Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0978/12
Data do Acordão:02/20/2013
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:CASIMIRO GONÇALVES
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO
DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS
PRINCÍPIO NE BIS IN IDEM
Sumário:I - A decisão administrativa de aplicação de coima preenche os requisitos constantes da al. b) do nº 1 do art. 79º do RGIT se a factualidade dela constante explicita e especifica os factos que são imputados à arguida e os mesmos são por ela perceptíveis sem efectuar qualquer diligência.
II - Tendo a arguida procedido ao pagamento do montante equivalente à coima reduzida, e tendo, apesar de tal pagamento, sido levantado o respectivo auto de notícia e instaurado o respectivo processo de contra-ordenação, nos termos do nº 5 do art. 30º do RGIT, mas não se tendo apurado se aquela quantia foi, ou não, abatida no montante fixado para pagamento voluntário da coima que veio a ser fixada, devem os autos baixar à instância para que seja apurada a pertinente matéria factual e apreciada, então, a questão suscitada pela recorrente.
Nº Convencional:JSTA00068138
Nº do Documento:SA2201302200978
Data de Entrada:09/24/2012
Recorrente:A..., LDA
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF BRAGA
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - REC JURISDICIONAL
Legislação Nacional:CPP ART379
RGIT ART3 B ART79 N1 B
RGCO ART41 N1
Referência a Doutrina:JORGE DE SOUSA E SIMAS SANTOS REGIME GERAL DAS INFRACÇÕES TRIBUTÁRIAS ANOTADO 2010 4 ED PAG 517 E SEGS
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

RELATÓRIO
1.1. A……., S.A., com os demais sinais dos autos, recorre da decisão proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, que julgou improcedente o recurso que interpôs da decisão do chefe do SF de Esposende que lhe aplicou uma coima no processo de contra-ordenação que contra ela corre termos nesse Serviço de Finanças.

