecer da presente acção (artigo 4°, n.º 2, alínea a), do ETAF);
7) Ao considerar que o artigo 759 da Lei n.º 85-C/2013, de 31 de Dezembro, uma norma legislativa praticada no exercício da função político-legislativa o despacho reclamado lança mão de um critério simultaneamente formal (por constar «de diploma com forma de lei - Lei do Orçamento de Estado para o ano de 2014 - que procede da Assembleia da República no exercício da sua competência política e legislativa [art. 161/g) da CRP») e material (porque consagra «volições políticas primárias e tem como parâmetro de validade imediata a constituição e não outra lei»);
8) Não corresponde, assim, à realidade a alegação feita pelos Reclamantes de que a decisão reclamada se fundamenta na interpretação «segundo a qual o artigo 112º., nº 1, da CRP consagra um critério formal de lei, decreto-lei ou decreto-legislativo regional, sendo suficiente apurar se o diploma em causa foi emitido pelo órgão legislativo competente e obedeceu aos procedimentos instituídos na Constituição ...»;
9) Daí ser despicienda a apreciação da questão relativa à inconstitucionalidade (por alegadamente atentar contra o princípio do Estado de Direito democrático e o princípio da igualdade, consignados nos artigo 2º e 13º., nº 1, e por violar o artigo 18º., nº 3, da Constituição) de uma tal interpretação normativa, à qual se referem as conclusões R) S) e T) da presente reclamação.

Respondeu ainda o Metropolitano de Lisboa, concluindo o seguinte:
A) Como bem se refere no Despacho do Relator, o artigo 75.° da LOE, Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, reveste-se de características de generalidade e abstracção.
B) De um ponto de vista substantivo, estas características, conjuntamente com o facto de os seus efeitos não se encontrarem delimitados por uma situação individual e concreta, afastam a qualificação do artigo como um ato administrativo, integrando-o na categoria dos actos normativos.
C) De um ponto de vista subjectivo, ressalta a competência da Assembleia da República para a prática de atos legislativos, no âmbito da qual foi praticado o ato legislativo de aprovação da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, onde se integra o artigo 75.º cuja anulação os Requerentes peticionam.
D) O despacho recorrido esteve por isso bem quando considerou que, de um ponto de vista objectivo e subjectivo, o artigo 75.º da Lei nº 83-C/2013, de 31 de Dezembro constitui um ato de natureza normativa, praticado no âmbito do exercício da função política e legislativa da Assembleia da República.
E) Sem prejuízo desta (correcta) decisão proferida através do Despacho recorrido e como a Contra-interessada alegou, refira-se que o artigo 75.º da LOE, não se traduzindo num acto administrativo, consubstancia uma norma de natureza laboral, uma vez que o pagamento dos complementos de pensão, no caso da Contra-interessada, decorre do normativo constante de um Acordo de Empresa.
E) Pelo que recaindo sobre os Tribunais do Trabalho, de acordo com o artigo 85.º alínea b) da LOFTJ, a competência para conhecer em matéria cível, as questões emergentes das relações de trabalho subordinado, sempre seria este o Tribunal competente para dirimir os conflitos decorrentes da aplicação do artigo 75.º da LOE.

E também o Ministério das Finanças respondeu à reclamação, pugnando pela bondade do despacho em crise.

Cumpre decidir.
A presente reclamação tem por objecto o despacho do relator que julgou a jurisdição administrativa incompetente «ratione materiae» para o conhecimento da acção administrativa especial dos autos e, por isso, absolveu da instância todos os demandados.
Tal despacho tem o teor seguinte:

«1. A………… e outros, todos devidamente identificados a fls. 3 e 4 dos autos, vêm instaurar contra a Assembleia da República, Ministério das Finanças, o Ministério da Economia e o contra – interessado Metropolitano de Lisboa, E.P.E., acção administrativa especial de impugnação “do acto materialmente administrativo” que decorre da “norma” constante do artigo 75º do Orçamento de Estado para 2014 (Lei nº 83-C/2013, de 31 de Dezembro.
1.1 Os autores alegam, em síntese, que (i) as prescrições contidas no artigo 75º da Lei nº 83-C/2013, de 31 de Dezembro, têm a natureza de “cavaliers budgétaires” ou “riders”, pois que são disposições inseridas na lei orçamental mas que não têm qualquer ligação com as matérias que a esta dizem respeito e que (ii) violam o direito de contratação colectiva e os princípios da confiança, da proporcionalidade e da igualdade, todos eles constitucionalmente protegidos.
1.2. A Assembleia da Republica apresentou contestação na qual se defendeu apenas por excepção, alegando, em resumo, que a presente acção tem por objecto uma norma legislativa, emanada no exercício da função político - legislativa do Parlamento e que, por consequência, de acordo com o previsto no art. 4º/2/a) do ETAF, a apreciação do litígio está excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal.
1.3. O Ministério das Finanças contestou, defendendo-se por excepção e por impugnação.
Suscita as questões prévias de incompetência absoluta da jurisdição administrativa (alegando que a medida contida no citado artigo 75º é “um acto normativo emanado da Assembleia da República, sob a forma típica de acto legislativo, directamente no exercício da função político - legislativa, e não de qualquer função administrativa) e de ilegitimidade passiva (defendendo, no essencial, que não é parte na relação material controvertida.
Quanto ao mérito, sustenta que o pedido deve improceder, porquanto a medida impugnada “não padece de nenhuma das inconstitucionalidades ou ilegalidades apontadas pelos Autores”.
1.4. Também o Ministério da Economia apresentou contestação na qual defende, igualmente, que o litígio está excluído do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal (por versar sobre um acto normativo procedente da função política e legislativa), que não tem legitimidade para a acção (por não ser parte na relação material controvertida) e, quanto ao mérito, que o pedido deve ser julgado improcedente, porque a medida impugnada não ofende os direitos e princípios invocados pelos Autores.
1.5. Por sua vez o Metropolitano de Lisboa, na sua contestação, suscita as questões prévias da incompetência absoluta dos tribunais administrativos, da falta de indicação dos contra – interessados e da não identificação do acto impugnado; quanto ao mérito propugna pela improcedência da acção.
1.6. Os autores responderam às excepções suscitadas, pedindo que, todas elas, sejam julgadas improcedentes.
Cumpre conhecer, prioritariamente, da questão da incompetência (art. 13º CPTA).
2. 2. Está provado que o artigo 75º da Lei nº 83-C/2013, de 31 de Dezembro, diploma que aprovou o Orçamento do Estado para o ano de 2014, sob a epígrafe “complementos de pensão”, determina o seguinte:
1 As empresas do sector público empresarial que tenham apresentado resultados líquidos negativos nos três últimos exercícios apurados, à data de entrada em vigor da presente lei, apenas é permitido o pagamento de complementos às pensões atribuídas pelo Sistema Previdencial da Segurança Social, pela CGA, I.P., ou por outro sistema de protecção social, nos casos em que aqueles complementos sejam integralmente financiados pelas contribuições ou quotizações dos trabalhadores, através de fundos especiais ou outros regimes complementares, nos termos da legislação aplicável.
2 O disposto no número anterior aplica-se ao pagamento de complementos de pensão aos trabalhadores no activo e aos antigos trabalhadores aposentados, reformados e demais pensionistas.
3 O pagamento de complementos de pensão pelas empresas a que se refere o n.º 1, fora das condições estabelecidas nos números anteriores, encontra -se suspenso.
4 Exceptua-se do disposto nos números anteriores o pagamento de complementos de pensão pelas empresas que já os realizavam em 31 de Dezembro de 2013, nos casos em que a soma das pensões auferidas pelo respectivo beneficiário do Sistema Previdencial da Segurança Social da CGA, I.P., e de outros sistemas de protecção social seja igual ou inferior a 600 Euros mensais.
5 Nos casos a que se refere o número anterior, o valor mensal do complemento de pensão encontra-se limitado ao valor mensal de complemento de pensão pago a 31 de Dezembro de 2013 e à diferença entre os E 600 mensais e a soma das pensões mensais auferidas pelo respectivo beneficiário do Sistema Previdencial da Segurança Social da CGA, I. P., e de outros sistemas de protecção social.
6 O pagamento de complementos de pensão é retomado num contexto de reposição do equilíbrio financeiro das empresas do sector público empresarial, após a verificação de três anos consecutivos de resultados líquidos positivos.
7 O regime fixado no presente artigo tem natureza imperativa, enquanto se verificarem as condições nele estabelecidas, prevalecendo sobre contratos de trabalho ou instrumentos de regulação colectiva de trabalho e quaisquer outras normas legais, especiais ou excepcionais, em contrário, não podendo ser afastado ou modificado.

