Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01110/08.1BEALM
Data do Acordão:02/18/2021
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ADRIANO CUNHA
Descritores:PLANO DE ORDENAMENTO DO PARQUE NATURAL DA ARRÁBIDA
LICENCIAMENTO DE CONSTRUÇÃO
PARECER PRÉVIO
PARECER VINCULATIVO
DEMOLIÇÃO DE OBRA
Sumário:I - Nos termos do Decreto Regulamentar nº 23/98, o parecer negativo emitidos pelo PNA é vinculativo ainda que emitido após o prazo previsto, pelo que o Município não poderia ter emitido a licença e o respetivo alvará de construção, sendo certo que, na ausência de parecer, não estava o mesmo dispensado da observância do quadro normativo aplicável.
II - A Portaria nº 26-F/80 constitui um plano especial de ordenamento do território cuja violação dita a nulidade do ato de licenciamento camarário impugnado (arts. 68º, al. a, do RJUE e 103º do RJIGT).
III - Sendo a edificação insuscetível de legalização, considerando o Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida, não pode deixar de ser determinada a demolição da obra edificada e a reposição do terreno no estado em que se encontrava.
Nº Convencional:JSTA000P27234
Nº do Documento:SA12021021801110/08
Recorrente:A……………….
Recorrido 1:MINISTÉRIO PÚBLICO (E OUTROS)
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:


I – RELATÓRIO

1. A………….. veio interpor o presente recurso jurisdicional de revista do Acórdão proferido em 11/7/2018 pelo Tribunal Central Administrativo Sul, “TCAS” (cfr. fls. 1239 e segs. SITAF), o qual confirmou a sentença, de 31/12/2014, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, “TAF/Almada” (cfr. fls. 873 e segs. SITAF) que julgara procedente a presente ação administrativa especial intentada pelo Ministério Público contra o Município de Setúbal e, em consequência, declarara a nulidade dos atos impugnados (atos da Câmara Municipal de Setúbal, de 10/10/2003, que licenciou a construção de uma obra e, de 15/12/2004, que deferiu o pedido de emissão do correspondente alvará) e condenara o Município de Setúbal a “determinar a demolição da obra e a reposição do terreno no estado em que se encontrava”.

2. Inconformada com este julgamento do “TCAS”, a Recorrente, Contrainteressada, interpôs para este STA o presente recurso de revista, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (cfr. fls. 1281 e segs. SITAF):

«1ª No Acórdão Recorrido é abordada a questão do valor jurídico/consequências jurídicas do silêncio do Parque Natural da Arrábida quando consultado para emitir parecer no âmbito de procedimentos de licenciamento de operações urbanísticas, a qual, pela sua relevância jurídica e social, se reveste de importância fundamental, sendo também a revista claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, pelo que deve o presente Recurso de Revista ser admitido, devendo funcionar esta válvula de segurança do sistema, até numa interpretação do artigo 150.º, n.º 1 do CPTA conforme à garantia constitucional de uma tutela jurisdicional efetiva consagrada no artigo 268.º, n.º 4, da Constituição, de que é corolário o princípio pro actione vertido no artigo 7.º do CPTA;

2ª O Acórdão recorrido, praticamente, limita-se a transcrever e a adotar acriticamente a fundamentação constante de outros arestos, ignorando completamente os argumentos da Recorrente constante das alegações de recurso, ficando, por vezes a dúvida, se o Tribunal a quo adota toda a fundamentação das decisões judiciais que transcreve, o que, por cautela de patrocínio, se assumirá que sim.

3ª Um dos acórdãos invocados no Acórdão recorrido - o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo («STA»), de 18.06.2005, proferido no proc. n.º 589/14 -, não tem qualquer aplicação ao caso concreto, não se tendo pronunciado sobre a questão do valor jurídico do silêncio do PNA, considerando que, na situação que o STA analisou, pura e simplesmente, não havia sido promovida a consulta do PNA pelo Município, consulta que foi promovida no caso vertente.

4ª Não decorre da nulidade cominada no artigo 19.º, n.º 5, do Decreto Regulamentar 23/98 para os atos que contrariem o nele disposto que o parecer vinculativo do PNA, a que está sujeita a realização de obras de construção na área do Parque nos termos do seu artigo 12.º, al. a), continua a ser vinculativo mesmo após o termo do prazo legal para a sua emissão nem que não se forma parecer favorável tácito mesmo que o parecer não seja recebido pelo Município dentro do prazo, estando o Município vinculado a não deferir o licenciamento enquanto não for emitido parecer expresso do PNA.

5ª Ao assim entender, por adesão à Sentença da 1.ª instância, o Acórdão recorrido fez uma errada interpretação e aplicação do artigo 19.º, n.º 5, do Decreto Regulamentar 23/98, a qual contraria o disposto nos artigos 19.º, n.ºs 9 e 11.º, 20.º, n.º 2, al. c), 21.º, n.º 4, al. c), 111.º, al. a) e 112.º do RJUE e ainda o disposto no artigo 9.º, n.º 1, do CPA.

6ª Ao acolher o entendimento do Tribunal da 1.ª instância de que, mesmo que se formasse parecer favorável tácito do PNA, o mesmo seria nulo e acarretaria a nulidade dos atos impugnados nos termos do artigo 19.º, n.º 5, do Decreto Regulamentar 23/98, sem sustentar a nulidade do parecer favorável tácito em qualquer violação do disposto neste diploma ou nas normas materiais da Portaria 26-F/80, o Acórdão recorrido faz uma errada aplicação desta norma.

7ª As normas dos artigos 12.º, al. a), e 19.º, n.º 2, do Decreto Regulamentar 23/98, interpretadas no sentido de exigir parecer expresso favorável do PNA à realização de obras de construção, tal como decidido no Acórdão em crise, por adesão ao Acórdão do TCA Sul de 24.06.2018, no proc. n.º 312/08.5BEAL, conduz à sua inconstitucionalidade, por violação dos princípios da hierarquia das normas e do primado da lei consagrados no artigo 112.º, n.º 5, da Constituição, já que equivale a admitir a derrogação, por decreto regulamentar, do disposto em diploma legislativo – considere-se o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE) ou o anterior Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de novembro – que prevê, no artigo 19.º, n.º 9, do RJUE, que a ausência de parecer no prazo estabelecido equivale a concordância.

8ª A lei habilitante do Decreto Regulamentar 23/98 – o Decreto-Lei n.º 19/93, de 23 janeiro, que estabelecia o regime da Rede Nacional de Áreas Protegidas – apenas lhe confere habilitação, nos termos do artigo 13.º, n.º 1, al. b) para definir os atos e atividades condicionados ou proibidos e não para regular os efeitos do silêncio do PNA em derrogação do regime legal geral, pelo que, os artigos 12.º, al. a), e 19.º, n.º 2, do Decreto Regulamentar interpretados no sentido de excluir o parecer favorável tácito, tal como preconizado no Acórdão recorrido, são inconstitucionais por violação do princípio de precedência de lei vertido no artigo 112.º, n.º 7, da Constituição.

9ª Não existe nem nunca existiu qualquer norma na legislação aplicável no PNA a prever que a falta de resposta do PNA no prazo previsto vale como discordância, parecer desfavorável ou negativo, pelo que a interpretação do Tribunal recorrido de que existe “legislação específica” aplicável na área do PNA que afasta a regra geral de concordância tácita contida no artigo 19.º, n.º 9, do RJUE viola o disposto nesta norma e, ainda, o disposto no artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil por não ter o mínimo de apoio na letra da lei.

10ª O Acórdão recorrido, ao acolher o entendimento de que é exigível parecer expresso favorável do PNA e de que não se formou parecer favorável tácito, com esse fundamento confirmando a declaração de nulidade dos atos impugnado, fez uma errada interpretação e aplicação dos artigos 12.º, al. a), 19.º, n.º 2, e 19.º, n.º 5, do Decreto Regulamentar 93/98, violando o disposto no artigo 19.º, n.º 9, do RJUE.

11ª O Município de Setúbal estava vinculado a deferir o pedido de licenciamento face ao parecer favorável tácito do PNA, entidade a quem cabe tutelar os valores naturais em causa, pelo que improcede a censura efetuada no Acórdão recorrido ao Município no sentido de que se deveria ter abstido de licenciar as obras (censura que inexplicavelmente nunca dirige ao PNA que, durante mais de 1 ano, não emitiu qualquer parecer), sendo que, no caso concreto, apesar do parecer favorável tácito que se produziu, o Município teve a preocupação de analisar e confirmar a conformidade da operação urbanística com a Portaria 26-F/80 (cfr. al. h) da Fundamentação de Facto).

12ª O parecer desfavorável do PNA emitido extemporaneamente (mais de 1 ano depois de ter sido promovida a consulta), além de não ser vinculativo por não ter sido recebido no prazo legal nos termos do artigo 19.º, n.º 11, do RJUE – até porque também não invoca qualquer condicionalismo legal ou regulamentar à pretensão, nomeadamente não se fundamenta em qualquer violação de normas materiais da Portaria 26-F/80 – sempre constituiria uma revogação ilegal do anterior parecer tácito favorável, que é constitutivo de direitos, à luz do disposto no artigo 140.º e 141.º do CPA então aplicáveis, pelo que nunca poderia fundamentar o indeferimento do licenciamento.

13ª O artigo 19.º, n.º 5, do Decreto Regulamentar 23/98, aplicado pelo Acórdão recorrido para fundamentar a nulidade dos atos impugnados decorrente da alegada violação do disposto nos artigos 12.º, al. a), e 19.º, nº 2, do mesmo diploma (que exigiriam, na tese do Tribunal a quo, parecer favorável expresso do PNA), contraria o princípio de precedência de lei dos regulamentos administrativos plasmado no artigo 112.º, n.º 7, da Constituição, considerando que, nos termos do artigo 133.º, nº 1, do CPA só são nulos os atos “para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade”, e o Decreto-Lei n.º 19/93, de 21 de janeiro, não confere qualquer habilitação ao decreto regulamentar para disciplinar o desvalor jurídico dos atos praticados em sua desconformidade.

14ª Ainda que o ato de licenciamento camarário fosse desconforme com os artigos 12.º, al. a), e 19.º, nº 2, do Decreto Regulamentar 23/98 seria meramente anulável nos termos do artigo 135.º do CPA vigente – anulabilidade sanada à data da propositura da ação pelo Ministério Público – e não nulo como declarado pelo Acórdão recorrido, que assim preteriu o estabelecido no artigo 135.º e 133.º, n.º 1, do CPA.

15ª O Decreto Regulamentar 23/98, donde constam as normas que imporiam parecer favorável expresso do PNA pretensamente violadas, não é um instrumento de gestão territorial, mas sim o diploma que regulava a aprovação de um instrumento de gestão territorial – o Plano de Ordenamento do PNA - pelo que, o Acórdão impugnado, ao concluir pela nulidade dos atos impugnados com fundamento nos artigos 2.º, n.º 2, al. c) do RJIGT, 68.º, al. a), do RJUE e 103.º do RJIGT, faz uma errada aplicação dessas normas e contraria o princípio da tipicidade dos instrumentos de gestão territorial vertido nos artigos 8.º e 9.º da Lei de Bases e no artigo 2.º do RJIGT, na versão então em vigor.

16ª Com o Decreto Regulamentar 23/98 a realização das obras de construção passou a estar sujeita a parecer vinculativo e não a autorização, nos termos do artigo 12.º, al. a), o qual revogou, assim, por força do disposto no artigo 20.º do Decreto Regulamentar, as normas da Portaria na parte em que exigiam autorização do PNA para obras de construção, nomeadamente os artigos 12.º, n.º 3, e 14.º, n.º 2 al. a) da Portaria aplicados pelo Tribunal recorrido por adesão ao acórdão do TCA Sul de 24.05.2018, proferido no proc. n.º 312/08.5BEALM.

17ª O Acórdão Recorrido, ao determinar que os atos impugnados são nulos por violação das normas dos artigos 12.º e 14.º, n.º 2, al. a) da Portaria n.º 26-F/80, fez uma errada aplicação de tais normas, tendo ainda ofendido o disposto nos artigos 12.º, al. a), e 20.º do Decreto Regulamentar 23/98.

18ª Ainda que se considerasse que o ato de licenciamento camarário violou o disposto na Portaria 26-F/80 – o que por mera cautela de patrocínio se equaciona – tal não geraria a nulidade de tal ato por violação de plano especial de ordenamento do território, como preconiza o Acórdão recorrido.

19ª O Acórdão recorrido, ao decidir que os atos impugnados são nulos por violação de plano especial de ordenamento do território, padece de erro de Direito, fazendo uma errada interpretação e aplicação do 19.º, n.º 5, do Decreto Regulamentar 23/98, uma errada aplicação do artigo 68.º, al. a), do RJUE e do artigo 103.º do RJIGT, violando, ainda, o disposto no artigo 34.º da Lei de Bases, nos artigos 3.º e 154.º do RJIGT e o princípio da hierarquia das normas vertido no artigo 112.º da Constituição.

