Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:072/19.4BCLSB
Data do Acordão:09/09/2021
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CLÁUDIO RAMOS MONTEIRO
Descritores:NULIDADE
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário:É nulo por omissão de pronúncia o acórdão que não conheceu de duas questões suscitadas relativamente à matéria de facto, ainda que o mesmo tenha dado razão quanto ao fundo à parte que as suscitou.
Nº Convencional:JSTA00071246
Nº do Documento:SA120210909072/19
Data de Entrada:07/23/2021
Recorrente:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL (CONSELHO DE DISCIPLINA - SECÇÃO PROFISSIONAL) E OUTROS
Recorrido 1:OS MESMOS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO DE REVISTA
Objecto:Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Decisão:CONCEDE PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO SUBORDINADO
Área Temática 1:DIREITO PROCESSUAL
Legislação Nacional:Artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO


I. Relatório

1. FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL - identificada nos autos – recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do n.º 1 do artigo 150.º do CPTA, do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), de 7 de novembro de 2019, que revogou o acórdão arbitral proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), de 23 de abril de 2019, que confirmou o Acórdão da Secção Disciplinar do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) que condenou a Recorrida SPORTING CLUBE DE BRAGA – FUTEBOL SAD, no pagamento de quatro multas no valor total de 21.040,00 €.

Nas suas alegações a Recorrente formulou, com relevo para a decisão de mérito, as seguintes conclusões:

« (…)

10. Não existe nenhuma crítica a fazer à decisão proferida pelo TAD, ao contrário do que entendeu o TCA Sul;

11. O Braga não colocou, em momento algum, em causa que estes factos aconteceram, colocou em causa, sim, que tenham sido adeptos do Braga os responsáveis pelos mesmos;

12. Tal como consta dos Relatórios de Jogo cujo teor se encontra a fls. … do processo arbitral, os Delegados da Liga, bem como as forças de segurança, são absolutamente claros ao afirmar que tais condutas foram perpetradas pelos adeptos do Braga, sem deixar qualquer margem para dúvidas;

13. Com base nesta factualidade, e atendendo à gravidade dos factos perpetrados, o Conselho de Disciplina instaurou o competente processo disciplinar à Recorrida;

14. Ao mencionado processo disciplinar foi junto, como não poderia deixar de ser, entre outros documentos, o relatório elaborado pelos delegados da Liga. Este relatório goza, consabidamente, da presunção de veracidade do seu conteúdo (cfr. Artigo 13.º, al. f) do RD da LPFP);

15. Os Delegados da LPFP são designados para cada jogo com a clara função de relatarem todas as ocorrências relativas ao decurso do jogo, onde se incluem os comportamentos dos adeptos que possam originar responsabilidade para o respetivo clube;

16. Assim, quando os Delegados da LPFP colocam nos seus relatórios que foram adeptos de determinada equipa que levaram a cabo determinados comportamentos, tal afirmação é necessariamente feita com base em factos reais, diretamente visionados pelos delegados no local. Até porque, caso coloquem nos seus relatórios factos que não correspondam à verdade, podem ser alvo de processo disciplinar;

17. Ainda, para formar uma convicção para além de qualquer dúvida razoável que permitisse chegar à conclusão de que a ora Recorrida devia ser punida pelas infrações pelas quais foi condenada, o CD coligiu ainda outra prova, que consta dos autos, tal como, por exemplo, o Relatório das Forças Policiais;

18. Neste particular, os relatórios das forças policiais, por serem exarados por “autoridade pública” ou “oficial público”, no exercício público das “respetivas funções” (para as quais é competente em razão da matéria e do lugar), constituem documento autêntico (art.º 363.º, n.º 2 do Código Civil), cuja força probatória se encontra vertida nos artigos 369.º e ss. do Código Civil. Com efeito, tal relatório faz «prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora» (cf. art.º 371.º, n.º 1 do Código Civil);

19. Sucede que, não obstante os relatórios de jogo juntos aos autos serem claríssimos ao afirmar que foram adeptos afetos ao Braga que levaram a cabo estes comportamentos, o TCA alega que nada existe nos autos que permita concluir que os atos sub judice – punidos pelo RD da LPFP – foram praticados por sócio, adepto ou simpatizante do clube recorrido;