3. Na presente acção pede-se a anulação do acto materialmente administrativo contido no artigo 75º da Lei nº 83-C/2013, de 31 de Dezembro.
Para decidir se a apreciação do litígio está, ou não, excluída do âmbito da jurisdição administrativa, de acordo com o disposto no art. 4º/2/a) ETAF, importa saber, antes de mais, se a prescrição em causa é um acto administrativo ou um acto normativo.
Ora, olhando o texto do citado artigo, vemos que os destinatários do acto jurídico em causa não são concretamente identificados, mas definidos por referência às categorias universais de “trabalhadores no activo” e de “antigos trabalhadores aposentados, reformados e demais pensionistas”. E, para além de não haver individualização de pessoas, a previsão de aplicação aos “trabalhadores no activo”, sem restrição aos que estão actualmente no activo, implica, por si só, que não sejam determináveis todos os destinatários do comando.
Deste modo, o acto é dotado de generalidade. E também de abstracção, pois que não determina a produção de um único efeito jurídico, com o qual se esgota, mas é passível de aplicação ao longo do tempo (vide nº 6).
O mesmo é dizer que o comando, pelas suas características de generalidade e abstracção é uma norma, uma regra de conduta, que não corresponde ao conceito de acto administrativo do artigo 120º do CPA (cfr. a este respeito Freitas do Amaral, “ Curso de Direito Administrativo”, II, 2ª ed. pp. 196 a 199 e Mário Aroso de Almeida, in “Teoria Geral do Direito Administrativo, temas nucleares”, pp 79 a 85.), uma vez que este exige a produção de efeitos jurídicos numa situação individual e concreta.
Posto isto, adquirida a natureza normativa do art. 75º da Lei nº 83-C/2013, importa saber se o mesmo foi praticado no exercício da função política e legislativa ou se foi emanado ao abrigo de disposições de direito administrativo.
No primeiro caso, o litígio está excluído no âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos [art. 4º/2/a) do ETAF]. No segundo, a demanda é da competência dos tribunais da ordem administrativa (art. 4º/1/b) ETAF).
Neste ponto, não vemos razão para nos apartarmos da jurisprudência deste Supremo Tribunal (vide aos acórdãos de 2004.03.16 - proc 1343/03, de 2006.10.26 proc 255/2006, de 2007.12.05 proc 1111/06, de 2009.01.21 proc 811/08 e de 2011.05.10 proc 02/11 e 0901/11 de 2012.01.31.) que tem lançado mão de um critério operativo formal, igualmente defendido na Doutrina (Vide Freitas do Amaral, in “Curso de Direito Administrativo”, II 2ª ed. pp 195, e demais Doutrina aí citada.) segundo o qual são legislativos, independentemente do seu conteúdo, todos os actos normativos que provenham de um órgão com competência legislativa, que assumam as formas de lei, decreto-lei ou decreto legislativo regional (art. 112º/1 CRP), e tenham sido elaborados de acordo com os respectivos procedimentos constitucionalmente prescritos.
À luz deste critério, é inequívoco que as normas em causa são normas legislativas: constam de diploma com forma de lei – Lei do Orçamento de Estado para o ano de 2014 - e procedem da Assembleia da República, no exercício da sua competência política e legislativa [art. 161º/g) da CRP].
Legislativas serão, ainda, de acordo com o critério material: consagram volições políticas primárias e têm como parâmetro de validade imediata a constituição e não outra lei.
E, porque assim, o litígio está excluído do âmbito da jurisdição administrativa [art. 4º/2/a) do ETAF].
4. Pelo exposto, julga-se a jurisdição administrativa incompetente, em razão da matéria, para conhecer da presente acção e absolvem-se as entidades demandas da instância [art. 288/1/a)] do CPC.
Custas pela autora, fixando-se o valor da causa em € 30 001,00.»