NESTES TERMOS,
Deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogado o Acórdão Recorrido, confirmada a validade dos atos impugnados e dada sem efeito a condenação do Município a determinar a demolição das obras realizadas ao abrigo desses atos, assim se fazendo o DIREITO e a JUSTIÇA!».

3. O MINISTÉRIO PÚBLICO, Autor/Recorrido, apresentou contra-alegações, terminando com as seguintes conclusões (cfr. fls. 1352 e segs. SITAF):

«1.º Não é de se entender que se impõe a intervenção do STA, por não se mostrarem preenchidos os pressupostos que condicionam a admissão do recurso de revista, não se tratando de um caso em que seja necessária clarificação jurídica a efectuar por esse Tribunal e susceptível de gerar controvérsia, devendo o recurso ser rejeitado por não obedecer aos requisitos previstos no art.º 150.º, n.º 1, do CPTA.

2.º O regime legal específico do Parque Natural da Arrábida consta da Portaria n.° 26-F/80, de 9/01, que foi revogada pelo Decreto Regulamentar n° 23/98, de 14 de Outubro, com excepção dos artigos 8° a 16° que se mantêm em vigor.

3.º Nos termos do disposto nos artigos 10° e 12° da Portaria n.º 26-F/80, citada, são proibidos no Parque Natural da Arrábida, local onde situa a construção a demolir, quaisquer trabalhos, obras ou actividades sem autorização expressa, e só podem ser realizados mediante prévio parecer a emitir pelo referido Parque.

4.º Os pareceres do Parque Natural da Arrábida são obrigatórios e vinculativos, conforme resulta do disposto nos artigos e 12° e 19°, n° 2 do Decreto Regulamentar n.° 23/98, de 14 de Outubro, não podendo ocorrer licenciamento camarário, sem que o Parque se pronuncie favoravelmente.

5.º Pelo que, sendo tal parecer obrigatório e vinculativo é irrelevante o decurso do prazo de um ano sem que haja emissão do mesmo parecer, omissão que não equivale a concordância ou deferimento tácito, não se convalidando na ordem jurídica, conforme pretende a Recorrente, e a única solução no caso em apreço é a ordenada demolição.

6.º Mesmo que se considerasse o deferimento tácito por ausência de parecer do Parque Natural da Arrábida, tal deferimento sempre seria nulo, nulidade essa que afecta os actos de licenciamento e de emissão de alvará em questão, nos termos do disposto nos artigos 19°, n° 5 do Decreto Regulamentar 23/98, de 14/10 e 103° do Decreto-lei n° 380, de 22 de Setembro (na versão então aplicável).

7.º A legislação que regulamenta o Parque Natural da Arrábida enquadra-se na noção de plano especial, nos termos da disposição conjugada dos artigos 18°, n° 3, do referido Decreto Regulamentar n.° 23/98, 2°, n° 1, al. c), 42°, n° 3 e 154°, n° 1, todos do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial.

8.º Planos especiais que, contrariamente ao alegado, vinculam as entidades públicas e os particulares, nos termos do art.º 3°, n.° 3, do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial.

9.º Os actos de licenciamento camarário que deferiram a operação urbanística de edificação em apreço nos autos, violaram expressamente o disposto nos art.ºs 12°, 14° n° 2 al. a) da Portaria 26-F/ 89, de 09/01 (Cfr. também o art.º 20° do Decreto Regulamentar n° 23 / 98, de 14/10, conforme o disposto no artigo 19° n° 5 deste último diploma e o artigo 2° n.° 2 al. c) do citado Decreto- Lei n.° 380/99, de 22/09).

10.º A violação das normas que regulamentam o Parque Natural da Arrábida, conforme art.ºs 12° e 19°, n.°s 2 e 5 do citado Decreto- Regulamentar 23/98 e art.º 2°, n.° 2, al. c) do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, inquina de nulidade os actos administrativos que deferiram o licenciamento de obras e a concessão de alvará para a construção da moradia pertença da ora Recorrente, nos termos do disposto nos art.ºs 103.° Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, 68. °, al. a), do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação e art.º 133.º, n.º 1, do anterior CPA (actual art.º 161.°, n.° 1).

11.º A alegada inconstitucionalidade por violação do princípio de precedência de lei vertido no artigo 112.º, n.º 7, da CRP, quanto à interpretação de tais normas, no sentido de excluir o parecer favorável tácito, assim como a mera anulabilidade dos actos impugnados, são questões novas que não foram suscitadas anteriormente no recurso para o TCA Sul, nem sobre as mesmas se debruça o Aresto em apreço, pelo que não devem ser apreciadas, por estar vedado o conhecimento das mesmas - art.º 627.º, n.º 1, do CPC.

12.º Pelo exposto, foi invocada ofensa, e manifestamente foram violados pela Entidade Demandada, as referidas normas e planos especiais, não se verificando erro do julgamento, nem inconstitucionalidade, relativamente à interpretação dos preceitos legais alegados pela Recorrente, que não se mostram ofendidos, devendo ser negado provimento ao recurso e ser mantido o douto Acórdão recorrido».

4. O “Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, I.P.” (ICNF), Contrainteressado, também apresentou contra-alegações, terminando com as seguintes conclusões (cfr. fls. 1372 e segs. SITAF):

«1. O Acórdão recorrido está em consonância com a jurisprudência do Tribunal Central Administrativo do Sul e com o Acórdão proferido em conferência pela 1.ª instância, o que, desde logo, faz questionar a controvérsia e a necessidade do presente meio processual.

2. A capacidade expansiva das questões controvertidas limita-se aos licenciamentos deferidos pela Câmara Municipal de Setúbal nas parcelas que, a par da Recorrente, resultaram do mesmo fracionamento não autorizado pelo PNA.

3. Nem a questão jurídica nem aquela capacidade expansiva justificam a admissão do Recurso de Revista, e tão pouco o reclama a necessidade de uma melhor aplicação do direito.

4. A exigência de parecer expresso, sustentada no douto Acórdão recorrido, resulta das competências específicas do PNA e dos condicionalismos referidos no n.º 2 do art.º 14.º da Portaria n.º 26-F/80, de 9 de janeiro, uma vez que os serviços do Município de Setúbal não estão capacitados para se substituir ao PNA na apreciação da compatibilidade de uma exploração agrícola, florestal ou de recreio com os valores ecológicos a defender na área.

5. Essa compatibilidade é um pressuposto incontornável, pelo que não basta verificar o cumprimento dos parâmetros urbanísticos das alíneas d) e e) do n.º 2 do art.º 14.º da Portaria n.º 26-F/80, de 9 de janeiro.

6. O silêncio do PNA não garante que tenha sido realizada aquela ou outras apreciações, razão pela qual o Acórdão recorrido sustenta que não é aplicável a figura do deferimento tácito.

7. Entendimento que, na letra da lei, se funda na ressalva “sem prejuízo do disposto em legislação específica”, constante da parte final do n.º 9 do art.º 19.º do RJUE.

8. A indispensabilidade do parecer expresso implica que a força vinculativa do parecer desfavorável do PNA não fica prejudicada pela sua extemporaneidade, pelo que o Município de Setúbal não o podia ter ignorado.

9. O deferimento do licenciamento da construção violou o disposto no art.º 14.º, n.º 2, alínea a), da Portaria n.º 26-F/80, de 9 de janeiro, tanto por não ter sido verificada a compatibilidade do plano de aproveitamento agrícola com os valores naturais a defender como por se ter ignorado o parecer desfavorável do PNA.

10. Violou também o disposto no art.º 12.º, alínea a), do Decreto-Regulamentar n.º 23/98, por força de uma errada interpretação e aplicação do disposto no art.º 19.º, n.º 9, do RJUE (na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 177/2001, de 4 de junho).

11. O fracionamento de onde resultou o prédio da Recorrente não foi sujeito a autorização do PNA, pelo que os atos de inscrição matricial e descrição predial das várias parcelas são “nulos e de nenhum efeito”, nos termos conjugados dos artigos 11.º, alínea a), e 19.º, n.º 5, do Decreto-Regulamentar n.º 23/98.

12. Nos termos do art.º 133.º, n.º 2, alínea c), do CPA então vigente, essa nulidade inquina os deferimentos dos pedidos de licenciamento de construção relativos tanto ao prédio original como aos prédios desanexados, uma vez que tais atos respeitam a parcelas de terreno sem existência jurídica.

13. A amplitude dos poderes conferidos pelo art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 19/93, de 21 de janeiro, bem como o disposto no art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 151/95, de 24 de junho, contrariam o argumento segundo o qual o Decreto-Regulamentar n.º 23/98 carecia de habilitação para definir o desvalor jurídico dos atos praticados em desconformidade com as suas disposições.

14. Por outro lado, todos os referidos atos legislativos são emanados do Governo, não existindo motivo para este ficar limitado quanto àquela possibilidade.

15. A ser acolhido o entendimento do douto Acórdão recorrido, a nulidade do ato de deferimento do licenciamento da construção também resulta do disposto no art.º 68.º, alíneas a) e c), do RJUE.

16. E, também, do disposto no art.º 103.º do RJIGT, uma vez que a regulação resultante da conjugação do Decreto-Regulamentar n.º 23/98 e dos artigos 8.º a 16.º da Portaria 26-F/80, de 9 de janeiro, constitui, materialmente, um plano especial de ordenamento do território.

17. Mesmo que, por força do disposto no n.º 4 do art.º 154.º do RJIGT, o Decreto-Regulamentar n.º 23/98 assuma a natureza de plano sectorial, a violação dos seus dispositivos não deixa de ser cominada com a nulidade, nos termos do mesmo art.º 103.º.

Motivos pelos quais, a ser admitida a presente Revista, deverá ser confirmada a decisão recorrida, assim se fazendo o DIREITO e a JUSTIÇA!».

5. O presente recurso de revista foi admitido pelo Acórdão de 11/1/2019 (cfr. fls. 1397 e segs. SITAF) proferido pela formação de apreciação preliminar deste STA, prevista no nº 5 do art. 150º do CPTA, designadamente nos seguintes termos:

«(…) 2. Resulta da M.F. que, na sequência de um pedido de licenciamento da construção de uma habitação, a Câmara Municipal de Setúbal solicitou, em 31/01/2003, ao Parque Natural da Arrábida (PNA) que se pronunciasse sobre o mesmo e este, já depois daquele pedido ter sido aprovado e ter sido emitido o correspondente alvará, pronunciou-se, em 13/05/2004, com um parecer desfavorável.
O MºPº impugnou os referidos actos camarários e pediu a demolição da obra e a reposição do terreno no seu estado original e o TAF de Almada, onde a acção foi proposta, julgou-a procedente condenando o Réu a demolir o edificado e a repor o terreno no estado em que ele se encontrava antes de realizada a construção.
Para tanto, depois de sinalizar que o PNA tinha emitido o seu parecer já depois de expirado o prazo legal, de 45 dias, considerou que o decurso desse prazo sem a emissão do parecer não determinava a perda do carácter vinculativo deste nem a formação de um parecer tácito de concordância. Justificando esse entendimento na circunstância da lei prescrever que “são nulos e de nenhum efeito os actos administrativos que contrariem o disposto no mesmo diploma, o que significa que são, designadamente, nulos os actos de licenciamento desconformes com o parecer vinculativo do Parque Natural da Arrábida ou que não sejam precedidos de parecer expresso favorável do mesmo Parque.
A sanção da nulidade dos actos desconformes com o disposto no Decreto-regulamentar n.° 23/98, de 14 de Outubro, e, por esta via, dos actos que violem as normas dos artigos 8.º a 16.º da Portaria n.° 26-F/80, de 9 de Janeiro, impõe a conclusão de que estas normas vinculam directamente os particulares, independentemente da qualificação do plano como plano sectorial ou como plano especial de ordenamento do território.
Sendo assim, e sendo que a decisão de demolição era um acto estritamente vinculado, concluiu “que a obra em causa é insusceptível de legalização, razão pela qual cumpre condenar a entidade demandada a determinar a demolição da obra edificada e a reposição do terreno no estado em que se encontrava.”
Decisão que o TCA confirmou pelas razões que sumariou do seguinte modo
“i) Ainda que o parecer do Parque Natural da Arrábida não tenha sido emitido dentro do prazo de 45 dias e perante um parecer recebido fora do prazo legalmente estabelecido, não deixa o Município de estar vinculado à Constituição e à lei não podendo praticar actos administrativos que consubstancie a violação de normas constantes de ato legislativo ou de plano urbanístico de ordenamento do território.
ii) A conformidade dos actos administrativos praticados nos procedimentos de controlo de operações urbanísticas com os instrumentos de gestão territorial aplicáveis é condição da sua validade, como estabelece o disposto no n.° 2 do artigo 101.º do regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial, aprovado pelo D.L. n° 380/99, de 22/09.
iii) Os actos que violem o disposto em plano municipal de ordenamento do território ou em plano especial de ordenamento do território, enquanto instrumentos de ordenamento do território cujas prescrições vinculam directa e imediatamente quer as entidades públicas, quer os particulares, atenta a força e a eficácia plurisubjectiva de que gozam, projectando e impondo externamente os seus efeitos, são nulos, nos termos do artigo 103.° do D.L. n.° 380/99, de 22/09 e do artigo 68.°, al. a) do RJUE.
iv) Os pareceres emitidos pelo Parque Natural vinculam no caso de serem negativos, caso em que a entidade municipal competente não pode emitir a licença e o respectivo alvará de construção, além de que a ausência de parecer ou mesmo o parecer tácito favorável, não dispensam o Município do cumprimento da legalidade aplicável, sendo nulas as licenças que violem o disposto em plano especial de ordenamento do território, segundo o artigo 68.° do RJUE.
v) A declaração de nulidade dos actos impugnados implica a não produção de quaisquer efeitos jurídicos decorrentes da aprovação do projecto de arquitectura e do acto de licenciamento, o que significa que a obra realizada é ilegal e que, nessa medida, deve ser ordenada a sua demolição, caso a obra seja insusceptível de legalização.
vi) Sendo a edificação insusceptível de legalização, considerando o Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida, cumpre condenar a entidade demandada a determinar a demolição da obra edificada e a reposição do terreno no estado em que se encontrava.”
3. Como se acabou de ver o que ora está em causa é a legalidade de dais actos da Câmara Municipal de Setúbal referentes a um pedido de licenciamento e à ordem de demolição da obra que foi erigida a coberto desses actos.
A ordem de demolição de uma habitação é um acto de graves repercussões podendo, por isso, a apreciação da sua legalidade ser qualificada como uma questão que, pela sua relevância jurídica e social, se reveste de importância fundamental. Importância que se avoluma pela circunstância daquela edificação ter sido concretizada após o seu licenciamento e a emissão do correspondente alvará, isto é, após de, aparentemente, terem sido cumpridos os trâmites legais atinentes e de a obra ter sido realizada com cobertura legal.
O que, por si só, aconselha a que se admita a revista para que essa problemática possa ser reapreciada.
Acresce que a referida problemática coloca questões de ordem mais geral em matéria de urbanismo que podem vir a colocar-se no futuro como sejam, por exemplo, as questões relacionadas com a formação de deferimento tácito na ausência de parecer do Parque Natural da Arrábida e as questões relativas às consequências jurídicas de uma operação de fraccionamento não autorizada pelo Parque Natural da Arrábida.
Finalmente, o licenciamento da construção da habitação ora em causa pode ter convencido a Recorrente de que nenhuma ilegalidade fora cometida ou que, ocorrendo essa ilegalidade, a mesma não lhe podia ser atribuída, o que suscita a questão do eventual ressarcimento dos prejuízos sofridos. Deste modo, e também por esta razão, existe fundamento para que este Supremo reanalise a bondade da decisão recorrida.
Justifica-se, pois, admitir o recurso pela genuína relevância, quer jurídica quer social, das questões que nele se colocam».

6. Colhidos os vistos, o processo vem submetido à Conferência, cumprindo apreciar e decidir.


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II - DAS QUESTÕES A DECIDIR

7. Constitui objeto do presente recurso:

Apreciar se o Ac.TCAS recorrido, confirmativo da sentença de 1ª instância do TAF/Almada, ao julgar procedente a ação, declarando a nulidade (conforme pedido pelo Autor, Ministério Público), dos impugnados atos da Câmara Municipal de Setúbal - de licenciamento da obra e de emissão do correspondente alvará – e determinando, em consequência, a demolição da obra, julgou corretamente, nomeadamente a questão em causa nos presentes autos, isto é, fundamentalmente, «a questão do valor jurídico/consequências jurídicas do silêncio do Parque Natural da Arrábida quando consultado para emitir parecer no âmbito de procedimentos de licenciamento de operações urbanísticas» – conclusão 1ª das alegações de recurso da Contrainteressada/Recorrente.


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III - FUNDAMENTAÇÃO

III. A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

8. As instâncias deram como provados os seguintes factos:

«a) A Sociedade B………….., Lda. era proprietária do prédio rústico situado em ……… ou …….., freguesia de São Lourenço, concelho de Setúbal, com a área de 84.080m2 e descrito sob o n.º 3249, na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal [cfr. processo administrativo – processo de obras n.º 679/02].

b) O prédio referido em a) resultou de uma operação de fraccionamento titulada por duas escrituras públicas, respectivamente, de doação com reserva de usufruto e de compra e venda, de um prédio originário com a área de 43.5 hectares, inscrito na matriz sob o artigo 42.º, Secção “H” e com a descrição predial n.º3249/19981014, da freguesia de São Lourenço [documentos de fls. 334 a 351 dos autos].

c) Do prédio originário foram desanexados o prédio n.º 3591/20010531, com a área de 182.750 m2, o prédio n.º 3952/20010531, com a área de 84.080 m2 e o prédio n.º 3953/20010531, com a área de 84.080m2, ficando o prédio originário com a área de 84.090m2 [documento de fls. 344 a 350 dos autos].

d) O prédio identificado em a) situa-se no sopé da Serra da Arrábida, dentro dos limites do Parque Natural da Arrábida, encontrando-se localizado, em parte, em Área de Paisagem Protegida e, parcialmente, na Zona de Protecção do Parque Natural da Arrábida [cfr. processo administrativo apenso – processo de obras n.º 679/02].

e) Em 04/12/2002, a Sociedade B……………, Lda. apresentou ao Município de Setúbal um pedido de licenciamento da construção de uma moradia unifamiliar, habitação de caseiro e piscina, submetendo à apreciação do Município o projecto de arquitectura [documento de fls. 8 dos autos e documento n.º 1 do processo administrativo apenso – processo de obras n.º 679/02].

f) O pedido referido em e) deu origem ao processo de obras n.º 679/02 [documento n.º1 do processo administrativo apenso – processo de obras n.º 679/02].

g) Através do ofício n.º 2837, de 31/01/2003, a Câmara Municipal de Setúbal remeteu ao Director do Parque Natural da Arrábida cópia do projecto relativo ao pedido referido em e) e solicitou pronúncia sobre o mesmo [documento de fls. 14 dos autos].

h) Em 30/09/2003, o Departamento de Habitação e Urbanismo da Câmara Municipal de Setúbal elaborou Informação, onde consta, designadamente, o seguinte:
“(…)
Apreciado o projecto apresentado à luz das disposições contidas na Portaria n.º 26-F/80 de 9 de Janeiro, diploma que regula as intervenções no PNA (à data da entrada do reqto retro), afigura-se-me a seguinte apreciação:
- É cumprido o índice de utilização fundiário máximo de 0.004, bem como a bitola máxima de 200m2, reservada para a habitação patronal (alínea d), nº 2, Artº 14º);
- É cumprida a cércea máxima de 6,5 m (alínea e), nº 2, Artº 14º);
- Não há objecções quanto à inserção da construção na topografia existente, uma vez que a modelação de terreno proposta não parece relevante, ainda que se registem alguns desenterros. No que respeita a aspectos de natureza estética, nada há a opor.
Face ao exposto, proponho o deferimento da pretensão, e que se comuniquem ao reqte as condições a observar, nos termos legais, com vista ao licenciamento da obra, o qual ficará sujeito ao pagamento das taxas previstas nos Artºs 21º e 33º do REUMS.
Deverá ainda a emissão da licença de construção ficar condicionada:
- à apresentação de plano de aproveitamento agrícola para toda a parcela, bem como projecto de arranjos exteriores contemplando a área envolvente das construções;
- à apresentação de certidão de teor da descrição predial actualizada.
Mais proponho que se comunique ao PNA desta decisão, e, que, oportunamente, serão chamados a pronunciar-se sobre o plano de aproveitamento agrícola e o projecto de arranjos exteriores solicitados ao reqte. (….).” [documento n.º 17 do processo administrativo apenso – processo de obras n.º 679/02].

i) Por despacho do Vereador, de 10/10/2003, foi aprovado o projecto de arquitectura, condicionando-se a emissão da licença de construção à apresentação de plano de aproveitamento agrícola para toda a parcela e de projecto de arranjos exteriores contemplando a área envolvente das construções [documento de fls. 8 dos autos e documento n.º 61 do processo administrativo apenso – processo de obras n.º 679/02].

j) Através do ofício n.º 30383, de 13/11/2003, a Câmara Municipal de Setúbal comunicou ao Director do Parque Natural da Arrábida que tinha sido pedido à requerente Sociedade B……………, Lda., antes da emissão da licença de construção, plano de aproveitamento agrícola para toda a parcela, bem como projecto de arranjos exteriores contemplando a área envolvente da construção e que, oportunamente, seria chamado a pronunciar-se sobre os mesmos [documento de fls. 15 dos autos].

k) Em 13/05/2004, o Parque Natural da Arrábida enviou para a Câmara Municipal de Setúbal o ofício com referência PC-5-2003, onde consta, designadamente, o seguinte:
“(…)
Em resposta ao assunto em epígrafe, informa-se V.Exª do seguinte:
1. A propriedade mede 8,408 hectares, localiza-se dentro do perímetro do PNA, parte em área de Paisagem Protegida, parte em Zona de Protecção e encontra-se totalmente classificada como Reserva Ecológica Nacional, confinando, ainda, com zonas de excepcional importância para a Conservação da Natureza.
2. O requerente apresentou, para apreciação, um projecto de arquitectura para construção de uma casa patronal com 200 m2, piscina e uma casa de caseiro com 100m2, perfazendo 300 m2 de área coberta encerrada.
3. Verifica-se, porém, que a propriedade se caracteriza por conter valores naturais relevantes para além de outros de grande sensibilidade, pelo que se considera que a pretensão de construir as referidas habitações, piscina e respectivas infraestruturas, põe em risco o equilíbrio dos sistemas ecológicos e biofísicos presentes na área e colide com os objectivos de manutenção e valorização das características naturais excepcionais do local.
4. Pelo exposto, ao abrigo do ponto 3 do Artº. 12º e do ponto 3 do Artº. 14º da Portaria Nº 26-F/80 de 9 de Janeiro e da alínea a) do Artº. 3º do Decreto-Regulamentar Nº 23/98 de 14 de Outubro, emite-se parecer desfavorável à pretensão do requerente.
(…)”. [documento n.º 67 do processo administrativo apenso – processo de obras n.º 679/02].

l) Em 15/06/2004, a Sociedade B………. juntou ao processo de obras o plano de aproveitamento agrícola e o projecto de arranjos exteriores [documento n.º79 do processo administrativo apenso – processo de obras n.º 679/02].

m) Em 13/09/2004, a Câmara Municipal de Setúbal enviou para o Parque Natural da Arrábida o ofício n.º 26936, com o seguinte teor: “(…) Para efeito do disposto no Decreto-lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, remeto cópia do projecto de aproveitamento e ordenamento cultural, referente à pretensão acima mencionada, tendo em conta que o projecto de arquitectura dos edifícios já se encontra aprovado.
Solicito que, dentro do prazo estabelecido, se dignem pronunciar sobre o assunto . (…)”.
[documento n.º 90 do processo administrativo apenso – processo de obras n.º 679/02].

n) Por requerimento que deu entrada no dia 29/09/2004, a Sociedade B……………, Lda. solicitou, ao Presidente da Câmara Municipal de Setúbal, a emissão do alvará do licenciamento [documento n.º 100 do processo administrativo apenso – processo de obras n.º 679/02].

o) Em 14/12/2004, a Comissão Directiva do Parque Natural da Arrábida aprovou, por unanimidade, a Informação n.º 337/04, onde consta, designadamente, o seguinte:
“(…)
Por despacho dirigido à signatária, foi pedida análise da documentação da Conservatória do Registo Predial, enviada pela Câmara Municipal de Setúbal (Entrada nº 2974 de 28/09/2004), no processo de licenciamento em que é requerente ………………

O referido processo diz respeito a pedido de licença para obras de construção de moradia e habitação de caseiro, a efectuar na Quinta ……. ou ……….., em Azeitão. Relacionados com o presente processo nº 38-2003 existem os seguintes processo no PNA:

Processo de construção nº 5-2003 em que é requerente Sociedade B…………, Lda.;
Processo de construção nº 6-2003 em que é requerente ……………………………….;
Processo de construção nº 7-2003 em que é requerente ………………………………;
Processo de construção nº 8-2003 em que é requerente ………………………………..