20. Manifestamente, o acórdão recorrido não tomou em consideração a presunção de veracidade legal e regulamentarmente estabelecida para os relatórios de policiamento desportivo e dos delegados da LPFP, respetivamente;

21. E é, precisamente, esta presunção de veracidade que, inscrevendo-se nos princípios fundamentais do procedimento disciplinar, confere um valor probatório reforçado aos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP e pelas forças policiais relativamente aos factos deles constantes que estes tenham percecionado.

22. Isto não significa que os Relatórios Delegados da LPFP e das forças de segurança contenham uma verdade completamente incontestável: o que significa é que o conteúdo dos Relatórios, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que foram adeptos ou simpatizantes da recorrida que levaram a cabo os comportamentos sub judice;

23. Tal não significa que quem acusa não tenha o ónus de provar. Trata-se de abalar uma convicção gerada por documentos que beneficiam de uma especial força probatória;

24. E, para abalar essa convicção, cabia ao clube, no lugar de se remeter ao silêncio, apresentar contraprova. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.º do Código Civil;

25. Quanto à questão de saber se a ora recorrida pode ser responsabilizada a título de culpa por esses comportamentos, mais uma vez, nenhuma crítica há a fazer à decisão do Conselho de Disciplina;

26. Entende o TCA Sul que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta dos Relatórios de Jogo) que o Braga violou deveres de formação a que se encontra adstrito, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo, o que, como sabemos, não é possível;

27. Ora, o Relatório dos Delegados da LPFP, bem como o Relatório de Policiamento Desportivo do jogo dos autos, atento os respetivos conteúdos, são perfeitamente suficientes e adequados para sustentar a punição do Braga no caso concreto.

28. Ademais, há que ter em conta, nos termos acima explanados, que no caso concreto existe uma presunção de veracidade do conteúdo de tais documentos.

29. Isto significa que o conteúdo dos Relatórios juntos aos autos, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que a Recorrida incumpriu os seus deveres.

30. Para abalar essa convicção, cabia ao Braga apresentar contraprova. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.º do Código Civil;

31. Em sede sancionatória, o “arguido”, não pode simplesmente remeter-se ao silêncio, aguardando, sem mais, o desenrolar do procedimento cabendo-lhe, pelo menos, colocar uma dúvida na mente do julgador correndo o risco de, não o fazendo, ser punido se as provas reunidas forem todas no mesmo sentido.

32. Do lado do Conselho de Disciplina, todos os elementos de prova carreados para os autos iam no mesmo sentido dos Relatórios dos Delegados da LPFP, pelo que dúvidas não subsistiam (nem subsistem) de que a responsabilidade que lhe foi assacada pudesse ser de outra entidade que não o Braga.

33. De modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo dos Relatórios, cabia à Recorrida demonstrar, pelo menos, que cumpriu com todos os deveres que sobre si impendem, designadamente em sede de Recurso Hierárquico Impróprio apresentado ou quanto muito em sede de ação arbitral. Mas a Recorrida não o demonstrou, em nenhuma sede;

34. Por seu turno, o TCA Sul nada analisa nem nada fundamenta;

35. Do conteúdo do Relatório de Jogo elaborado pelos Delegados da Liga, é possível extrair, desde logo, diretamente duas conclusões: (i) que o Braga incumpriu com os seus deveres, senão não tinham os seus adeptos perpetrado condutas ilícitas (violação do dever de formação); (ii) que os adeptos que levaram a cabo tais comportamentos eram apoiantes do Braga, o que se depreendeu por manifestações externas dos mesmos;

36. Isto significa que para concluir que quem teve um comportamento incorreto foram adeptos do Braga e não adeptos do clube visitante (e muito menos de um clube alheio a estes dois, o que seria altamente inverosímil), o Conselho de Disciplina tem de fazer fé no relatório dos delegados, os quais têm presunção de veracidade. Posteriormente, o clube pode fazer prova que contrarie estas evidências, porém, no caso concreto, tal não aconteceu;