1.2. A recorrente termina as alegações formulando as conclusões seguintes:
I - Embora sem qualquer importância para a decisão do presente caso, sempre se deixa dito que não corresponde à realidade o que consta da douta sentença (fls. 2) onde se alega que "Notificada a Recorrente para dizer se se opunha a que a decisão fosse efectuada por despacho, com a informação de que o silêncio valeria como não oposição, nada disse".
II - A recorrente, no cumprimento do seu dever de colaboração para a boa e rápida aplicação da justiça, antes da passagem do prazo de que dispunha, disse expressamente ao Tribunal a quo (fls. 72) não se opor a que a decisão fosse efectuada por despacho, em contraste com o silêncio, usual, da Administração Fiscal.
III - Consta da douta sentença ora em crise (fls. 3, 4 e 5) que, "A primeira questão que cumpre conhecer é justamente a de saber se a decisão de aplicação de coima satisfaz os requisitos previstos na alínea b) do n°1 do artigo 79° do R.G.I.T., em que se estabelece que a decisão que aplica a coima tem de conter a descrição sumária dos factos e a indicação das normas violadas e punitivas."
IV - e que "É certo que na decisão consta como data de cumprimento da obrigação ... verificando-se uma contradição. ...
Assim, necessário se torna concluir que a descrição dos factos imputados à arguida cumpre as exigências previstas no artigo 79°, n° 1, al. b) do R.G.I.T."
V - A Mtma. Juiz a quo considera a existência de contradição na matéria factual notificada à recorrente, mas, sem que a recorrente consiga entender o fundamento, conclui pela necessidade de concluir que a descrição dos factos imputados à arguida cumpre as exigências previstas no artigo 79°, n° 1, al. b) do R.G.I.T..
VI - Com todo o respeito por opinião contrária, verificando-se contradição na matéria da notificação não se pode concluir validando um fundamento e o seu contrário, mesmo que para tal se considere tal facto como necessário.
VII - Necessidade para concluir assertivamente pela validade de fundamentos de per si contraditórios origina a nulidade da decisão, o que aqui se deixa expressamente arguido.
VIII - Existe, pois, para além da contradição referida, uma clara contradição entre a forma como a Mtma. Juiz a quo decide e a letra e o espírito da lei, sendo estes prejudicados por aquela.
IX - A AF não cumpriu com as exigências que lhe são legalmente impostas, facto expressamente admitido pela Mtma. Juiz a quo, contradizendo-se na comunicação efectuada à arguida, ora recorrente, no que à fundamentação da aplicação da coima diz respeito, impossibilitando esta do pleno exercício do direito de defesa.
X - A ora recorrente, apresentou defesa escrita e posterior recurso, tendo a Mtma. Juiz a quo concluído, sem mais, que a mesma "não prejudicou a defesa da Arguida que se apercebeu dos elementos necessários de forma a preparar uma defesa eficaz."
XI - Acontece que, quanto a esta matéria de direito, o que se impugnou, e de cuja decisão ora se recorre, é a validade de uma notificação da qual consta, além de outras nulidades, uma clara contradição no seu teor, reconhecida pela Mtma. Juiz a quo, pelo que existe violação de normas legais, isto é, violação do direito, logo, da possibilidade de defesa da arguida, que, todavia, apresenta defesa escrita e posterior recurso judicial por conhecer o modo de actuação da AF, e assumindo, como fez desde o início do processo, a falta por si cometida e, igualmente por si, posteriormente sanada.
XII - A recorrente sempre soube, sem qualquer valor para o presente recurso, ter incumprido na entrega atempada do valor do IRS, o que fez tão rápido quanto pôde, agora acrescido dos respectivos juros de mora, pelo que, consequentemente, conhecia o processo que levou à instauração do processo de contra-ordenação, cuja coima pagou, mesmo que a notificação para a mesma, como se disse e aqui se repete, enfermasse de diversas nulidades.
XIII - Sobre "A primeira questão que cumpre conhecer é justamente a de saber se a decisão de aplicação de coima satisfaz os requisitos previstos na alínea b) do n° 1 do artigo 79° do R.G.I.T., em que se estabelece que a decisão que aplica a coima tem de conter a descrição sumária, dos factos e a indicação das normas violadas e punitivas" o Tribunal a quo obteve, resposta concreta ao aceitar "... verificando-se uma contradição."
XIV - Pelo que, sendo, como era, esta a questão, inexistem dúvidas sobre a ilegalidade da notificação.
XV - A ora recorrente, em sede de recurso judicial, invocou, embora sem sucesso, as diversas nulidades de que padece a notificação, bem como os fundamentos da decisão.
XVI - A ora recorrente, foi notificada para proceder ao pagamento da coima de € 227,34 (processo n° 03962010016006909) no prazo de 15 dias, ou seja até ao dia 13 de Abril de 2010, o que, por impossibilidade de tesouraria, a arguida apenas fez no dia 20 de Abril de 2010.
XVII - Fruto do pagamento extemporâneo da coima referida (7 dias após o final do prazo concedido), o chefe do Serviço de Finanças de Esposende ignorou/anulou/arquivou/alterou (?) o processo de contra-ordenação existente e, em 23 de Abril de 2010, instaurou novo processo de contra-ordenação (0396201006006531), no qual foi aplicado à arguida, ora recorrente, coima no valor de € 2005,11.
XVIII - Temos, pois, duas coimas, uma delas com o pagamento já efectuado, fundamentadas nos mesmos factos, ou seja, temos a arguida, ora recorrente, condenada duas vezes pelos mesmos factos, em clara violação do preceituado no artigo 29°, n° 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP).
XIX - O Tribunal a quo só poderia decidir no sentido de reconhecer a violação de uma norma constitucional e, em consequência, só poderia ter absolvido a então arguida, ora recorrente, da prática de qualquer infracção e, por essa razão, do cumprimento de qualquer sanção (coima e/ou sanção acessória) que lhe tivesse sido aplicada, o que, surpreendentemente, não fez.
XX - O Tribunal a quo, cm clara violação do direito, entendeu ratificar a decisão ilegal da AF, fazendo uma interpretação da lei contrária ao seu espírito e à sua letra.
XXI - Nos termos do artigo 89° do Decreto-Lei n° 433/82 de 27 de Outubro, na versão em vigor, por remissão do artigo 3°, alínea b) do R.G.I.T., "O não pagamento ... dará lugar à execução, que será promovida, perante o tribunal competente, salvo ... ".
XXII - Isto é, considerando a AF ter existido incumprimento por parte da então arguida, ora recorrente, do pagamento da coima que lhe fora aplicada, o meio de que dispunha para obter o pagamento era o processo de execução, para o qual tem competência nos termos previstos no artigo 10°, n° 1, al. f) do CPPT, através do qual poderia obter o pagamento do valor da coimas, do acrescido e de juros, e não, como fez, a anulação/substituição/arquivamento/complementaridade (?) do processo existente e a instauração de um novo processo, mesmo que se considere, o que apenas por dever de patrocínio se admite, que, conforme se lê na douta sentença, "... tendo tal quantia sido abatida ao montante fixado para pagamento voluntário."
XXIII - Analisando o teor da notificação enviada à então arguida, ora recorrente, não se vislumbra justificação em que assente a decisão de que tal quantia foi abatida ao montante fixado para pagamento voluntário.
XXIV - O que consta da notificação, em quadro próprio é o seguinte:

Modalidade
C/ Pagamento Voluntário
Prazo
15 dias
Montante a pagar
1869,69
S/ Pagamento Voluntário
20 dias (seguintes ao termo do prazo anterior)
2056,11


sendo o valor de € 2056,11 o resultante da soma do valor da coima (€ 2005,11) com o valor das custas (€ 51,00), quando a coima a aplicar se balizava entre o limite mínimo de € 1818,69 e o limite máximo de € 9093,47.
XXV - Do teor do quadro supra verifica-se que o montante a pagar exigido para o pagamento voluntário corresponde ao valor mínimo da coima, acrescido do valor das custas e o montante a pagar sem pagamento voluntário corresponde a algo que apenas a AF poderá explicar, não se podendo concluir ter, em qualquer deles, sido efectuado qualquer abatimento.
XXVI - Considerar, como fez a douta sentença ora recorrida, que o valor da coima aplicada se encontra abatido da quantia entretanto paga, enferma de erros de julgamento e de interpretação, erros que expressamente se arguem.
Termina pedindo o provimento do recurso.

1.3. Em resposta o MP alegou o seguinte:
«Insurgindo-se contra a douta sentença de fls. 65 a 70, veio a arguida "A……., S.A." dela interpor recurso em que, na essência, reitera os argumentos já antes expendidos, pretendendo assim, tanto quanto é possível depreender, o reexame da matéria de direito. Mais precisamente, alega a errada fundamentação - por nela haver contradições - e a violação do princípio ne bis in idem.
I - Preliminarmente cumpre sublinhar que a recorrente, incumprindo o art. 412º, n° 1, do C. de Processo Penal - aplicável ex vi do art. 74º, n° 4, do Regime Geral das Contra-Ordenações - apresentou conclusões que constituem, não uma sinopse das razões do pedido, como o primeiro dos indicados comandos legais determina, e sim a cópia integral da motivação.
Como assim, deve a recorrente ser convidada a resumir as razões do pedido, nos termos do art. 417º, n° 3, do referido código.
II - Quanto à reclamada contradição, não colhe este argumento o adequado suporte, com o devido respeito.
Na verdade, na decisão punitiva do Serviço de Finanças de Esposende consta o dia 20/1/2010 como sendo aquele em que a obrigação tributária foi observada, e essa mesma data como o limite do prazo do seu cumprimento. O que, convenha-se, somente em perfunctória leitura poderá criar alguma contradição. In casu, ela é facilmente superada se tivermos em conta - e à recorrente era exigível que tivesse - que o art. 98º, n° 3, do CIRS, impõe a entrega das quantias retidas até ao dia 20 do mês subsequente àquele onde teve lugar a sua dedução. Dedução, note-se, que a arguida vinha fazendo regularmente e dentro do prazo permitindo inferir que, além de normativamente exigível, o procedimento em causa era também nela habitual.
Acresce ser a própria recorrente a sublinhar o facto de ter incumprido o dever tributário em devido tempo dado não ter condições (meios financeiros) de o fazer, não sendo tal circunstancialismo óbice, todavia, a que deduzisse a sua defesa com pleno recurso a todos os meios legais.
Cremos portanto estar a decisão questionada em conformidade com os ditames do art. 79, n° 1, b), do RGIT.
III - No tocante ao alegado desrespeito do princípio ne bis in idem, cumpre sublinhar que a visão sustentada pela recorrente labora em equívoco.
Com efeito, resulta dos factos provados - e a arguida, de resto, não os questiona - que, tendo ela sido notificada validamente a fim de pagar a coima correspondente em valor reduzido, num prazo a findar em 13-4-2010, apenas o fez no dia 20 daquele mês, isto é, após o limite legalmente cominado para beneficiar da dita redução. Assim, o inevitável trâmite ulterior era, e foi, o prosseguimento dos autos com a prolação do despacho final. Despacho esse cuja notificação, aliás, incluiu justamente o montante já pago, mesmo que intempestivo como se viu.
Deste modo, não ocorre a nosso ver infracção alguma ao princípio jurídico e constitucional em apreço.»
Termina pedindo a improcedência do recurso.