Todos estes processos têm em comum o seguinte: tratam-se de pedidos de licença de obras de construção de moradia, habitação de caseiro e piscina a efectuar em prédios que foram desanexados, através de duas escrituras públicas, respectivamente, de doação com reserva de usufruto e de contrato de compra e venda (vide docs. 1 e 2 que se anexam) de um prédio originário com a área de 43,5 Há, inscrito na matriz sob o art. 42, Secção H e com a descrição predial nº 3249/19981014, da Freguesia de S. Lourenço (doc. 3)

Desse prédio originário foi desanexado o prédio nº 3951/20010531 (doc. 4), com a área de 182.750 m2; o prédio nº 3952/20010531 (doc. 5), com a área de 84.080 m2 e o prédio nº 3953/20010531 (doc. 6), com a área de 84.080 m2, ficando o prédio originário com a área de 84.080 m2.

Por seu turno, o prédio nº 3951/200110531 foi objecto de operação de destaque nos termos do art. 6º, nº 5 do DL nº 555/99, dando origem a um prédio descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal, sob o nº 4771/20030228 (doc. 7), com a área de 89.400 m2.

É esta a situação registral dos prédios em questão.

Nos termos do art. 11º, al. a) do decreto regulamentar nº 23/98, de 14/10, com a epígrafe Actos e actividades sujeitos a autorização:
“Sem prejuízo dos restantes condicionalismos legais, ficam sujeitos a autorização do Parque Natural os seguintes actos e actividades:
a) O fraccionamento ou parcelamento de terrenos rústicos que respeite as possibilidades e os limites estabelecidos por lei para as unidades de cultura, salvo se para efeitos e emparcelamento,”

Face aos elementos constantes dos processos em análise, não foi solicitada a autorização do Parque Natural da Arrábida para se procedere à divisão da propriedade em apreço, sendo que a falta de tal autorização, por violação da referida alínea a) do art. 11º, do decreto regulamentar nº 23/98, de 14/10, constitui a nulidade prevista nos arts. 19º, nº 5 do decreto regulamentar nº 23/98 de 14/10, art. 103º do DL nº 380/99 de 22/09 alterado pelo DL nº 310/2003 de 10/12 e art. 68º, al.a) do DL nº 555/99 de 16/12.

Nos termos do art. 134º do CPA que fixa o regime da nulidade, o acto nulo não produz quaisquer efeitos jurídicos, independentemente da declaração de nulidade e a nulidade é invocável a todo o tempo e pode ser declarada, também a todo o tempo.

Assim, e porquanto as “aprovações dos projectos de arquitectura com parecer favorável tácito do PNA” que foram efectuadas pela Câmara Municipal de Setúbal, nestes processos de licenciamento, radicam, salvo melhor opinião, num fraccionamento nulo, todos os actos de licenciamento subsequentes também estão feridos de nulidade.

Não posso ainda deixar de referir que a análise conjunta destes processos, leva-me a concluir que materialmente estamos perante uma operação de loteamento.

Face ao exposto, sou de parecer que existem indícios de nulidade nos actos administrativos que têm vindo a ser proferidos pela Câmara Municipal, devendo ser dado conhecimento ao Ministério Público junto do Tribunal Administrativo e Fiscal competente, para efeitos de interposição do competente recurso contencioso (art. 69º, nº 1 do DL nº 555/99, de 16/12).

Não me pronuncio sobre a documentação da Conservatória do Registo Predial apresentada, uma vez que a alegada nulidade de fraccionamento da propriedade prejudica e fere de nulidade, também, a operação de destaque efectuada.

É tudo o que se nos oferece informar sobre este assunto, V.Exª, porém, melhor decidirá.
(…).” [documento n.º111 do processo administrativo apenso – processo de obras n.º679/02].

p) Por despacho do Vereador, de 15/12/2004, exarado em Informação Técnica de 09/12/2004, foi deferido o pedido de licenciamento de construção referido em e) [documento de fls. 9 e 10 dos autos].

q) Na Informação referida em p), consta, designadamente, o seguinte:
“(…)
No âmbito do presente processo foi aprovado o projecto de arquitectura anexo ao requerimento 7009/02 de 04/12, com parecer tacitamente favorável por parte do PNA, e após aferição do cumprimento dos parâmetros urbanísticos estabelecidos por força da aplicação da Portaria nº 26-F/80 de 9 de Janeiro.

Foi, contudo, condicionada a emissão da licença de construção à apresentação, entre as restantes especialidades necessárias, de plano de aproveitamento agrícola para toda a parcela e projecto de arranjos exteriores, contemplando a área envolvente das construções.

Com o requerimento 5966/04 de 15/06 são apresentados os projectos acima referidos e sujeitos a apreciação por parte do sector de paisagismo da Divisão de Planeamento Urbanístico, que concluiu não haver inconveniente nos mesmos.

Não obstante, e como já havia sido referido na minha informação técnica de 2003/09/30, estes projectos, dada a sua especificidade, e atendendo a que se trata de uma zona sensível do ponto de vista paisagístico, foram remetidos ao PNA, para que sobre as propostas que aí se preconizavam se pronunciassem. Esta consulta foi efectuada através do nosso ofício nº 9033/26936 de 2004/09/13.

Até ao momento, e mais uma vez, não foi recebida qualquer resposta por parte do PNA, tendo sido largamente ultrapassado o prazo de 45 dias estabelecido na legislação aplicável.

Vem agora o requerente solicitar a emissão da licença de construção, uma vez que parecem estar reunidas as restantes condições.

Face ao exposto, considero não haver qualquer impedimento na emissão da licença de construção devendo comunicar-se ao PNA que, encontrando-se reunidas as condições legalmente necessárias para o efeito, vai esta Câmara Municipal emitir a devida licença de construção para o processo mencionado em epígrafe.
(…)”. [documento de fls. 9 e 10 dos autos].

r) Através do ofício n.º 36521, a Câmara Municipal de Setúbal deu conhecimento ao Parque Natural da Arrábida da informação referida em q)
[documento n.º 103 do processo administrativo apenso – processo de obras n.º 679/02].

s) Em 03/02/2005, foi recebido na Câmara Municipal de Setúbal um fax do Parque Natural da Arrábida, datado de 31/01/2005, a solicitar informação sobre se tinha sido emitida, ou não, e em que data a licença de construção em vários processos, onde se inclui o processo em que é requerente a Sociedade B…………….., Lda., uma vez que “existem dúvidas acerca da legalidade da divisão da propriedade denominada por Quinta ………. ou ………, tendo ficado a decisão dos referidos processos prejudicada pela resolução desta questão prévia, de acordo com a informação nº 337/04 datada de 02-12-2004 enviada com os ofícios nº 63 de 17/01/2005, nº 13 de 05/01/05, nº 23 de 05/01/05 e nº 8 de 05/01/05”
[documento n.º 107 do processo administrativo apenso].

t) Em 18/01/2005, foi recebido, na Câmara Municipal de Setúbal, um ofício do Parque Natural da Arrábida, onde consta, designadamente, o seguinte:
“(…)
Em resposta ao assunto do ofício referenciado em epígrafe comunico a V.Exª o seguinte:
A propriedade situa-se dentro dos limites do Parque Nacional da Arrábida, parte em área de Paisagem Protegida (Artº. 12º da Portaria 26-F/80 de 9 de Janeiro), parte em Zona de Protecção (Artº. 10º da mesma Portaria) e encontra-se totalmente em área integrada na Reserva Ecológica Nacional.
Existindo dúvidas acerca da legalidade da divisão da propriedade denominada Quinta …….. ou …………. (alínea a) do Artº. 11º do Decreto-Regulamentar nº 23/98, de 14/10), fica a decisão do referido processo prejudicada pela resolução desta questão prévia, de acordo com a Informação nº 337/04 de 02/12/2004, (que se anexa cópia).
(…).” [documento n.º 111 do processo administrativo apenso – processo de obras n.º 679/02].

u) Em 21/03/2005, o Director do Departamento de Urbanismo da Câmara Municipal de Setúbal, em substituição, elaborou Informação, onde consta, designadamente, o seguinte:
“(…)
Sr. Vereador:
Em resposta ao ofício de 31/1/2005 do PNA sobre se foi emitida licença de construção propõe-se se informe:
Que ainda não foi emitido alvará de licença de construção, tendo o pedido de licenciamento sido deferido conforme despachos de 10/10/2003 e de 15/12/2004, remetendo-se-lhe cópias e ainda que:
Quando a presente pretensão de licenciamento foi requerida já havia sido operado o destaque e a sua inscrição no registo predial.
O acto ou negócio jurídico que operou o fraccionamento apresenta-se prévio à pretensão de licenciamento de edificação, foi formalizado por escritura pública e foi admitido a registo predial.
Pelo que, independentemente das conclusões do parecer jurídico tirado no PNA, a pretensão de operação urbanística de edificação contida neste processo veio requerida para um prédio autónomo, com inscrição própria no registo predial competente, não se vislumbrando, dos elementos do processo, possibilidade legal para denegar o pedido, com fundamento em nulidade, por dependência de um fraccionamento eventualmente inválido, ferido de nulidade, que não foi declarada por entidade legalmente competente para o efeito, sem prejuízo dos meios impugnatórios, aliás, suscitados naquele mencionado parecer jurídico.
Propõe-se, ainda, se dê conhecimento ao titular do processo, do ofício e parecer jurídico do PNA juntos, remetendo-se-lhe cópias, para o que houverem por conveniente.
(…)”. [documento n.º 113 do processo administrativo apenso – processo de obras n.º 679/02].

v) Em 01/04/2005, foi emitido o Alvará de licença de construção n.º…….., onde consta o seguinte:

«Nos termos do artigo 74º do Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 177/01, de 4 de Junho, é emitido o alvará de licenciamento, em nome de Sociedade B……………., Lda., residente em Alto das Necessidades, portador do Bilhete de Identidade nº ------, com o número de contribuinte/pessoa colectiva …………., que titula a aprovação das obras de edificação que incidem sobre o prédio sito em Quinta ………., ou…………, da freguesia de S. Lourenço, descrito na Conservatória do Rregisto Predial de Setúbal sob o nº -----, e inscrito na matriz predial sob o artigo nº ----- da respectiva freguesia.
As obras aprovadas por despacho de 15 de Dezembro de 2004 respeitam o disposto no Plano Director Municipal, bem como o alvará de loteamento nº ---- e apresenta as seguintes características:
- Tipo de obras: Construção de uma moradia e Habitação de caseiro;
- Área de construção: 309.00 m2;
- Volumetria do edifício: 441 m3;
- Área de implantação: ------;
- Área de lotes: -----;
- Número de pisos acima e abaixo da cota de soleira: 1;
- Cércea: 3,5;
- Número de fogos: 1;
- Uso a que se destina: Habitação;
- Condicionamento das obras: -----;
- Prazo para a conclusão das obras: 12 meses;
O edifício preenche os requisitos legais para a constituição de propriedade horizontal».
[documento de fls. 11 dos autos].

w) Por despacho da Presidente da Comissão Directiva do Parque Natural da Arrábida, de 21/03/2006, foi decretado o embargo das obras que a Sociedade B…………, Lda. se encontrava a levar a cabo
[documento de fls. 98 a 103 dos autos].

x) Por escritura notarial de 02/06/2006, A……………. adquiriu à Sociedade B……………, Lda. o prédio identificado em a)
[documento de fls. 105 a 107 dos autos].

y) Em 31/08/2006, A………….. requereu ao Município de Setúbal o averbamento do processo administrativo em seu nome, o que foi deferido [documentos de fls. 475 a 479 dos autos].

z) Em 20/09/2006, a Comissão Directiva do Parque Natural da Arrábida deliberou prorrogar por mais seis meses o embargo anteriormente decretado
[documento de fls. 108 e 109 dos autos].

aa) De acordo com o Livro de Obra, as obras ficaram concluídas em 22/09/2007
[cfr. livro de obra que consta do processo administrativo apenso – processo de obras n.º 679/02].

bb) Em 08/02/2007, a Comissão Directiva do Parque Natural da Arrábida deliberou determinar a demolição das construções efectuadas no prédio identificado em a)
[documento de fls. 110 e 111 dos autos].

cc) Na deliberação referida em bb), consta o seguinte:

«Nos termos do art. 7º, nº 3, al. f) do decreto-regulamentar nº 23/98, de 14/10, conjugado com o art. 18º, nº 3, al. f) do DL nº 19/93, de 23/01, decidiu-se a demolição das construções, o que se faz nos termos e com os fundamentos, de facto e de direito, seguintes:
1º A arguida é a titular de um prédio rústico situado em ……… ou Quinta ……., freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal, com a área de 84.080 m2, descrito sob o nº 3.249 na 1ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal.
2º Este prédio foi desanexado do prédio inscrito sob o nº 3249/19981014 na 1ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal.
3º Estamos perante uma operação de fraccionamento não autorizada pelo PNA.
4º As construções forma realizadas sem o parecer favorável do PNA (auto de notícia nº 32/2005).
5º O acto de licenciamento camarário que deferiu a operação urbanística de edificação violou o disposto no Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida, plano esse especial de ordenamento do território, conforme o disposto no artigo 2º, nº 2 alínea c) do Decreto-Lei nº 380/99, de 22 de Setembro, designadamente, as regras relativas à construção previstas na parte aplicável da Portaria nº 26-F/80, de 9/01 (artigo 20º do decreto-regulamentar nº 23/98 de 14/10) e, em consequência, padece do vício de nulidade (Cfr. Art. 68º, alínea c) do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação e artigo 103º do Decreto-Lei nº 380/99, de 22 de Setembro).
6º Na propriedade em causa existem valores naturais relevantes (Cfr. Decreto-Lei nº 140/99, de 24 de Abril, alterado pelo Decreto-Lei nº 49/2005, de 24 de Fevereiro – Rede Natura), para além de outros de grande sensibilidade que ficam afectados com a construção de habitações, piscinas e infraestruturas, colocando em risco o equilíbrio dos sistema ecológicos e biofísicos em presença naquela área, colidindo com os objectivos de manutenção e valorização das características naturais excepcionais do local.
7º A propriedade aqui em causa situa-se dentro dos limites do Parque Natural da Arrábida, em zona denominada área de protecção parcial do tipo II, espaço non aedificandi (arts. 16º e 17º) e uma pequena parte em área de protecção complementar I (arts. 18º e 19º do POPNA), sendo que a área mínima da parcela edificável são 10 ha (RCM nº 141/2005, de 23/08).
Assim, face ao que antecede as construções são insusceptíveis de legalização não restando outra solução, senão a sua demolição.
Pelo que, deverá demolir as construções efectuadas ilicitamente, no prazo de 45 dias, por as mesmas violarem o disposto nos arts. 16º, 17º, 18º, 19º e 50º, nº 1, al. b) do POPNA (RCM nº 141/2005, de 23/08).
Deve ainda informar-se que esta ordem é precedida de audição do infractor, o qual dispõe de quinze dias, a contar da data da sua notificação, para se pronunciar sobre o conteúdo da mesma (art. 100º e 101º do CPA).
Decorrido o prazo de 45 dias, sem que a ordem de demolição se mostre cumprida, o ICN procede, a solicitação da comissão directiva da área protegida, aos trabalhos de reposição da situação anterior, por conta do infractor (art. 25º, nº 3 do DL nº 19/93, de 23/01, aplicável ex vi do art. 50º nº 2 da RCM nº 141/2005, de 23/08). As despesas realizadas, quando não forem pagas voluntariamente pelo infractor no prazo de 20 dias a contar da sua notificação, são cobradas judicialmente, servindo de título executivo a certidão passada pelo ICN comprovativa das quantias despendidas (art. 25º, nº 4 do DL nº 19/93, de 23/01).
Da deliberação da comissão directiva cabe recurso para o Ministro do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional (art. 18º, nº 4 do DL nº 19/93, de 23/01)».
[documento de fls. 110 e 111 dos autos].

dd) Em 01/10/2007, a contra-interessada A…………. foi notificada para se pronunciar sobre a deliberação da Comissão Directiva do Parque Natural da Arrábida no sentido da demolição das construções efectuadas ao abrigo da licença de construção
[documento defls. 110 e 111 dos autos].

ee) A contra-interessada pronunciou-se sobre o referido projecto de decisão
[documento de fls. 112 a 124 dos autos].

ff) Por despacho da Directora do Departamento de Gestão de Áreas Classificadas Litoral de Lisboa e Oeste, de 29/11/2007, proferido sobre a Informação n.º430/2007, foi decidido manter a ordem de demolição
[documento de fls. 125 a 128 dos autos].

gg) Por ofício datado de 09/01/2008, a contra-interessada A……………. tomou conhecimento do despacho referido em ff)
[documento de fls. 125 a 128 dos autos].

hh) Em 03/04/2008, a contra-interessada A……….. intentou acção administrativa especial de impugnação do despacho referido em ff), que corre termos neste Tribunal, Processo n.º 308/08.7BEALM
[informação disponível no SITAF].

ii) Em 21/02/2011, foi proferida sentença no processo identificado em hh), que julgou a acção improcedente [documento de fls. 301 a 333 dos autos]».


*

III. B – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

9. O presente recurso de revista, como supra se evidenciou, visa, em suma, reapreciar a questão do valor jurídico/consequências jurídicas do silêncio do Parque Natural da Arrábida quando consultado para emitir parecer no âmbito de procedimentos de licenciamento de operações urbanísticas – conclusão 1ª das alegações da Contrainteressada/Recorrente.

Mais concretamente, defende a Recorrente que:

- «Não decorre da nulidade cominada no artigo 19.º, n.º 5, do Decreto Regulamentar 23/98 para os atos que contrariem o nele disposto, que o parecer vinculativo do PNA, a que está sujeita a realização de obras de construção na área do Parque nos termos do seu artigo 12.º, al. a), continua a ser vinculativo mesmo após o termo do prazo legal para a sua emissão nem que não se forma parecer favorável tácito mesmo que o parecer não seja recebido pelo Município dentro do prazo, estando o Município vinculado a não deferir o licenciamento enquanto não for emitido parecer expresso do PNA.
Ao assim entender, por adesão à Sentença da 1.ª instância, o Acórdão recorrido fez uma errada interpretação e aplicação do artigo 19.º, n.º 5, do Decreto Regulamentar 23/98, a qual contraria o disposto nos artigos 19.º, n.ºs 9 e 11.º, 20.º, n.º 2, al. c), 21.º, n.º 4, al. c), 111.º, al. a) e 112.º do RJUE e ainda o disposto no artigo 9.º, n.º 1, do CPA.
Ao acolher o entendimento do Tribunal da 1.ª instância de que, mesmo que se formasse parecer favorável tácito do PNA, o mesmo seria nulo e acarretaria a nulidade dos atos impugnados nos termos do artigo 19.º, n.º 5, do Decreto Regulamentar 23/98, sem sustentar a nulidade do parecer favorável tácito em qualquer violação do disposto neste diploma ou nas normas materiais da Portaria 26-F/80, o Acórdão recorrido faz uma errada aplicação desta norma» - Conclusões 4ª, 5ª e 6ª;

- «As normas dos artigos 12.º, al. a), e 19.º, n.º 2, do Decreto Regulamentar 23/98, interpretadas no sentido de exigir parecer expresso favorável do PNA à realização de obras de construção, tal como decidido no Acórdão em crise, por adesão ao Acórdão do TCA Sul de 24.06.2018, no proc. n.º 312/08.5BEALM, conduz à sua inconstitucionalidade, por violação dos princípios da hierarquia das normas e do primado da lei consagrados no artigo 112.º, n.º 5, da Constituição, já que equivale a admitir a derrogação, por decreto regulamentar, do disposto em diploma legislativo – considere-se o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE) ou o anterior Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de novembro – que prevê, no artigo 19.º, n.º 9, do RJUE, que a ausência de parecer no prazo estabelecido equivale a concordância.
A lei habilitante do Decreto Regulamentar 23/98 – o Decreto-Lei n.º 19/93, de 23 janeiro, que estabelecia o regime da Rede Nacional de Áreas Protegidas – apenas lhe confere habilitação, nos termos do artigo 13.º, n.º 1, al. b) para definir os atos e atividades condicionados ou proibidos e não para regular os efeitos do silêncio do PNA em derrogação do regime legal geral, pelo que, os artigos 12.º, al. a), e 19.º, n.º 2, do Decreto Regulamentar interpretados no sentido de excluir o parecer favorável tácito, tal como preconizado no Acórdão recorrido, são inconstitucionais por violação do princípio de precedência de lei vertido no artigo 112.º, n.º 7, da Constituição.
Não existe nem nunca existiu qualquer norma na legislação aplicável no PNA a prever que a falta de resposta do PNA no prazo previsto vale como discordância, parecer desfavorável ou negativo, pelo que a interpretação do Tribunal recorrido de que existe “legislação específica” aplicável na área do PNA que afasta a regra geral de concordância tácita contida no artigo 19.º, n.º 9, do RJUE viola o disposto nesta norma e, ainda, o disposto no artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil por não ter o mínimo de apoio na letra da lei» - Conclusões 7ª, 8ª e 9ª;

- «O parecer desfavorável do PNA (…) sempre constituiria uma revogação ilegal do anterior parecer tácito favorável, que é constitutivo de direitos, à luz do disposto no artigo 140.º e 141.º do CPA então aplicáveis, pelo que nunca poderia fundamentar o indeferimento do licenciamento» - Conclusão 12ª;

- «O artigo 19.º, n.º 5, do Decreto Regulamentar 23/98 (…) contraria o princípio de precedência de lei dos regulamentos administrativos plasmado no artigo 112.º, n.º 7, da Constituição, considerando que, nos termos do artigo 133.º, nº 1, do CPA só são nulos os atos “para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade”, e o Decreto-Lei n.º 19/93, de 21 de janeiro, não confere qualquer habilitação ao decreto regulamentar para disciplinar o desvalor jurídico dos atos praticados em sua desconformidade» - Conclusão 13ª;

- «Ainda que o ato de licenciamento camarário fosse desconforme com os artigos 12.º, al. a), e 19.º, nº 2, do Decreto Regulamentar 23/98, seria meramente anulável nos termos do artigo 135.º do CPA vigente – anulabilidade sanada à data da propositura da ação pelo Ministério Público – e não nulo como declarado pelo Acórdão recorrido, que assim preteriu o estabelecido no artigo 135.º e 133.º, n.º 1, do CPA» - Conclusão 14ª;

- «O Decreto Regulamentar 23/98, donde constam as normas que imporiam parecer favorável expresso do PNA pretensamente violadas, não é um instrumento de gestão territorial, mas sim o diploma que regulava a aprovação de um instrumento de gestão territorial – o Plano de Ordenamento do PNA - pelo que, o Acórdão impugnado, ao concluir pela nulidade dos atos impugnados com fundamento nos artigos 2.º, n.º 2, al. c) do RJIGT, 68.º, al. a), do RJUE e 103.º do RJIGT, faz uma errada aplicação dessas normas e contraria o princípio da tipicidade dos instrumentos de gestão territorial vertido nos artigos 8.º e 9.º da Lei de Bases e no artigo 2.º do RJIGT, na versão então em vigor» - Conclusão 15ª;

- «Com o Decreto Regulamentar 23/98 a realização das obras de construção passou a estar sujeita a parecer vinculativo e não a autorização, nos termos do artigo 12.º, al. a), o qual revogou, assim, por força do disposto no artigo 20.º do Decreto Regulamentar, as normas da Portaria na parte em que exigiam autorização do PNA para obras de construção, nomeadamente os artigos 12.º, n.º 3, e 14.º, n.º 2 al. a) da Portaria aplicados pelo Tribunal recorrido por adesão ao acórdão do TCA Sul de 24.05.2018, proferido no proc. n.º 312/08.5BEALM» - Conclusão 16ª;

- «O Acórdão recorrido, ao decidir que os atos impugnados são nulos por violação de plano especial de ordenamento do território, padece de erro de Direito, fazendo uma errada interpretação e aplicação do 19.º, n.º 5, do Decreto Regulamentar 23/98, uma errada aplicação do artigo 68.º, al. a), do RJUE e do artigo 103.º do RJIGT, violando, ainda, o disposto no artigo 34.º da Lei de Bases, nos artigos 3.º e 154.º do RJIGT e o princípio da hierarquia das normas vertido no artigo 112.º da Constituição» - Conclusão 19ª.

10. Em litígios similares ao ora sub specie, este Supremo Tribunal, pelos muito recentes acórdãos de 15/10/2020 (proc. 1943/08.9BELSB) e de 29/10/2020 (proc. 312/08.5BEALM) – relativas a construções edificadas em prédios, tal como no caso do prédio destes autos, desanexados do mesmo prédio rústico original (cfr. alíneas a) a d) da matéria de facto dada como provada) -, teve já oportunidade de afirmar o seu entendimento quanto a idênticas questões que constituem objeto de discussão nesta sede, entendimento que, por inequivocamente transponível, aqui se acolhe e reitera/reafirma inteiramente.

11. Assim, o primeiro dos citados acórdãos, que manteve o juízo firmado no acórdão recorrido do TCAS, negando provimento ao recurso, assentou a sua fundamentação, em suma, na seguinte linha (seguida, também, pelo segundo acórdão citado) que, ao abrigo e considerando o disposto nos arts. 8º nº 3 do CC e 663º nº 5, do Código de Processo Civil (CPC), ex vi dos arts. 679º do CPC, 1º e 140º do CPTA, se passa a reproduzir:

«(…)

2.3. Segundo a recorrente, a interpretação feita pelo acórdão recorrido do artigo 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98, interpretação segundo a qual se deve exigir um parecer expresso favorável do PNA para a realização de obras de construção, é inconstitucional. Vejamos se lhe assiste razão.