O ataque mais radical que os reclamantes dirigem ao despacho «sub censura» consiste na arguição da sua nulidade, por omissão de pronúncia. Assim, e na óptica dos reclamantes, o despacho teria ignorado «todas as questões relevantes para a apreciação da causa» - o que se liga às denúncias de que a decisão reclamada não conheceu de todos os factos alegados, não abordou os fundamentos indicados pelos autores e pecou por superficialidade na análise do art. 75º da LOE de 2014.
Mas os reclamantes não têm razão. A circunstância do despacho não ter escalpelizado todos os argumentos invocados pelos autores em prol da existência, naquele art. 75º, de um acto administrativo vero e próprio é irrelevante; pois a omissão de pronúncia, invalidante das decisões judiciais, só surge quando falte o tratamento de «quaestiones juris» decisivas – e não também quando se não enfrentem as razões ou os argumentos invocados a propósito delas.
Ora, a primeira «quaestio juris» que ao relator se deparava consistia em saber se o dito art. 75º era um acto administrativo ou, antes, um acto normativo – podendo uma decisão neste último sentido prejudicar o conhecimento de tudo o mais. E o despacho reclamado, na medida em que inequivocamente se ocupou do assunto, está imune à crítica de que é nulo – seja por haver silenciado tal matéria, seja por não ter conhecido do mais que se lhe seguia e que ficara prejudicado («vide» o art. 608º, n.º 2, do CPC).
O despacho reclamado divisou, no mesmo art. 75º, as características de generalidade e abstracção, daí inferindo a sua natureza normativa. Mas os reclamantes afrontam essa posição do relator, pois afirmam que o artigo tem destinatários determinados – não apenas porque só trata de situações passadas, mas também porque antecipadamente se sabe quem são os visados pela medida impugnada na acção.
Todavia, e por um lado, é falso que esse art. 75º incida sobre o passado. A convocação do passado consta do artigo no estrito plano do recorte o seu campo de aplicação; contudo, a aplicação propriamente dita dar-se-á relativamente a situações futuras – o que também afasta a ideia de uma qualquer retroactividade.
Por outro lado, a circunstância de se poder antecipar que só os trabalhadores desta ou daquela empresa serão afectados pelo dito art. 75º não lhe confere um grau de individualização e de concretude negadores das notas de generalidade e abstracção. E, no que toca à atribuição destas duas características ao mesmo art. 75º, expressamos aqui a nossa inteira concordância com as considerações tecidas no despacho reclamado, as quais são conformes à jurisprudência corrente.
O relator também disse que são legislativos todos os actos normativos enunciados sob essa forma, o que traduziu a recusa, habitual neste ramo do Direito, de que haja regulamentos sob forma legislativa. Ora, os reclamantes consideram que essa recusa é inconstitucional, por ofensa dos princípios do Estado de direito democrático e da igualdade e por violação do art. 18º, n.º 3, da CRP.
Mas é obscura a razão por que, ao tomar-se um acto formalmente legislativo como tal, se ofenderia o disposto no art. 2º da CRP. Também não se percebe como poderia essa posição doutrinal e jurisprudencial ofender o princípio da igualdade – até porque todas as violações deste género pressupõem uma qualquer comparação, que os reclamantes não indicaram. Por último, a afirmação de que o art. 75º da LOE de 2014 reflecte um acto legislativo com carácter geral e abstracto é, em si mesma, insusceptível de ferir o art. 18º, n.º 3, da CRP. Já apurar se tal norma é constitucional ou inconstitucional é outra coisa – que, evidentemente, extravasa da qualificação dela como pronúncia legislativa e do concomitante juízo acerca da competência absoluta do tribunal.
Perante o exposto, o despacho reclamado merece a nossa inteira adesão, mostrando-se irrelevantes ou improcedentes as múltiplas razões que os reclamantes invocam para obter a sua anulação ou revogação. E, dado o que se dispõe no art. 4º, n.º 2, al. a), do ETAF, reiteramos aqui o juízo de incompetência «ratione materiae», constante do despacho reclamado.

Nestes termos, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelos reclamantes.
Lisboa, 9 de Outubro de 2014. - Jorge Artur Madeira dos Santos (relator) – Maria Fernanda dos Santos Maçãs – José Augusto Araújo Veloso.