1.4. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste STA remete para a resposta apresentada em 1ª instância.

1.5. Corridos os vistos legais, cabe decidir.


FUNDAMENTOS
2. A decisão recorrida julgou provada a factualidade seguinte:
1 - Em 20 de Março de 2010, foi lavrado auto de notícia no qual figura como infractor A……., S.A., em virtude de atraso na entrega da prestação tributária, no valor de 9.093,47 € - cfr. fls. 2 e 3 dos autos.
2 - Foi instaurado o processo de redução de coima n° 03962010016006909, tendo a Arguida sido notificada para, no prazo de 15 dias, efectuar o pagamento da coima reduzida no valor de 227,34 € - cfr. fls. 49 dos autos.
3 - A Arguida, ora recorrente, apenas procedeu ao pagamento, em 20 de Abril de 2010, tendo o prazo terminado em 13 de Abril de 2010 - cfr. fls. 49 dos autos.
4 - Em 23 de Abril de 2010 foi instaurado o processo de contra-ordenação n° 0396201006006531 - cfr. fls. 2 dos autos.
5 - No dia 18 de Outubro de 2010, o Chefe do Serviço de Finanças de Esposende aplicou à Arguida, a coima de € 2.005,11, por falta de entrega do imposto retido na fonte - acto impugnado -, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido e que, no que ora interessa, tem o seguinte teor:
[...]
Descrição sumária dos factos
Ao(À) arguido(a) foi levantado Auto de Notícia pelos seguintes factos: 1. Montante do imposto exigível: 9.093,47; 2. Valor da prestação tributária entregue: 9.093,47; 3. Valor da prestação tributária em falta: 0,00; 4. Data de cumprimento da obrigação: 2010-01-20; 5. Período a que respeita a infracção: 2009/12; 6. Termo do prazo para cumprimento da obrigação: 2010-01-20, os quais se dão como provados.
Normas Infringidas e Punitivas
Os factos relatados constituem violação do(s) artigo(s) abaixo indicado(s), punidos pelo(s) artigo(s) do RGIT referidos no quadro, aprovado pela Lei n° 15/2001, de 05/07, constituindo contra-ordenações.
Normas infringidas: Art° 98 CIRS - Entrega fora do prazo de imposto retido na fonte.
Normas punitivas: 114 n° 2 e 26 n° 4 do RGIT - Atraso na entrega da prestação tributária
Período de tributação: 200912
Data infracção: 2010-01-20
[...]" [cfr. fls. 36 e 37]

3.1. A recorrente A……., S.A., impugnou judicialmente a decisão do chefe do Serviço de Finanças de Esposende, que lhe aplicou uma coima de 2005,11 Euros, por atraso na entrega de prestação tributária.
E na impugnação a arguida invocou, por um lado, que a decisão de aplicação de coima é contraditória (por estabelecer que não há qualquer prestação tributária em falta e que a obrigação foi cumprida na data apontada como data limite para cumprimento da obrigação), bem como confusa e imprecisa, tornando impossível perceber em que consiste a alegada infracção, e, por outro lado, que há violação do princípio «ne bis in idem» dado que o Serviço de Finanças de Esposende, tendo por base os mesmos fundamentos constantes do presente processo, a notificou para proceder ao pagamento (que foi efectuado) de uma outra coima.