A inconstitucionalidade deriva, segundo a ora recorrente, da violação dos princípios da hierarquia das normas e do primado da lei, consagrados no artigo 115.º, n.º 5, da CRP, e do princípio da precedência da lei, consagrado no artigo 115.º, n.º 7, da CRP.
De forma mais concreta, e no que toca, antes de mais, à alegada violação dos princípios da hierarquia das normas e do primado da lei, teria havido uma derrogação de um acto legislativo – o RJUE ou o anterior DL n.º 445/91, de 20.11 – por um acto regulamentar – o Decreto Regulamentar n.º 23/98, pelo facto de no primeiro diploma se consagrar que a ausência de parecer no prazo estabelecido equivale a decisão de concordância.
Começaríamos por salientar que a ora recorrente tende a confundir duas realidades distintas: uma coisa é a inconstitucionalidade de uma interpretação normativa (possível, de acordo com o n.º 3 do artigo 80.º da LOTC), outra coisa é a inconstitucionalidade da própria norma. Tendo em conta que o artigo 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98 não estabelece ele próprio, de forma explícita, a exigência de um parecer favorável expresso do PNA para a realização de obras de construção, não se pode defender que ele viola o princípio e as normas em causa.
Quanto à interpretação normativa que é feita pelo acórdão recorrido, embora a recorrente não identifique qualquer norma dos diplomas legislativos que cita que tenha sido desrespeitada, presumimos que se trata do artigo 19.º, n.º 9, do RJUE (diploma que revogou, entre outros, o DL n.º 445/91, de 20.11, igualmente convocado pela ora recorrente). O raciocínio em que se baseia a sua posição é simples: não regulando o Decreto Regulamentar n.º 23/98 os efeitos jurídicos do silêncio das entidades exteriores ao município, como é o PNA, aplica-se o artigo 19.º, n.º 9, do RJUE, norma de carácter geral que estabelece uma presunção de concordância relativamente a esse silêncio. Ora, ao decidir no sentido da exigência de um parecer favorável expresso, o acórdão recorrido teria incorrido em erro de julgamento em virtude da interpretação que faz do artigo 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98, a qual implicará a derrogação do artigo 19.º, n.º 9, do RJUE, norma contida em diploma legislativo. Não cremos que seja necessariamente assim. Com efeito, não obstante o Decreto Regulamentar n.º 23/98 tenha passado a distinguir entre os actos e actividades que carecem de autorização daqueles que carecem de parecer vinculativo, e não obstante isso significar que o legislador pretendeu distinguir as duas situações, isso não implica que se deva entender que em caso de silêncio se deve aceitar a presunção de concordância. Parece-nos um grande salto lógico que o legislador tenha passado de uma proibição de todo o tipo de trabalhos, obras ou actividades sem autorização do PNA para uma solução em que a não emissão ou não emissão atempada de um parecer vinculativo relativamente a certos actos e actividades equivale à concordância daquela entidade. Solução que também não combina muito bem com a gravidade da sanção de nulidade prevista no n.º 5 do artigo 19.º do Decreto Regulamentar n.º 23/98, preceito este que tem como epígrafe “Autorizações e pareceres vinculativos” (“São nulos e de nenhum efeito os actos administrativos que contrariem o disposto no presente diploma”). Cabe ainda recordar que o artigo 19.º do RJUE regula de forma genérica as relações entre os municípios e as entidades a eles exteriores, podendo aplicar-se a variadas e distintas operações urbanísticas, devendo salientar-se que a construção de obras particulares dentro ou fora da área de parques naturais não deve ser tratada da mesma maneira, o que implica que deva ser feita uma análise casuística de todas e cada uma das situações. Por último, resta sublinhar que a exigência de um parecer favorável expresso não é necessariamente afastada por esta opção do legislador em distinguir, no Decreto Regulamentar n.º 23/98, entre os actos e actividades que carecem de autorização e aqueles que carecem de parecer vinculativo. Com efeito, determina o artigo 20.º (Revogações) deste decreto regulamentar que “É revogada a Portaria n.º 26-F/80, de 9 de Janeiro, com excepção do disposto nos artigos 8.º a 16.º, em tudo o que não disponham em contrário ao presente diploma”. Ou seja, ainda que se entenda que o artigo 12.º da Portaria n.º 26-F/80, designadamente o seu n.º 3, foi revogado pelo artigo 12.º do Decreto Regulamentar n.º 23/98, porque naquele se fala em “autorização” e neste em “parecer vinculativo”, não se retira daqui de forma automática e inexorável que já não é exigível um parecer favorável expresso porque, verdadeiramente, aquele preceito da portaria nem sequer mencionava qualquer parecer vinculativo ou não. A única diferença é que antes exigia-se de forma genérica uma autorização prévia para quaisquer trabalhos, actos e actividades, agora, para certos actos e actividades devidamente identificadas, exige-se um parecer vinculativo prévio.
Em face de todo o exposto, pode concluir-se que não está afastada a solução da exigência de um parecer favorável expresso, sendo esta, segundo cremos, a solução mais acertada quando estamos em face de licenciamento de construções em áreas de parques naturais, como é o PNA, ou, dito de outro modo, é a solução mais consentânea com a necessidade de protecção dos bens constitucionais em jogo, que se impõem ao interesse dos particulares e ao seu direito de propriedade, sem, contudo, eliminar este último.
No que se refere à alegada violação do princípio da precedência da lei, argumenta a ora recorrente que o DL n.º 19/93, de 23.01 (diploma que estabelece a disciplina jurídica da Rede Nacional de Áreas Protegidas), lei habilitante do decreto regulamentar em apreço, “apenas lhe confere habilitação, nos termos do artigo 13.º, n.º 1, al. b), para definir os atos e atividades condicionados ou proibidos e não para regular os efeitos do silêncio do PNA”. Assim sendo, a interpretação do artigo 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98 “no sentido de excluir o parecer favorável tácito, tal como preconizado no Acórdão recorrido, é inconstitucional por violação do princípio de precedência de lei vertido no artigo 112.º, n.º 7, da Constituição”. Uma vez mais, será apreciada a interpretação do acórdão recorrido e não a norma propriamente dita. E, desde logo, chamaríamos a atenção para a circunstância de que o DL n.º 19/93, de 23.01, não é propriamente uma lei de autorização que tenha de definir o objecto, sentido e extensão da autorização. Mais ainda, o Decreto Regulamentar n.º 23/98 não é um regulamento de execução, antes configura um regulamento independente emanado pelo Governo (cfr. art. 112.º, n.º 6, in fine). Ora, em termos de relação entre os regulamentos independentes e as respectivas leis habilitantes – e deixando de parte a posição minoritária na doutrina nacional segundo a qual este tipo de regulamentos independentes não carece de lei habilitante, constituindo os artigos 112.º, n.º 6, e 199.º al. g) da CRP a sua habilitação directa e suficiente –, o que temos é que, os regulamentos independentes “não visam executar, complementar ou aplicar uma lei específica (não têm como objecto uma determinada lei), mas, sim, dinamizar a ordem jurídica em geral (em regra, um conjunto de leis), disciplinando ‘inicialmente’ certas relações sociais, seja no exercício de poderes próprios de produção normativa primária pelas comunidades auto-administradas (regulamentos autónomos), seja no exercício de competência universal do Governo em matéria administrativa (regulamentos independentes governamentais), seja no exercício de poderes normativos genéricos concedidos por lei a autoridades reguladoras (regulação independente)”. Relativamente aos regulamentos independentes governamentais, como é o caso do Decreto Regulamentar n.º 23/98, para a sua emissão basta, nos termos dos artigos 112.º, n.º 7, da CRP, e 136.º, n.º 2, do CPA, uma lei habilitante que defina a competência objectiva (matéria específica) e subjectiva (órgão competente) – cfr. J.C. VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, Coimbra, 2015, pp. 143 a 146 – “sem necessidade de definição do conteúdo dos comandos normativos a emitir pelo regulamento (liberdade de definição do conteúdo normativo. (…) Tais regulamentos não vêm, assim, complementar qualquer lei anterior, eventualmente carecida de regulamentação por via administrativa: a sua missão é, antes, estabelecer autonomamente a disciplina jurídica que há de pautar a realização das atribuições específicas cometidas pelo legislador às entidades consideradas” (cfr. D. FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. II, 2016, Coimbra, pp. 152-3). Em face desta compreensão dos regulamentos independentes, e tendo em consideração a concreta argumentação utilizada pela ora recorrente, constata-se que a mesma não é de molde a fundar a alegada violação do princípio da precedência da lei por parte da interpretação normativa adoptada pelo acórdão recorrido.

2.4. Alega igualmente a recorrente que houve uma errada interpretação e aplicação do artigo 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98. No entender da ora recorrente, ao acolher o entendimento preconizado pela sentença da 1.ª instância, segundo o qual é exigível um parecer favorável expresso do PNA para viabilizar as obras de construção, o acórdão recorrido incorreu em errada interpretação e aplicação do artigo 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98 conjugado com o disposto no artigo 19.º, n.º 9, do RJUE. Mais ainda, erra igualmente quando afirma que existe legislação específica aplicável na área da PNA que afasta a regra geral da concordância tácita consagrada no artigo 19.º, n.º 9, do RJUE, violando não apenas esta disposição, mas, de igual modo, o artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil (CC).
Vejamos se tem razão.

O acórdão recorrido, efectivamente, acompanha o raciocínio da decisão da 1.ª instância quanto à necessidade de um parecer favorável expresso, devendo afastar-se, in casu, a aplicação da presunção de concordância que consta do artigo 19.º, n.º 9, do RJUE nos casos de inércia da Administração ou da emissão fora do prazo do necessário parecer. No seu entender, este último preceito encerra uma regra geral que não se aplica em face da especificidade da protecção dos bens existentes no PNA, especificidade que se comprova com a convocação de vários preceitos que regularam e que regulam ainda hoje este parque natural. Admitindo que o artigo 12.º, al. a), não menciona qualquer parecer favorável expresso, retira essa exigência de outros preceitos como o artigo 17.º da Portaria n.º 26-F/80 e os artigos 15.º, n.º 1, e 19.º, n.º 5, Decreto Regulamentar n.º 23/98. Deixando de parte o mencionado artigo 17.º da portaria, revogado pelo decreto regulamentar em apreço (e, portanto, não aplicável ao caso dos autos), temos que o acórdão recorrido estima que o decreto regulamentar que reclassificou o PNA estabelece ele próprio a solução para os casos de silêncio da Administração ao determinar que constitui contra-ordenação a construção de imóveis sem as autorizações e os pareceres vinculativos nos artigos 11.º e 12.º (art. 15.º, n.º 1) e ao cominar com a nulidade os actos administrativos que contrariem o disposto no decreto regulamentar em apreço (art. 19.º, n.º 5). Vale isto por dizer que são estes os preceitos que consubstanciarão a legislação específica que afasta a aplicação do artigo 19.º, n.º 9, do RJUE. Sublinha ainda o acórdão recorrido que não é visível na disciplina vigente relativa ao PNA que o legislador tenha alterado, no sentido de atenuar, a protecção dos bens existentes no Parque. Esta argumentação que extraímos da fundamentação da decisão contida no acórdão recorrido vai ao encontro do que foi já dito supra quando se analisou da alegada inconstitucionalidade da interpretação que foi feita pelo acórdão recorrido do artigo 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98, reiterando-se agora, de forma sintética, que a interpretação feita é uma interpretação possível, enquadrável na teleologia de várias normas do Decreto Regulamentar n.º 23/98 e a que melhor vai ao encontro das preocupações e objectivos do legislador em torno da necessidade de proteger os bens existentes no PNA. Acrescentaríamos apenas, para reforçar esta ideia da estrita conexão entre a exigência de um parecer favorável expresso e a importância dos bens a proteger, a circunstância de ser exigido um parecer vinculativo do PNA, sabendo-se que a regra na nossa ordem jurídico-administrativa é a da não vinculatividade dos pareceres. E, quanto aos primeiros, “quando as conclusões do parecer têm necessariamente de ser seguidas pelo órgão competente para decidir, na realidade a entidade que emite o parecer também decide. Aliás, esta é que será a verdadeira decisão: a decisão da segunda entidade é apenas a formalização de algo que já estava pré-determinado no parecer. Neste último caso, sempre que o parecer seja vinculativo, do que se trata é do ato administrativo ter dois autores: um é o órgão consultivo ou o especialista que emite o parecer vinculativo, e o outro é o órgão com competência para tomar a decisão definitiva, mas que é obrigado a seguir as conclusões do parecer” (cfr. D. FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. II, 2016, Coimbra, pp. 251-2). Ainda a este propósito, retenha-se que o CPA, na versão actualmente vigente, possibilita a emissão de decisão final no procedimento mesmo sem o parecer obrigatório facultativo, desde que tenha havido uma prévia interpelação do órgão a consultar por parte do responsável pela direção do procedimento (“6 - No caso de o parecer obrigatório ser vinculativo, a decisão final só pode ser proferida sem a prévia emissão daquele desde que o responsável pela direção do procedimento tenha interpelado, no prazo de 10 dias, o órgão competente para o emitir, sem que este o tenha feito no prazo de 20 dias a contar dessa interpelação”). Solução que não existia na versão vigente à data da prática do acto impugnado, quando o então artigo 99.º do CPA apenas se referia aos pareceres não vinculativos (“3 - Quando um parecer obrigatório e não vinculativo não for emitido dentro dos prazos previstos no número anterior, pode o procedimento prosseguir e vir a ser decidido sem o parecer, salvo disposição legal expressa em contrário”. Como facilmente se pode concluir, o sentido e alcance da previsão de um parecer vinculativo não se compadece muito bem com a tese de que o 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98 não pode ser interpretado no sentido de exigir um parecer favorável expresso. Nessa medida, e tendo em conta todos os aspectos em concreto apreciados, não se pode dar por verificado o erro de julgamento relativo à interpretação do artigo 12.º, al. a), e nem a violação do artigo 19.º, n.º 9, do RJUE.