37. O próprio Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 730/95, diz claramente que “o processo disciplinar que se manda instaurar (…) servirá precisamente para averiguar todos os elementos da infração, sendo que, por essa via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)”;

38. Neste sentido, veja-se o Acórdão deste STA proferido no âmbito do recurso n.º 297/18, interposto da decisão do TCA Sul tirada no processo n.º 144/17.0BCLSB que, dando provimento ao recurso de revista, diz que é lícito o uso das presunções judiciais e que cabe ao clube apresentar prova que contrarie a presunção de veracidade dos relatórios, o que no caso, não sucedeu;

39. Ainda que se entenda – o que não se concede – que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir o clube recorrido, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido – a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos da Recorrida e a violação dos respetivos deveres – foi retirado de outros factos conhecidos.

40. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com nenhum princípio constitucional, tal como o princípio da presunção de inocência ou o princípio da culpa, de acordo com jurisprudência, quer dos tribunais comuns, quer dos tribunais administrativos.

41. A tese sufragada pelo TCA é um passo largo para fomentar situações de violência e insegurança no futebol e em concreto durante os espetáculos desportivos, porquanto diminuir-se-á acentuadamente o número de casos em que serão efetivamente aplicadas sanções, criando-se uma sensação de impunidade em que pretende praticar factos semelhantes aos casos em apreço e ao invés, mais preocupante, afastando dos eventos desportivos, quem não o pretende fazer, em virtude do receio da ocorrência de episódios de violência.

42. Face ao exposto, deve o acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado por erro de julgamento, designadamente por errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 13.º, al. f), 183.º, n.º 2, 186.º, n.º 2 e 187.º, n.º 1, al. b), todos do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional.»


2. A Recorrida contra-alegou, concluindo que:
«- I -

i. Inconformada com o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 07.11.2019 pretende a recorrente, em sede de revista, ver esclarecido o critério legal da apreciação da prova em processo disciplinar desportivo.

ii. Fá-lo, pretendendo que este Supremo Tribunal Administrativo funcione como uma terceira instância de apelação.

iii. O juízo sobre a matéria de facto é, via de regra, insindicável, porquanto o Supremo Tribunal Administrativo só poderá revogá-lo e determinar que o Tribunal Central Administrativo dê como provados factos que julgou como não verificados em face da prova existente se e apenas na medida em que esse juízo tenha violado disposição legal expressa que fixe a força de determinado meio de prova (art. 150.º-4 do CPTA).

iv. Não se vê, nem a recorrente a identifica, que norma legal haja sido violada pelo Tribunal Central Administrativo na apreciação da prova, devendo o recurso interposto pela recorrente ser julgado improcedente.

v. A revogação pelo STA do decidido pelo Tribunal a quo, com o fundamento de que a prova dos autos seria suficiente para sustentar a decisão condenatória tomada pela recorrida, ultrapassando a apreciação da prova realizada pelas instâncias competentes, incorrerá em excesso de pronúncia e violará o regime do recurso de revista instituído pelo art. 150.º do CPTA.

vi. Acresce que, caso o acórdão proferido por este Tribunal ad quem anule a decisão recorrida, contrariando o previsto no art. 150.º do CPTA, com fundamento de que a decisão condenatória proferida pela demandada, aqui recorrente, seria de considerar plausível e sustentável à luz do regime normativo que incide sobre a valoração da prova em sede disciplinar desportiva, então incorrerá em violação do princípio constitucional da repartição de funções de apreciação de recursos de apelação e de revista atribuídas, respectivamente, aos Tribunais Centrais Administrativos e ao Supremo Tribunal Administrativo, violando, destarte, o princípio da segurança jurídica no âmbito do exercício de funções jurisdicionais pelos tribunais administrativos, corolário do princípio do Estado de direito consagrado no art. 2.º da CRP.
- II -

vii. O arguido em processo disciplinar, tal como ocorre em processo penal, não tem de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada, até porque, aliado ao ónus da prova que recai sobre o titular da acção disciplinar (cf. jurisprudência uniforme e pacífica, e reiteradamente afirmada nos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 19/01/95, rec. n.º 031486, de 14/03/96, rec. n.º 028264, de 16/10/97, rec. n.º 031496 e de 27/11/97, rec. n.º 039040), vigora ainda o princípio da presunção de inocência.