3.2. A decisão recorrida, enunciando como primeira questão a conhecer a de saber se a decisão de aplicação de coima satisfaz os requisitos previstos na al. b) do n° 1 do art. 79° do RGIT, veio a concluir o seguinte:
- A descrição dos factos imputados à arguida cumpre as exigências previstas naquele normativo, dado que a arguida vem acusada da prática da contra-ordenação prevista no art. 114° n° 2 e 26°, n° 4 do RGIT, consubstanciada na entrega fora de prazo do imposto retido na fonte (art. 98° do CIRS), sendo que esta referência ao art. 98° do CIRS - entrega fora de prazo do imposto retido na fonte e ao período a que respeita a infracção 2009/12, permite apreender de forma suficiente que o que está em causa é a entrega fora do prazo do imposto retido na fonte, referente ao mês de Dezembro de 2009.
E, além disso, apesar de na decisão constar como data de cumprimento da obrigação o dia 20/1/2010 e como termo do prazo para cumprimento da obrigação também a mesma data de 20/1/2010 (o que resulta numa contradição), tendo, no entanto, presente o nº 3 do art. 98° do CIRS (que dispõe as quantias retidas devem ser entregues até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que foram deduzidas), tendo presente que a arguida é uma sociedade comercial, que procede de forma periódica ao envio da declaração das importâncias retidas e que assim com elas conta e deve contar, e tendo presente que ela própria (arguida) reconhece que não procedeu ao cumprimento da sua obrigação tributária tempestivamente porque não tinha condições de o fazer, é de concluir que a referência à data de 20/1/2010, como data de cumprimento da obrigação, não prejudicou a defesa da arguida que se apercebeu dos elementos necessários de forma a preparar uma defesa eficaz.
- Quanto à invocada violação do princípio «ne bis in idem» não ocorre tal violação dado que a falta de entrega do imposto retido na fonte, em 20/3/2010, originou a instauração do processo de redução de coima n° 03962010016006909, tendo a arguida sido notificada para, no prazo de 15 dias, efectuar o pagamento da coima reduzida no valor de 227,34 €, até 13/4/2010. E visto que a arguida apenas procedeu ao pagamento em 20/4/2010, como consta do documento de fls. 14, foi instaurado o processo de contra-ordenação, tendo tal quantia sido abatida ao montante fixado para pagamento voluntário.

3.3. Do assim decidido discorda a recorrente/arguida invocando, se bem interpretamos as Conclusões do recurso, que a decisão recorrida incorre em erro de julgamento, quer por ter julgado não se verificar a nulidade da decisão administrativa de aplicação de coima, já que satisfaz os requisitos previstos na al. b) do n° 1 do art. 79° do RGIT (cfr. Conclusões V a XV), quer por ter julgado que não houve violação do princípio «ne bis in idem» (Conclusões XVI a XXVI).
Vejamos.

4. Diga-se desde já que não se nos afigura que a alegação substanciada nas Conclusões VII e VIII se reconduza à invocação de qualquer nulidade da própria decisão recorrida (cfr. art. 379º do CPPenal, aplicável subsidiariamente nos termos da al. b) do art. 3º do RGIT e do nº 1 do art. 41º do RGCO), nomeadamente, por contradição entre os fundamentos e a decisão.
Na verdade, como acima se referiu, se bem interpretamos as Conclusões, crê-se que o que a recorrente invoca é o erro de julgamento por a sentença recorrida ter considerado que, apesar de existir uma contradição na matéria da notificação, essa contradição não consubstancia a invocada nulidade da decisão administrativa de aplicação de coima.
E de referir, igualmente, que se nos afigura de manifesta desnecessidade, por inútil, proceder a convite da recorrente para aperfeiçoar as Conclusões, nos termos do nº 3 do art. 417º do CPPenal, pese embora o invocado (pelo MP) incumprimento do disposto no nº 1 do art. 412º do mesmo Código.
Vejamos, portanto, as questões que, nos termos acima indicados, importa apreciar.