2.5. Imputa ainda a recorrente ao acórdão recorrido nova violação do princípio da precedência da lei (art. 112.º, n.º 5, da CRP) ao defender que o n.º 5 do artigo 19.º do Decreto Regulamentar n.º 23/98, aplicado pelo acórdão recorrido como fundamento da nulidade do acto de licenciamento camarário o n.º 5 do artigo 19.º do Decreto Regulamentar n.º 23/98, viola o princípio da precedência da lei sobre os actos regulamentares. As leis desrespeitadas são o CPA – mais concretamente, o seu artigo 133.º, n.º 1 (segundo o qual “só são nulos os atos «para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade»” – e o DL n.º 19/93, de 21.01 que “não confere qualquer habilitação ao decreto regulamentar para disciplinar o desvalor jurídico dos atos praticados em sua desconformidade”.
Como se verá de seguida, não lhe assiste razão.

No que concerne à relação do Decreto Regulamentar n.º 23/98 com o DL n.º 19/93, de 21.01, remetemos para o que já foi dito no ponto 2.3. Cumpre apenas acrescentar, deste modo, que o artigo 68.º do RJUE, a partir da sua segunda versão introduzida pelo DL n.º 177/2001, de 04.06, passou a prever a nulidade das licenças quando não tenham sido precedidas de consulta das entidades cujos pareceres são legalmente exigíveis. Como visto supra, de nada vale argumentar que foi solicitado ao PNA o devido parecer. Assim sendo, também não procede a alegação da ora recorrente de que o desrespeito do artigo 12.º, al. a), apenas geraria a mera anulabilidade nos termos do artigo 135.º do CPA, pelo que o acórdão recorrido, e antes dele o acto impugnado, teriam violado esse preceito e, bem assim, o artigo 133.º, n.º 1, do CPA.

2.6. A ora recorrente chama também a atenção para a circunstância de que o Decreto Regulamentar n.º 23/98 revogou parcialmente a Portaria n.º 26-F/80, tendo, por força do seu artigo 20.º, revogado os artigos 12.º, n.º 3, e 14.º, n.º 2, al. a), com isso passando a realização das obras de construção dentro da área do PNA a estar sujeita a prévio parecer vinculativo e não a autorização (art. 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98). Errou, desta forma, o acórdão recorrido ao julgar aplicáveis aqueles preceitos revogados da portaria em questão para fundar a nulidade do acto de licenciamento camarário, em violação dos artigos 12.º, al. a), e 20.º do Decreto Regulamentar n.º 23/98.
Vejamos.

Na parte final do ponto 3. do acórdão recorrido pode ler-se o seguinte:
“O acto de licenciamento da construção emitido pelo Município de Setúbal não se conforma com o Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida, em face do disposto nos artigos 12.º e 14.º, n.º 2, al. a) da Portaria n.º 26-F/89, de 09/10 e do artigo 20.º do Decreto Regulamentar n.º 23/98, de 14/10, enfermando de nulidade os actos praticados em sua violação, em face do que dispõe o n.º 5 do artigo 19.º do Decreto Regulamentar n.º 23/98, de 14/10, o qual sendo um plano especial de ordenamento do território convoca a aplicação do disposto no artigo 68.º do RJUE e dos artigos 2.º, n.º 2, al. c) e 103.º do D.L. n.º 380/99, de 22/09”.
Antes deste remate final, explicava-se no acórdão recorrido, que aqui acompanha a sentença da 1.ª instância, que o acto impugnado considerou que não deveria ter sido concedido a licença camarária para a construção peticionada porque, entre outras coisas, não havia o necessário parecer favorável expresso, tal como exigido pelo artigo 12.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 23/98. Reconhecendo que uma tal exigência não está disposta de forma explícita nessa norma, procura arranjar sustentação jurídica para esta sua orientação. Entre os normativos que convoca para alicerçá-la estão, como se viu, os artigos 12.º, n.º 3, e 14.º, n.º 2, al. a), da Portaria n.º 26-F/80. Entende a ora recorrente que estes preceitos não poderiam ser aplicados porque revogados por força do artigo 20.º do Decreto Regulamentar n.º 23/98, com a epígrafe “Revogações”. Na realidade, o que este preceito estabelece é que “É revogada a Portaria n.º 26-F/80, de 9 de Janeiro, com excepção do disposto nos artigos 8.º a 16.º, em tudo o que não disponham em contrário ao presente diploma”. Ora, o que a recorrente diz é que o artigo 12.º da portaria previa genericamente a necessidade de autorização para levar a cabo trabalhos, actos e actividades e que com o decreto regulamentar passou a distinguir-se entre os actos e actividades que carecem de autorização (11.º) e os que carecem de parecer vinculativo (art. 12.º), com isto sendo claro que o legislador pretendeu estabelecer uma distinção de situações, consoante se entenda que é necessária uma autorização ou um parecer vinculativo. Quanto a isso, não temos dúvidas, mas o que o acórdão recorrido pretendeu demonstrar foi que essa proibição de trabalhos, actos e actividades na ausência de autorização significa que estava em causa a necessidade de uma autorização expressa. Defender que esta solução não vale para aquelas situações em que agora apenas se exige um parecer vinculativo como condição para o licenciamento de novas construções não é uma decorrência lógica das alterações legislativas em causa. Das duas uma: ou o n.º 3 do artigo 12.º da portaria foi, pura e simplesmente revogado, e a verdade é que a recorrente não demonstra em que medida a sua manutenção em vigor dispõe em contrário “ao presente diploma”, pois apenas diz que não é aplicável naquelas situações em que agora se exige um parecer vinculativo; ou, como parece ser a posição da ora recorrente, só é revogado em relação a estas últimas situações. Sucede que esta tese não convence. Além de que seria uma duvidosa revogação selectiva, sempre se poderá contra-argumentar que se era essa a intenção do legislador ele deveria ter transposto este segmento para o novo artigo 11.º do decreto regulamentar, o que não fez. Significa isto que, extraindo o acórdão recorrido do n.º 3 do artigo 12.º da Portaria n.º 26-F/80 a ideia de que é necessário um parecer favorável expresso, e na medida em que essa conclusão não disponha contra o Decreto Regulamentar n.º 23/98, o que a recorrente não chega a demonstrar de forma cabal, não se pode afirmar que tenha havido revogação deste preceito na parte em que, de forma implícita, é certo, requer uma “autorização” expressa. Tal como não se pode afirmar que esta exigência apenas vale para aquelas situações para as quais se exige actualmente uma autorização e não para aquelas em que se exige agora um parecer vinculativo. Defender esta posição não significa convolar autorizações em pareceres vinculativos. Significa apenas que uma regra genérica que valia para determinadas situações continuou a ser genérica, não obstante essas situações tenham sido realojadas em dois preceitos distintos. Com isto, o que temos, é que tanto as autorizações como os pareceres vinculativos prévios têm de ser expressos, sob pena de invalidade do acto de licenciamento. Como visto antes, no que se refere aos pareceres obrigatórios vinculativos, como é aquele exigido pelo artigo 12.º do Decreto Regulamentar n.º 23/98, esta solução apresenta-se plena de sentido. Resta dizer que foi com a Resolução do Conselho de Ministros n.º 141/2005, de 23.08 que finalmente foram revogados os artigos 12.º a 16.º da Portaria n.º 26-F/80. Em face de todo o exposto deve improceder mais esta alegação da recorrente.
Ainda a este propósito, sustenta a ora recorrente que o acto impugnado nem sequer invoca qualquer norma da portaria em apreço que tenha sido preterida, razão pela qual padece de vício de violação da lei e deveria ter sido anulado de acordo com o artigo 135.º do CPA. Na medida em que a recorrente nada assaca ao acórdão recorrido quanto a este específico aspecto, nada há que apreciar.

2.7. Sublinha a ora recorrente a circunstância de que o acórdão recorrido “ao decidir que a Portaria 26-F/80 é um plano especial de ordenamento do território cuja violação dita a nulidade do ato de licenciamento camarário, padece de erro de Direito, fazendo uma errada interpretação e aplicação do artigo 68.º, al. a), do RJUE e do artigo 103.º do RJIGT, violando, ainda, o disposto no artigo 34.º da Lei de Bases de Política de Ordenamento do Território e de Urbanismo e nos artigos 3.º e 154.º do RJIGT” (alegação 19.ª). Como se pode constatar, a recorrente parece não concordar com a “decisão” do acórdão recorrido no sentido de qualificar a Portaria n.º 26-F/80 como um plano especial do ordenamento do território, “decisão” essa que terá feito o acórdão recorrido incorrer em outros erros de julgamento. Comecemos por apreciar a primeira parte da alegação da recorrente.