viii. O princípio da presunção de inocência do arguido, também presente no âmbito do processo disciplinar, tem como um dos seus principais corolários a proibição de inversão do ónus da prova, não impendendo sobre o arguido – in casu a recorrida o ónus de reunir as provas da sua inocência (neste sentido, a título de exemplo, veja-se o acórdão do TCA Norte de 02.10.2010, processo n.º 01551/05.8BEPRT, e ainda o acórdão do TCA Norte de 05.10.2012, processo n.º 01958/08.7BEPRT, disponíveis em www.dgsi.pt).

ix. Donde, toda a prova susceptível de conduzir à responsabilidade jurídico-penal do arguido deve ser carreada para os autos pelo titular da acção disciplinar, não sendo, por isso, admissível qualquer inversão do ónus da prova em sede disciplinar (cf. Acórdão do STA de 17.02.2008, processo n.º 0327/08, acórdão do STA de 28.04.2005, processo n.º 333/05, bem como o acórdão do STA de 12.01.1998, processo n.º 023940, disponíveis em www.dgsi.pt).

x. Portanto, sem que esteja demonstrada e devidamente comprovada, através de robustas provas, a materialidade e autoria da infracção disciplinar fica comprometida qualquer condenação do arguido/recorrida, que deve ter a seu favor a presunção de inocência (cf. Ac. TCAS de 02-06-2010, Proc. 5260/01).

xi. Ainda que os documentos gozem de uma presunção de veracidade e sejam elaborados pelos Delegados presentes ao jogo, não se podem aqui diminuir as exigências de prova e de sua apreciação, bastando-se com simples afirmações vertidas em relatórios.

xii. Nem mesmo a presunção de veracidade dos relatórios prevista no art. 13.º, f), do RD, pode contrariar o quadro normativo, dado que, mesmo beneficiando de uma presunção de verdade, não se trata de prova subtraída à livre apreciação do julgador.

xiii. A presunção de veracidade, prevista no art. 13.º f) do RD, dos factos que nele se prevê só abrange os factos constantes das declarações, relatórios e autos lavrados pelos agentes e que hajam sido por eles percepcionados, e não outros.

xiv. Ora, como é evidente, pela própria natureza das coisas, há elementos típicos que, por norma, não são demonstráveis através dos relatórios de jogo da equipa de arbitragem e/ou dos delegados da Liga, nomeadamente, os que se prendem com a infracção pelo clube, com culpa, dos deveres, legais ou regulamentares, a que estava adstrito, e com a conexão que há-de estabelecer-se entre essa infracção e a conduta proibida ocorrida.

xv. Face às normas e princípios que conformam o processo sancionatório, admitir a tese da recorrida equivaleria a uma violação das regras do ónus probatório e do princípio da presunção de inocência¸ o que deverá inevitavelmente conduzir ao repúdio de tal tese.

xvi. Repare-se que mesmo atentando ao descrito nos relatórios de jogo percebe-se que nenhum facto neles é sequer descrito em favor do preenchimento de pressuposto essencial dos tipos legais: uma actuação culposa da recorrida.

xvii. Porquanto se mostram por preencher todos os elementos das infracções e não tendo o titular da acção disciplinar carreado aos autos algum elemento de prova que depusesse em favor do preenchimento de pressuposto essencial exigido pelos tipos legais, sempre se impunha resolver “em favor do arguido por efeito da aplicação dos princípios da presunção de inocência do arguido e do “in dubio pro reo” – veja-se, com especial relevância nesta senda, o decidido no acórdão do TCAS de 07-02-2019, proferido no âmbito do proc. n.º 65/18.9BCLSB (TAD n.º 14/2018)

xviii. Face ao exposto, não padece o acórdão recorrido de qualquer erro de julgamento, tendo subsumido correctamente os factos alegados ao direito aplicável.
- III -