5. Do erro de julgamento por a decisão recorrida ter considerado que decisão administrativa de aplicação de coima satisfaz os requisitos previstos na al. b) do n° 1 do art. 79° do RGIT.

5.1. A este respeito a recorrente alega que a decisão recorrida incorre em erro de julgamento, pois que se considerou que existia uma contradição na matéria da notificação, então não podia concluir pela inexistência da invocada nulidade da decisão administrativa de aplicação de coima (cfr. Conclusões V a VIII), sendo que apesar de a arguida/recorrente ter apresentado defesa escrita e posterior recurso (circunstâncias que a sentença recorrida valorou para concluir que a nulidade "não prejudicou a defesa da Arguida que se apercebeu dos elementos necessários de forma a preparar uma defesa eficaz") o que é verdade é que foi impugnada a validade da notificação da qual consta essa clara contradição no seu teor, reconhecida pela sentença recorrida, pelo que existe violação de normas legais, isto é, violação do direito, logo, da possibilidade de defesa da arguida (cfr. Conclusões IX a XV).
Vejamos.
Sob a epígrafe «Requisitos da decisão que aplica a coima» o nº 1 do art. 79º do RGIT dispõe:
«1- A decisão que aplica a coima contém:
a) A identificação do infractor e eventuais comparticipantes;
b) A descrição sumária dos factos e indicação das normas violadas e punitivas;
c) A coima e sanções acessórias, com indicação dos elementos que contribuíram para a sua fixação;
d) A indicação de que vigora o princípio da proibição da reformado in pejus, sem prejuízo da possibilidade de agravamento da coima, sempre que a situação económica e financeira do infractor tiver entretanto melhorado de forma sensível;
e) A indicação do destino das mercadorias apreendidas;
f) A condenação em custas.»