O DL n.º 622/76, de 28.07, criou o Parque Natural da Arrábida (PNA); a Portaria n.º 26-F/80 aprovou o regulamento do Parque Natural da Arrábida e com ele o respectivo plano de ordenamento preliminar; o Decreto Regulamentar n.º 23/98 estabeleceu a reclassificação do Parque Natural da Arrábida. Ou seja, estamos perante um “parque natural”, uma categoria de área protegida de âmbito nacional nos termos do artigo 2.º, n.º 3, al. c), do DL n.º 19/93, de 23.01. Por sua vez, o artigo 1.º, n.º 3, do DL n. 151/95, estabelece que “Os tipos de planos especiais de ordenamento do território, para os efeitos do presente diploma, são os previstos no seu anexo, que dele faz parte integrante”. No mencionado anexo vêm mencionadas, no seu n.º 5, os “Planos de ordenamento de áreas protegidas”.
O Plano de Ordenamento do Parque Nacional da Arrábida apenas foi criado em 2005, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 141/2005, de 23.08, depois dos actos jurídico-privados que deram lugar ao fraccionamento e transmissão do imóvel rústico, ao pedido de parecer do município de Setúbal ao PNA e ao despacho do Vereador da Câmara Municipal de Setúbal que emitiu a licença de construção. Até a essa data, vigorou o plano de planeamento preliminar publicado com a Portaria n.º 26-F/80 a que faz referência o n.º 3 do artigo 18.º do Decreto Regulamentar n.º 23/98 (“Até à aprovação do plano de ordenamento referido no n.º 1, aplica-se o plano de ordenamento preliminar e o regulamento publicados pela Portaria n.º 26-F/80, de 9 de Janeiro, incluindo as interdições e condicionamentos nele previstos, em tudo o que não seja contrário ao disposto no presente diploma”).
Em conclusão, e perante os normativos acabados de convocar, o plano de ordenamento preliminar do PNA deve ser considerado um plano especial de ordenamento do território (PEOT). A esta conclusão não obsta o disposto no artigo 154.º do DL n.º 380/99, de 22.09. Este preceito deve ser interpretado de acordo com aquela que era a intenção do legislador, a qual ficou bem expressa na lei de bases de 2008 (Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e do Urbanismo/LBPOTU – Lei n.º 48/98, de 11.08), sob pena de se desrespeitar a parametricidade material das leis de bases sobre os diplomas legislativos que as desenvolvem. Vejamos, então, como entender o mencionado artigo 154.º a partir do que estava pré-determinado na lei de bases.
Das disposições finais e transitórias da LBPOTU constavam os artigos 31.º (Planos regionais de ordenamento do território), 32.º (Planos municipais de ordenamento do território), 33.º (Planos especiais de ordenamento do território) – aí definidos como “Os planos especiais de ordenamento do território são os planos de ordenamento de áreas protegidas, os planos de ordenamento de albufeiras de águas públicas e os planos de ordenamento da orla costeira” – e o artigo 34.º (Outros planos) que assim dispunha:
“1 - Todos os instrumentos de natureza legal ou regulamentar com incidência territorial actualmente existentes deverão ser reconduzidos, no âmbito do sistema de planeamento estabelecido pela presente lei, ao tipo de instrumento de gestão territorial que se revele adequado à sua vocação específica.
2 - O disposto no número anterior deverá considerar que:
a) A produção de quaisquer efeitos jurídicos externos pelos instrumentos com incidência territorial a integrar no sistema de planeamento territorial dependerá sempre, nos termos do artigo 11.º, n.º 2, da presente lei, da possibilidade de converter aqueles instrumentos em planos municipais de ordenamento do território ou em planos especiais de ordenamento do território;
b) Além de determinar o alcance dos efeitos jurídicos a produzir, a integração em qualquer das categorias de instrumentos de gestão territorial legalmente previstas impõe o cumprimento das regras relativas à respectiva elaboração, aprovação e entrada em vigor;
c) A integração nas categorias previstas no sistema de gestão territorial deverá fazer-se no prazo de dois anos a contar da entrada em vigor da presente lei, findo o qual deixam de vincular os particulares todos os instrumentos de natureza legal ou regulamentar com incidência territorial que não se enquadrem no elenco típico legalmente estabelecido.
3 - No prazo máximo de 180 dias, o Governo definirá em diploma próprio o procedimento a adoptar”.
A melhor interpretação a dar a este último preceito, porque a mais lógica, é a de que a recondução a que se refere o n.º 1 é para aqueles “outros planos” que não se enquadravam em nenhum dos instrumentos com incidência territorial do “sistema de planeamento estabelecido pela presente lei, ao tipo de instrumento de gestão territorial que se revele adequado à sua vocação específica”. Ora, o plano do ordenamento preliminar do PNA, enquanto plano de ordenamento de áreas protegidas, já era juridicamente considerado um plano especial de ordenamento do território, categoria igualmente acolhida na LBPOTU, que o definia no seu artigo 33.º como “os planos de ordenamento de áreas protegidas, os planos de ordenamento de albufeiras de águas públicas e os planos de ordenamento da orla costeira”. Era naqueles “outros planos” que era necessário identificar a produção de efeitos jurídicos externos, sendo certo que os planos especiais de ordenamento do território, enquanto planos plurisubjectivos, produzem efeitos externos. A al. a) do n.º 2 do artigo 154.º é a expressão acabada disso: “a) A produção de quaisquer efeitos jurídicos externos pelos instrumentos com incidência territorial a integrar no sistema de planeamento territorial dependerá sempre, nos termos do artigo 11.º, n.º 2, da presente lei, da possibilidade de converter aqueles instrumentos em planos municipais de ordenamento do território ou em planos especiais de ordenamento do território” [negritos nossos].
O DL n.º 380/99, de 22.09, que desenvolveu as bases da LBPOTU, alterou a sistematização da lei de bases, e nas suas disposições finais e transitórias apenas manteve, para o que agora nos interessa, o artigo 153.º, relativo aos planos regionais de ordenamento do território, e o artigo 154.º dedicado aos outros planos, com o conteúdo que seguidamente se reproduz:
“1 - Todos os instrumentos de natureza legal ou regulamentar com incidência territorial actualmente existentes continuam em vigor até à respectiva adequação ao sistema de gestão territorial estabelecido neste diploma, nos termos previstos nos números seguintes.
2 - Compete às comissões de coordenação e desenvolvimento regional a identificação no prazo de um ano das normas directamente vinculativas dos particulares a integrar em plano especial ou em plano municipal de ordenamento do território.
3 - O Governo e as câmaras municipais devem promover, nos 180 dias subsequentes à identificação referida no número anterior, a correspondente alteração dos planos especiais e dos planos municipais de ordenamento do território.
4 - Os instrumentos com incidência territorial não abrangidos pelo disposto nos n.ºs 2 e 3 continuarão em vigor com a natureza de planos sectoriais”.
Os planos especiais de ordenamento do território vêm definidos no n.º 3 do artigo 42.º como “Os planos especiais de ordenamento do território são os planos de ordenamento de áreas protegidas, os planos de ordenamento de albufeiras de águas públicas e os planos de ordenamento da orla costeira” [negrito nosso].
Em face de tudo isto, pretender, como o faz a recorrente, que o plano de ordenamento preliminar do PNA é um plano sectorial nos termos do n.º 4 do artigo 154.º é, além do mais, e como se viu, uma interpretação inconstitucional do preceito em questão, na medida em que implicaria que esse preceito contraria as bases da LBPOTU, lei com valor reforçado nos termos do artigo 112.º, n.º 3, da CRP (“Têm valor reforçado (…) as leis que, por força da Constituição, sejam pressuposto normativo necessário de outras leis”, como é manifestamente o caso das leis de bases relativamente aos decretos-leis que as desenvolvem). Aliás, como igualmente não poderia deixar de ser, o artigo 157.º (Regime transitório) não refere a necessidade da recondução/adequação dos planos especiais com a aprovação em curso aquando da entrada em vigor do RJIGT porque, obviamente, já estavam a ser criados como planos especiais. Finalmente, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 141/2005, de 23.08, que aprova o plano de ordenamento territorial do PNA toma-o como um plano especial de ordenamento do território.

Passemos, agora, à segunda parte da alegação da recorrente.
O artigo 68.º, n.º 1, al. a), do RJUE estabelecia o seguinte: “São nulas as licenças, a admissão de comunicações prévias ou as autorizações de utilização previstas no presente diploma que: a) Violem o disposto em plano municipal de ordenamento do território, plano especial de ordenamento do território, medidas preventivas ou licença de loteamento em vigor”.
O artigo 2.º (Sistemas de gestão territorial), n.º 2, do RJIGT dispunha do seguinte modo: “O âmbito nacional é concretizado através dos seguintes instrumentos: (…) c) Os planos especiais de ordenamento do território, compreendendo os planos de ordenamento de áreas protegidas, os planos de ordenamento de albufeiras de águas públicas, os planos de ordenamento da orla costeira e os planos de ordenamento dos estuários”.
Por sua vez, o n.º 2 do artigo 3.º (Vinculação jurídica) do mesmo diploma determina que “Os planos municipais de ordenamento do território e os planos especiais de ordenamento do território vinculam as entidades públicas e ainda directa e imediatamente os particulares”.
No seu artigo 103.º (Invalidade dos actos) pode ler-se: “São nulos os actos praticados em violação de qualquer instrumento de gestão territorial aplicável”.
Tendo em conta que o plano de ordenamento preliminar é/era um plano especial de ordenamento do território e, ainda, o teor dos preceitos acabados de mencionar, que se aplicam ao PNA, não se vê como tenha errado o acórdão recorrido quando afirma que a sua violação por acto de licenciamento camarário gera uma situação de nulidade (não sendo despiciendo lembrar que, com o RJUE, a nulidade passou a ser a regra no âmbito do direito do urbanismo, em contracorrente com o direito administrativo geral) ou quando afirma que, enquanto plano daquele tipo, vincula também os particulares.
Cabe, ainda, salientar que não tem razão a recorrente quando afirma que o acórdão recorrido aplicou uma norma revogada, mais concretamente o artigo 9.º, n.º 2, do DL n.º 622/76, de 28.07, para fundar a nulidade do licenciamento camarário. Com efeito, essa norma é mencionada no âmbito de um apanhado histórico da disciplina jurídica do PNA, não decorrendo daqui que o acórdão funde nela a nulidade do acto de licenciamento camarário (…)».

12. De tudo o que vem assim explicitado, é de concluir que improcedem in toto as críticas acometidas pelo recorrente ao acórdão recorrido e, nessa medida, importa negar provimento ao presente recurso com a consequente manutenção da decisão objeto de impugnação.

13. Complementarmente, ainda acrescentaremos, com relevância, o seguinte:

Consta das duas últimas alíneas da matéria dada como provada, alíneas hh) e ii) (cfr. ponto 8 supra):

«hh) Em 03/04/2008, a contra-interessada A………….. intentou acção administrativa especial de impugnação do despacho referido em ff), que corre termos neste Tribunal, Processo n.º 308/08.7BEALM [informação disponível no SITAF]»; e

«ii) Em 21/02/2011, foi proferida sentença no processo identificado em hh), que julgou a acção improcedente [documento de fls. 301 a 333 dos autos]».

Ora, o processo 308/08.7BEALM referido na alínea hh) – que a aqui Contrainteressada/Recorrente intentou contra o “Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, ICNB”, em que interveio, a título principal, o “Município de Setúbal”, findou com a sentença do TAF/Almada de 21/02/2011, referida na alínea ii), entretanto transitada em julgado (cfr. consultável no SITAF).

Nessa sentença julgou-se:

«(…) vem a Autora requerer que seja “anulado ou declarado nulo o despacho de 29/11/2007 … da autoria da Directora do Departamento de Gestão de Áreas Classificadas do Litoral de Lisboa e Oeste … que determinou a demolição da obra devidamente licenciada pela Câmara Municipal de Setúbal, que a A. realizou na Estrada ……….. – Casais……...”
Suscitadas que são diversos vícios no procedimento controvertido, importa analisar os mesmos. (…)
Em face de tudo quanto ficou dito, mostra-se manifesto que o Alvará em causa é nulo nos termos do art. 19º n.º 5 do Decreto Regulamentar nº 23/98, de 14 de Outubro:
A. Porque foi emitido sem o parecer prévio da Entidade Demandada, nos termos dos art. 19º n.º 2 do Decreto Regulamentar nº 23/98, de 14 de Outubro e artigos 16º, 17º, 18º, 19º e 50 nº 1 alínea b) do Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros nº 141/2005, de 23 de Agosto;
B. Porque desrespeitou as normas constantes, nomeadamente, dos arts. 12º e 14º da Portaria 26-F/80, de 4 de Janeiro, então em vigor.
(…)
A referida Portaria 26-F/80, de 9 de Janeiro, que aprovou o Regulamento do Parque Natural da Arrábida, enquadra-se na noção de Plano Especial e nos seus objectivos, nos termos dos arts. 42º e 43º do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro.
(…)
Em face de tudo quanto supra ficou abundantemente expendido, não se vislumbra que o acto objecto de impugnação mereça censura susceptível de determinar a sua anulação, ou declaração de nulidade.
(…)
V - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a presente acção, não se anulando ou declarado nulo o despacho de 29/11/2007 … da Directora do Departamento de Gestão de Áreas Classificadas do Litoral de Lisboa e Oeste … que determinou a demolição da obra licenciada pela Câmara Municipal de Setúbal, que a A. realizou na Estrada ………. – Casais ………».


Isto significa que houve já decisão judicial, transitada em julgado, confirmativa da legalidade do despacho que ordenou a demolição das obras em causa nos presentes autos – despacho de 29/11/2007 referido nas alíneas ff) e gg) da matéria de facto dada como provada nos presentes autos (cfr. ponto 8 supra).

É certo que ali estava em causa a legalidade do despacho de 29/11/2007 da Diretora do Departamento de Gestão de Áreas Classificadas do Litoral de Lisboa e Oeste, do “ICNB”, que manteve a ordem de demolição; e, nos presentes autos, estão em causa atos diferentes - os prévios atos da Câmara Municipal de Setúbal, de 10/10/2003, que licenciou a construção da obra, e de 15/12/2004, que deferiu o pedido de emissão do correspondente alvará.

No entanto, as questões ali discutidas, cuja apreciação conduziu àquele julgamento (transitado em julgado) de legalidade do ato de 29/11/2007, são as mesmas que as questões que a Contrainteressada/Recorrente aqui coloca, e volta a discutir, no âmbito da presente ação, pelo que sempre se pode dizer que, ao menos substancialmente, uma decisão contrária à que aqui também se entende de tomar, entraria em contradição com decisão judicial anterior transitada em julgado.


*


IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202º da Constituição da República Portuguesa, em:

Negar provimento ao presente recurso jurisdicional de revista deduzido pela Contrainteressada A………………, mantendo o Acórdão recorrido.

Custas a cargo da Contrainteressada/Recorrente.

D.N.

Lisboa, 18 de fevereiro de 2021 - – Adriano Cunha (relator, que consigna e atesta que, nos termos do disposto no art. 15º-A do DL nº 10-A/2020, de 13/3, aditado pelo art. 3º do DL nº 20/2020, de 1/5, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento, Conselheiro Carlos Luís Medeiros de Carvalho e Conselheira Maria Benedita Malaquias Pires Urbano) – Carlos Carvalho – Maria Benedita Urbano.