xix. Se, por mera hipótese de raciocínio, proceder a tese da recorrente, reputa-se como inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.º, n.ºs 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.º-4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito, art. 2.º da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.º da CRP), a interpretação dos artigos 187.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 258.º, n.º 1, do RDLPFP de 2017, no sentido de que basta dar como provado, com base no artigo 13.º, al. f), do RDLFPF, que sócios ou simpatizantes de um clube adoptaram um comportamento social ou desportivamente incorrecto para que se dê também como provado que esse clube não observou os seus deveres legais e regulamentares de vigilância, controlo e formação desses seus sócios ou simpatizantes, cabendo ao clube aportar prova demonstradora do cumprimento desses seus deveres.

- IV -

xx. Ademais, mesmo sufragando os critérios decisórios invocados pela recorrente, resulta indubitável a realização pela aqui recorrida da “exigida” contraprova, assomando-se evidente a adopção de medidas preventivas por parte do clube.

xxi. Tendo, como tal, a recorrida logrado abalar os fundamentos em que se sustenta a tese da Recorrente mediante a contraprova dos factos presumidos. O que é, desde logo, revelador de que o (invocado) critério, definido pelo Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 21-2-2019, não foi, em momento algum, infringido pelo Tribunal a quo.
- V -

Caso, contra tudo o alegado, se conceda provimento ao recurso, sempre se imporá o reenvio do processo ao Tribunal a quo, para que este, de acordo com o critério normativo fixado em sede de revista, aprecie, em plano de apelação, a conformidade da matéria de facto dada como provada com os únicos meios de prova constante dos autos: os Relatórios da equipa de arbitragem e dos delegados da LPFP;

xxiii. porquanto, o cerne da questão controversa prende-se com o alcance da presunção de veracidade do relatório do delegado firmada pela alínea f), do art. 13.º do RDLPFP, e este STA dispõe apenas, neste domínio, de poderes de revista, só estando por isso autorizado a conhecer matéria de direito (art. 150.º-1 e -2 do CPTA).»


3. A Recorrida também recorreu subordinadamente, arguindo duas nulidades e reclamando quanto a custas, concluindo, nesse âmbito, que:
«- I -

i. O Tribunal a quo deixou de tomar posição sobre matéria essencial da questão sub judice, expressa e longamente invocada pela recorrente quer em sede de pedido de arbitragem, quer em sede de alegações de recurso para o TCAS; tendo deixado igualmente de apreciar o recurso em matéria de facto apresentado pela recorrente.

ii. Falta de tomada de posição que tem o significado de uma omissão de pronúncia, determinante da nulidade do acórdão proferido.

iii. Nulidade que desde já se argui, nos termos da aplicação conjugada dos arts. 1.º e 95.º-1 CPTA e 615.º-1, d) e n.º 4 do CPC, para os devidos e legais efeitos.
- II -

iv. As custas fixadas pelo TAD comprometem de forma séria e evidente o princípio da tutela jurisdicional efectiva (arts. 20.º-1 e 268.º-4 da CRP).

v. Considerando o critério da nossa jurisprudência constitucional, não são compatíveis com o direito fundamental de acesso à justiça (arts. 20.º e 268.º-4 da CRP) soluções normativas de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efectivo exercício de um tal direito, como é o caso do TAD.

vi. O artigo 2.º, n.ºs 1, 4 e 5 da Portaria n.º 301/2015, conjugado com a tabela constante do Anexo I (1.ª linha) dessa mesma Portaria, em acções de arbitragem necessária com o valor de € 21.040,00, é inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP) e do princípio da tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º, n.º 1, da CRP).»

4. Notificada da interposição do recurso subordinado, a Recorrente não contra-alegou.

5. Do acórdão recorrido foi previamente interposto pelo Ministério Público um recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), que, contudo, não foi admitido por o Tribunal Constitucional ter entendido que o mesmo não desaplicou qualquer norma legal com fundamento na sua inconstitucionalidade, tendo-se limitado a afastar a interpretação de direito infraconstitucional sufragada na decisão então recorrida.