5.2. Como referem Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, (Regime Geral das Infracções Tributárias, Anotado, Áreas Editora, 2010, 4ª ed., anotações ao art. 79º, pp. 517 e ss.) o que se exige com esta descrição sumária dos factos referida nesta al . b) do nº 1 do art. 79º do RGIT «interpretada à luz das garantias do direito de defesa, constitucionalmente assegurado (art. 32º, nº 10, da CRP) é que a descrição factual que consta da decisão de aplicação de coima seja suficiente para permitir ao arguido aperceber-se dos factos que lhe são imputados e poder, com base nessa percepção, defender-se adequadamente». E sendo necessário «assegurar que o arguido se apercebe dos factos que lhe são imputados, não pode considerar-se suficiente uma indicação factual implícita, dedutível do enquadramento jurídico que na decisão é dado à infracção.»
No caso, a descrição factual contém o montante do imposto exigível (9.093,47 Euros), o montante da prestação tributária entregue (9.093,47 Euros), o valor da prestação tributária em falta (0,00), a data de cumprimento da obrigação (20/1/2010), o período a que respeita a infracção (12/2009), o termo do prazo para cumprimento da obrigação (20/1/2010), as normas infringidas (art. 98º CIRS - Entrega fora do prazo de imposto retido na fonte) e as normas punitivas (114º n° 2 e 26º n° 4 do RGIT - Atraso na entrega da prestação tributária) e a data da infracção (20/1/2010).
Factualidade que se nos afigura explicitar e especificar suficientemente os factos que são imputados à arguida, e por ela perceptíveis sem efectuar qualquer diligência, tanto mais que, aquando da referência à norma legal infringida, também logo se explicita que se trata de entrega fora do prazo de imposto retido na fonte, sendo que, como diz a sentença recorrida, a referência ao art. 98° do CIRS - entrega fora de prazo do imposto retido na fonte - e ao período a que respeita a infracção 2009/12, permite apreender de forma suficiente que o que está em causa é a entrega fora do prazo do imposto retido na fonte, referente ao mês de Dezembro de 2009.
Não obstante, a recorrente sustenta que esta decisão administrativa de aplicação de coima não cumpre os requisitos previstos na mencionada al. b) do nº 1 do art. 79º do RGIT, dado que há uma contradição na descrição dos factos: consta como data de cumprimento da obrigação o dia 20/1/2010 e como termo do prazo para cumprimento da obrigação também a mesma data de 20/1/2010 (o que resulta numa contradição), sendo que a decisão recorrida, apesar de reconhecer que tal contradição se verifica, acaba por concluir que a descrição dos factos imputados à arguida cumpre as exigências previstas na dita al. b) do nº 1 do art. 79° do RGIT, o que tudo se traduz na violação das referidas normas legais e na violação da possibilidade de defesa da arguida, apesar de esta ter apresentado defesa escrita e posterior recurso judicial e apesar de ter assumido a falta por si cometida e por si também posteriormente sanada.
Não procede, contudo, esta alegação da recorrente.
É certo que, como se disse, na decisão administrativa de aplicação de coima, por parte do Serviço de Finanças de Esposende, consta o dia 20/1/2010 como sendo aquele em que a obrigação tributária foi observada, aí constando, igualmente, essa mesma data como o limite do prazo do cumprimento da mesma obrigação.
Contudo, como refere o MP, esta indicação de datas apenas numa leitura perfunctória poderá criar alguma contradição, a qual é facilmente superada se tivermos em conta - e à recorrente era exigível que tivesse - que o nº 3 do art. 98º do CIRS impõe a entrega das quantias retidas até ao dia 20 do mês subsequente àquele onde teve lugar a sua dedução (dedução que a arguida vinha fazendo regularmente e dentro do prazo, permitindo inferir que, além de normativamente exigível, o procedimento em causa era também nela habitual). Aliás é ela própria (recorrente) que sublinha o facto de ter incumprido o dever tributário em devido tempo por não ter condições (meios financeiros) para o cumprir.
Não tendo tal circunstancialismo sido obstáculo, todavia, a que deduzisse a sua defesa com pleno recurso a todos os meios legais.
Ou seja, como diz a decisão recorrida, apesar de na decisão administrativa de aplicação de coima constar aquele lapso relativo à questiona data de 20/1/2010, tendo, no entanto, presente o nº 3 do art. 98° do CIRS (que dispõe as quantias retidas devem ser entregues até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que foram deduzidas), tendo presente que a arguida é uma sociedade comercial, que procede de forma periódica ao envio da declaração das importâncias retidas e que assim com elas conta e deve contar, e tendo presente que ela própria (arguida) reconhece que não procedeu ao cumprimento da sua obrigação tributária tempestivamente porque não tinha condições de o fazer, é de concluir que a referência à data de 20/1/2010, como data de cumprimento da obrigação, não prejudicou a defesa da arguida, a qual se apercebeu dos elementos necessários de forma a preparar uma defesa eficaz.

Sendo, portanto, de concluir que a decisão questionada preenche os requisitos constantes da al. b) do nº 1 do art. 79º do RGIT.