6. O presente recurso de revista foi admitido por Acórdão da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal Administrativo, em formação de apreciação preliminar, de 1 de julho de 2021, dado que «o acórdão do TCA afronta a mais recente jurisprudência do Supremo neste campo».

7. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso principal.

8. Sem vistos, dada a natureza urgente do processo, nos termos do n.º 2 do artigo 8.º da Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, e do n.º 2 do artigo 36.º do CPTA.


II. Matéria de facto

9. O TAD deu como provados os seguintes factos, constantes dos relatórios dos delgados da FPFP aos seguintes jogos:

«A) Jogo CD Feirense - SC Braga.

A. No dia 7 de Abril de 2018 ocorreu um jogo de futebol entre as equipas do CD Feirense, Futebol SAD e o SC Braga, Futebol SAD, no Estádio Marcolino de Castro, a contar para a 29, jornada da competição "LIGA NOS";

B. A bancada Topo Sul do Estádio do jogo é a zona do estádio reservada aos adeptos da equipa visitante, que no jogo em causa foi destinada, em exclusivo, aos adeptos afetos ao SC Braga;

C. Adeptos situados na bancada Topo Sul, zona centro, mais à esquerda, destinada aos adeptos do SC Braga, aos 7 minutos de jogo, deflagraram um pote de fumo;

D. Adeptos situados na bancada Topo Sul, zona centro, mais à esquerda, destinada aos adeptos do SC Braga, aos 8 minutos de jogo, deflagraram dois potes de fumo;

E. Adeptos situados na bancada Topo Sul, zona centro, mais à esquerda, destinada aos adeptos do SC Braga, aos 11 minutos de jogo, deflagraram um pote de fumo;

F. Adeptos situados na bancada Topo Sul, zona centro, mais à esquerda, destinada aos adeptos do SC Braga, aos 30 minutos de jogo, deflagraram dois potes de fumo e uma tocha;

G. Adeptos situados na bancada Topo Sul, zona centro, mais à esquerda, destinada aos adeptos do SC Braga, aos 31 minutos de jogo, deflagraram e arremessaram, ainda incandescente, um flash light para o retângulo de jogo junto da pequena área de baliza do CD Feirense.

H. Estes adeptos trajavam cachecóis, camisolas e bandeiras alusivas à equipa e entoavam cânticos de apoio ao SC Braga;

I. O árbitro principal da partida foi …………;

J. Os delegados da liga presentes no jogo foram ………… e …………;

B) Jogo Paços de Ferreira — SC Braga:

K. No dia 13 de Abril de 2018 ocorreu um jogo de futebol entre as equipas do FC Paços de Ferreira, Futebol SDUQ e o SC Braga, Futebol SAD, no Estádio Marcolino de Castro, a contar para a 30ª jornada da competição "LIGA NOS";

L. A bancada Topo Nascente do Estádio do jogo é a zona do estádio reservada aos adeptos da equipa visitante, que no jogo em causa foi destinada, em exclusivo, aos adeptos afetos ao SC Braga;

M. O acesso a esta bancada foi efetuado pela Porta 4 do estádio;

N. Adeptos situados na bancada Topo Nascente, destinada aos adeptos do SC Braga, aos 18 minutos de jogo, deflagraram duas tochas e dois flash lights;

O. Adeptos situados na bancada Topo Nascente, destinada aos adeptos do SC Braga, aos 20 minutos de jogo, deflagraram duas tochas;

P. Adeptos situados na bancada Topo Nascente, destinada aos adeptos do SC Braga, entre os minutos 20 e 23 de jogo, deflagraram cinco tochas;

Q. A tocha arremessada para o túnel provocou um pequeno incêndio na cobertura do túnel;

R. Destas últimas cinco tochas, 3 foram arremessadas para dentro do retângulo de jogo, à frente da equipa visitada e uma no toldo do túnel de acesso ao relvado / balneários;

S. As tochas arremessadas causaram a interrupção da partida durante um minuto, aos 20 minutos de jogo e durante um minuto e quinze segundos, aos 23 minutos de jogo;

T. Estes adeptos trajavam cachecóis, camisolas, bandeiras e tarjas alusivas à equipa do SC Braga;

U. O arbitro principal da partida foi …………;

X. Os delegados da liga presentes no jogo foram ………… e …………;

C) Comum aos dois jogos:

V. A Demandante não foi a promotora do evento;

Y. A Demandante tem o cadastro disciplinar na época 2017/2018 que se encontra junto aos autos no anexo 2% a fls 48 a 58;

Z. A Demandante não coloca em causa os incidentes ocorridos no jogo em causa e descritos nos factos atrás identificados;

AA. A Demandante agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que ao não evitar a ocorrência dos referidos acontecimentos incumpriu deveres legais e regulamentares que lhe competiam enquanto participante no espetáculo desportivo.»


III. Matéria de Direito

10. As duas questões de nulidade suscitadas no recurso subordinado interposto pela Recorrida SPORTING CLUBE DE BRAGA – FUTEBOL SAD precedem o conhecimento do recurso principal, na medida em que da sua eventual procedência resultará, necessariamente, a anulação e a consequente repetição do julgamento de facto e de direito feito pelo TCAS.

11. A Recorrida alega que o TCAS não conheceu das seguintes questões:
a) a nulidade do acórdão do TAD, por nele não ter sido tomada posição sobre a circunstância de a mesma ter adotado medidas junto dos seus adeptos, dando cumprimento ao dever de zelar e incentivar o espírito ético e desportivo a que está obrigada por força dos ditames disciplinares;
b) a impugnação da matéria de facto fixada pelo mesmo TAD, por considerar incorretamente provado que «a demandante agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que ao não evitar a ocorrência dos referidos acontecimentos incumpriu deveres legais e regulamentares que lhe competiam enquanto participante no espetáculo desportivo».
Compulsados os autos, verifica-se, efetivamente, que aquelas duas questões foram adequadamente suscitadas nas suas alegações de recurso perante o TCAS e não foram conhecidas pelo tribunal a quo, que passou imediatamente à discussão e ao julgamento de direito, decidindo com base nos mesmos factos que o TAD havia feito.

12. É certo que, quanto ao fundo, o tribunal a quo acabou por dar razão à então Recorrente, ora Recorrida, mas não se pode dizer que aquelas duas questões, cujo conhecimento precedia necessariamente o julgamento de direito, tenham ficado prejudicadas.
Caso procedessem, alterando o julgamento da matéria de facto, a questão essencial de direito que vem suscitada no presente, sobre o valor jurídico da presunção de veracidade dos factos constantes do relatório do delegado da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP), não se chegaria sequer a colocar, pelo que a omissão de pronúncia sobre as mesmas não é indiferente ao desfecho final da lide.

13. Nestes termos, impõe-se declarar a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, ex-vi do disposto na alínea d) do número 1 do artigo 615.º do CPC, devendo, em consequência, os autos baixarem ao TCAS para que aquelas questões sejam apreciadas, e o julgamento de direito seja repetido em função dos factos que, em definitivo, forem ali fixados.

14. Além de prejudicar o conhecimento do recurso principal, a nulidade do acórdão recorrido prejudica também o conhecimento da questão suscitada quanto a custas no recurso subordinado, na medida em que, não obstante a sua autonomia, a utilidade da mesma depende, necessariamente, do sentido do julgamento de mérito da causa.


IV. Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, reunidos em conferência, em conceder parcialmente provimento ao recurso subordinado e, em consequência, declarar nulo o acórdão recorrido, mandando baixar os autos ao TCAS para repetição do julgamento de facto e de direito.

Custas pela Recorrente. Notifique-se

O relator consigna e atesta que, nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo artigo 3.º do DL n.º 20/2020, de 1 de maio, tem voto de conformidade com o presente Acórdão de todos os restantes juízes que integram a presente formação julgamento, nomeadamente os Conselheiros José Fonseca da Paz e Maria do Céu Neves.


Lisboa, 9 de setembro de 2021

Cláudio Ramos Monteiro