6. A recorrente invoca, ainda, a ilegalidade da decisão recorrida, por violação do princípio «non bis in idem» dado que o Serviço de Finanças, tendo por base os mesmos fundamentos, a notificou para proceder ao pagamento da coima de € 227,34 (processo n° 03962010016006909) no prazo de 15 dias, ou seja até ao dia 13/4/2010, o que, por impossibilidade de tesouraria, a arguida apenas fez no dia 20/4/2010.
E fruto do pagamento extemporâneo da coima referida (7 dias após o final do prazo concedido), o chefe do Serviço de Finanças de Esposende ignorou – anulou – arquivou - alterou o processo de contra-ordenação existente e, em 23/4/2010, instaurou novo processo de contra-ordenação (0396201006006531), no qual foi aplicado à arguida, ora recorrente, coima no valor de € 2005,11. Pelo que temos duas coimas, uma delas com o pagamento já efectuado, fundamentadas nos mesmos factos, ou seja, temos a arguida, ora recorrente, condenada duas vezes pelos mesmos factos, em clara violação do preceituado no nº 5 do art. 29° da CRP.
Vejamos.
De acordo com aquele princípio, inscrito no nº 5 do art. 29º da CRP, “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”. E tratando-se de princípio que é aplicável a todos os procedimentos de natureza sancionatória, também é aplicável, portanto, em sede de contra-ordenação.
Trata-se de um princípio que se integra nos chamados princípios-garantia, os quais visam instituir directa e imediatamente uma garantia dos cidadãos, sendo-lhes atribuída uma densidade de autêntica norma jurídica e uma força determinante, positiva e negativa (daí que os autores lhes chamem «princípios em forma de norma jurídica»).
Ora, no caso, e como resulta da factualidade provada, a falta de entrega do imposto retido na fonte, em 20/3/2010, originou a instauração do processo de redução de coima n° 03962010016006909, tendo a arguida sido notificada para, no prazo de 15 dias, efectuar o pagamento da coima reduzida no valor de Euros 227,34, até 13/4/2010.
Mas como ela (arguida) apenas procedeu a esse pagamento em 20/4/2010 (cfr. o doc. de fls. 14), isto é, depois da data limite legalmente cominada para beneficiar da dita redução, foi levantado o respectivo auto de notícia e instaurado o respectivo processo de contra-ordenação, nos termos do nº 5 do art. 30º do RGIT, o qual prosseguiu com a prolação de despacho final.
Não obstante, a decisão recorrida acaba por concluir que aquela quantia de 227,34 Euros (paga tardiamente mas cujo pagamento foi, apesar disso, aceite pelos serviços da AT) foi abatida no montante fixado para pagamento voluntário.
Porém, não se vê que tal tenha ocorrido.
Na verdade, como alega a recorrente, analisando o teor da notificação enviada à arguida não se vislumbra justificação em que assente a decisão de que tal quantia foi abatida ao montante fixado para pagamento voluntário: o que consta de tal notificação (cfr. fls. 38) é, em quadro próprio, o seguinte:

Modalidade
C/ Pagamento Voluntário
Prazo
15 dias
Montante a pagar
1.869,69 €
S/ Pagamento Voluntário
20 dias (seguintes ao termo do prazo anterior)
2.056,11 €

sendo o valor de € 2056,11 o resultante da soma do valor da coima (€ 2005,11) com o valor das custas (€ 51,00), quando a coima a aplicar se balizava entre o limite mínimo de € 1818,69 e o limite máximo de € 9093,47.
Ou seja, constata-se que o montante a pagar exigido em termos de pagamento voluntário corresponde ao valor mínimo da coima, acrescido do valor das custas e que o montante a pagar sem pagamento voluntário corresponde a algo que apenas a AT poderá explicar, mas não se podendo, contudo, concluir, em qualquer das hipóteses, ter sido efectuado qualquer abatimento, em qualquer das modalidades.
Ora, apesar de ser certo que a notificação não integra a própria decisão de aplicação da coima, e que, portanto, os vícios de que eventualmente sofra não se repercutem naquela, o que também é verdade é que a recorrente suscitou a questão atinente à eventual duplicação do pagamento da quantia de 227,34 Euros (embora sobre a alegação de violação do princípio non bis in idem) em sede de recurso judicial da decisão administrativa de aplicação da coima, e que, atento o que ficou dito, nomeadamente os termos da notificação feita à recorrente, a decisão recorrida não podia concluir que essa quantia paga (tardiamente, ou não – a recorrente suscitara em sede de defesa escrita que tal pagamento ocorreu no prazo legal) a título de coima reduzida, se encontra «abatida ao montante fixado para pagamento voluntário.»
Pelo que, nesta medida e com esta interpretação, a decisão recorrida enferma do erro de julgamento que a recorrente lhe imputa, carecendo de ser revogada, baixando os autos à instância para que seja apurada a pertinente matéria factual referente a tal abatimento, e apreciada, então, a questão suscitada pela recorrente.

DECISÃO
Nestes termos acorda-se em, dando provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida (despacho proferido nos termos do art. 64º do RGCO) e ordenar a baixa dos autos à instância para os termos supra referidos.
Sem custas.
Lisboa, 20 de Fevereiro de 2013. – Casimiro Gonçalves (relator) – Francisco Rothes – Fernanda Maças.